\,
Autopoiess, Auto-organizagao e Temporalidade
Michel Debrun
Autopoiese, desenvolvimento auto-referencial, profecia auto-realizadora e
auto-organizagio formam uma linha de atos ou processos “auto”, ao longo
da qual o papel da temporalidade vem crescendo.
Gostariamos de examinar e cotejar os dois extremos dessa linha ~ autopoi-
ese e auto-organizagio. Nos dois casos temos hierarquias “acavaladas”, isto
6, hierarquias em que existem interferéncias entre um pélo superior e um pélo
inferior, € que contrastam com as hierarquias simples, do tipo sujeito/objeto
ou senhor/stidito, em que os dois pélos permanecem estanques. Sé que essas
hierarquias so “acavaladas” de modo diferente segundo se trata da auto-
poiese, em que o carter “limpo” (pela distingao nitida dos dois niveis) do
acavalamento se relaciona com a atemporalidade do fenémeno; ou da auto-
organizagéo, em que o carter ambiguo ou irresolvido das fronteiras entre os
dois nfveis (é por isso que falamos de “hierarquias acavaladas sujas”) enseja
desdobramentos relativamente imprevisiveis. 5, portanto, a introdugio do
tempo,
Hierarquias “acavaladas limpas” esto presentes, por exemplo, nos atos
lingiifsticos ilocuciondrios: se eu disser “prometo”, eu faco por isso mesmo
uma promessa, Dizer, no caso, é logo fazer. A identidade de contetido entre
os dois pélos no impede, porém, que eles sejam analiticamente distinguiveis
(dizer & 0 pélo gerador ou “definidor”, fazer o pélo gerado ou “definido”). B
justamente a conjugacdo da identidade material entre eles com o rigor da dis-
tinggo conceitual que faz com que a passagem do dizer para o fazer seja uma
geracio (em virtude da distingio analitica), mas uma geracéo instanténea ou
atemporal (em virtude da identidade material). Um raciocinio anélogo vale-
ria para um enunciado do tipo “Esta frase contém cinco palavras”, em que
um ato metalingiifstico se refere, criando-o de certo modo, a um conteido
da Iingua-objeto materialmente idéntico ao seu. Acrescente-se que os atos
autopoiéticos se esgotam na sua formulagio. Fecham-se neles préprios, nlio
podendo ser vistos como ponto inaugural de um desenvolvimento ulterior.
B essa “criagdo” que nos permite falar em autopoiese, usando essa pala-
vra num sentido que parece, senio idéntico, “isomorfo” ao sentido proposto
por bidlogos ¢ fildsofos da biologia como Maturana e Varela. Véem, com
efeito, a célula como “autoproduzindo-se” e como fechada no seu contorno,
a natureza dos seus estados internos no sendo influenciada pelo ambiente,
que sé determina a ordem de seqiiéncia desses estados. Resta saber, é claro
(0 que extravasa do quadro dessa commumieagio), se tal enfoque é aceitavel
em biologia. z Ms
Passaremos em seguida para a auto-organizagio. Mais exatamente paraa auto-organizagio “priméria” em que um Todo se constitui pela interagio,
sem supervisor, de elementos inicialmente separados. Tal interagéo pode se
dar a partir de varias condigées de base:
a) Existe, ou no, “contorno”. Ou seja, os elementos que vao participar
do processo jé foram delimitados; ou entio novos elementos poderio entrar,
de um modo aleatério, ao longo do processo, como outros poderdo sair. No
primeiro caso admitiremos que existe, desde a partida, um’ sistema, No se-
gundo caso falaremos em “amontoado” . Pode haver situacées intermediri
um sistema dito “aberto” 6, conforme os casos, mais perto do que chamamos
de’sistema, ou inversamente. E também é possivel que, ao longo do processo,
um’amontoado'evolua para um Sistema
b) Existem, ou néo, “prescrigdes de partida”. Nao havendo prescricées,
08 encontros entre elementos se dardio de modo aleatério, sem nenhuma fina-
lidade ou “canalizagio” prévia, Havendo prescrigies, ¢ isso é em geral 0 caso
da auto-organizacio a nivel humano, elas poderéo consistir:
~ em regras explicitas ou implicitas. Regras de um jogo de futebol, de
funcionamento de um mercado, do tom ou estilo de uma conversa, etc ...
~ em alvos, competitivos ou cooperativos, dos participantes
= na homogeneidade (absoluta ou relativa) ou nao dos participantes.
Isso posto, a evolucdo das interagdes entre’os elementos pode, mas nem
sempre, desembocar na constituigio de um Todo capaz de alcancar certa
autonomia em relagio as interacGes das suas partes, ¢ de dominé-las par-
cialmente (tanto as partes como as proprias interagées). E nesse momento
que se falaré do “marasmo que tomou conta do jogo", da “expectativa oti-
mista do mercado em conjunto”, da “animagéo da conversa”. Mas, devido &
origem do processo (as partes precederam 0 Todo), a hierarquia que vem se
estabelecendo seré de natureza “acavalada suja”. Ou seja:
— as ftonteiras entre o Todo e as partes serdo indecisas, ou mesmo “inde-
cidiveis”; nem sempre seré possivel determinar, de modo plausivel, se lidamos
com “a agio do Todo sobre as partes”, “a interacéo das partes entre si”, “a
interagio das partes reforcando (ou enfraquecendo) 0 Todo”.
= a propria ambiguidade evoluiré para mais ou para menos, devido em
particular & reacio, diferenciada, dos participantes a essa ambiguidade (que
tentario, consciente ou inconscientemente, aumentar ou diminuir).
= mesmo que a consolidacéo do Todo se confirme, ele no chegard, a néo
ser assintoticamente, a se relacionar com as partes segundo uma hierarquia
nitida, do tipo senhor/stidito.
Diremos que essa interpenetracéo entre partes e Todo caracteriza uma
relacdo entre tipos “ontoldgicos”, distinta da relagio entre tipos “légicos” no
sentido de Russell, presente na autopoiese.
Pretende-se, entio, mostrar que essas “heterogeneidades dentro da uni-dade" tém conseqiiéncias importantes no que diz. respeito & espacialidade e
temporalidade dos fenémenos de auto-organizacéo. Limitando-nos & questo
da temporalidade, diremos que a auto-organizagio:
‘8) 96 6 compativel com uma temporalidade real, e no apenas matemética
b) demonstra sensibilidade as condigées iniciais
c) implica na presenga de uma meméria “bergsoniana”, e néo de uma
simples meméria recursiva no sentido de H. von Foerster. Esta é compativel
com desenvolvimentos auto-referenciais elementares. Mas no caso da auto-
organizacéo, especialmente a nivel humano, nao basta, para entender o que
ocorre em determinada etapa, ter a possibilidade de poder remontar, através
de uma série de operacées recursivas, até a origem do processo. O passado
tem de estar presente “em peso”, por tréz das decisées, sentimentos, etc., do
momento atual. O que supée uma. ligacéo direta, e néo (ou nao apenas) por
meio de um algoritmo, entre 0 momento atual e as origens.