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Realismo magico: uma tipologia ‘ \ Tradugio do oriuinal inglés Magic realism: a typology, deWilliam Spindler, ) por Fabio Lucas Pierini Revisdo: Fernanda Cristina de Freitas Sales Reslinno migico ¢ comumente anocado aos somancias lino seieaucs = como Gabriel Garcia Marquez, Alejo Carpentier, Isabel Allende e Miguel Angel Asturias. © termo, contudo, originou-se na Europa nos anos 1920 quando era aplicado nfo a literatura, mas a pintura. Desde ent, 0s eriticos fizeram uso do termo ao tratarem de varias formas de arte incluindo, mais recentemente, o cinema, A falta de uma Gefinigao que nao seja controversa e a proliferagao de seu uso em varios contextos resultou em confusio. Isso, por sua vez, levou ao uso indiscriminado do termo para descrever quase todo trabalho de literatura ou arte que de alguma maneira provém dos estabelecidos canones do realismo. ‘A despeito de problemas terminolégicos ¢ conceituais, 03 quais persuadiram um niamero de criticos a abandona-lo, o termo continua a ter, nas palavras de Frederic Jameson, “uma estranha sedugao”. Além disso, é possivel argiir , como € 0 meu caso, que o Realismo Magico, propriamente definido, ¢ um termo que descreve obras de arte € ficg2o que compartitham uma certa tematica identificavel, caracteristicas formais ¢ estruturais, ¢ que essas caracteristicas justificam que seja considerado uma categoria estética e literdria propria, independente de outras como o Fantistico e o Surrealismo, com o qual é fregiientemente confundido, Este artigo tem como finalidade apresentar ‘uma estrutura que incorporara as diferentes manifestagdes do Realismo Magico num s6 molde, e nesse sentido, ajudar a esclarecer a atual confusio pela distingao entre diferentes tipos de Realismo Magico, a0 mesmo tempo mantendo os elos ¢ pontos de contato entre eles O primeiro a usar 0 termo foi o critico de arte alem&o Franz Roh. Ele o aplicou a ‘um grupo de pintores que viviam e trabalhavam na Alemanha nos anos 1920 que, depois da Primeira Guerra Mundial, rejeitaram o que viam como a intensidade e 0 emocionalismo do Expressionismo, tendéncia que dominou a arte alema depois da Guerra. Esses artistas, inclusive pintores tais como Carl Grossberg, Christian Schad, Alexander Kanoldt, Georg Schrimpf, Carlo Mense e Franz Radziwill, prescreveram um retorno a representacdo da realidade, porém sob uma nova luz. O mundo dos objetos devia ser abordado de uma nova maneira, como se 0 artista o estivesse descobrindo pela primeira vez. O Realismo Magico, como foi entendido entéo, nao era uma mistura de realidade ¢ fantasia, mas uma maneira de revelar 0 mistério oculto nos objetos ordinarios ena realidade do dia a dia Em 1927, o escritor e filésofo espanhol José Ortega y Gasset traduziu e publicou © livro de Roh em seu influente jornal Revista de Occidente. O termo Realismo Magico logo se tornou amplamente usado por criticos latino-americanos no contexto da literatura. O escritor e critico argentino Enrique Anderson Imbert. por exemplo, escreve que 0 termo foi utilizado nos circulos culturais de Buenos Aires nos anos 1930 para se referir a escritores europeus como Kafka, Bontempelli, Cocteau e Chersterton. O primeiro a aplicar o termo 4 literatura latino-americana foi o escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri. Naquela época, o significado geralmente aceito de Realismo Magico era ainda baseado na definigdo de Roh. Em 1949, Alejo Carpentier publicou seu romance Q reino deste mundo, Em seu prlogo, © romancista cubano apresentou seu conceito de “o real maravilhoso ‘Tradugao de Magic realism: a typology de William Spindler, por Fihiv Lucas Pierini americano”, pelo qual ele se referia nao as fantasias ou invengdes de um autor em particular, mas ao numero de objetos e acontecimentos reais que fazem o continente americano ser tao diferente do europeu. Na visio de Carpentier, os prodigios naturais, culturais e historicos da América siio uma inesgotavel fonte de verdadeiras maravilhas. “o que € a joria da América toda senfo uma crénica do real maravilhoso?” Alem disso, supunha-se ser essa realidade maravilhosa quantitativamente superior a “malfadada pretengio de suscitar 0 maravilhoso que caracterizou certas literaturas européias desses ultimos trinta anos” (p. 95). Nesse sentido, Carpentier manifestou sua desilusio com o Surrealismo, um movimento que integrou enquanto vivia em Paris. Surrealismo era, a grosso modo, uma reag4o contra a excessiva énfase de um ponto de vista racional requerido pelas tradigdes ocidentais de empiricismo e positivismo cientifico. Tinha como objetivo liberar as forgas criativas do inconsciente e da imagina¢ao, e era profundamente influenciado pela obra de Freud. Era 0 produto de uma sociedade industrial altamente desenvolvida, na qual a habilidade de se espantar e de se encantar com © mistério se perdera, O “real maravilhoso”de Carpentier, por outro lado, enquanto toma a fascinago dos surrealistas pelo “merveilleux” como um ponto de partida, apresenta duas contrastantes visOes de mundo (uma racional, moderna e discursiva, a outra magica, tradicional e intuitivay) como se elas nao fossem contraditorias, Na América Latina por exemplo, a mentalidade racional que acompanha a modernidade freqiientemente coexiste com as formas populares de religiao amplamente baseadas nas crengas de grupos etno-culturais de origem nao ocidental tais como a nativa as afro-americanas, Ao invés de procurar por uma “realidade separada”, simplesmente oculta sob a realidade existente da vida do dia a dia, como o Surrealismo pretendia, “o real maravithoso” assinala a represses G5 Tei Fase 5 macro pelo mito e pela lenda. Nisso. se aproxima das idéias de Jung, especialmente seu conceito de “inconsciente coletivo”, que se refere tanto & fabricagio do mito quanto a psicanalise freudiana com sua énfase ao inconsciente individual, a neurose ¢ ao erético, 0 que atraiu os surrealistas, O sentido de espanto com a “maravilhosa” realidade da América, de Carpentier, contudo pode ser visto como uma reflexo sobre 0 mito europeu do “Novo Mundo” como um lugar de maravilhas, baseada na constante referéncia a experiéncia européi como medida de comparacao. Isso ¢ claramente visto nas crénicas de descobrimento conquista, do diario de Colombo 4 historia da conquista do México, de Bernal Diaz del Castillo, que de acordo com Carpentier é “o unico livro de cavalaria real e fidedigno ja escrito”, Tambem nos anos 1940, o escritor guatemalteco Miguel Angel Asturias estava se afastando do Surrealismo rumo a idéias e preocupagdes semelhiantes as de Carpentier. Asturias estava interessado em como Maya de Guatemala concebe a realidade colorida por crengas magicas: As alucinagdes, as impressdes que 0 homem obtém de seu meio tendem a se tranformar om realidades, sobre todo o lugar onde existe uma determinada base religiosa ¢ de culto, como no caso dos indios. Nao se trata de uma realidade palpivel. mas sim de uma realidade que surge de uma determinada imaginagao magica, Por isso, ao expressi-lo, chamamo-Io “realismo magico’ Poucos anos depois da formulagao de “o real maravilhoso”, de Carpentier, Angel Flores fez uma palestra sobre “Realismo Magico na Ficelo Hispano-Americana” no Congreso da Associagio de Linguas Modernas em 1954, em Nova lorque. Publicado ‘Traducio de Magie realism: « typology, de William Spindler, por Fibie Lucas Pierini em artigo subseqiiente, contribuiu para popularizar o termo Realismo Migico entre os criticos na medida em que este veio a sobrepujar “o real maravilhoso”. Flores partiu da formulacao original de Roh como ele considerava Realismo Magico um “amalgama de realismo e fantasia” (p. 189). Ele incluiu nessa categoria todas aquelas narrativas que alcangavam uma “transformagao do comum e do dia a dia no assustador e no irreal” (p. 190) € onde “o tempo existe numa espécie de fluidez. atemporal e 0 imreal acontece como parte da realidade” (p. 191). Isso incluia, segundo ele, as obras de Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Maria Luisa Bombal, Juan José Arreola, e outros. Baseado na definigao de Flores, 0 Realismo Magico comegou a ser associado a um certo tipo de narrativa que emprega com aparente seguranga, descrigGes realistas de acontecimentos fantasticos ou impossiveis (0 exato oposto, de fato, do que 0 termo original significava) Os termos Realismo Migico “realismo maravilhoso” tomaram-se mais ou menos intercambiaveis ¢ foram aplicados a um crescente nlimero de escritores latino-americanos associados ao “Romance Novo” pés-Segunda Guerra Mundial Em 1967, 0 critico mexicano Luis Leal tentou retornar formula original de Roh de fazer 0 comum parecer sobrenatural. Segundo Leal, o escritor de textos magico- realistas compactua com a realidade objetiva e tenta descobrir o mistério que existe nos objetos, na vida e nos atos humanos, sem langar mio de elementos fantasticos: “o, pringipal (WO reatismo magico) no € a eriagHo de seres ou mundos imaginados, mas” 0 ‘escobvimentg dam da misteriosa relagdo que existe entre o homem e sua circunstancia® Semeihantemente, o argentino Enrique Anderson Imbert rejeitou a presenga do sobrenatural no Realismo Magico. Este ultimo, para Anderson Imbert, € protonatural ao invés de sobrenatural, em outras palavras, excede de alguma maneira 0 que é normal, ordinario ou explicavel, sem transcender os limites do natural. Ao invés de criar um texto em que os principios da logica sio rejeitados e as leis da natureza revertidas, as narrativas migico-realistas, em sua viso, dao aos acontecimentos reais uma ilusto de irrealidade. Neste ponto, tera se tomado evidente que o debate entre criticos tem sido provocado, numa esfera maior, pela existéncia de duas diferentes, e sempre aparentemente contraditérias, depreensdes do termo: (i) 0 original, que se refere a um tipo de obra literaria ou artistica que apresenta a realidade a parti de uma perspectiva incomum sem transcender os limites do natural, mas que induz no leitor ou observador um senso de irrealidade; e (ii) 0 uso atual, que descreve textos em que duas contrastantes visdes de mundo (uma “racional” e outra “migica”) so apresentadas como se ndo fossem contraditérias, langando mao de mitos e crencas de grupos etno-culturais para os quais essa contradi¢ao nao se manifesta. © uso (i) inclui a definigao proposta por Roh, Leal, Anderson Imbert e 0 critico estadunidense Seymour Menton. Como um estilo, apresenta o natural e 0 comum como sobrenaturais, enquanto estruturalmente exclui o sobrenatural como uma interpretagao valida. O uso (ii), que é 0 mais comumente empregado pelos criticos de ficgao latino- americana e que agora substituiu amplamente 0 primeiro, é baseado, numa considerivel extenstio, em “ o real maravilhoso”. De fato. no contexto latino-americano, Realismo Magico e “o real maravilhoso” se tornaram agora sindnimos e tem sido mencionados nao apenas em conexio com os romances de Carpentier € Astirias, mas também com a obra de autores tais como Gabriel Garcia Marquez, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Rosario Castellanos, Juan José Arreola, Manuel Scorza, Isabel Allende e José Maria Arguedas. 0 uso (ii) se refere, estilisticamente, a textos em que o sobrenatual é apresentado como normal e comum, de um modo que flui naturalmente, Estruturalmente, considera a presenga do sobrenatural no texto como essencial para a existéncia do Realismo Magico. Tradugio de Magic realism: a typology, de William Spindler, por Fabio Lucas Pierini A.B. Chanady, por exemplo, prope trés critérios para determinar se um texto pertence a0 Realismo Magico ou nfo: em primeiro lugar, a presenga no texto de duas conflitantes visbes de realidade, representando o natural e o sobrenatural, 0 racional e o irracional, ‘ou 0 “esclarecido” e © “primitive”. Em segundo, a resolugio dessa antinomia pela aceitag’o do narrador de ambas as visdes como igualmente validas, Em. terceiro, reticéncia do autor na falta de dbvios julgamentos sobre a veracidade ou autenticidade dos acontecimentos sobrenaturais. ‘Nem 0 uso (i) nem 0 uso (ii) por si s6 é suficiente para dar conta de todos os diferentes exemplos de obras magico-realistas. O uso (i), por exemplo, deixa de fora Tomances-chave tais como Cem anos de soliddo (1967), de Gabriel Garcia Marquez e Homens de milho (1949), de Miguel Angel Asturias, devido a suas descrigdes de acontecimentos impossiveis ou fantésticos; enquanto 0 uso (ii) exclui romances igualmente importantes tais como Crdnica de uma morte anunciada (1981), também de Garcia Marquez, e Os pasos perdidos (1953), de Alejo Carpentier, por eles nao ‘incluirem ocorréncias fantasticas ou sobrenaturais, Dada a existéncia dessas duas diferentes interpretagSes do Realismo Magico correspondentes a duas diferentes tradigdes, uma picturial ¢ principalmente européia e outra literdria e principalmente latino-americana, proponho a seguinte tipotogia que unificara as definig&es apresentadas pelos criticos em ambos os continentes. Ao invés de duas concepgdes completamente diferemes de Realismo Magico, as duas depreensdes deveriam ser vistas como os dois lados de uma mesma moeda, Ha, na verdade, a possibilidade de um terceiro tipo de Realismo Magico, que discutirei mais adiante. E preciso ser ressaltado que ha mais Pontos de coincidéncia entre os trés tipos propostos e que eles nao so de maneira alguma mutuamente exclusives. Obras de um mesmo autor podem, além disso, muito bem cair em diferentes categorias. Essas categorias correspondem, além disso, a trés diferentes significados da palavra “magico” O Realismo Magico Metafisico Essa forma de Realismo Magico corresponde as idéias de Roh e a defini¢a0 original do termo. Exemplos desse tipo de Realismo Migico, conseqiientemente, si0 comuns na pintura, na qual perspectivas deslocadas, angulos incomuns, ou inocente: retratos de objetos reais como se fossem de brinquedo produzem um efeito “magico” “Miagico"aqui € tomado no sentido de conjurar, produzir efeitos surpreendentes pelo arranjo dos objetos naturais por meio de truques, instrumentos ow ilusdo dtica. Essa abordagem pode ser observada em algumas das obras de Giorgio de Chirico, um pintor que teve a mais importante, direta ¢ reconhecida influéncia sobre os pintores alemaes estudados por Roh. Junto com Carlo Carra, que fundaria mais tarde na Italia um movimento chamado Realismo Mégico, De Chitico estabeleceu um estilo conhecido como Pintura Metafisica, que era caracterizado por suas linhas agudas contornos, pela qualidade estatica e abafada e pela atmosfera sinistra das cenas retratadas. De Chirico explicou 0 uso do termo “metafisico” para sua obra: 6 a beleza trangtila da questo que parcee metafisica para mim, © coisas se aparentam metafisicas para mim quando através de sua claridade de cores. a preciso de suas dimensdes, formam contrastes com cada “sombra” Tradugio de Magic realism: a typology, de William Spindler, por Fabio Lucas Pies Em literatura, Realismo Magico Metafisico é encontrado em textos que induzem a um senso de irrealidade no leitor pela técnica do Verfremdung (estranhamento), por meio do qual uma cena familiar € descrita como se ela fosse algo novo ¢ desconhecido, mas sem lidar explicitamente com 0 sobrenatural, como por exemplo em 0 processo, de Franz Kafka (1925) e O castelo (1926), O deserto dos tartaros, de Dino Buzzati (1940) eas historias Tema do traidor ¢ do heréi, A seita do Fenix ¢ O sul, de Jorge Luis Borges. O resultado ¢ freqiientemente uma atmosfera estranha e a criagio, dentro do texto, de uma perturbadora presenga impessoal, que permanece implicita, muito mais em A peste de Albert Camus (1947), Coragdo das trevas, de Joseph Conrad (1902) ou 4 volta do parafuso, de Henry James (1898). Também pertencendo a esse tipo de Realismo Magico esto aquelas obras que apresentam fendmenos de natureza protonatural, na caracterizagio de Anderson Imbert. Exemplos disso sio Funes, 0 memordvel, de Borges, sobre um homem que podia se lembrar de literalmente tudo, e O perfume. de Patrick Siskind (1985), no qual o personagem é dotado de um monstruosamente desenvolvido sentido de olfato. © romance de Dino Buzzati, O deserto dos tértaros tem sido freqiientemente comparado com O castelo, de Kafka. E.a historia de Giovanni Drogo, um jovem tenente que é encarregado do Forte Bastiani, uma fortaleza que guarda a fronteira do norte contra um mitico inimigo do qual nfo se ouve falar ha séculos, Buzzati descreve 0 regime monastico do forte, onde soldados ¢ oficiais permanecem em estrita prontidao para a batalha, constantemente esperando o inimigo invisivel que justificaria a existéncia deles a do forte, Tal como Kafka, Buzzati apresenta um mundo reconhecivel como dentro dos limites do real. A despeito de suas semelhangas superficiais com o mundo do Ieitor, contudo, esse ultimo nfo pode evitar consideri-lo estranho e desconcertante. O a geografia dos acontecimento: sio incertos, Uma atmosfera serena e semelhante aquela das pinturas de De Chirico contribui para produzir um efeito de mistério que é conseguido sem lancar mao da irrupgao do sobrenatural na narrativa, © romance de Buzzati, assim como o de Kafka, abre na mente do leitor a impressdo de ser confrontado com uma alegoria ou uma metifora de algo que permanece quase ao alcance e ainda, desconhecido, Realismo Magico Antropolégico Neste tipo de Realismo Magico o narrador normalmente tem “duas vozes”. As vezes elelela retrata acontecimentos de um ponto de vista racional (0 componente “realista”) e as vezes do ponto de vista do crente em magia (elemento magico). Essa antinomia ¢ resolvida pelo autor quando adota ou se refere aos mitos ¢ histérico cultural (0 “inconsciente coletivo”) de um grupo étnico ou social: 0 Maya de Guatemala, no caso de Astiirias, a populagio negra haitiana, em Carpentier, e as pequenas comunidades turais no México e na Colémbia, em Rulfo e Garcia Mérquez. A palavra “magico” nese caso é tomada no sentido antropolégico de um processo usado para influenciar 0 curso dos acontecimentos fazendo funcionar os principios secretos ou ocultos controladores da Natureza. Essa ¢ a definigao mais atual e especifica de Realismo Magico e é fortemente associada com a ficedo latino-americana, Criticos europeus tais como Jean Weisgerber guardam 0 termo “realismo maravilhoso” exclusivamente para a variedade latino- americana, especificamente para distingui-lo do Realismo Magico europeu, que ‘geralmente se aproxima do tipo metafisico. Embora esse tipo de Realismo Magico seja, a meu ver, sindnimo de “o real maravilhoso”, Realismo Mégico Antropolégico é um termo mais exato pritico, pois o coloca dentro de uma categoria maior (Realismo Magico) do ‘Tradugio de Magic realism: a typology, de William Spindler, por Fabio Lucas Pierini qual é parte © no simplesmente confinando-o a América Latina, como “o real maravilhoso (americano)” faz. Na literatura latino-americana, 0 Realismo Magico Antropolégico participa de uma tendéncia mais geral, que reflete uma preocupacdo tematica e formal com o estranho, 0 inexplicavel e 0 grotesco, e também com violéncia, deformidade e exagero Essa tendéncia aparente em escritores to diversos como Andrade. Arreola, Asturias, Borges, Cabrera Infante, Carpentier, Cortazar, Fuentes, Garcia Marquez, Lezama Lima, Marechal, Onetti, Puig, Roa Bastos, Rulfo, Sébato e Vargas Llosa foi nomeada neobarroquismo por alguns criticos para enfatizar suas raizes na tradigao latino- americana da arte ¢ literatura barrocas. Interesses semelhantes, contudo, deviam ser encontrados no movimento “modemista” € especialmente nos contos do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937). O “Modernismo” teve um profundo impacto sobre escritores tais como Borges, Paz, Cortazar e Lezama Lima, O Realismo Magico latino- americano se aplica a essas duas tradigGes literarias, mas também aquela representada Por outros escritores tais como Willian Faulkner e Jorge Amado que, em seus escritos, mostram o contraste entre a claustrofibica e estagnante atmosfera das comunidades rurais ou provincianas e a vivida imaginagao dos que vivem nelas. Em ambos, Faulkner e Amado, as vidas dos personagens s20 subitamente, mas constantemente obscurecidas pelo passado fortemente escravagista de suas sociedades (0 sul dos Estados Unidos ¢ 0 nordeste do Brasil, respectivamente). Na cultura de descendentes de escravos € outros grupos que vivem em contato em eles, hé ecos de crengas magicas, quase esquecidas, mas ainda poderosas o bastante para influenciar as ages e 0 comportamento. Pedro Péramo, de Juan Rulfo (1955) € A ma hora, de Gabriel Garcia Marquez (1962) também retratam a asfixiante atmosfera da vida provinciana. Aqui, contudo, eles partem de anteriores romances realistas latin>-americanos tais como Dona Barbara, de Romulo Gallegos (1929), Huasipungo, de Jorge Icaza (1934) € Midas sécas, de Graciliano Ramos (1938). Uma importante diferenga é a existéncia de uma “consciéncia magica”nos personagens, que ¢ observada pelo autor como igual ou superior ao racionalismo ocidental. Essa caracteristica liga 0 Realismo Magico Antropolégico a cultura popular. A sobrevivéncia na cultura popular de uma Welranschauung (cosmovisio) magica e mitica, que coexiste com a mentalidade racional gerada pela modernidade, nao € um fendmeno exclusivamente hispano-americano. Pode ser encontrado também em reas do Caribe, Asia e Africa onde escritores tais como Wilson Harris (Guiana), Simone Schwartz-Bart (Guadalupe) ¢ Jacques Stephen Alexis (Haiti) no Caribe, 0 indiano Salman Rushdie, e Amos Tutuola e Olympe Bhély-Quénum na Africa, langaram mao do Realismo Miagico ao compactuarem, em inglés ou francés, com preocupagoes semelhantes aos dos escritores hispano-americanos. A literatura mais contemporanea das Antilhas ¢ da América Latina, ao que parece. chegam a fisar-se ao mesmo tempo cm um contexto nacional e em um contexto universal, ao apelar por arquctipos herdados da cultura tradicional. mas também a0 descobrir outros no coragao da realidade moderna, De fato, a forga do Realismo Magico na “periferia” (América Latina, Africa, Caribe) e sua comparativa fraqueza no “centro” (Europa ocidental. Estados Unidos). poderia ser explicado pelo fato de que mitos coletivos adquirem maior importancia na criagdo de novas identidades nacionais, bem como o fato mais dbvio de que crengas pré- industriais ainda representam uma parte importante na vida cultural e socio-politica dos Tradugio de Magic realism: a typology, de William Spindler, por Fabio Lucas Pierini paises em desenvolvimento. O Realismo Magico di o mesmo grau de importancia cultura popular e as crengas magicas que os ocidentais dao a ciéncia ¢ a racionalidade. Ao fazer isso, s8o favorecidas as reivindicagdes de igualdade daqueles que mantém essas crengas com as elites modernizadoras que os governam Realismo Magico Ontologico Diferentemente do Realismo Magico Antropolégico, 0 Realismo Magico Ontologico resolve a antinomia sem recorrer a nenhuma perspectiva cultural em particular. Nessa forma “individual” do Realismo Magico, o sobrenatural é apresentado de um modo realista como se no contradissesse a razdo € nao sio oferecidas explicagies para os acontecimentos irreais no texto. Nao ha referéncia a imaginacao mitica de comunidades pré-industriais, Ao contrério, a liberdade total e as criativas possibilidades de escrever sao exercidas pelo autor, que nao esté preocupado em convencer © Ieitor. A palavra “magico” aqui se refere as ocorréncias inexplicaveis, prodigiosas ou fantasticas que contradizem as leis do mundo natural € no possuem explicagao convincente narrador do Realismo Magico Ontolégico nao esta intrigado, perturbado ou cetico ao sobrenatural, como na Literatura Fantastica; ele ou ela o descreve como se fosse uma parte normal do dia a dia da vida comum, Formalmente, 0 verdadeiro estilo empregedo no Realismo Magico Ontolégico, no qual situagdes impossiveis sao descritas de uma forma muito realista, representa 0 exato oposto da técnica de Verfremdung (estranhamento) usado no Realismo Magico Metafisico. Exemplos do tipo ontolégico sio A metamorfose, de Kafka (1916), Viagem a sumente, de Carpentier ¢ algumas das histérias de Julio Cortazar, tais como Axolot! e Carta a uma senhorita em Paris. Esse tipo de texto pode ser imerpretado as vezes no nivel psicolégico ¢ os acontecimentos descritos vistos como produto da mente de um individuo “perturbado”, como em Didrio de um louco, de Gogol. Entretanto, eles deveriam ser vistos como miagico-realistas, por essas visdes “subjetivas” serem endossadas pelo narrador “objetivo” impessoal, por outros personagens ou pela descrigio realista dos eventos que acontecem numa estrutura normal € plausivel. Ao invés de ter apenas uma realidade subjetiva, o irreal possui entdo, uma presenga objetiva, ontologica no texto. Os contos de Julio Cortézar freqentemente compactuam com ocorréncias estranhas, inesperadas ou inexplicdveis, A antinomia, na maioria delas, 6 deixada irresoluta em seguida para produzir um efeito perturbador no leitor, como em A noite boca acima, O idolo das Ciclades, Continidade dos parques e A ith do meio-dica Essas historias pertencem nio ao Realismo Migico, mas a um modo especifico relacionado 4 Literatura Fantastica, Em algumas historias de Cortazar, contudo, a antinomia é forgada a apresentar o acontecimento sobrenatural como se nao contradissesse a razio. Em Axolofl, por exemplo, o narrador explica no comego da historia que ele é um axolotl, uma criatura anfibia do México, ¢ entfo se poe a contar como ele se tomou um, Ele era um homem que se tornou obsedado pelos axolotls quando visitou 0 aquitio. Apés estudé-los intensamente por muitos dias, ele realmente foi transformado num axolotl. Nenhuma surpresa é expressa pelo narrador em face da ocorréncia incomum: [..] nfo vejo nada de estranho no que ocorreu. Minha cara estava colada ao vidro do aquairio, meus olhos tratavam de uma vez mais penctrar o mistério daquckss ollios de ‘Tradugio de Magic realism: a typology, de Willi un Spindler, por Fabio Lucas Pi ‘ouro som iris nem pupila. Eu via de muito perto a cara de um axolotl imével junto ao vidro. Sem transig@o, sem surpresa, vi minha cara contra o vidro. em vez do axolotl vi minha cara contra © vidro, vi-a fora do aquatio, vi-a do outro lado do vidro. Ent, minha cara se afastou e eu entendi Como em A metamorfose, de Kafka, em que no primeiro parigrafo o protagonista Gregor Samsa, acorda para se encontrar transformado num inseto gigante, a horripilante transformacao é descrita quase acidentalmente, Nao ha antinomia aparente entre © natural e 0 sobrenatural. A afirmagao de que o narrador € um axolotl (“Agora sou um axolotl”) é declarado no mesmo tom usado para descrever uma ago corriqueira (“Deixei minha bicicleta encostada nas grades e fui ver as tulipas”, p. 426). O corriqueiro © 0 extraordinario sio retratados exatamente no mesmo nivel de realidade. Cortizar nao quer excitar seu leitor com mistério ou suspense, Nenhuma explicagio é pedida, ou apresentada, para a incrivel ocorréncia. O leitor € simplesmente convidado a aceitar a realidade ontologica do acontecimento. Conelusdes Realismo Magico é um rétulo que tem sido aplicado a um nimero de obras de arte e literatura de diferentes momentos no tempo. Inicialmente, parece que aqueles que usaram 0 termo, ou continuam a usi-lo, tem em mente conceitos completamente diferentes. Numa inspegao mais apurada, contudo, € possivel detectar semelhangas ligagdes entre os diferentes usos. Isso se faz necessirio para fins de clareza, para diferenciar entre os varios tipos de obra que so caracterizadas como magico-realistas, O fato de haver um grau de coincidéncia entre os trés tipos de Realismo Magico sugeridos aqui, e 0 fato de que obras de um mesmo autor podem pertencer a diferentes tipos, demonstra que eles esto todos relacionados de diferentes maneiras. Os romances magico-realistas pertencentes a trilogia / nosiri antenati, de ltalo Calvino, por exemplo, so dificeis de classificar. Duas delas, O visconde repartido (1951), na qual um homem ¢ dividido por uma bala de canhiio e continua a viver em duas metades separadas, ¢ O cavaleiro inexistente (1959) sobre um conjunto vazio de armadura que se move como resultado de sua propria forga de vontade, aproximam-se da variedade ontolégica porque partem de uma situago absurda inicial e prosseguem metodicamente a explorar os problemas praticos causados por ela seguindo na diregio de um final imprevisto (como em A metamorfose, de Kafka). Elas, contudo, tomam emprestados elementos de fontes populares, tais como os contos de fadas, 0 teatro de iano € as novelas de cavalaria medievais ¢, assim, aproximam-se também do tipo antropolégico. O outro romance, O bardo rompante (1957), conta a estranha, mas nao completamente impossivel histéria, de que um garoto que sobre em arvores e se Tecusa a descer pelo resto de sua vida. Apesar desse incomum ponto de partida, o romance nao narra qualquer acontecimento sobrenatural. Por essa tinica razao, deveria ser incluido no tipo metafisico, apesar de 0 seu tom evocar 0 humor brincalhio das historias de aventura (a que Stevenson freqientemente alude), a0 invés da sinistra ¢ melancélica atmosfera da maioria dos romances e pinturas migico-realistas metafisicos Crénica de uma morte anunciada de Garcia Marquez, novamente, é caracterizada pela auséncia de sobrenatural. A inevitabilidade de sua trama tem alguma das qualidades das tragédias gregas classicas. Embora isso aponte para o metafisico, também se adapta bem a0 antropologico, porque assume a visio de que a realidade é uma construcao coletiva, Alguns criticos chamam a atengo para a semelhanga estrutural ‘Tradugo de Magic realis typology, de William Spindler, por Fibio Lucas Pi entre © Realismo Mégico € a historia de detetive, e embora tenham tipicamente em mente escritores argentinos como Borges, Bioy Casares ¢ Anderson Imbert, a trama concisa, perfeita e bem trabalhada de Crdnica fornece um bom exemplo dessa relagao, sendo de fato uma historia de detetive, embora as avessas. Finalmente, o Pato de que os romances magico-realistas antropolégicos como Cem anos de solidéio ¢ Filhos da meia- noite, de Salman Rushdie (1981) também fazem uso do instrumento estilistico do Verfremdung (estranhamento), caracteristico do Realismo Magico Metafisico, aponta para uma relagio formal entre os dois tipos. 0 mais memoravel exemplo ¢ a cena em Cem anos de soliddo, na qual Aureliano é levado por seu pai para ver 0 gelo pela primeira vez. Algo muito corriqueiro € apresentado como se fosse um verdadeiro prodigio, pois é descrito através dos olhos de um personagem para quem € esse 0 caso. William Spindler Universidade de Essex, Inglaterra, 1993.

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