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EDITORA DA LUNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. ‘UNICAMP Reizor: Carlos Vort ‘Coontenador Geral da Universidade: Yost Matin Filho Conscthe Citra Abcio Persie “Chagae, Alfredo Miguct Ocorio de Almeida, Ato José Garo, Yara Frteschi (Presidente), Eduardo” Guimaries, Hemeégenes de Freitas Leitfo Filho, Jayme Antunes A ed Severo de Souza Avila Diretor Bxecuvo: Eduardo Guimarics ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA (Org.) 4 ANTROPOLOGIA DE RIVERS ‘Tradusdo: Gilda Cardoso de Oliveira Sonia Bloomfield Ramagem FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL - UNICAMP Ramage ~ LUNICAMP, 1991. (Colesto Repertcion) 1, Antropologia cults, 1. Rivers, Wiliam Halse, 1864-1922. 1. Olvera, Roberto Caréoeo, M1. Thalo. ISBN: 85-268-0190-2 20.cD0 ~ 306 adie pea catlogo items: 1. Antropologia culm 06 Colegho Repertérios Copyright © 1991 by Roberto Cardoso de Oliveira ProjetoGrifico (Camda Cesarino Costa ‘Elana Kertenbason CCoordenapto Baitorial (Camen Sivia Palma Eaitorngfo ‘Sondra Vicia Aves Propamngto ‘Abia Dias Suerque Revisho Marta Mavla Hanser osiane de Fie Pie Romera 1991 Editors da Unicare Rua CeflioFeltin, 253 (Cidade Univernieria— Bardo Geraldo (CEP 13081 — Campinas ~ SP Brasil SUMARIO Introdugdo — Leitura de Rivers (Roberto Cardoso de Oliveira) Geode d 2c U DoS eDdesuE00000 Parte I — A idéia do parentesco LI — © método geneal6gico na pesquisa antropolégica (1910) ....... veseee 1.2 — Terminologia classificat6riae matriméni primo cruzado (1913) ... 13 — Terminologia clasificatéria e outras formas de matriménio (1915) 14 — O sistema clasificatério © as formas de organi- zagio social (1913) com Parte I — A idéia da antropologia ... 11 — A andlise etnolégica da cultura (1911)... 1.2 — O desaparccimento das sttes Gteis (1913) 113 — Sobrevivencia em sociologia (1913) ... 14 — Sociologia ¢ psicologia (1916) .. 115 — Histéria © etnologia (1920) TL6 — A unidade da antropologia (1922) 49 rt n 95 125 153 155 179 199 219 239 263 INTRODUCAO Leitura de Rivers Ao se accitar a afirmagio retumbante de Lévi-Strauss, se- gundo a qual: “Em Rivers a etnologia encontrou o seu Galilew” (1958:180), pouco poderiamos acrescentar para justificar a pre- sente obra. Porém, mesmo que a etnologia ou, melhor dirfamos, f@ antropologia social nfo tenha encontrado o seu Galileu, cer- tamente encontrou alguém que procurou incessantemente 0 seu método ¢ a sua conformago como uma disciplina auténoma. A rigor, pode-se dizer sem nenhum exagero que Rivets foi — na tradigéo empirista anglo-saxé — quem programou a nova disci- plina, delineando a matriz com que ela haveria de se desenvol- ver no interior daquilo que ficaria conhecido como a “Escola Bri- tfanica de Antropologia Social”. Quem era esse homem ¢ qual a nua UrujelGria intelectual € v que se procutaté responder inicial ‘mente para, em seguida, procurarmos equacionar suas contri. buigdes mais decisivas & construcio da antropologia social Um de seus bidgrafos ¢ comentadores, Richard Slobodin, Inicia seu livro sobre Rivers dizendo que: “N fo primeiro quartel do século XX a Antropologia emergiu como uma disciplina aca- démica enraizeda na pesquisa de culturas néo-ocidentais ¢ con- cebida como uma ciéncia ou em busca de um status de cigncia, Uma figura central na emergéncia dessa ciéncia foi W.H.R. Ri- ‘vers (1864-1922), doutor em Medicina (M.D.) membro da So- ciedade Real (F.RS.), fisi6logo, psicélogo, psiquiatra e antropé- logo. Néo hé nenhuma contribuigéo em antropologia social cultural, ou ‘sociologia e etnologia’, como ele € seus contempo- réneos chama em que Rivers no tenha estado envol- vido © em que sua obra e suas opinides tenham deixado de evar sua marca” (Slobodin, 19781). Outros autores atestam a importéncia de Rivers na construgéo da Antropologia Social: Meyer Fortes, por exemplo, credita a Rivers o fato de ter ele iniciado a pesquisa britinica no estudo da familia e do tesco, revelando ser a focalizacdo dessas instituigées sociais @ chave capaz de abrir as portas do entendimento da vida social (Fortes, 1953); David M. Schneider, em seu comentério sobre a critica que Kroeber fez a Rivers relativamente ao ponto de vista causal ‘com que este tltimo impregna seu estudo do parentesco, no obstante diz: “Sua History of Melanesian So- ciety sua etnografia sistemética sobre os Toda constituem os primeiros estudos de campo cuidadosos sobre 0 parentesco. A grandeza de Rivers esté em seu génio para entender a mecénica do parentesco, € foi isso que deu forma ao trabalho de campo © & teoria antropolégica desde entio” (Schneider, 1968:15). ‘Mas 6 Raymond Firth que, mostrando a contribuigéo de Rivers ao estudo do parentesco na Oceania, oferece a mais su- cinta ilustragio sobre a atualidade de sua contribuigao a teoria do objeto e & sua respectiva metodologia. Assim, diz ele: “Onde 1a diferenga entre perspectiva de Rivers ¢ as perspectivas mo- dernas aparece mais marcadamente ¢ no conceito de matriménio. Rivers prestou um grande servico ao estudo do parentesco © a0 desenvolvimento da antropologia social insistindo com grande brilho — as vezes com erradas suposigaes — sobre a nogéo de que matriménio nao € uma simples escotha pessoal, mas uma categoria de classificagéo — uma relagdo entre tipos especiticos de parentes. Para ele ‘formas de matrimdnio’ néo significam diferentes tipos de ceriménias unindo duas pessoas, mas dife- rentes tipos de posico de parenteseo representada pela unio de duas pessoas — primos cruzados, de um homem com a filha do ou com a mulher do irmao da mae etc. Nenhum tipo de unio de parentes foi excessivamente bizarro para levé-lo a recusar sua validade teérica. Mais do que qualquer outro antro- pologo de sua geracio — conclui Firth — foi ele que pavimen- tou 0 caminho para as modernas anélises estruturais do paren- tesco neste campo” (Firth, 1968:21). Qual 0 percurso académico cientifico deste homem que veio marcar o seu lugar na hist6ri dda antropologia social pelo pioneirismo de suas idéias ¢ pela forca de sua personalidade? E 0 que procuramos esbocar a se- guir. Por forga da multiplicidade de ‘‘carreiras” que se articulam na biografia de Rivers, o registro de sua vida demandaria por si s6 um livro para que dela o leitor tomasse conhecimento © ava- iasse corretamente toda sua significagéo para uma atividade intelectual que com tanta determinagdo realizaria durante cerca de 36 anos, se tomarmos por base o ano de sua formatura, 1886, ‘quando contava apenas 22 anos (segundo Slobodin, 0 mais jo- ‘vem graduado em medicina na longs hist6ria da Universidade de Londres), € 0 ano de sua morte, 1922, aos 58 anos. Deveremos spontar alguns momentos dessa vida, apoia- rticularmente, em duas fontes: © jé mencionado Richard com seu livro W.HLR. Rivers (1978), ¢ 0 excelente livro de um jovem historiador de ciéncias, Ian Langham (origi- nalmente uma tese de doutoramento apresentada em 1976 a Universidade de Princeton ¢ editada sob 0 titulo The Building of British Social Anthropology: W.H.R. Rivers and his Cam- bridge Disciples in the Development of Kinship Studies, 1898- 1931, 1981). No ano seguinte 40 da sua formatura, Rivers viajou para 0 Japio « EUA como médico de bordo. Dentre as intimeras via- gens que fez, uma teve particular importincia, quando — retornar para a Inglaterra vindo das Indias Ocidentais — vi com Bernard Shaw, com quem pode conversar diariamente; con- ta Rivers que isso “foi uma das melhores coisas de sua vida” (Slobodin, 1978:11). Em 1888 obtém seu doutorado em Medi- cina (M.D.) na Universidade de Londres e € eleito membro do Royal College of Physicians, Durante 0 periodo em que trabs- Thou como médico no St. Bartholomew's Hospital, um dos trés hospitais-escola da Universidade de Londres, sempre aplicou-se em pesquisas, tendo publicado trabalhos sobre delirio (1889), histeria (1891) e neurastenia (1895), revelando um especial talento para fendmenos da mente, Tanto assim que foi admiti- do em 1891 como médico-residente no National Hospital for the Paralysed and Epileptic. Um ano depois deixou 0 posto € f ‘@ Alemanha continuar seus estudos em neurofisiologia ¢ logia. Slobodin destaca que nessa oportunidade pode assis- @ um curso de filosofia ministrado por Rudolf Eucken, cuja posigo quanto as possibilidades do conhecimento diferia da de Spencer, na época altamente influente na Inglaterra; “ele néo apenas negava o lugar das leis naturais no estudo do comporta- mento humano, mas também, como a maioria dos fil6sofos ide listas alemaes, ia além em sua forte depreciago da ciéncia em geral” (Slobodin, 1978:13), Dificil dizer com seguranga qual a repercussiio que esse curso teve em sua formagio; a0 que parece, pelo menos no que tange @ problemética da causalidade na obra de Rivers, as idéias de Eucken sobre leis naturais e sua inaplicalidade ao comportamento humano tiveram ‘de ser cote- jadas com as de J. Stuart Mill, o grande légico da gerago ante- rior a Rivers e cujas idéias marcaram to profundamente a constituigéo da antropologia social e as cigneias humanas em 10 geral no mundo anglo-saxio — t6pico que abordaremos mals detidamente adiante. Mas foi por essa época — como afirmatia © préprio Rivers em seu diério — que tomou a decisio de passar a trabalhar “tanto quanto possivel em psicologia”” (apud Slobodin, 1978:15). No ano seguinte foi convidado a ensinar Fisiologia dos sentidos na Universidade de Cambridge, razéo que © teria levado a passar o verdo de 1893 em Heidelberg para estudar com Emil Krdpelin, uma grande autoridade em Srgios do sentido, os efeitos de drogas na fadiga muscular tan- to quanto psiquiatria (Krépelin foi o grande pioneiro da psi- quiatria nosolégica). Com ele Rivers chegou a escrever impor- tantes trabalhos (Slobodin, 1978:15). Em conseqiiéncia de sua crescente habilitacdo no campo da psicologia experimental é convidado a assumir 0 novo Laboratério de Psicologia no Uni- versity College a0 mesmo tempo em que recebe uma sala no Departamento de Fisiologia da Universidade de Cambridge. Nao € ocioso assinalar que esse fato indica o quanto, na época, a Psicologia ainda dependia de uma disciplina mais consolidada academicamente como a Fisiologia.’ © periodo antropol6gico de Rivers comega — se se quiser assinalar uma data — em 1898, quando participa de uma expe- digo ao Estreito de Torres (Torres Straits) na Oceania, a convite de Alfred Cort Haddon, seu organizador. Haddon, originalmen- te Professor de Zoologia no Royal College of Science, em Dublin, havia dez anos antes participado de uma expedigao ao Est de Torres e Id descoberto sua vocacdo para o estudo do folclore nativo, mais do que pela investigago do plancton, para o qual havia projetado seu trabalho. Para ele foi tio signi aquela experiéncia que veio a resignar sua citedra de zoologia logy upds seu retorny da expedivao, com 0 fity de se dedivar exclusivamente ao estudo de sociedades dgrafas. Com esse ani- ‘mo organizou a expedigéo de 1898, convidando Rivers (que num primeiro momento néo se. interessou), CS. Myers ¢ W. Mc Dougall (ambos ex-alunos de Rivers em Psicologia Experi- mental ¢, a0 que parece, o motivo de Rivers haver mudado de opiniao € ter aceito posteriormente 0 convite de Haddon), além de C.G. Seligmam, um patologista, Anthony Wilkin, um jovem estudante pés-graduado de Cambridge, e, para fot6grafo da expe- digo, Sidney Ray, um professor primério versado em linguas do Estreito de Torres (& base de dados secundérios, provindos de fontes missionérias e de anotagdes lingiifsticas feitas pelo pré- Haddon). Interessante notar que todos os membros da expe- digo, de um modo ou de outro — ¢ a despeito da diversidade de suas respectivas formagdes — mantiveram-se ligados & antro- pologia social que se constitufa. Rivers foi certamente o grande Iider do grupo. Observa I. Langham que a expedi¢éo, um fato marcante na vida de seus participantes, inscreve-se como parte de um processo padronizado de mudanga de carreira, de con- versio & antropologia, gragas ao fascinio neles despertado pelo homem préletrado: “Durante a expedigdo € por um considerével rimero de anos depois dela, houve uma marcada tendéncia para que o micleo de pesquisadores do Estreito de Torres fun- ionasse como um grupo solidério, Estiverem juntos na Mela- nésia em 1898. Tiraram a antropologia briténica de sua fase de ‘gabinete’ e a colocarem em uma saudével base empirica. Eles viram e questionaram o selvagem em seu proprio habitat e 0 submeteram a testes psicométricos e antropométricos cuidados mente conduzidos. Eles forneceram 0 modelo para os futuros antropélogos britanicos copiarem”” (Langham, 198166). a0 ri foi a experiéncia proporcionada por essa expedigio que a dela o interesse de Rivers pela antropologia marcaria defi mente sua vida. Entre 1901 1902 Rivers passou varios meses entre os toda da fndia, grays av patruciniv du Ruyal Society of London e da British Association. Resultou disso sua monografia The Toda (1906), que se tornaria um cléssico da antropologia so- ial. Se examinarmos sua bibliografia* veremos que suas publi- cages em antropologia comegam na virada do século; ¢ mesmo 12 ‘ se nos limitéssemos eo mero registro bibliogrético jé teriamos uma boa base para tragar o seu percurso intelectual, E assim ‘que em 1900 Rivers publica um artigo que prenuncia a ela- oragio do método que contribuiria decisivamente para torné-lo célebre, ainda em vida, € que o tornaria lembrado até os nossos dias: 0 método geneal6gico. O artigo intitulava-se “A genealogi- cal method of collecting social and vital statistics” (1900) © para sua elaboraco Rivers socorreu-se de tabelas geneal6gicas destinadas a auxiliar os seus estudos experimentais de fendme- nos sensoriais sobre acuidade visual, visdo para cores e percep- so espacial, preocupado em discernir neles 0 papel da heredita- riedade. Naturalmente que esse método — como se veré adian- te — seria desenvolvido & proporcéo que Rivers construfa a antropologia social. O seu segundo artigo relevante para a nova disciplina foi “The funeral of sinerani” (1903), seguido de “The marriage of cousins in India” (1907), publicado um ano depois de seu livro sobre os Toda. Sem deixar de produzir artigos ¢ relat6rios na érea da psico- logia experimental durante todo esse tempo, publica dois impor- tantes artigos antropoldgicos em 1908: “Genealogies, kinship, regulation of marriage, social organization” (19084) e “Some sociological definitions” (1908b). Dois anos depois publica o famoso artigo “The genealogical method of anthropological inqui- ry” (1910), incluido neste volume (ver 1.1) € onde 0 método ‘geneal6gico, devidamente refinado, jé € apresentado como fruto de sua experincia etnolégica, sobretudo daquela adquirida na pesquisa dos Toda. Os primeiros anos posteriores & sua segunda expedigao (1907-1908) foram decisivos na obra de Rivers: 1910 € 1911 assinalam uma mudanga de orientagdo em sua antro- pologia, com « adogio du perspectiva difusiunista em nome de uma critica cerrada a0 evolucionismo imperante no campo cientifico briténico, responsével — segundo Rivers — por uma atitude especulativa extremamente prejudicial & constituigio da quando faz sua conferéncia presidencial & Seco 3 Antropoldgica da Associagao Briténica para o Desenvolvimento da Ciéncia, publicada originalmente sob o titulo “The ethnologi- cal analysis of society” (Rivers, 1911) e reproduzida neste vo- Jume (ver 11.1) No perfodo que antecede a essa mudanga no pensamento de Rivers, vale assinalar alguns eventos que nos parecem si ficativos em sua vida intelectual. Primeiramente, sua eleigéo para fellow do Saint John’s College da Universidade de Cam- bridge em 1902. Diz Slobodin que: “durante os seis anos se- guintes, Rivers parece ter dividido seu tempo igualmente entre antropologia e psicologia experimental” (Slobodin, 1978:30). O ano de 1904 registra seu primeiro encontro com Radcliffe- Brown — entdo apenas conhecido por A.R. Brown —, nessa época um estudante de graduagdo em psicologia ¢ o primeiro € Sinico aluno de antropologia social sob a orientagdo de Haddon ¢ do proprio Rivers; como conseqiiéncia de seus estudos antro- poldgicos e da orientacio de seus mestres, o jovem A. R. Brown seguiria, em 1906, para as Ilhas Andaman, onde permaneceri até 1908. A influéncia de Rivers sobre Radcliffe-Brown seré examinada posteriormente. Como foi mencionado antes, Rivers voltaria & pesquisa de campo em 1907-1908, seguindo para as Iihas Salomao, onde trabalharia mais intensamente, mas visi- tando também outras dreas da Melanésia e da Polinésia e fican- do algum tempo no Havai ¢ em Fiji. Slobodin nos conta ainda que nessa expedigio dois jovens antropélogos faziam sua pri- meira pesquisa de campo: Gerald C. Wheeler — que ficaria conhecido como co-autor de uma famosa obra sobre cultura material e instituigGes sociais de povos égrafos (Hobhouse, Wheeler & Ginsberg, 1916) — ¢ Arthur M. Hocart, este dltimo certamente um dos mais talentosos antropologos de sua época: ‘Weeler realizou um intenso trabalho de pesquisa nas Ilhas Sa- lomo enquanto Hocart, depois de colaborar intimamente com Rivers durante os trés meses em que durou sua estadia em Fiji, 16 ficaria ainda por mais trés anos (Slobodin, 1978:40-41). In- dubitavelmente a experiéncia acumulada durante as pesqui de campo se refletiria nessa guinada tedrica de Rivers em dire- ‘¢8o 80 difusionismo: em oposigdo a orientagao especulativa dos evolucionistas, como jé se mencionou, os difusionistas acredit vam privilegiar a empiri, mercé do trabalho de campo que rei lizavam. Embora para o padrao briténico de pesquisa de campo, que viria a ser constituido posteriormente, a experiéncia etnogré- fica de Rivers deixasse muito a desejar — seja pelo tempo de campo relativamente curto, seja por jamais haver dominado um idioma nativo —, havia, como aponta Langham (1981:125-128), ‘a prevaléncia de uma “ideologia empiricista” a guiar a indagacio einolégica. Nesse sentido 0 difusionismo representou para a geragio de Rivers a mesma opso que o funcionalismo (ou estrutural-funcionalismo) representaria para a geragio posterior: 6 fortalecimento da pesquisa empirica. Mas a grande ironia do percurso intelectual de Rivers esté precisamente, ao que nos parece, em seu retorno posterior a um outro tipo de especula- G40, agora & especulagio difusionista. Mas em seu trajeto — de um tipo de especulagao a outro —, Rivers constitui o programa bésico da antropologia social a partir de sua experiéncia na anilise do parentesco e no estudo da organizagdo social. © produto talvez mais consistente, relativamente & teoria do parentesco surgido em decorréncia desse conjunto de pes- quisas de campo, foi seu pequeno livro Kinship and Social Orga: nization, publicado em 1914, no mesmo ano em que era igual- mente editada sua ja mencioneda The History of Melanesian Society, cujo primeiro volume se articula perfeitamente com aquela publicaggo. Menos do que um livro, Kinship and Social Organization no ¢ mais do que o elenco de trés conferéncias ministradae por Rivers em 1913, (ver 12, L3 ¢ 1.4). Assim, esclarece 0 autor em seu breve prefacio: ““Essas conferéncias foram dadas na London School of Economics em maio do pre- sente ano ¢ estéo amplamente bascadas na experiéncia adquirida durante 0 trabalho realizado no ambito da expedigéo (...) & 15 Melanésia em 1908, fornecendo um registro simplificado das condigdes sociais que serdo descritas em detalhes no amplo rela- A6rio de trabalho dessa expedigio” (Rivers, 1968:38). The His- tory of Melanesian Society foi esse relatério. Enum artigo publi cado anos depois, “History and ethnology” (1920), (ver 11.5), Rivers faré um extenso comentério dessa tiltima obra que retrata bem @ mudanga de ponto de vista ocorrida em sua antropologia. Enquanto o primeiro volume se dedica & descrigo etnografica dos diferentes povos visitados, obtida mediante a técnica de survey,* 0 segundo se propde a uma discussio te6rice sob o signo da anélise comparativa e voltada para uma critica & pers- Pectiva evolucionista prevalecente na época, E a primeira forma pela qual Rivers se conscientiza da obsolescéncia do evolucio- rnismo como perspectiva capaz de abrigar os dados etnogréficos obtidos pela observacdo direta. Vale transcrever aqui suas pala- vvras inscritas na introdugéo do vol. Il da mencionada obra: “Como registrei athures (Rivers, 1911), meu proprio ponto de vista foi profundamente alterado enquanto redigia « discussio teGrica contida neste volume. Eu havia comegado com uma fir- me adeséo & corrente da Escola Inglesa, quase exclusivamente interessada na evoluglo da crenca, costume e instituigo, dedi- cando pouca atengéo 3s culturas individuais, exceto quando eram perfeitamente Gbvias.as mudangas que haviam sido intro- duzidas de fora, como no caso de recente influéncia polinésia nna Melanésia. (...) Eu havia comegado minha discussdo tebrica com um estudo comparativo de sistemas de relagdes, como 0 ue realizei no primeiro volume € primeiramente interessado de modo exclusivo em sua estrutura, negligenciando a distribuigio geogréfica dos termos de relacionamento enquanto fatos lin- gilisticns, A hase de seu estudo puramente morfoldgico, habilitei- me a construir um esquema da evolugéo da estrutura social da Melanésia, Foi somente depois de haver seguido tanto quan- to possivel 0 caminho sugerido pelo estudo comparativo das for- mas de sistemas ¢ suas fungdes associadas, que me voltei a 16 consideragio dos sistemas como colegdes de fatos linguisticos. Considerando sua distribuigéo geogréfica em conjungéo com 0 ‘esquema jé conseguido, tornow-se claro que 0 desenvolvimento tracado néo tinha lugar numa sociedade simples e homogénea, mas ocorria como parte de uma interaglo geral entre dois povos. Isto transformou minha tarefa num esforgo para analisar a com- plexidade apresentada pela sociedade melanésica em seus ele- ‘mentos constitutivos” (Rivers, 1914, 11:1-2). Como aponta Slobo- din, os contempordneos de Rivers e ele proprio sempre consi- deraram The History of Melanesian Society como sua obra mag- na, da qual divergiam apenas alguns poucos como Radcliffe- Brown, Brenda Seligman e, possivelmente, Hocart, para os quais muito mais importantes foram as conferéncias enfeixadas no As vésperas de eclodir a ‘com uma tese bibliogréfica. Apesar da guerra, Malinowski obte- ‘ve permissio para seguir para Nova Guiné, embora fosse tum inimigo, enquanto Rivers seguia para as Novas ‘Durante o resto de 1914 € princfpios de 1915, Rivers esteve em varios lugares a0 norte das Novas Hébridas. Néo esté claro que tenha visitado as Ihas Saloméo ocidentais, onde ele originalmente havia esperado fazer alguns estudos com Hocart, Seu itinerério melanésio foi muito mais limitado do que em 1908; assim, suas temporadas foram demoradas.(...) Antes de retor- nar & Inglaterra, visitou a Nova Zelindia, onde ministrou confe- réncias e ouviu importantes autoridades sobre a Polinésia, Quan- do Rivers chegou Inglaterra no verdo de 1915, sua maior preocupasio foi o tipo de servigo militar que poderia assumir. 7 ‘Apés muitos meses de procura, juntou-se & equipe do Maghull Military Hospital em Lancashire como médico civil” (Slobodin, 1978:53). Assumindo a fungdo de psiquiatra, Rivers praticamente re- tornou as suas origens, sobretudo por jamais haver perdido o interesse pelo campo da psiquiatria, estando alias, nessa época, qxremanente ineresado na pricenlic Ca Te en ae ee tio comissionado no Royal Army Medical Corps, em 1916, dis- tinguiu-se como um eficiente terapeuta, particularmente no tr tamento de neuroses de guerra. E como resultado dessas ativida- des produziria pelo menos dois livros postumamente publicados: Cenllet ond Dream (1925) = Malena ROR G2WPAinda com relacio as suas atividades durante a guerra, vale registrar sua nomeagio como psicélogo do Royal Flying Corps em fins de 1917 quando procurou, mediante participago em dificeis manobras acrobéticas, estudar as qualidades mentais necessérias a um aviador; escreveria, entéo, ““Wind-up", trabalho incorporado em seu livro Instinct and Unconscious (1920), onde faz observacies relativas ao medo de voar. Revelador da serie- dade com que eram vistas suas contribuigdes no campo da psicoterapia foi o convite para elaborar o verbete “‘Psycho-thera- peutics” para a The Encyclopaedia of Religion and Ethics (Ri- vers, 1918). Apés 0 armisticio, Rivers se reencontraria com a vida universitéria retornando para o Saint John’s College na Uni- versidade de Cambridge, onde iria ocupar a partir de 1919 0 alto posto académico de Proelector of Natural Science Studies, com absoluta liberdade para conduzir seu trabalho do modo que desejasse: qualquer aluno da érea de cigncia, ou metmo qualquer um do Saint John’s College, poderia se beneficiar dos ensinamentos do mestre (Slobodin, 1978:69). E para concluir estas observacdes sobre sett itinerério intelectual — aqui sucin- tamente tragado —, importante é apontar © quanto seus mit 18 plos talentos foram reconhecidos por seus contempordncos: foi primeiro presidente da segio médica da recém-formada British Psycho-Analytical Society em 1919; presidente da Folk-Lore So- ciety durante 1921-1922; Nesta Introdugo néo se pretende explorar todas as dimen- ses da multiplicidade da obra de Rivers, nem mesmo da parte antropolégica em sua JY SS cionado no inicio desta Introdugdo, a aplicagéo de Rivers no estudo do parentesco e da organizacio social redundaria na cria- do da base necesséria & constituicdo da moderna antropologia social 0 aceltarmos a interpretago de Langham, as descobertas de Rivers guardam expressiva independéncia em relagdo as de Morgan. “Sou favo- rayel — diz Langham — ao ponto de vista de qu« juando embarcou com a expe- ‘orres em 1898, Rivers estava estrita- mente treinado como psicélogo experimental. (...) Em todos 08 relat6rios da expediglo, que incluem o diério de Haddon, 19 ndo hé qualquer indicagdo de que Rivers (@Ulaigui Out men bbro da expedigao que tivesse participado de suas investigagoes Benealdgicas, possuisse qualquer conhecimento antecipado da ‘obra de Morgan sobre 0 assunto, & verdade que, apés 2 expedi so ao Estreito de Torres, Rivers utilizou_finalmente alguns ssctitos de-Morgan sobre o parentesco. Seu desdobramento. dos dez indicadores do sistema classificat6rio de Morgan, por exem- plo, que teve lugar no volume de 1904 do relat6rio da expedigao, dificilmente teria ocorrido sem detida atengo a uma curta mas tecnicamente dificil passagem do Systems of Consanguinity... Contudo, seria dificil provar que a leitura do livro feita por Rivers teria sido muito mais profunda do que isto” (Langham, 1981:90), E mesmo 0 artigo de 1907, “On the origin of the classi- ficatory system of relationships”, elaborado para o Festschrift de Tylor, no qual Morgan ¢ seu esquema evolucionista so repetidamente referidos, “ndo € 0 caso de um disefpulo seguindo servilmente os passos do mestre. A@ EOhttariO) Rivers Usa o art £0 para criticar a contribuigdo de Morgan e sugere muitas © importantes corregSes em seu esquema” (Langham, 1981:90). ‘Sem deixar, todavia, de reconhecer © pioneirismo de Morgan na descoberta do campo do parentesco, o que Langham pretende mostrar € a originalidade de Rivers no tratamento analitico do tema e sua influéncia na antropologia britdnica, para a qual “ obra de Morgan foi amplamente ignorada ou pouco api da (. ..). © que iifiportounfoi:Rivers, ter desenyolvidorsewmétor do no curso de uma expedicio que foi vista como reveladora da inadequasio da antropologia de gabinete” (Langham, 1981:91). E assim que na primeira parte deste volume, destinada & elabo- raglo da idéia do parentesco, pareceu-nos conveniente divulgar 40 leitor brasileiro um(SOajGints |e KEN que leonstifUissein ‘amago da contribuigao de Rivers & tematica do parentesco, pai ticularmente no que diz respeito & obtengio do dado etnogréfi- co mediante a aplicagao da técnica genealdgica (ver 1.1); e no ‘que concerne aos procedimentos analiticos, gragas aos conceitos 20 que desenvolve nas trés conferéncias ministradas em 1913, reu- nidas no livro Kinship and Social Organization (1914), respec- tivamente intituladas “Classificatory terminology and cross-cousin marriage” (1.2), “Classificatory terminology and other forms of marriage” (1.3) e “The classificatory system and forms of social corganization”” (I.4).(TalveZ) a imiportancia| esses /eonterecias ppossa ser melhor avaliada se considerarmos que elas sobrevive- ram a critica que Alfred L. Kroeber dedicou ts idéias de Rivers sobre a existéncia de conexdes causais entre o parentesco © as instituigdes sociais (cf. Kroeber, 1909). Como ressalta Schneider 1968:9-10), Kroeber estava reverberando o sentido evolucio- nista ou a reconstruc histérica especulativa inerentes & crenga ‘num determinismo unilinear implicita no pensamento de Ri WEB. Ultrapassado esse perfodo evolucionista pelo proprio Ri vers — como jé se referiu e essas conferéncias jé atestam seu afastamento de qualquer tipo de evolucionismo — Kroeber haveria de conceder anos depois que os termos de parentesco, como parte da linguagem, refletem a l6gica inconsciente © os padrées conceituais tanto quanto as instituigGes sociais (cf. Kroeber, 1952:172). B importante nos determos um pouco mais nos argumentos de A. L. Kroeber quando reconsidera 0 radicalismo de sua primitiva posigdo em resposta, precisamente, & mudanga de po- do proprio Rivers, esta iiltima expressa na primeira de suas conferéneias (ver 1.2) proferida em 1913. “O que causou confusio — escreve Kroeber — foi a minha titubeante termi- nologia. Eu poderia ter dito que sistemas de parentesco séo padrées lingifsticos de l6gica, e que seu uso acritico e irrestrito como se fossem refletores incontaminados de instituigbes passs- dos ou preventes foi e116neo © perigoso. Certamente cles possuem um interes em si mesos apresentam problemas de relasdo entre linguagem ¢ pensamento ¢ entre ambos com a psicologia. Em vez. de légica, porém, eu falei de ‘psicologia’ e tornei-me intransigente na refutagdo: “Termos de relacionamento refletem aa ju tornei a situacao pior quando subseqiien- temente comecei a falar de ‘tendéncias gerais’ ou ‘tendéncias psicol6gicas’ — significando padrées de I6gica expressos em sistemas de palavras significantes — como contrastadas com instituiges especificas tomades como causas especificas de ter- ‘mos denotativos particulares” (Kroeber, 1952:172). Depois de historiar todo 0 processamento do debate entre ele e Rivers, mencionando ainda a participagio de Lowie, Kroeber constata finalmente © seguinte: ““Além disso, eu continuei com o infeliz uuso do ‘psicol6gico’ quando era evidente que ‘I6gico’ ou ‘padro- nizado conceitualmente’ teria sido mais adequado” (ibid). Con- tudo, continua ainda achando que a despeito dessas imprecisoes terminolégicas, sua posigo de critica & causalidade riversiana permanece a mesma. Nao obstante, Krocber foi capaz de equa- cionar as diferentes posigdes te6ricas em confronto, inclusive as de Lowie © Morgan, como o seguinte trecho revela: “'Parece-me justo dizer que o meu principal interesse foi em delinear padroes nos fendmenos; de Lowie, em seguras correlagdes, mesmo se de Timitado aleance; de Rivers, em determinagSes causais susten- tando uma ampla hipétese; e de Morgen, em um esquema uni- versal simultaneamente causal e histérico. Incluo estas caracte- rizagies de motivagdes porque elas me revelam haver deter- minado consideravelmente as variadas conclusdes encontradas” (Kroeber, 1952:173). Pode-se dizer que a polémica iniciada pela critica de Kroe- ber em 1909 a um artigo de Rivers de 1907, prossegue com f resposta deste dltimo em 1913 para finalizar com a expli- citagdio dessa Ultima posigao de Kroeber anteriormente reproduzi- da e proclameda em seu The Nature of Culture (1952) — uma coletinea de, seus artigos antecedidos de introdugdes originais, Juma das quais (& qual estamos nos referindo) destinada a orien. 2 tar o leitor na leitura do artigo de 1909. Menos do que um entendimento entre os autores do debate (um deles, Rivers, jé falecido trinta anos antes do iiltimo artigo de Kroeber), 0 que se observa € uma melhor articulagdo entre suas respectivas po- sig6es com vistas a compreendé-las de forma mais adequada. O ‘que significa que a diferenga entre ambas no se desvanece; 90 ontrétio, tal diversidade persiste particularmente naquilo que cla espelha, a saber, a diferente postura epistemol6gica de ambos. (Schneider, 1968:11; o grifo € meu); argumento que bem reflete uma preocupagdo que, presente jé nos estudos sobre o parentes- consolidar-se-ia em seus trabalhos posteriores. E € esse cien- tificismo de Rivers que passaremos a examinar. 1 deste volume foi, portanto, A segunda part fivers percorre assim os Imesmos passos que seu contemporineo Durkheim, com a dife- renga de — ao contrério deste, orientado pela tradigo raciona- lista — orientar-se pela tradigéo em; mento englo-saxao.” Sabemos que @ questo da causalidade se constituiu na pe- dra de toque da filosofia empirista especialmente a partir de Hume ¢ prolongando-se em uma pletora de fildsofos ingleses e escoceses, dentre os quais cabe destacar John Stuart Mil légica indutiva por ele elaborada, particularmente no Livro VI de seu A System of Logic Ratiocinative and Inductive (1843, edigo consultada a de 1974) intitulado “On the logic of the ‘moral sciences”, foi de grande importancia para as geraySes seguintes & sua, mesmo que pessoas por ela influenciadas, como Rivers, néo tenham se apercebido dessa influéncia ou sobre ela no se tenham manifestado, No caso de Rivers, por exemplo, ndo € dificil encontrar a projesdo em sua obra do pensamento de Mill. Em outras bora néo caiba aqui uma exposigéo de sua ica, nem mesmo se nos limitdssemos apenas ao Livro V1, cabe no obstante uma apresentagéo tio concisa quanto possivel do ensamento de Mill naquilo que diz respeito a sua repercusséo na obra de Rivers, a rigor, naquilo que pode set considerado como uma reprodusdo da légica indutiva no interior do projeto © da antropologia social (cf. Cardoso de Oliveira, 1985). Alguns pontos devem ser destacados numa leitura da I6gica de Mill, que de algum modo exprimam sua influéncia no projeto Cientifico de Rivers, O primeiro deles — central na Légica e que jé indica uma definitiva opgao de Rivers pela observaséo empi- ica — € a indugéo. Mill entende a indugao como uma “genera- lizagio da experiéncia” (Livro III, cap. 3, § 1). Consiste em ue “‘inferindo.se de alguns exemplos individuais em que a ocor réncia de um fendmeno € observada, ele ocorreré em todos os exemplos de uma certa classe; a saber, em todos que se asseme- them ao primeiro, vistos como circunstincias materia Nesse sentido, indugdo pode ser definida como 24 ddescobrir e prover proposigdes gerais” (Livro UII, cap. 1, § 2); © que significa ser ela “a operagdo da mente por meio da qual inferimos que 0 que conhecemos como verdadeiro para um ou mais casos particulares, seré verdadeiro em todos os casos que se assemelhem ao primeiro em certos aspectos a eles atribufveis. Em outras palavras, inducao ¢ 0 processo pelo qual concluimos que 0 que é verdadeiro para certos individuos de uma classe € verdadeiro para toda a classe, ou o que é verdadeiro em deter- minado tempo seré verdadeiro, em circunstincias similares, para ficiente — pat mostrar aspectos da Iégica indutiva no que diz respeito exclu- sivamente as ciéncias sociais, sobretudo quando se considera que néo se trata de duas légicas — uma para as cifncias natu- rais, outra para as sociais — sendo de uma tinica. Diz Mill que a “I6gica das ciéncias morais” € uma “generalizagéo dos métodos seguidos com éxito” nos primeiros livros de sua Légica, relati- vos as ciéncias naturais, e “‘adaptados no iltimo livro”, 0 VI, dedicado as ciéncias mors Naturalmente que ao fazer essa passagem de uma ordem de fatos para outra, Mill se interroga sobre se as ages humanas so como 08 eventos naturais, i. ., sujeitos a leis invaridveis se tais ages estariam determinadas de algum modo pela lei da causalidade, como ocorre na base de qualquer teoria cientifica (cf. Livro VI, cap. 1, § 2). Isso porque, para ele, a causa deve ser concebida como qualquer fenémeno, e nfo como uma “coisa cm si” ou noumenon, uma vez que este tiltimo nos conduz nfo A cincia mas & metafisica, S6 assim se justifica falar em causa- lidade: de relagdes que se dio de uma maneira uniforme (via 25 uniforinidades observaveis), seja em termos de coexisténcia, seja em termos da precedéncia de uma ¢ a seqiiéncia de outra, como fendmeno que existem em distintas relagées entre si — de si multaneidade e de sucesso. Comenta Mill que mesmo a obser- vaso vulgar da natureza confirma a idéia de que tudo tem uma causa; contudo, para a observaco cientifica, e segundo a teoria da induglo, essa cai tem de metafisica — s6 pode ser alcangada fendmeno que €, Hé, certa- mente, um temor de Mill em ver sua Légica resvalar para 0 campo da especulagao, posto que seu interesse exclusivo esté nos fatos: “Para certos fatos, certos fatos sempre acontecem, e, como creio, sempre continuardo a suceder. O antecedente inva- rigvel 6 chamado causa; 0 conseqtiente invariével, efeito” (Li- vro III, cap. 5, § 2). Mas como aplicar a experimentago no campo das ciéncias morais? Mill jé havia distinguido, ao tratar das ciéncias naturais, observagdo de experimentagdo, mostrando ser esta Giltima uma extenséo da primeira. Todavia, isso néo ignifica no haver diferenga entre ambas: vale ressaltar aqui que se a observagao dé conta das seqiigncias e coexisténcias, sem a experimentagio ela no comprova a causalidade. E € isso que distingue as “‘ciéncias da mera observacio” das “‘ciéncias da experimentac: f. Livro III, cap. 7, §§ 3 e 4). Preliminarmente € necessdrio esclarecer que a experimenta- 50 nfo se inviabiliza exclusivamente nas cigncias sociais, mas também nas ciéncias da natureza. Exemplo disso é a astronomia; outro exemplo onde sua aplicabilidade € muito limitada é na fisiologia (cf. Livro III, cap. 7, § 3). As razSes invocadas sé0 suficientemente claras para nos abstermos de trazer todos os argumentos de Mill. E importante que nos detenhamos — ¢ de ‘uma maneira breve — em duas ou trés idéias que nos parecem fundamentais para entendermos essa passagem das ciéncias natu- rais as cincias sociais. A primeira delas é a de “pluralidade de causas”, sendo que as demais esto na distingéo que Mill faz 26 entre lei da natureza e lei empirica. Em sintese, a “‘pluralidade de causas” significa a inviabilidade de se procurar detectar uma ‘inica causa na produgio de fendmenos complexos, notadamente quando esses fendmenos pertencem a0 ambito das ciéncias so- ciais, Se se trata entio de um feixe de causas na determinagéo de um conjunto de efeitos, pode-se aceitar como sendo visvel a identificagéo de uma ‘‘composi¢éo de causas” na determinagio de efeito ou efeitos. Identificadas as causas uma a uma € onde (© método dedutivo se articula com 0 indutivo: Mill diz que a averiguagdo das leis de cada causa em separado constitui o pri- meiro alvo do método dedutivo; e define este método como con- sistindo “de trés operagdes: a primeira, a indugdo direta; a segunda, o raciocinio e a terceira, a verificagéo” (Livro Ill, "No mesmo parégrafo Mill iré tomar precisamen- te os fendmenos sociais para ilustrar a aplicagio do método de- dutivo. Mostra que tais fendmenos dependem de atos e impres- ses mentais dos seres humanos que, por sua vez, esto suj a leis vitais relacionadas com a estrutura orgénica, da mesma forma que as substincies s6lidas e fluidas formadoras do corpo corganizado ¢ do meio em que ele subsiste estdo sujeitas a leis ‘mecnicas © quimicas. Cada uma dessas leis, tomada separads- mente, € descoberta experimentalmente, sendo que os fendmenos por ela abrangidos séo explicados pelo método dedutivo. Tais leis so leis da natureza, a saber, gerais ¢ invariéveis, no que diferom das lois empiricas, tendenciais, exprimindo apenas uma uniformidade de sucessio ou de cocxisténcia amparada na ob- servagio de todos os casos conhecidos, mas nunca além desses, © que confere sempre a esse tipo de lei um cardter a posteriori Portanto, as leis empiricas descobertas pela observagdo sempre a7 edirlo por uma explicagdo qu ‘Mas como Mill procura resolver essa relasio entre as leis empiricas e a causalidade nas ciéncias morais? Busca resolver isso pela via de constituigo de uma nova disciplina por ele denominada Etologia (Ethology) ou a ciéncia da formacio do caréter. £ uma disciplina que procura determinar as leis univer- sais da formaco do cardter, mesmo reconhecendo que néo existe um caréter universal na humanidade. Trata-se — para Mill — de uma disciplina em formagéo e, como ele mesmo reconhec, jamais consolidada — fato que, segundo um dos seus coment tadores (A. Ryan, 1974:88), levou Mill a lastimar-se sempre por nio ter trabalhado nela o suficiente. Mas sua concepgio ajuda a entender a dificil passagem que Mill pretende transpor entre as Jeis empiricas as leis universais, entre a indugdo e a dedusio ©, 80 que mais nos interessa aqui, entre a psicologia e a sociolo- gia (ou citncias morais).. il, as leis empiricas da mente ou “as verdades da experiéncia comum” s6 podem ser explicadas (explained) na medida em que véo sendo decompostas em leis causais, estas ‘dtimas obtidas dedutivamente, pois sendo leis universais no podem ser descobertas experimentalmente ou pela observacio. Nesse sentido € que vemos como a Etologia difere da Psicolo- ‘gia — ciéncia experimental — uma vez que aquela tem status de citncia exata; porém, € das leis gerais da Psicologia que a Etologia vai deduzir os principios necessérios & determinagio das leis universais da formacia do caréter (cf. Livro VI, cap. 5, § 6). “Em outras palavras — diz Mill — a Etologia, uma cién. cia dedutiva, é um sistema de corolérios da Psicologia, uma cién- cia experimental” (Livro VI, cap. 5, § 5). E sua importincia para a fundamentaco das Ciéncias Sociais (ou da Ciéncia So- 28 cial, no singular como prefere Mill, por rejeitar, em tese, a com- partimentagdo dessa ciéncia) foi claramente reconhecida por ele. E, adjetivando a nova ciéncia como Etologia Politica, busca transpor o plano psicol6gico para o socioldgico definindo-a como ““ciéncia do cardter nacional” (Livro VI, cap. Il, § 4) que iré manter com a Ciéncia Social a mesma relagéo que « Etologia mantém com a Psicologia, No entanto, a projegdo desse diltimo par de cincias sobre as ciéncias morais ou sociais colocou estas titimas numa base claramente psicologista.* E no foi por outra razio que Mill, 20 iniciar suas consideragées sobre a Ciéncia Social, escreveu: “‘Imediatamente depois da ciéncia do homem individual, vem a ciéncia do homem em sociedade: das agoes das massas coletivas da humanidade e os varios fendmenos que constituem a vida social” (Livro VI, cap. 6, § 1). E acrescenta que tal cigncia jamais poderé esquecer que © homem, mesmo em sociedade, continua homem, com suas “ages ¢ paixdes obe- dientes as leis da natureza humana individual” (Livro VI, cap. 7, § 1). E mais: “Os homens nio sic, quando juntos, convertidos num outro tipo de substancia, com diferentes proprie- dades (. ..). Os seres humanos em sociedade néo tém outras pro- priedades que nio aquelas derivadas (...) das leis da natureza do homem individual” (ibid.). Ainda que o psicologismo ine- rente & obra de Mill fosse parte da tradicéo empirista britanica, com ele vai encontrar a sua forma mais acabada, pronta para ser incorporada nas ciéncias particulares e positivas de sua época. A doutrina de Mill fornece as nogdes bésicas que iriam marcar a epistome do final do século XIX e inicios do XX. Rivers, naturalmente, dela no poderia escapar. MW Como foi mencionado anteriormente, dirse-ia que Rivers, 2 rigor, no percebia — ou evitava tocar — salvo raras vezes, 29 questdes de epistemologia. Isto pelo fato de nfo ser fécil desven- dar todas — ou 20 menos as principais — implicagdes de seu ensamento com a tradigao empirista, particularmente com aque- Ja representada pela obra de Mill. Uma indicagao que poderia ser feita aqui seria 0 fato de sua formagao ser exclusivamente cientifica, feita no interior das ciéncias naturais, 0 que nio o te ria ineitado a percorrer os caminhos da reflexdo epistemol6gi ‘como ocorreu com seus contempordneos no continente europeu, Durkheim e Lévy-Bruhl. Ademais, se nos € licito especular, o Prato jé estava feito por Mill, haja vista que sua Légica Indutiva estava bastante popularizada & época de Rivers, como sugerem as versOes de William Stebbing, intitulada Analysis of Mr. Mill’s System of Logic (1865), uma simples condensagio da légica, e a do Rev. A. H. Killick, um resumo destinado a estudantes, sob 0 titulo The Student's Handbook Synoptical and Explanatory of Mr. Mill’s System of Logic, aqui consultada jé-em sua 11, edigo datada de 1891. Ensinada nos Colleges britinicos, essa lgica seria naturalmente incorporada nas formas de pensar das eragées posteriores a Mill, para no mencionar que sua in- fluéncia jd se fazia s de um modo geral seria possivel encontrar, seré 0 da formulagao de esquemas hi- ppotéticos de trabalho em que os fatos possam estar ajustados, que 0s testes de tais esquemas (....) ‘expliquem’ (explain) novos fatos (...). Este é 0 método de outras cineias que tratam com condigdes to complexas quanto aquelas da sociedade human: Em muitas outras ciéncias — acrescenta Rivers — esses novos 30 eae fatos so descobertos pela experiment ‘muito bem a longa citasao nao concepglo de ciéncia que Rivers possufa e de como a Antropo- Jogia Social emergente deveria se assumir — segundo ele — para tomar-se uma efetiva disciplina cientifica. Como se vé, para fas a influéncia dessa ldgica empiri elevar a observacdo ao nivel de autoridade méxima do saber aspectos da constituico desse go com reiteradas citagSes de uma conferéncia reproduzida in totum nesta coletinea, permito-me parafraseé-la 0 suficiente para dar a0 leitor, desde © inicio da sua caminhada no interior do pensamento de Rivers, uma idéia ¢ uma diretriz concisas, car pazes de guié-lo, Essa idéia aflora — no que tange a0 aspecto psicoldgico — em sua afirmagdo de que o imperative de exerci tar a andlise ctnol6gica, a saber, “a andlive das culturas e civil zagdes presentemente espalhadas na superficie da terra” (0 grifo & meu), como uma forma de derrogar as especulagoes evolucio- nistas, nfo significa qualquer desprezo pela “‘necessidade do es- tudo psicol6gico de costumes ¢ instituigdes". E acrescenta: “Se 31 que encontrava para explicar fenémenos culturais, mas no modo pelo qual ele concebia a natureza da disciplina em formagao: se a rigor queria reduzi-la ao método etnolégico ou sociol6gico, or outro lado nao abria mao de argumentos psicolégicos (como © da “disposi¢ao mental’) que pensava exorcizar simplesmente advertindo de que os processos psicolégicos deveriam ser equa- cionados apenas apés 0 estudo das correlagdes entre fendmenos is através da “anélise etnol6gica”.* (Geile “Creio — evcreve ele em seu “Survival in sovo logy’ — que na presente condiedo da ciéneia da sociologia nés somente confundiremos resultados se tentarmos explicar fatos Processos sociais em termos psicoligicos. A explicagio das fun- ses do irmio da mie (...) é uma que pode ser express em termos inteiramente derivados da vida social em si mesma, € iss0 € apenas uma amostra do método peculiar da sociologia” (ver 13; 0 grifo € meu). O “anti-psicologismo” de Rivers parece ser exclusivamente metédico, tal como a “divide cartesiana”, pois ele estd verdadeiramente pronto para recuperar a psicologia mais adiante, como iltima instincia de sua indagacéo. E em seus alvos siltimos que 0 pensamento de Rivers se reencontra com 0 de Mill. "A psicologia liz Rivers — encontrase numa relagio com a sociologia ‘quase igual & que a fisica e a quimica mantém com a geologia”” (ver 11.5). Por essa razio “a sociologia precisa ser tratada como uma das ciéncias hist6ricas no sentido em que a geologia € uma ciéncia histérica” (...). E continua: “A primeira tarefa do geblogo € estabelecer as seqiiéncias das vérias condigdes verifi- cadas na crosta da terra a fim de descobrir a historia passada de cada estrato ¢ de cada rocha e outras substdneias encontradas 34 nos estratos. Durante esse trabalho é inevitével que, de posse de certas leis fundamentais da fisica e da quimica no fundo de sua mente, ele néo se valha delas para ajudé-lo em sua inves- tigagio, ainda que elas nao se constituam em seu objeto — en: quanto gedlogo — destinadas a prové-lo de explicagdes fisico- quimicas de condigdes geolégicas, pelo menos nao nos primeiros estigios de sua pesquisa” (ibid.), Portanto, afirma Rivers, teria sido desastroso & geologia “se ela tivesse gasto seu tempo nesse ‘ltimo século a buscar explicagdes fisico-quimicas dos fendme- nos que Ihe sao afetos” (ibid.). Para Rivers é como se a expli- casio fisico-quimica se antecipasse a0 estabelecimento das se- 4qlincias prdprias aos fendmenos geolégicos criando grande ‘confusio, ainda que a tal explicago caberia recorrer apés — somente apés — a descrigao geoldgica. O mesmo raciocinio se aplicaria & sociologia no sentido desta, indevidamente, ‘formu: lar explicagdes psicolbgicas de fenémenos sociais antes de ter- mos determinado 0 curso do desenvolvimento hist6rico dos fe- némenos que nos dizem respeito” (ibid.). E conclui: “Se isso ‘ocorresse estaria evidenciado 0 quanto errados estéo em seu caminho aqueles que rejeitam o proceso social da sobrevivéncia A base de que, pera eles, ndo se pode dar uma explicagio psicolé- ica adequada dos fenémenos sociais”, nestes incluindo Radcliffe- Brown (ibid.). Para Rivers, precedida da andlise sociolégica ou etnolégica, a explicagio psicoldgica no s6 € possivel quanto necesséria se se quiser alcangar um verdadeiro conhecimento cientifico. Nesse sentido cabe uma referéncia ao testemunho de seu colega e amigo, G. Elliot Smith, na introdugdo que fez a0 livro péstumo Psychology and Ethnology (1926): “A mera cole- Go ¢ tabulagio de fatos (...) ndo eram seus reais interesses, mas unicamente 35 comportamento de qualquer comunidade eram merecedores de estudo como um meio de entender a psicologia da humanidade como um todo” (Rivers, 1926:1X). E_ completa: “(Para ©) Dr Rivers, que foi primeiro psicélogo e depois um etndlogo, todo problema em etnologia era essencialmente psicolégico” (ibid ) Como conciliar o interesse de Rivers pela dimensio psico- 6gica e histérica dos fendmenos sociais com a sua programagao de uma disciplina — como a antropologia social — que pro- curou construir o seu domfnio num espaco préprio, distinto do cetipado pela psicologia e pela hist6ria? A solucdafesse enigma parece se encontrar no interior do campo intelectual de sua época marcado pela presenca de Stuart Mill. E por isso que nio ‘nos parece. suficiente atribuir a Rivers. — como fez Elliot Smith — a condicao de ter sido primeiro psicélogo e s6 depois findlogo como a razio de suas preocupagées psicologisticas. ‘Como se procurow mostrar, a estrutura l6gica da argumentagio de Rivers acompanha quase pati passu 0 raciocinio e o estilo de Mill; @ rigor segue a ciéncia da ldgica que era ensinada — como 4 se mencionou. — nas escolas britinicas durante a sua juven- tude. Daf esse ar de famflia que se respira quando se Ié (¢ com- para) tanto um quanto outro autor. (Toda inteligibilidade dal obra de Rivers no pode ser alcangada se nao se levar em conta esse fato, E se compararmos o nosso autor com Durkheim, ou com a antropologia que se constituia no interior do racionalismo francs, veremos que enquanto este seus associados recortam com linhas nitidas © intransponiveis as diferentes disciplinas, particularmente a Filosofia e a Psicologia, Rivers se preocups fem associé-las, como a no querer perder nada do que a psico- Jogia e a propria histéria — disciplinas com as quais mais se receupa — possam dar & antropologia social. Em sua sltima conferéneia, "The unity of anthropology” (11.6),_proferida_no ano de sua morte, (Rivets procure artictlar enti. si todoslos ramos da antropologia, tais como a arqueologia, a filologia, a etnologia € @ somatologia ou antropologia fisica. Mas & certe- 36 oa NR ‘ mente a psicologia e a histéria, com seus respectivos campos fenoménicos, as disciplinas que — enquanto aut6nomas — vo delimitar e de certo modo fecundar a antropologia social nas- cente. Em seu livro Social Organization (1924, 2.* edigio con- sultada, 1929) editado dois anos apés o seu falecimento, Rivers procurou didaticamente delimitar © campo da antropologia so- cial aos fendmenos de organizagao social, como seu titulo jé indicava. Os seus nove capitulos se aplicam & formulagao dos conceitos de Familia (cap. 1), Cla, Metade Tribo (cap. 11), Matriménio (cap. 111), Parentesco e Relacionamento (cap. 1V), Direito Paterno ¢ Materno (cap. V), Propriedade (cap. VI), Fra- ternidade © Sociedades Secretas (cap. VII), Ocupagio, Classe € Casta (cap. VIII) e, finalmente, Governo (cap. 1X); seguem-se trés apéndices sobre a origem classificatéria do parentesco, so bre a organizago social na Austrélia e sobre a organizagio dual." Para alcangar esse objetivo, Rivers principia seu livro dizendo: “Gostaria de iniciar o estudo de meu objeto por um breve esclarccimento sobre o lugar que, creio, a organiza s0- ial ocupa no estudo da cultura humana, Sou daqueles que acredita que o fim sitimo de todos os estudos da humanidade, sejam hist6ricos ow cientificos, esté na procura de explicacdes (explanations) em termos de psicologia, em termos de idéi ‘crengas, sentimentos ¢ tendéncias instintivas através dos qu a conduta do homem, individual e coletiva, ¢ determinadi ‘Rivers, 1929:5). Mas nao s trata, porem, de uma tunidetermi rnagdo ou exclusiva causalidade exercida pelos fendmenos da mente ou mesmo do corpo (sométicos), como os instintos. Rivers concede, particularmente no que tange ao comportamento cole- tivo, uma multideterminagdo (ou uma “pluralidade de causes”, como diria Mill): “essa conduta, quer individual ou coletiva, mas particularmente coletiva, e também determinada pela estrutura social” (ibid.; o grifo é meu). Essa estrutura social é considerada por Rivers como base social na qual todo ser humano, seja ele membro de um 37 grande império, como somos nés — exemplifica Rivers —, ou seja somente um membro de alguma nistica tribo selvagem, tem de sentir, pensar ¢ agir. E possivel o estudo da base social nela mesma, quase separado de quaisquer consideragSes psicolégicas, € este € 0 objeto, ou poderd ser objeto daquilo que gosto de chamar de ‘sociologia pura’, como distinta da psicologia social” (ibid). E Rivers entende que esse objeto poderé ser atingido de duas maneiras, ou “pontos de vista” como diz: pelo estudo comparativo de diferentes estruturas sociais espalhadas no mun- do ¢ das fungSes sociais de seus elementos constitutivos; ¢ pelo estudo histérico dos processos pelos quais as sociedades huma- has chegaram a ser 0 que so. Pelo primeiro ponto de vista, captase a “estética social”, pelo segundo a “dinfimica social’ pontos de vista que evocam Mill e, um pouco mais atrés, Comte. Porém, se sua concepsdo de estética social, como o estudo das ““fungées sociais” dos elementos constitutivos da estrutura social (bid: 3-4), prolongase na obra de um Radcliffe-Brown, sua concepeao de dinémica social — que se pretende histérica — vai constituir 0 pomo da discdrdia, seja junto dos antropélogos sociais das geragdes que o sucederam na comunidade antropolé- gica britdnica, seja junto dos historiadores de todos os matizes, ‘undnimes em separar da ciéncia da Histéria os esquemas evolu- cionistas ¢ a ideologia de progresso correntes no século XIX, que Comte tio eficazmente difundiu e dos quais nem Mill ¢ nem mesmo Rivers, apesar de sua critica tardia a0 evolucionis- ‘mo, lograram escapar. Para os antropSlogos, as questdes de evo- Jugdo e de progresso da humanidade jamais vieram a se colocar seriamente, notadamente a partir da instalago plena da orienta- so funcionalestrutural em suas pesquisas; para os historiado- res, essa “Histéria”, impregnada de um ‘‘método hist6rica” con- cebido no Ambito da ciéncia natural, & maneira comteana, con- trastava claramente com uma outta concepgao de histéria — a da Hist6ria como disciplina — devotada a penetrar na inteli- géncia dos eventos € no no estabelecimento de lei 38 on em F assim que, seguindo caminhos aparentemente contradit6- rios, @ idéia da Antropologia Social que havia pensamento de Rivers reproduz, ela propria, 0 Tectual do nosso autor. Tal itinerdrio & o que se preocupou tragar nesta Introdugao. Como todo trajeto de vida, intelectual ou no, esté pautado de sucessos ¢ insucessos. E, a nosso ver, hé pelo menos duas modalidades de julgamento: o que privilegia 0 su- cesso, € 0 faz com generosidade, € 0 que sublinha o insucesso € se compraz em olhéslo sob uma perspectiva hipercritica. Mas fo julgamento final é 0 da histéria — ¢ este, felizmente, menos do que emitir um juizo definitivo, interpreta, i. e., a0 tentar compreender um autor/ator como Rivers, sabe que lograré ape- nas uma versio, a sua — talvez de sua época — como uma sintese de si e do Outro, expressa na presenga simultinea (¢ por conseguinte artificial) de dois tempos, o de Rivers ¢ 0 nosso, do leitor e de quem redige esta Introdugo Para concluir, cabe dizer que a seleglo de textos que se segue, menos do que feita para amparar nossa leitura, foi ela- borada para introduzir o leitor ao pensamento de um autor, marcado pot seu pioneirismo: 0 de criar uma disciplina. Claro que 0 empreendimento de Rivers ndo foi solitétio. Teve seus associados, seus seguidores e, particularmente, seus antecesso- res — como se procurou mostrar. As eriticas que mais recaem sobre Rivers 0 atingem em seu. manejo nem sempre habil da disciplina no desvendamento de seu objeto: os povos exéticos. Bfetivamente, ndo esté ai o forte de Rivers, A forga de seu tra- balho reside na propria edificagdo da Antropologia Social, in corporando uma tradigio e dela partindo para abrir o espaco {que a nova disciplina iria ocupar e nele se desenvolver. Por isso, (8 textos escolhidos visam proporcionar ao leitor um acompa- nhamento, 0 mais préximo possivel do autor, das vicissitudes de seu pensamento na programagdo da disciplina. Simultanea- 39 | | mente, objetivam também incentivar o leitor numa determinada modalidade de historiografia, aquela que se aplica & reconstru- cio de perfis intelectuais, indispensdveis & boa compreensio des- se fendmeno social ¢ cultural que chamamos de Ciéncia. Cabem — antes de concluirmos — algumas indicagves so- bre a editoragao dos textos. Os quatro primeiros textos, que compéem a Parte I (A Idéia do Parentesco), foram traduzidos jo de 1968 do livro Kinship and Social Organization, citado na bibliografia; eles representa integralmente as versbes definitivas — revisadas por Rivers — das conferéncias de maio de 1913 (1.2, 1.5 € 1.4), publicadas em sua primeira edigéo (1914) juntamente com o artigo de 1910 (1.1), que foi incluido pela primeira vez em The Sociological Review (vol. 10, 1910, pp. 1-12). Dos textos seguintes, incluidos na Parte II (A Idéia da Antropologia), dois deles foram traduzidos das edigdes ori- ginais, “Survival in sociology” (11.3), publicado em The Socio- logical Review (vol. 6, 1913, pp. 293-305), e “History and ethnology” (11.5), em History — The Quartely Journal of the Historical Association (vol. 5, 1920, pp. 65-80); @ conferéncia “The ethnological analysis of society” (II.1), editada primitiva: ‘mente na revista Science (vol. 34, 1911, pp. 385-393), foi reedi- tada em 1926 ¢ inserida na coletdnea de ensaios de Rivers, Psychology and Ethnology, com o titulo modificado para “The ethnological analysis of culture”, de onde procedemos a tradu- ¢ao. Os outros trés textos foram traduzidos do volume W.H.R. Rivers (1978) de R. Slobodin que os reproduziu na terceira parte de seu livro, constituida de uma selegio de escritos: “Sociology and psychology” (I1.4) foi reproduzido integralmente, enquanto “The disappearance of useful arts” (11.2) € “The unity of anthropology” (11.6) foram reeditados com alguns cortes de ree- ponsabilidade de Slobodin, mas sem prejuizo da integridade dos conteiidos que, nessas condigdes, foram aqui traduzidos. Roberto Cardoso de Oliveira 40 NOTAS "Esse novo Isboratério nilo significou que # pesquisa e @ ensino de psicologia experimental estivessem suficientemente amparados, Na real dade, Rivers esperou anos para conseguir condigSes satisfatrias de tra ‘balho para si e para seus alunos: dificuldades, porém, que nao cram cexclusivas da psicologia. Também elas partlhava a fisiologia. Ambas desfrutavam, 4 époce, de baixo status acedémico. O préprio Laboratério de Fisiologia somente seria aberto as vésperas da guerra de 1914 (Slob din, 1978:1617). Durante a guerra Rivers se incorporou ao exército brit nico como médico, atuando no tratamento de neurose de guerra e valen- doe das idéias de Paul Janet e Freud com especial éxito. Pode ser consi- derado como um dos introdutores da psicanilise na Gri-Bretanha. 2A revisla Man em seu mimero de julho de 1922 publicou uma relagao de 142 titulos da bibliografia de Rivers. Richard Slobodin, em seu livro sobre © autor, relacions 49 titulos, entre os quais 6 publicados posteriormente ao falecimento de Rivers € mais 5 utulos de trabalhos cxcritos em colaborasio, STalver o melhor estudo sobre Hocart, © sue importincia para a Antropologin Social, estejn na introdusio da edigéo de 1970 de seu livro Kings and Councillors: An essay in the Comparative Anatomy of Human Society de autoria de Rodney Needham. Nela Needham comenta que Hocart néo foi somente 0 discipulo mais eminente de Rivers, como tam- bhém o mais injustigado pele academia briténica, que jamais soube reco” mhecer seus méritos concedendolhe um cargo docente. 4 Esereve Rivers no primeiro pardgrafo de sua introduglo: “HA dois rmodos principsis de trabalho einogréfico: um, intensivo, em que 0 com: junto da cultura de um povo, suas caracteristicasfisicas e meio ambiente ‘fo examinados to minuciosamente quanto possivel; o outro, um traba- lho de levantamento (survey-work) em que um mimeto de povos sio festudados 0 suficlente para obter uma idéia geral de suas afinidades fisicas e cultursis entre ‘cada um deles e com povos de qualquer outro lugar (...) Contudo, por mais profundamente que se possa ir no trabalho de levantamento, a informacio obtida € inevitavelmente incompleta © iio que um estudo intensivo poderia proporcionar” (Rivers, 191 50 exame da tradicio racioualista que influenciaria a vertente fran- ‘cesa da antropologia social, atualizada no interior da Ecole francaise de sociologie, foi por nés realizado alhures (R. Cardoso de Oliveira, 1979 1985) ¢ acreditamos que possa ter slgum valor pare o Ieitor interessado an ‘em cotejar aquela tradicéo com a emplrista que aqui estamos examinando por meio de uma leitura de Rivers A esse reducionismo € que se aplica © termo psicologismo, “a doutrina que, sendo a sociedade produto de mentes interagindo, leis sociais precisam ser, em cltime insténcia, redutiveis a leis psicol6gicas, desde que os eventos da vida social, incluindo suas convengoes, devem ser causados por motives procedentes das mentes dos homens individuals” (Popper, 1971:90) im sua teoria da convergéncia, Rivers procura mostrar que é pels combinagio de duas metodologias — a psicol6gica e a histérica vis @ vis einolégica — que 0 processo de convergéncis ganha sentido. Assim, diz ele: “temos ainda que descobrir o quanto a semelhanga se deve & ago de leis comuns & constituigdo mental de humanidade e 0 quanto ela foi produzida por semelhangas de equipamento mental e social ndo comum & humanidsde em geral, mas & posse especial de um povo provenient dde um luger que, por suas andangas em diferentes diregdes, chegot formar um elemento comum de populagdes amplamente diversas, de lugares distantes um do outro no espago © na natureza genética de sua cultura. Meu objetivo neste capitulo € sugerir que seré stil clessificar juntos certos processos sociais como casos de convergéncia & medida em que reconhecamos claramente que permanecemos ainda com a tarefa de descobrir 0 mecanismo ao qual se deve esta convergéncia (...). Conver: ‘ncia serd um conceto stil na etnologia somente se reconhecermos que la pode ser histérica ou psicolégica, ou, como’ provavelmente descobri remos com mais freqiiéncia, dependente de um processo que apenas pode ser inteiramente entendido quando estudado pela combinaglo dos méto- dos histérico © psicolégica” (Rivers, 1926:149150), Na publicagso Cambridge Anthropology (vol. 3, n2 5, s/d), edi tada pelo Departamento de Antropologia Social da’ Universidade de Cambridge, encontram-se reproduzides 0 artigo ritico de Redcliffe: Brown, “The study of social institutions”, © @ cartaréplica de Rivers, procedidos de uma pequena introduglo de Meyer Fortes. No catélogo dda Tozzer Library, da Universidade de Harvard, aparece 1976 como @ data de referéncia ‘da revista Tal como Mill, em sue controvérsia com Comte, mostrava que os fendmenos (estados) mentais deveriam set estudados em suas méltiplas interdeterminades sem recorrer aos “estados do corpo”, Le., sem reduzit © psicoldgico ao fisioldgico, Rivers preocupase em nic reduzir 0 s0cio- Tagieo, ao psicoldglco. 29 Em seu artigo de critica # Rivers (cf. nota 8), Radcliffe Brown vai dizer que © método psicoldgico de Rivers objetiva estudar aqueles fendmenos que ele, Radeliffe Brown, chama de estéticos, enquanto 0 ‘método histérico do mesmo Rivers se concentra nos fenémenos dindri- cos. A nosso ver, Radcliffe Brown, com esta nova terminologia — bas 42 tante durkheimiana — estava procurando eliminar de uma s6 vex quais quer implicagdes com a Psicologia e a Hist6ria como disciplinas autd- 1 Segundo seu prefaciador, G. Eliot Smith, livro esté baseado num manuscrito elaborado por Rivers em 1920, destinsdo dois cursos de leiture que ministrou em Cambridge entre 1921 e 1922. A intengio de Rivers era revisélo no verdo de 1922 para um curso que daria no inverno de 1922-1925 na fndis, e, posteriormente, publici-lo em forma de lio. Com sua morte, Elliot Smith pediu e W. J. Perry, entio M.A. e reader fem antropologia cultural na Universidade de Londres, para. editat 0 manuscrito. Assim, os capitulos 11, IIl e IV tiveram de ser sjustados quase reescritos por Perry (ef. Rivers, 1929:Prefécio) 1 Sobre o caréter da oposigio dos historiadores a essa neturalizayio da histéra, Telase 0 excelente livro de Frederick |. Texgart, Theory of History (1925), especialmente sua segunda parte, “The study of change’ ‘Anos depois esse livro seria reeditado, agora em conjunto com um outro do mesmo autor, Processes of History (1918), gragas 4 um empreendi mento da University of California Press que intitlou 8 nova edigio Theory and Processes of History (1981:Ghtima edigso, brochura, de 1977) 43 BIBLIOGRAFIA BOAS, F. The Mind of Primitive Man. Nova York, Free Press. (Ie ed, de 1911), 1965 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Marcel Mauss. Colegio Grandes Cientisias Socisis. So Paulo, Editora Atica, 1979, “As categorias do entendimento na formacio da Antropotogia”. ‘em Anudrio Antropoldgico/ 1981. Tempo Brasileiro, 1985, pp. 120-146. “A ‘categoria da eausalidade’ na formacio da Antropologia’ ‘em Anudrio Antropoldgico/83. Tempo Brasileiro, 1985, pp. 11-52 FIRTH, R. “Rivers on Oceanic Kinship”, em W. H. R. Rivers, Kinship ‘and Social Organization, Nova York, Humanities Press Inc,, 1914, 1968, FORTES, M. 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O primeiro ponto a ser considerado € do The Sociological Review, vol. 5, jan. 1910, pp. 142, 51 que, devido a grande diferenga entre os sistemas de relagoes * de parentesco dos povos primitivos € dos civilizados, & desejével {que sejam usados to poucos termos de parentesco quanto possi- vel, sendo que genealogias completas podem ser obtidas com cexpressées limitadas as seguintes: pai, mae, filho, filha, marido e mulher. A pequena genealogia apresentada como exemplo foi obtida em Guadalcanal, na parte leste das has Salomao e, neste caso, iniciei a pesquisa perguntando a meu informante: Kurka ou Arthur, © nome de seu pai de sua mée, deixando claro que queria os nomes de seus pais biolégicos ¢ no de quaisquer outras pessoas que ele assim denominasse em virtude do sistema classificatdrio. Depois de me certificar que Kulini tinha apenas uma esposa e Kusua apenas um marido, obtive os nomes de seus filhos e filhas por ordem etéria pesquisando os \énios ¢ a prole de cada um, Assim, cheguei ao pequeno ‘grupo dos descendentes dos pais de Arthur. A Ilha de Guadal- canal possui um sistema social caracterizado pela descendéncia matrilinear e, deste modo, Arthur conhecia melhor a genealogia de sua mie do que a de seu pai. Obtive os nomes dos pais de sua mie, certificando-me, como fiz anteriormente, de que cada ‘um havia sido casado apenas uma vez € entéo indaguei os nomes de seus filhos e filhas obtendo assim os matriménios ¢ descen- dentes de cada um, Pelo fato de Arthur ter vivido por um longo periodo de tempo em Queensland, seu conhecimento no ia além da geragdo de seus avés. Caso ele fosse mais versado em sua genealogia, eu teria pesquisado a parentela de Sinei ¢ Koniava, ee chegado até os descendentes de seus pais exatamente do mes- ‘mo modo, seguindo assim até que 0 conhecimento de meu in- formante sobre sua familia fosse completamente exaurido. ‘Ao coletar as genealogias obtém-se os descendentes em am- bas as linhas, masculina e feminina, mas ao transcrevé-los para ‘uso deste artigo, € aconselhivel anotar em uma pagina apenas os descendentes de uma linha, com referéncias cruzadas a outras péginas para os descendentes da outra linha.’ 52 SINEL 7 Koniava Kindupatel | takwill KULINI @ Kusun "TUAN -p Kobllkon TUAN 7 Oe Lakwili VAR 7 oslo Lukwili — Kindapalei Lakwill | Kindapalei Houmbata sem filhos KURKA ARTHUR ’ Duo! [ie [ononoe Kolin TORO eNtE gy |Rvnael T taker taki] Kekew sem Hihos oriMnA = Gell bvrukernuna aTARO * kewl saved | 1 Maumbute ) takilh Kokaw tem flow oy ial Sint — Kounl —Koperon GUSA on wenn fiThO8 SINEL Kosni Koperos GUSA—Koriki_ Kondatshikai sem filhos rmortas jovens (© método exato para o arranjo de nomes nao é de grande importincia, entretanto achei conveniente colocar os nomes mas- ‘culinos em letras maidsculas e os nomes femininos na forma habitual, sempre posicionando o nome do marido & esquerda do da esposa. Em matrimdnios poliginicos, ou polidndricos, in- luo os nomes das esposas ou dos maridos entre parénteses, Uma das mais importantes caracteristicas do método é a de mencionar, tanto quanto possivel, a condicéo social de cada pessoa inelufda nas genealogias. A localidade de origem de cada tim deve ser dita e freqtientemente faz-se necessério gravar, ndo fapenas © distrto, mas também o nome de algum grupo territo- rial menor, seja um vilarejo ou uma aldeia. Caso 0 grupo possua Drganizacio totémica, os nomes do totem ou dos totens de cada 33 pessoa devem ser mencionados ou, se néo existirem clas totémi ‘cos ou outras divisdes sociais, isto deve ser igualmente mencio- nado. Na genealogia de Guadalcanal, dada como exemplo, os nomes colocados sob os das pessoas referem-se a clas exégamos ‘que provavelmente possuem natureza totémica.* ‘Ao iniciar o trabalho em uma nova localidade € aconselhé- vel mencionar qualquer fato, sobre cada individuo, que possa ter significacdo social, podendo posteriormente @ pesquisa ser limitada aqueles considerados de importincia. Cuidados espe- ciais deve ser tomados para o registro das localidades de pro- cedéncia daqueles que se casaram dentro da comunidade, vindos de outras tribos ou locais. Caso exista a pritica da adosio, as criangas adotadas quase que certamente sio inclufdas entre os fihos legitimos, a menos que se preste atencdo especifica a0 tema, devendo, nos casos em que for possivel, ser mencionado parentesco real e o adotivo. Freqiientemente so encontradas dificuldades ¢ fontes de erro quando da coleta do material para a aplicagéo do método genealdgico. Uma delas, com que me deparei, & a existéncia de tabus em relacdo aos nomes dos mortos, s6 podendo este fato ser sobrepujado com muita dificuldade, na maioria das vezes. Em minha propria experiéncia fui compelido, em conseqiiéncia deste tabu, a obter em segredo certas gencalogias © de outras pessoas que ndo do grupo estudado. Outras fontes de erro perplexidade so as préticas da adogdo e da mudanga de nomes e, sem divida alguma, novas dificuldades serdo encontradas por aqueles que procurarem levantar genealogias em outros locais. ‘A fim de empregar 0 método genealégico do modo que proponho faz-se necessério ter certeza de que as genealogias obtidas sto fidedignas. Ao coletar as genealogies de toda uma comunidade existirdo muitos pontos de entrecruzamento; em um ‘caso pessoas que pertengam ao tronco paterno de um informan- te pertencerio ao tronco materno de outro, ou estario entre os ancestrais de sua esposa, havendo assim amplas oportunidades para testar a concordancia das versbes oferecidas pelos diferen- tes informantes. Em quase todas as comunidades com as quais tive oportu- nidade de trabalhar, encontrei pessoas com conhecimentos ge- nealdgicos especiais, sendo bom que delas se faga tanto uso ‘quanto possivel. De acordo com minha experiéncia, € perigoso confiar em homens jovens, que em quase todos os locais nio se dio mais a0 trabalho de aprender suas genealogias junto aos seus velhos. No entanto, se elas forem obtidas através destes {timos, normalmente possuitio extraordinéria acuracidade quan- do confrontadas com diferentes versdes bem como uma maior cocréneia dentro da genealogia completa da comunidade. Tendo assim descrito rapidamente 0 método de registro de sgenealogias, e de garantir sua acuracidade, posso seguir detalhan- do 0s usos a que elas se prestam. (© primeiro e mais Obvio uso refere-se a elaboragio dos istemas de parentesco. Em quase todos os povos de cultura simples estes sistemas diferem tanto do nosso préprio, que existe ‘um grande perigo de se cair em erro, caso se tente meramente obter 0s equivalentes aos nossos termos através do método de pergunta © resposta. Meu procedimento € perguntar ao infor- ‘mante os termos que ele aplicaria a diferentes membros de sua gonealogia ¢, reciprocamente, os termos que aqueles aplicariam 2 sua pessoa. Assim, no caso da genealogia de Guadalcanal que apresentei como exemplo, perguntei a Arthur como ele denomi- nava Tokho, ¢ ele mencionou o equivalente a “irméo mais ve- tho", quando um homem esté a falar, enquanto que o modo pelo qual Tokho denomina a Arthur é 0 equivalente a “irmio ‘mais novo". Os termos aplicados um a0 outro por Vakoi ‘Arthur deram us cquivalentes a “fitho da irma” © “irmio da mae", respectivamente; no parentesco de Komboki e Arthur sur- sgiram os temas “‘esposa do irmo da mae” e “filho da irma do marido”, tendo sido as outras expresses de parentesco do lado materno obtidas do mesmo modo. Para os termos de parentesco 55 do lado paterno, a genealogia de Kulini, pai de Arthur, era em- pregada. E fato real que excepcionalmente, um jogo completo de termos de parentesco pode ser obtido a partir de apenas uma genealogia, mas mesmo se assim fosse possivel, no seria reco- ‘mendével que se fizesse deste modo, porque sempre hé a possi- bilidade de ocorréncia de algum parentesco duplo, um talvez ppor consangilinidade e outro por afinidade, que pode nos enge- nar. Nunca fico inteiramente satisfeito com um sistema de pa- rentesco, a menos que cada geneelogia tenha sido obtida a partir de trés outras distintas. ‘A seguinte lista de termos das relagdes de parentesco deve ser obtida: Pai Mae Irmio mais velho (hi) Irmio mais velho (m4) mais nove (hf) firma mais nova (hf) Irma mais velha (bf) 22) emo mais novo (mf) Imi mais velha (m4) firma mais nova (mf) Irméo do pai... filhot do irmao ¢h..) filho* do irmio do maride fitho* do iemso (m..) fillo* do irmio da esposa Irmio de mie en fitho* da iema (h.) Esposa do irmio da mie U) filho® da irma do marido Fllho* do irmao da mae Irma da mie 2.2... filhot da ima (m4) Marido da ima da mae filho* da irma da esposa Fitho da irma da mie Pai do pai fithot do fitho (h.6) Mie do pai filho* do filho (m.) Pai da mae filho* da fitha (hf) TANI filho* da filha (m.) Maride esposa ai da espose marido da filha (h.6) Mie da espose Psi do marido Mie do marido Irmo da espose ‘marido da fhe (mf) 1 esposa do fitho (hi) esposa do filho (mi) rmarido da irma (hf) 56 marido da iema (m4) fexposa do iemio (hl) esposa do imo (m.i.) nmi do. marido Marido da irma da esposa Esposa do imo do marido Pais de esposa do filho horn-m falando mulher falando + = fiho e/ou fitha dispostos em duas colunas, e os termos opostos em cada uma sio reciprocos, de maneira que caso hajam sido obtidos através do método geneslégico, o nome dado por um hhomem a qualquer um de seus parentes entraré em uma coluna © 0 nome dado a ele por aquele parente ocuparé um lugar na ccoluna oposta. No caso de relagdes miltiplas de parentesco, duas formas so utilizadas: uma, quando se dirigindo a um patente, € outra, quando dele falando, sendo que ambas devem ser obtidas. Em varias partes do mundo, diferentes termos de parentesco sio utilizados por pessoas de sexos diferentes, sendo os termos tam- bbém afetados pelas idades respectivas das duas partes da rela- a0. Na lista, todas as diferencas importantes de acordo com 0 sexo foram incluidas através da especificacdo sobre se o termo esté sendo usado por um homem (A.j.) ow uma mulher (1n.f), mas as distingdes etérias apenas foram fornecidas nos casos de irmdos e irmas. Se, conforme freqiientemente acontece, os irméos mais velhos os mais jovens do pai so distinguidos, estes ter- mos devem também ser obtidos, ¢ distingdes similares devem ser pesquisadas em casos de outras relagdes. Algumas vezes as distingSes etérias vio mesmo mais Jonge, podendo existir um termo distinto para cada membro de uma familia de trés, qua- tro, cinco ou mais pessoas. Se os filhos forem distinguidos das fithas na nomenclatura, of termos devem ser fornecidos, em cada caso, na lista, sempre que a palavra “>prole”"* ocorra. Os termos usados para relagdes definidas de parentesco, consangiiineas ou afins, so também freqiientemente aplicados a outras com as quais tais lagos ndo podem ser tragados. Tenho 37 ‘pORlliabito»suplementar o método genealégico pedindo uma lista de todas as pessoas i quemn/umy|Niomiemjespecificofaplica)termos de parentesco, Na anélise, geralmente descobre-se que eles caem ‘em uma das seguintes classes: (1) parentesco que pode ser tra- {Gado nas genealogias; (2) parentesco consanguinco ou afim que no pode ser tragado nas genealogies disponiveis, mas que pos- sui, sem sombra de divida, uma base genealdgica; assim, em @onexio com 2 mesma genealogia, Arthur poderia dizer que denominava um homem mianggu, ou “irmao de minha mae", porque ela era o fasina, ou “irmao” de Kusua; (5) parentesco dependente da pertingncia a uma divisdo social — assim, Arthur poderia chamar um homem kukuanggu ou “meu avo" porque este era um Iakwili da mesma geragio de Koniava; e (4) paren- tesco dependente de algum lago artificial estabelecido pelo usué- rio do termo ou mesmo pelo seu pai ou avé, sendo tal parentesco artificial, por vezes transmitido de pai para filho, Os termos dados na lista sio suficientes para determinar 0 caréter geral de um sistema, mas 0 ideal seré obter um certo sngimero de expresses para parentesco mais longinquo tal como com o do irmio ou da irma do avd paterno, juntamente com sua prole-e netos. Entre estes parentes mais distantes, esposa do filho da irma e 0 marido da filha da irma e suas proles sio, algumas vezes, de interesse especial (© uso de genealogias também é interessante para o estudo Gas egulamentagSes. matrimoniais: Se todas as gencalogias de ‘uma populagdo forem coletadas, como tenho conseguido em di- ‘versos casos, teremos entio um registro dos casamentos que tiveram lugar na comunidade, retornando, certas vezes, até cer- cca de cento e cingtienta anos no passado, Este registro € preser ado nas mentes das pessoas, ¢ através dele pode-se estudar as leis que regem a instituigdo local do matriménio, assim como em uma comunidade civilizada pode-se fazer uso dos registros matrimoniais em um cartério ou igreja. Podemos, entio, saber no apenas quais 0s tipos de matriménio permitidos ou prefe- 58 pester renciais © quais aqueles proibidos, mas também expressar esta- tisticamente a freqiiéncia dos diferentes. tipos. (Ente | GiWeRos ppovos de cultura simples, parece estar em andamento uma mu- danga gradual da condigao em que o matriménio é regulamenta- do primordialmente, ou inteiramente, por meio dos mecanismos de clas, fratrias ou outros arranjos sociais, para uma outra na qual a regulamentaso do matrim6nio depende de uma consa glinidade verdadeira, e a nattireza exata do estado de transigio de um povo apenas pode ser determinada de modo satisfat6rio através de um método concreto, tal como o provido pelo estudo (do registro) genealgicos Mais ainda, sendo o matriménio regu- Tado por alguma regra social, o método permite descobrir quais- quer tendéncias especificas para que pessoas de determinadas divisdes se casem entre si, tendéncias estas que talvez no hajam sido informadas pelo préprio povo. @limétodd) tornaljpossivel estudo exato de formas de matrimonio tais como a poli poliandria, 0 levirato € 0 matriménio entre primos cruzados. Estas instituigdes possuem intimeras variedades que escapam fa- cilmente & atengao pelos métodos comuns de pesquisa, mas que se tornam perfeitamente claras quando sua natureza é trabalhe- da em detalhes usando-se as genealogias; além disso, 0 método permite detectar se as regulamentagdes matrimoniais de um povo esto sendo obedecidas na prética, podendo um estudo dos casamentos, através de geracdes sucessivas, revelar uma mudan- a progressiva na severidade com que qualquer regra seja san- Gionaday Na realidade, € possivel trabalhar os problemas mais complexos concernentes & regulamentagdo do matriménio sem jamais haver formulado uma questo direta sobre o assunto, embora isso ndo seja desejével, porque uma das caracterfsticas mais interessantes do método genealégicn fornecida pela com paragao entre os resultados obtidos através de seu uso e aqueles derivados da pesquisa direta. Caso existam discrepancias entre cos dois, @ investigagio poderd ndo apenas fornecer idéias para ‘novos pontos de vista, como também langar luz sobre as pecul 59 eI Ees eR Cundleana presenta como exemple & muito diminuta para que possa valer como um bom exemplo da aplicagao do método, mas deve ser observado que em nenhum caso duas pessoas do mesmo cla casaram entre sie que, de um total de oito casamentos, quatro tiveram lugar entre membros dos clas kindapalei ¢ lakwili, fato explicado provavelmente pela cexisténcia do matriménio entre primos cruzados naquela ilha, Ela também nos fornece um exemplo de casamento com um membro de outra comunidade, ou seja, com um nativo da viz’ nha Ilha de Savo, cujos clas correspondem muito de perto acs de Gi sie = Set a i fence ao cla de sua mac, leste modo a descendén- cia matrilinear nesta parte das Ilhas Salomao. s. Assim € possivel tomar ‘um determinado pedago de terrae pesquisar sua hist6ria, talvez a partir do tempo em que ela comegou a ser cultivada; o trajeto de suas divisbes © subdivisdes, em ocasides diversas pode ser segitido em detalhes, ¢ um caso de posse que pareceria sem espe- rangas de resolugdo tornase perfeitamente simples e inteligivel luz de sua histéria, havendo uma penetragao na dinamica das leis concernentes & propriedade, de um modo que jamais pode- a obtido através de um método menos concreto. da Melanésia, nos tltimos cingtienta anos teve lugar uma mu- danga no estilo de vida das matas para o litoral, ‘que estudei, descobri que, nos cerimoniais, Tungoes das so destinadas a pessoas que esto em relagio determinada com quem executa a ceriménia ou com a pessoa para quem ela std sendo levada a efeito, (© método permite também que se investigue o cerimonial de modo mais concreto do que seria possivel de outro modo. Quan- do estou trabalhando com este tema, coloco & mio meu livro de genealogias ¢ conforme obtenho os nomes dos vérios atores procuro verificar como eles esto ligados ao executante ou a0 sujeito da ceriménia, havendo ao mesmo tempo a vantagem de eles se tornarem personagens reais para mim, mesmo que ante- riormente nunca os tenha visto, € a investigagéo proceder de uma maneira que interessa tanto a mim quanto aos meus infor- antes, muito mais do que se os personagens fossem meros X, Y ou Z. “a pio rr eee es dos sexos, o tamanho das familias, 0 sexo do primeiro filho, a proporsao de criangas que crescem e se casam para com o mime to total de nascidos, e outros temas similares que podem ser estudados estatisticamente pelo método genealégico. Nas genea- Togias possuimos uma grande massa de dados de maior impor- 61 de acordo com minha experiéncia, a meméria do povo & menos crivel no referente a criangas da geracao passada que morreram jovens, ou antes da idade matrimonial, do que no caso daqueles ‘que se casaram ¢ tiveram prole — é ébvio que estes dltimos terdo ganho uma importincia social dentro do grupo, que faz da preservagdo de seus nomes um fato natural. Tem sido uma freqiiente fonte de surpresa para mim o fato de jovens falecidos uma geta¢do antes serem lembrados to bem quanto 0 s2o; pro- vavelmente devem existir poucas dividas de que alguns tenham sido esquecidos, e as estatisticas concernentes a estes temas biolégicos so menos completas do que aquelas que lidam com tantes de mistura, em ambos os casos com povos cujas carac- teristicas fisicas séo muito diferentes daquela da massa geral de = mencionar, brevemente, algumas outras vantagens incidentais do método geneal6gico. Muitas informagées podem ser obtidas no tocante & transmissio de nomes, eno exemplo fornecido pode ser observado que uma crianga recebe © nome de seu bisavd, além do mais, o nome de alguma pessoa morta, talvez alguém que haja vivido um século atrés, lembraré a his- 62 sees ‘ria passeda do povo que, de outro modo, possivelmente no seria obtida, e alguns comentirios langados & esmo, (GaIRFEUIND Alem ccc,» mer colesto de nomes provide na ‘genedlogia forma um depésito de material lingifstico que seria de imenso valor ndo fosse 0 fato de possuirmos pouco conheci ‘mento das partes mais vivas da linguagem de modo a permitir que cla seja utilized, ‘Tendo agora considerado linhas mais detalhadas de pesqui- sa para as quais 0 emprego do método genealdgico é stil ou essencial, sintetizo brevemente algumas de suas vantagens em termos mais gerais. Em primeiro lugar, mencionaria sua solide Qualquer um que conhega povos de cultura simples sabe a dificuldade que s coloca ante o estudo de qualquer questio abstrata, ndo tanto porque o selvagem ndo possua idéias abs- tratas, mas sim porque ele ndo possui palavras para expres: sila, a0 mesmo tempo em que ¢ certo que dele nao pode ser esperada uma apreciagdo adequada dos termos abstratos do idio- ma de seu visitante ou de quaisquer outras linguas estrangeiras ue sirvam de meio de comunicagio. aE: ‘até mesmo possivel que através dele pos- sam formular-se Tels que regulem a vida do povo, as quais pro- ‘vavelmente jamais foram formuladas, certamente néo com a cla- reza ¢ exatidio que elas te civilizagio mais complexa. Também sero evitados desentendi- para a mente treinada em uma mentos infindéveis entre aqueles passiveis de surgirem entre povos de esferas tio diferentes, desentendimentos que possuem sua fonte em diferencas de perspectivas e falta de apreciacdo. de um lado ou de outro, das amenidades da linguagem, scja européia ou nativa, que esteja servindo como meio de comuni- ‘cago. © método no pode eliminar as dificuldades que atrapa- Tham a interpretagio das condigGes sociais do selvagem pelo 63 visitante de outra civilizagdo, mas fornece uma massa de fatos definidos e indubitéveis para serem interpretados. Deste ponto de vista, o método € mais util aqueles que, como eu, apenas podem visitar 0s povos selvagens ou birbaros Por um pequeno espaco de tempo, totalmente insuficiente para adguirir um grau de dominio sobre o idioma nativo que permita que ele seja usado como instrumento de comunicagao. Para isto, (© método é essencial, caso haja alguma esperanca de se conse- guir fatos de valor verdadeiro sobre as caracteristicas mais com- plexas da organizagio social Nao é exagero dizer que sobre este assunto ou sobre aquele da regulamentagio do matrimGnio € possivel obter, através deste méiodo, um conhe: ‘mento mais definido e exato do que possivel, sem ele, para tum homem que viva muitos anos entre estes povos e que tenha obtido um conhecimento to pleno quanto aquele que um euro- peu pode adquirir da lingua de um povo bérbaro ou selvagem. Outra grande vantagem do método € que ele fornece meios de testar a acuidade das informagées obtidas. Entre os selva- gens, tal como entre nds, existem enormes diferengas quanto & veracidade com que se descreve uma cerim: le tia peso om cao ae cen, ies (Gee ia HASE TETHER TAacdaee. Nao quero sim- plesmente dizer que uma pessoa que guarde em sua meméria, de maneira acurada, as geneslogias, possuird também meméria aguseda para outros temas, sendo que 0 método concreto de pesquisa, tornada possfvel pelo métado genenlégico, nos permite detectar a falta de cuidado e de acuidade muito mais rapida mente do que pelos métodos mais comuns de pesquisa. Nao é uum detalhe sem importincia 0 conhecimento de que fatos acura- dos dio a0 pesquisador um sentido de confianga em seu traba- Tho, que ndo é passivel de ser desprezado nas penosas condigGes climéticas, ou de outros tipos, em que a maior parte do trabalho antropoldgico tem de ser efetuado, ‘Todos conhecem 0 velho refréo de que “a principal caracteristica do selvagem € que ele Ihe contaré o que vocé quiser saber”; quando ele age assim € porque Ihe parece o meio mais facil de efetuar uma tarefa pela qual ele nao possui interesse, freqiientemente porque nao centende a natureza real das perguntas, mas creio que mais usual- mente porque ele reconhece que seu interrogador ndo as entende também. O que parece ser a mais simples das quest6es para um europeu nfo instruido pode, para o nativo, ser totalmente inca- paz de prover uma resposta direta, endo € surpresa constatar que 0 confuso filho da natureza tome o caminho mais curto para ligiiidar 0 assuntoy gias com as minticias habituais, caso elas ndo possufssem grande importancia prética em suas vides, ¢ a familiaridade do pesqui sador com o instrumento que ele usa dard aos selvagens confian- ga e interesse na pesquisa, os quais séo de inestimavel valor para se obter informagdes. Além do mais, a confianga mitua que & engendrada pelo uso do método genealdgico para o entendimen- to da organizagao social estende-se a outros departamentos da antropologia, no sendo limitada em seus efeitos Outra caracteristica de grande valor do método gencal6gi- co, A qual jé me referi, é a ajuda que ele nos oferece quando nos potnite entender aquelas catacteristicas da psicologia dos selvar gens que tanto dificultam o trabalho antropoldgico. Tenho sem- pre o hébito de fazer perguntas utilizando o método geneal6gico € 0 método comum de perguntas e respostas. Sempre existitao discrepancias, ¢ sua investigacéo nos forneceré uma percepgdo 65 extremamente valiosa sobre as peculiaridades mentais que foram @ causa do mal-entendido. Concluindo, existem duas vantagens do método que so de tamanha importancia que seriam suficientes, a meu ver, para ornar seu uso essencial, mesmo que outros nao existissem. E quase impossivel, hoje em dia, encontrarmos povos cujas culturas, erengas e pritcas no estejam sofrendo os efeitos da influéncia européia, uma influéncia que ter te ativa durante 0s tiltimos ci Ele pode nos fornecer registros de matriménio e descendéncia € outras caracteristicas da organizagao social de cerca de cento e cin- Qlienta anos atrés. Eventos de até um século atrés puderam ser registrados abundantemente em todas as comunidades em que trabalhei, ¢ acredito que com 0 devido cuidado eles podem ser obtidos junto a quase todos os Se ee uals esta eles sao comunicados a0 mundo com ‘muito poucas garantias de acuidade ou completitude. E um tri- buto admirdvel & veracidade essencial do selvagem que estes registros sejam to bons quanto so, mas qualquer um que jé tenha examinado através de uma dtica critica os registros de ‘qualquer povo. deve ter encontrado grandes disparidades nas evidéneias, como também reconhecido que os registros, em si mesmos, nio oferecem quaisquer critérios que permitam distin guir 0 falso do verdadeiro. Através do método gencalégico & possivel mostrar os fatos da organizagio social de maneira tal 66 que eles convencam 0 leitor do mesmo modo que qualquer uma das ciéncias bioldgicas. © método geneal6gico, ou outro similar, que torne tal demonstragio possivel, ajudaré a colocar a Etno- Togia num posto de igualdade, juntamente com as demais cién- clas, Traducdo: Sonia Bloomfield Ramagem 67 NOTAS 18 ser entendido como “parentesco consangiineo”, em oposiséo a “paren- tesco afim”, parece que Rivers, para evitar ambigtidades, resolveu utilizar te do terme relationship dando conts tanto do sentido de consangitinidade ‘quanto do de afinidade. Jé em portugues, o termo “parentesco” abrign ‘esses dois sentidos, razlo pela qual decidimos traduzir relationship, sem- pre que possivel por “parentesco” sem prejuizo da compreensio global do texto. Para o método de arranjo de ume grande quentidade de material sgenealégico 0 leitor deve reportarse aos livros The Todas, Londres, Mac mrillan, 1906, e 08 Reports of the Cambridge Expedition to Torres Straits, vols. Ve VI Ch. Journal Royal Anthropological Institute, vol. XXXIX, 1909, p. 156. 4N. Ts O termo “prot child. ‘aqui foi utilizado no sentido de “criansa”, 12 TERMINOLOGIA CLASSIFICATORIA E MATRIMONIO COM PRIMO CRUZADO (1913) © propésito destas conferéncias é demonstrar a existéncia de uma intima conexdo entre os métodos de denotagao das rela: ges de afinidade ou parentesco e as formas de organizagio social, inclusive aquelas baseadas em diferentes variedades da instituigao do casamento. Em outras palavras, meu objetivo seré © de mostrar que a terminologia dessas relagdes é rigorosamente determinada pelas condigdes sociais e que, se esta posicdo for accita, os sistemas de relages podem nos fornecer um instru- ento dos mais valiosos para o estudo da histéria das institui- Ges sociais. A presente controvérsia tem como principal objeto de dis- cuscio aquele modo especial de denotar ac relagdes de parentes- ‘co conhecido como sistema classificatdrio. Em conexio com este sistema surgiram diversas questdes, amplamente debatidas, que tanto despertaram o interesse — poderia dizer até mesmo pai xGes — dos sociélogos durante o dltimo quarto de século. 1 Creio ser arriscado presumir a familiaridade do piblico com este sistema e, assim sendo, iniciaremos por uma breve descrigo de suas caracteristicas principais. A mais importante delas, aquela & qual o sistema classificatério deve seu nome, € 2 aplicagdo de seus termos, nfo a individuos, mas a classe de parentes que podem ser, com freqiiéncia, imensas. Objedes tém sido levantadas com relago a0 uso do termo “classificat6rio”, tendo por base a idéia de que nossos préprios termos de paren- tesco também sdo aplicados a classes de pessoas; 0 termo “ir- mio”, por exemplo, € usado para todos os filhos do sexo masculino do mesmo pai ¢ da mesma mie, 0 termo “tio” € uti- lizado para todos os irmios do pai ¢ da mée, bem como para (08 maridos das tias, enquanto o termo “primo/a” pode denotar uma classe ainda maior. E verdade que vérios de nossos préprios termos de parentesco se aplicam a classes de pessoas, mas nos sistemas para os quais a palavra “‘classficat6rio” € usualmente empregada, este principio aplica-se com muito maior amplitude ce, em alguns casos, mesmo de maneira mais ldgica e consistente. Na forma mais completa deste sistema no existe sequer tum tinico termo de parentesco cujo uso denote referencia a uma pessoa, € a ela somente, enquanto que em nosso prdprio sistema existem seis destes termos, a saber: marido, esposa, pai, mae, sogro e sogra. Naqueles sistemas, nos quais 0 principio classifi catério € levado a um grau extremo, cada termo € aplicado uma classe de pessoas. O termo “pai”, por exemplo, € aplicado queles aos quais o pai denomina “‘irméo”, e a todos os maridos daquelas que a mae denomina “ira”, sendo ambos os termos, “irmao” e “rma”, usados de maneira muito mais ampla que entre nds. Em algumas formas do sistema classificatério, 0 ter- mo “pai” € também usado para todus aqueles & qu chama “‘irmio” e para os maridos daquelas a quem o pai deno- mina “rma”, sendo que em outros sistemas a aplicagéo do ter- ‘mo pode ser ainda mais ampla. Similarmente, 0 termo usado para a esposa pode ser utilizado para todas aquelas que a espose R denomina “irmas” ¢ &s esposas de todos aqueles que Ego chama irmao”, frisando mais uma vez. que irmAo e irma so utilizados de maneira muito mais ampla que entre nés. sistema classificatério possui varias caracteristicas que 0 distinguem, de maneira mais ou menos nitida, do nosso préprio modo de denotacdo de relagées de parentesco, mas ndo acredito ser vantajoso apresentar uma descrigo total neste estégio de nossas indagagdes. Como jé disse, o objetivo destas conferén- cias € 0 de demonstrar como as vérias caracteristicas do sistema classificatério surgiram em decorréncia de fatos sociais, podendo assim ser historicamente explicadas por eles. Caso ainda ndo cstejam familiarizados com estas caracteristicas, poderdo enten- dé-las mais facilmente se, a0 mesmo tempo, aprenderem sobre sua gén Iniciarei por um breve hist6rico. Enquanto existiu uma «renga no fato de que todos os povos do mundo denotavam suas relagées de parentesco da mesma maneira, ou melhor, do modo como & usual entre nés, no existiram problemas. Nao havia motivo para que o assunto despertasse interesse ¢, tanto quanto ime foi possivel saber, apenas a partir da descoberta do sistema classificatério de parentesco € que o problema, agora ante nés, foi pela primeira vez levantedo. Imagino que, se os estudiosos alguma vez refletiram sobre 0 tema, deve ter sido ébvio que 0 modo pelo qual tanto eles quanto os outros povos conhecidos do mundo usavam os termos de parentesco estava condicionado pelas relagdes sociais que os termos simbolizavam. Este estado de coisas modificou-se inteiramente tio logo tornou-se conhecido que vérios povos do mundo usavam os ter- mos de parentesco de maneira (seguindo a determinadas regras) (ao completamente diferente de nds, que pareciam ser algo dife- rente, diferenca esta bem ilustrada pela confusio que costuma surgir quando usamos palavras inglesas na traducdo de termos classificatérios como equivalentes aos nossos. A dificuldade, ou impossibilidade, de correspondéncia para com a realidade € a B verdade completa, quando tentamos efetuar este trabalho, € 0 melhor testemunho da diferenga fundamental que existe entre cs dois modos de expressar as relagdes de parentesco Nao conheco nenhuma descoberta em todo 0 dominio da ciéncia que possa oferecer mais créditos @ um homem que 0 sistema classificatério de relagdes de parentesco a Lewis Mor- gan. Com isto nao quero dizer apenas que ele foi o primeiro a mostrar claramente a existéncia desse modo de simbolizar as relagdes de parentesco, mas também que ele coletou uma imen sa gama de material através do qual as caracteristicas do siste- ma foram demonstradas, alm de ter sido 0 primeiro a reconhe- cer a grande importéncia (erica de sua descoberta. £ a nega- ‘sdo desta importincia, pelos seus contempordneos e sucessores, que fornece a melhor prova do crédito que Ihe € devido pela descoberta. A propria quantidade de material que ele coletou, provavelmente em muito contribuiu para obstruir o reconheci- mento & qualidade do seu trabalho. E um pensamento algo de- sencorajador © fato de que, se Morgan tivesse sido menos di gente ¢ coletado uma quantidade menor de material, que pudes- se ser apresentado de forma mais acessivel, o valor de seu tra- balho teria certamente obtido mais reconhecimento do que até agora. Entretanto, 0 volume de seus dados € apenas um fator menor dentro do processo que levou ao negligenciamento, ou rejeicio, da importincia de sua descoberta, pois a maior cause desta negligéncia deve ser creditada a0 proprio Morgan. Ele no se contentou em demonstrar, tal como deveria de certo modo ter feito, a intima conexio existente entre & terminologia do sistema classificatério de parentesco © as formas de organi: zago social. Quase néo ha duividas de que Morgan reconhecia fa existéncla desta conexdo, mas ele no se contentou em de- ‘monstrar a dependéncia que @ terminologia das relagdes de pa- rentesco tinha das formas scciais, cuje existéncia era conhecida € que eram mesmo passiveis de serem demonstradas com © ma: terial disponivel: ele omitiu estes estégios primordiais da argu- 1” mentagdo, ligando diretamente a origem da terminologia 2 for- mas de organizagao social que nao existiam em lugar algum da Terra, ¢ das quais nfo havia nenhuma evidéncia direta no pas- sado. Quando, além disso, a condicdo social priméria formula- da por Morgan foi a de promiscuidade geral, que evoluiu para 0 casamento em grupo, estas condi¢des repugnaram profundamen- te 08 sentimentos das pessoas mais civilizadas, endo € surpresa que ele tenha levantado contra si uma grande e acalorada opo- o que levou, nfo apenas a rejeigdo de suas idéias, mas tam- bém ao negligenciamento das ligdes a serem aprendidas com sua nova descoberta, que poderia ter recebido reconhecimento geral muito antes de entZo, caso elas ndo tivessem sido obscurecidas Por outros fatores. © primeiro a atacar vigorosamente Morgan foi nosso pro prio pioneiro no estudo de formas primérias de sociedade hu- mana, John Ferguson MacLennan.’ Ele criticou de modo severo, € de forma freqiientemente justa, as idéias de Morgen, demons: trando entdo, como na época se acreditava, que nenhum direito cou dever estava ligado as relagdes de parentesco abrangidas pelo sistema cl sificat6rio, concluindo que os termos formavam sim- plesmente um cédigo de troca de cortesias ¢ de maneiras ceri moniosas usadas no contato social. Aqueles que adotaram suas idéias geralmente se contentam em repetir a conclusdo de que © sistema classificatério nfo € nada mais que um corpo de sau- dagdes miituas e formas de tratamento. Eles nao conseguem perceber que, ainda assim, permanece necessdrio explicar como os termos do sistema classificatério passaram a ser usados em saudagdes reciprocas, falhando em reconhecer que esto rejet- tando 0 principio do determinismo na sociologia, ou apenas co- locando a uma distancia conveniente a considerasio do proble- ma de como ¢ por que os termos classificatérios passaram a ser utilizados por tantos povos da Terra Este aspecto do problema, que foi negligenciado ou coloca- do de lado pelos seguidores de MacLennan, ndo foi assim tratado 6 por ele proprio. Como poderia se esperar do caréter geral de seu trabalho, MacLennan reconheceu claramente que 0 sistema classificat6rio deveria ter sido determinado pelas condigées so- ciais, ¢ tentou mostrar que o sistema deve ter surgido como re- sultado da mudanga da forma polidndrica Nair para a Tibeta- na.’ Ele chegou mesmo @ formular variedades deste processo através do qual acreditava terem sido criadas as principais for- mas do sistema classificatério, cuje existéncia havia sido de- ‘monstrada por Morgan. & evidente que MacLennan néo duvida- va da necessidade de ligar a instituigdo social do sistema cla: ficatério de relagdes parentesco causas sociais, uma necessida- dde que tem sido ignorada, ou mesmo explicitamente negada, por ‘aqueles que 0 acompanharam na rejeigdo das idéias de Morgan. Entre as diversas conseqiiéncias funestas da erenga de MacLennan sobre a importancia da poliandria na historia da so- ciedade humana, foi a impossibilidade de que seus seguidores ppercebessem a importincia social do sistema classificatério, fa- Thando em entender que o sistema classificatério no € o resul tado nem da promiscuidade nem da poliandria, tendo sido determinado, tanto no seu caréter geral quanto em seus detalhes, pelas formas existentes de organizagao social. Desde a época de Morgan ¢ MacLennan poucos foram os que tentaram lidar com a questéo de modo inteligivel. pro- blema foi envolto pela controvérsia entre os defensores da pro- miscuidade original ¢ os da monogemia primitiva do ser huma- no, estando a maior parte dos primeiros pronia a aceitar ‘cegamente as idéias de Morgan, enquanto os iltimos contenta- vam-se em tentar explicar a importincia das conclusées deriva- das do sistema classificatério, sem tentar nenhum estudo real da evidéncia, Do lado de Morgan existe uma exorgdo na pessoa do Professor J. Kohler,* que reconhece as linhas pelas quais 0 problema deve ser estudado, enquanto de outro existe, até onde seja do meu conhecimento, apenas um autor que aceita o fato de que a evidéncia da natureza do sistema classificatério de re- 76 lagdes de parentesco ndo pode ser ignorada ou diminufda, de- vendo ser encarada de modo a prover alguma explicagao alter- nativa aquela dada por Morgan, Esta tentativa foi efetuada hé quatro anos atrés pelo Pro- fessor Kroeber,’ da Universidade da Califémia. Sua linha € a rejeigdo absoluta da visio comum a Morgan ¢ MacLennan de que @ natureza do sistema classificatério € determinada pelas condigées sociais. Ele rejeita explicitamente a idéia de que a maneira de usar os termos das relagées de parentesco depende de causas sociais, ¢ apresenta a alternativa de que eles so con dicionados por fatores puramente lingiiisticos ou psicol¥gicos Néo € muito fécil entender o que ele quer expressar quan- do fala que “os termos das relagdes de parentesco possuem cau- sag linglifstica”. Ao final de seu trabalho, Kroeber conclui que “eles (termos das relagdes de parentesco) so determinados principalmente pela linguagem”; se, entretanto, os termos das relagdes de parentesco sfo clementos de lingua, @ proposigao de Kroeber € que estes elementos sio determinados em princi- pio pelo proprio idioma. Caso esta proposigao possua algum significado, ele deve ser 0 de que, no provesso de busca das crigens do fendmeno da linguagem, ¢ nosso dever ignorar todos 6 fatos, exceto os lingiiisticos. O que se poderia deduzir é que © estudioso sobre 0 assunto deveria procurar os antecedentes dos fenémenos lingiifsticos em outros fendmenos da mesma ni tureza, colocando de lado quaisquer referéncias # objetos € rela- ges que as palavras denotam € conotam como ndo pertinente & sua tarefa. A proposigdo alternativa de Kroeber & que os termos das relagdes de parentesco refletem a psicologia, @ nfo a sociologia, ou, em outras palavras, que a maneira pela qual os termos das relagdes de parentesco séo usados depende de uma cadeia de salidades da qual os processos psicol6gicos seriam os antece- dentes diretos. Tentarei tornar clara a idéia de Kroeber através n de um exemplo que ele mesmo fornece: ele diz que atualmente existe entre nés uma propensio para falar sobre o cunhado ‘como se 0 mesmo fosse um irmao; resumindo: tendemos a clas- sificar © cunhado e 0 irmao juntos na nomenclatura do nosso proprio sistema de relagdes de parentesco. Ele supde que faze- mos isto devido & existéncia de uma similaridade psicolégica entre as duas relagées, 0 que nos leva a classifieé-las em con- junto, Posteriormente retornarei a este e a outro dos exemplos de Kroeber. Vimos que os oponentes de Morgan tém assumido duas posigdes bésicas, ambas passiveis de critica: uma, a de que 0 sistema classificat6rio ndo € nada mais do que um conjunto de formas de tratamento; € @ outra, a de que o sistema classifica {rio € os outros modos de exprimir relagdes de parentesco so determinados por causas psicolégicas ¢ nio sociolégicas. Propo- ho que consideremos estas duas posigées, uma de cada ver. © préprio Morgan ficou profundamente impressionado pela fFungao do sistema classificatério das relagbes de parentesco como tum conjunto de termos de saudagées. Sua propria experiéncia derivava de material sobre os indios norte-americanos, ¢ cle rotou 0 uso exclusivo dos termos das relagées de parentesco em saudagdes, um costume tio comum que uma omisséo em reco- nnhecer um parente desta maneira seria quase que uma afronta. Morgan também mostrou, como um dos motivos deste costume, a existéncia de uma relutdncia em pronunciar os nomes pessoais. MacLennan teve de bascar-se inteiramente nas evidéncias coleta das por Morgan, © no hé duividas de que foi profundamente influenciado pela énfase que 0 préprio Morgan colocou na fun- io dos termos classificatérios como saudagées miituas. © mo vo pelo qual, em certas sociedades simples, determinados paren- tes possuiem fungdes sociais explicitamente designadas para si pela tradi¢ao jé era sabido no tempo de Morgan, e acredito que, por essa época, era fato conhecido que as relagées de pa rentesco que implicavam estas funcdes eram do tipo classifi- 7B catério. Entretanto, somente através de trabalhos mais recentes, comecando com 0 de Howitt, Spencer e Gillen, ¢ de Roth na Australia, e da expedi¢éo de Cambridge ao Estreito de Torres, € que a grande importincia das fungSes dos parentes através do sistema classificatSrio chamou a atengao dos sociélogos. Os procedimentos sociais ¢ cerimoniais dos aborigenes aus- tralianos abundam de caracteristicas em que fungdes especiais so executadas por tais parentes, como o irmio mais velho ou 0 irmao da mie, € enquanto estive no Estreito de Torres conse- gui observar grandes conjuntos de deveres, privilégios e restri- ‘ees associados a diferentes relagdes de parentesco classifica: ‘rio. De maneira geral, embora nao universal, os novos trabalhos tém demonstrado que a nomenclatura do sistema classificatério traz consigo uma quantidade de praticas sociais claramente defi nidas. Aquele que emprega um determinado termo de relagdo de parentesco para com outra pessoa, tende a comportar-se em re- Jago a ela de uma maneira definida: ele tem de cumprir certas obrigagdes para com 0 outro, goza de certos privilégios, € esta sujeito a certas restrigdes em sua conduta para com ele. Estas obrigagées, privilégios e restricdes variam grandemente em nndimero entre os diferentes povos, mas onde quer que existam, no conhego excecdo a sua importincia e a0 respeito com que so mantidos por todos os membros da comunidade. Sem divi- da, todos conhecem vérios exemplos de tais fungies associades as relagdes de parentesco ¢ creio ser preciso fornecer apenas um exemplo. Nas Ithas Banks. 0 termo usado entre dois cunhados € wulus, walus ou walui. © um homem que aplique um destes fermos a outro no pode pronunciar seu nome, nem devem, de modo algum, os dois comportarem-se de maneira familiar entre si, Em uma das ithas, Merlav, estes parentes tém todas suas possesses em comum, ¢ € obrigagao de um ajudar 0 outro em qualquer dificuldade, preveni-lo em caso de perigo e, se neces- 9 sério, morrer com ele. Se um morre, o outro deve sjudar no sustento de sua vitiva bem como abster-se de certos alimentos. ‘Além disso existe uma série de regras cutiosas nas quais santidade da cabesa possui grande importéncia: um homem 1ndo pode pegar nada que estcja acima da cabega de seu cunhado, nem pode comer um péssaro que tenha voado sobre a mesma. Caso alguém diga: “esta € a cabega de seu cunhado”, referindo-se 2 um objeto, a pessoa a quem se dirigiu terd de desistir do uso do mesmo. Se 0 objeto é comestivel, ele ndo deverd ser ingeri do; se é um objeto que esteja sendo menufaturado, tal como uma esteira, a pessoa a quem a frase foi enderecada deve cesar seu trabalho caso o mesmo tenha sido denominado como a ca- besa de seu cunhado; a ele somente seré permitido concluir sua tarefa caso compense 0 cunhado cuja cabega foi mencionada, ‘no a pessoa que impediu o trabalho com a referencia sobre a cabega, Embora estes costumes nos paregam ridiculos, eles esti Jonge de sé-los para aqueles que os praticam, Eles mostram claramente a importante parte que possuem as fungSes sociais associadas is relagGes de parentesco nas vidas daqueles que tusam o sistema classificatério. Como {4 disse, estas fungées ndo ‘fo universalmente associadas ao sistema classificat6rio, mas so muito comuns em vérias partes do mundo, precisando apenas serem pesquisadas mais cuidadosamente a fim de que possam ser encontradas de modo ainda mais geral ¢ com maior impor- ‘ancia do que aparecem no presente. Olhemos agora para nosso proprio sistema de relagées de parentesco a partir deste ponto de vista, Duas caracteristicas notdveis devem ser observadas: a grande escassez de funcdes sociais definidas, associadas as relades de parentesco, ¢ @ quase completa limitagio de tais fungSes para com as relagoes de pe: rentesco que aplicam-se apenas a individuos € nfo a classes de pessoas. Pode-se dizer que nao hé fungdes sociais definidas para relagées tais como as de primo, tio, tia, sogro ou sogra. Um me- nino em idade escolar pode acreditar que é dever de seu tio ee i cae darihe algum dinheiro, mas isto € 0 méximo a que se pode cchegar em termos de qualquer obrigagao social por parte deste parente. (© mesmo € verdade, em escala ampla, se nos voltarmos para aquelas regras sociais que foram incorporadas por nossas leis. & apenas no caso de transmissdo de linha hereditéria e de propriedades de uma pessoa que faleceu, sem fazer testament que parentes distantes séo colocados em relagdo legal entre si e somente no caso de inexisténcia de parentes préximos. E ape- nas quando forgada a agir assim, em circunstancias excepcio- nais, que a lei reconhece quaisquer das pessoas as quais apli ‘cam'se os termos mais classificat6rios de nossas relagées de pa- rentesco. Caso nos importemos com as fungdes socials associa- das as relagdes de parentesco, € nosso préprio sistema, no o classificatério, que estaré exposto & reprovacéo, pois suas rela- ‘gGes nao trazem consigo direitos ou deveres. Durante o curso do recente trabalho da “expedigéo Percy Sladen Trust” na Melanésia ¢ na Polinésia, consegui coletar um conjunto de dados que mostra, de maneira ainda mais clara do que até entao tem sido possivel, a dependéncia dos termos clas- sificatérios nos direitos sociais.* Os sistemas classificatérios da Oceania variam grandemente de feitio: em alguns locais as re- lagdes de parentesco so definitivamente diferenciadas por no- menclaturas que sGo classificadas com outras relagdes de pa rentesco nos demais lugares. Assim, enquanto a maioria dos sis- temas melanésios e alguns sistemas polinésios possuem um termo definido para o itmao da mie para a classe de parentes a io, em outros sistemas este parente 6 colocado na mesma classe, ¢ ¢ chamado pelo mesmo termo {que 0 pai. © ponto que agora irei focalizar € 0 da existéncia de uma conexéo bastante intima entre a presenga de um termo especial para este parente ¢ @ presenca de fungSes especiais Tigadas @ esta relagéo. quem a mie denomina 81 Na Polinésia, tanto os havaianos quanto os habitantes de Nine classificam 0 irmdo da mae com o pai, ¢ em nenhum dos dois locais fui capaz de encontrar quaisquer obrigagées, privi- légios ow restrigdes especiais atribuidas a0 irmao da mie. Nas ihas polinésias de Tonga € Tikopia, por outro lado, onde exi tom termos especiais para o irmao da mie, este parente também possui fungdes especiais. O Gnico local da Melanésia onde nao consegui encontrar um termo especial para o irmao da mie foi na parte oeste das has Salomao, e este foi também o nico lugar em que no encontrei qualquer vestigio de fungées sociais especiais atribuidas a este parente. Nao conheco tais fungdes em Santa Cruz, ¢ as informagdes que possuo sobre o sistema desta ilha derivam de terceiros, mas erefo que futuras pesquisas quae se que certamente demonstrardo este ocorréncia, Através da minha experiéncia, na época entre dois povos intos, consegui estabelecer uma correlacao definida entre « presenga de um termo de relagio de parentesco ¢ fungées espe ciais associadas a tal relagdo. As informagées gentilmente forne- cidas pelo Pe. Egide, entretanto, parecem mostrar que e mesma correlagéo no & completa entre os melanésios. Em Mekeo, 0 irmdo da mae tem 0 dever de colocar © primeiro estojo peniano fem seu sobrinho, mas ele ndo recebe nenhum termo especial de tratamento e & colocado na mesma classe que 0 pai. Entre os Kuni, por outro lado, existe um termo especifico para o irméo da mie, distinguindo-o do pai, mas no possuindo 0 tio, até conde seja do conhecimento do Pe. Egide, quaisquer fungées especiais, Tanto na Melanésia quanto na Polinésia uma correlagao imilar aparece ligada a outras relacGes de parentesco, senda a ex- ego mais proeminenie a auséncia de um termo especial para a irma do pai nas Ithas Banks, embora esta parenta possua fun- es bem definidas ¢ importantes. Nestes ilhas, a irma do pai € colocada na mesma classe da mie como vey ou veve, mas 82 ¥ mesmo aqui, quando a generalizago parece sucumbir, ela nao co faz completamente, porque a irma do pai é distinta da mie como veve vus rawe, “a mie que mata um porco” em oposigio 0 simples veve usado para @ mae ¢ suas irmas. Existem entdo, a partir de agora, evidéncias definidas de uma parte do mundo que demonstram que a presenga ou a auséncia de termos especiais ¢ dependente da existéncia ou nfo de fungGes sociais especificas, ndo sendo meras suposigdes para associar os termos classificatérios das relagdes de parentesco a fungdes sociais especificas. Podemos tomar como algo consuma- do 0 fato de que os termos do sistema classificat6rio no sio, como MacLennan supés, meras formas de tratamento e modos de saudagao miitua. MacLennan chegou a esta coneluséo porque acreditava que 0s termos classificatérios nao estavam associados {is fungdes sobre as quais possuimos evidéncia abundante atual- mentz. Ele perguntava: “Quais direitos ou deveres sio afetados ppelas relagdes de parentesco compreendidas no sistema classifi catério?” e ele mesmo respondia, de acordo com o conhecimen- to entdo ao seu dispor: “Absolutamente nenhum”.” Esta passa: gem deixa claro que, se MacLennan soubesse 0 que hoje sabemos, jamais teria tomado a posigo de ataque a Morgan, na qual ele teve, e ainda tem, tantos seguidores, Posso agora voltar-me para a segunda linha de ataque, aquela que audaciosamente descarta a origem da terminologia das relagdes de parentesco nas condigdes sociais € procura sua explicagdo na Psicologia. Inicialmente, a linha de argumentacdo que pretendo seguir é a de mostrar que vérias caracteristicas dos sistemas classificatérios t8m sido diretamente determinadas por fatores sociais. Para cumprir esta tarefa deve-se pisar em terreno firme, do qual partirseé numa tentativa de ligar os caracteres gerais dos sistemas classificatérios ou de outros tipos de relagées de parentesco a formas determinadas de organizacio social. Qualquer teoria completa de uma instituigo social tem 83 de levar em conta no apenas seus aspectos gerais, mas também seus detalhes, e proponho que comecemos pelos detaes. Inicialmente retornarei a histéria do objeto, permanecendo nla por algum tempo para perguntar por que a linha de argu: mentasio que proponho seguir ndo foi adotada por Morgen © Por qi tem sito tio negigenciada por outros empre que um novo fendmeno € descoberto em alguma parte do mundo, exe uma tena natn de procs de Paralelos em outros locais. Morgan viveu numa época em que 4 unidade de cultura humana era um t6pico que muito excitava 0s etndlogos, ¢ é evidente que um de seus interesses principals na nova descoberta decorreu da possibilidade que parecia abrie. se para demonstrar a uniformidade da mesma. Ble esperava mostrar a semelhanca do sistema classifictGrio em todo 0 mun- do, contentando-se em observar certas vatiagdes amplas do sis- tema relacionando-as a supostos estigios da historia da socie- dade humana. Morgen prestou pouca atengdo a tais variedades do sistema classificat6rio, tais como ilustrado em sues. proprias observagies sobre os sistemas norte-americanos, © parece tet desprezado inteiramente certs caracteristicas dos sistemas india nos ¢ oceanicos que regisrou, as quais poderiam terlhe perm. tido demonstrar a intima conexio entre a terminologia das rela. Ges de parentesco © as instituicdes socials. A negligéncia de Morgan em atentar para estas diferengas deve ser imputada, em alguma medida, a0 desconhecimento das formas simples de orga- nizaglo social que existiam na époce em que ele escreveu, mas a falha dos demais em reconhecer @ dependéncia que as carac- teristicas dos sistemas classificatérios tém das insttuigdes. so. ciais deve ser imputada principalmente & auséncia de interesse sobre 0 assinto, induzida por sua adosto ao erro iniial de MacLennan. Aqueles que acreditam que o sistema classfieatério seja meramente um e6digo de saudagGes mtuas sem importéncia no estio dispostos a prestar atengdo as diferengas relativamen- te pequenas nos costumes que menosprezam, 84 © crédito de ter sido o primeiro a reconhecer integralmente ‘a importincia social destas diferencas pertence a J. Kohler: em seu livro Zur Urgeschichte der Ehe, jé mencionado anterior- mente. Ele estudou minuciosamente os detalhes de varios siste- mas diferentes, demonstrando que eles poderiam ser explicados por certas formas de casamento praticados por aqueles que uusam os termos. Proponho, neste momento, lidar com a termi- nologia classificat6ria a partir deste ponto de vista. Mew proce- dimento sera o de, inicialmente, mostrar que as caracteristicas {que distinguem entre si as diferentes formas do sistema classi- ficat6rio tém sido diretamente determinadas pelas instituigdes sociais daqueles que utilizam os sistemas, ¢ somente quando tal for estabelecido, tentarei relacionar os caracteres mais gerais do sistema classificatério ¢ de outros sistemas em relagio as insti- tuigdes sociais. ‘A razio pela qual fui capaz de empreender esta tarefa de maneira mais completa do que até agota tem sido posstvel, € porque observei na Melanésia uma série de sistemas de relages de parentesco que diferem entre si em maior escala que aqueles mencionados no livro de Morgan ou em outros que tém sido coletados desde entio. Algumas das caracteristicas que distin- guem estes sistemas melanésios sero totalmente novas para os ‘etndlogos, nao tendo ainda sido observados em qualquer outro local. Proponho iniciar por um longo € conhecido modo de ter- minologia que acompanha este costume amplamente difundido, ‘conhecido como matriménio entre primos cruzados. Em sua forma mais freqiente, um homem casa-se com a filha do irméo de sua mie ou da irma de seu pai; e ainda, embora mais rara- ‘mente, sua escolha esté Jimitada a uma destas parentas. ‘Tal matrimonio teré algumas conseqiiéncias espectficas. Va- mos examinar um caso em que um homem contraia napeias com 85 Diagrama 1% Uma das conseqiléncias do casamento entre Ce d seré que A, que anteriormente as miipcias de C era apenas o irmio de sua mie, agora tornar-se-é também 0 pai de sua esposa, en- quanto b, que antes do casamento era a esposa do irmao da mile de C, agora tornar-se-4 a me de sua esposa. Reciprocamen- te, C, que antes de seu casamento era o filho da irm de Ae filho da irma do marido de 6, agora tornar-se-a genro de ambos. Além do mais, Ee , os outros filhos de A e b, que antes do casamento eram apenas os primos de C, agora tornars inmdo e a irma de sua esposa. Similarmente, a, que antes do casamento de d era a irma do pai de d, agora sera também a mae de seu marido, e B, 0 marido da irm& de seu pai, passard a ser 0 pai do esposo; se C possuir quaisquer irmios ou seus cunhados e cunhadas. mas, estes primos torn: ‘A combinagio das relagées de parentesco que se ctiam a partir do casamento de um homem com a filha do irmao de sua mae vai diferir para o homem e para a mulher, mas se, como usual, um homem casar-se seja com a filha da irma de seu pai ou do irmio de sua mae, estas combinagdes das relagies de pa- rentesco serdo vélidas para ambos, homens e mulheres, Outta conseqiiéncia ainda mais remota do matriménio en- tre primos cruzados, quando tal instituigdo é estabelecida, € que as relagdes de irmao da mae e de marido da irma do pai podem ser combinadas em uma s6 pessoa, havendo uma combinagio 86 semelhante das relagSes de parentesco para a irma do pai ¢ esposa do irmio da mie. Se o matrimdnio entre primos cruzados for o costume habitual, B € 6 no diagrama 1 serio irmio € irma; em conseqiiéneia A sera, ao mesmo tempo, o irmao da m@e e o marido da irma do pai de C, enquanto b seré a irma do pai de C e a esposa do irmao de sua mie. Entretanto, uma vez que o itmio da mde € também o sogro, ¢ # irmé do pi sogra, em cada caso trés relagdes de parentesco diferentes esta- ao combinadas. Através do matriménio com prima cruzada, as relagies de irmao da mae, esposo da irma do pai e sogro esta- ro combinadas em uma Gnica pessoa, ¢ as relagdes de irma do pai, esposa do irmao da mie e sogra estardo igualmente unidas. Nos varios locais onde sabemos ser 0 matriménio entre primos cruzados uma instituigdo estabelecida, encontramos ape- nas aquelas designagées comuns que acabei de descrever. Assim, no dialeto Mbau de Fiji, « palavra vungo aplicade a0 irmio da mie, ao marido da irma do pai e ao Sgro. A palavra nganei 6 usada para a irma do pai, a esposa do irmio da mie ¢ @ sogra. O termo tavale usado por um homem para o filho do irmao da mae ou da irma do pai assim como para o irmio da esposa e 0 marido da irma. A palavra ndavola é usada no ape- nas para o/a filho/a do irmao da mae ou da irmé do pai quan- do diferem do sexo de quem fala, como também € usada por ‘um homem para referir-se & irma de sua esposa e & esposa de seu irmao, e por uma mulher para designar o irmio de seu marido bem como para o marido de sua irma. Cada um desses detalhes do sistema Mbau é conseqiiéncia direta ¢ inevitavel do matri- ménio entre primos cruzados, a partir do momento em que este se torne uma prética habitual e estabelecida. Este sistema fijiano no € 0 nico na Melanéia, Nas Novas Hébridas que se encontram 20 sul, em Tanna, Eromange, Aneityum e Aniwa, 0 matriménio entre primos cruzados € costu- rmeito e seus sistemas de relagdes de parentesco possuem carac- terfsticas similares aquelas de Fiji. Assim, em Aneityum, a pala- 87 ra matak aplica-se ao irmao da mie, a0 matido da irma do pai € a0 sogro, enquanto o terniw engak, utilizado para a prima cruzada, ndo é apenas usado para a irm da esposa e para a esposa do irmio, mas também para a propria esposa. _ Mais uma vez, na ilha de Guadalcanal, nas Ilhas Salomao, © sistema de relagdes de parentesco € justamente o resultado da instituigao do matriménio entre primos cruzados. © termo nia € usado para o irmio da mae ¢ para o pai da esposa, € prova- velmente também para o marido da irma do pai e para o pai do marido, embora minha estadia na ilha ndo tenha sido pro- longada o suficiente para permitir que se coletasse material ge- nealdgico em quantidade adequada para uma demonstraso mi abrangente desta terminologia. De modo similar, tarunga inclui entre seus significados a figura da irma do pai, da esposa do irmio da mae ¢ da mae da esposa, e provavelmente da mae do fo, enquanto que a palavra iva € usada tanto para primos cruzados quanto para cunhados cunhadas. Correspondendo a esta terminologia, parece no haver diividas sobre o fato de que © costume local era o de que um homem casasse com a filha do irmio de sua mae ou da irma de seu pai, embora néo me fosse possivel demonstrar genealogicamente esta forma de matriménio. Estas trés regides, Fiji, Novas Hébridas do Sul e Guadal- canal, so as Gnicas partes da Melenésia inclufdas em minha pesquisa nas quais encontrei a prética do matriménio entre Brimos eruzads,sendo que em todas as tt regies os sistemas le relagies de parentesco sii yente de rlages de parenesco sho exatamente como seria de se espe Tentemos agora explorar até onde é possivel explic 5 caratristicas dos sistemas melansis de ages de pareneso por similaridade psicolégica. Se ndo fosse pelo matriménio en tre primos cruzados, 0 que pode existir para dar ao irméo da me uma maior semelhanga psicolégica com o sogro do que 0 irmio do pai, ou & irma do pai uma maior semelhanga psicol6- fica com a sogra que a irma da mie? Por que existem dois 88. tipos especiais de primos/as que figuram na mesma classe que dois tipos especiais de cunhado ¢ cunhada ou com 0 marido ou esposa? Presumida a existéncia de matriménio entre primos cruzados, (e certamente existem similaridades psicol6gicas) mes- ‘mo aqui o assunto no € to retilineo, do ponto de vista do crente em sua importiincia, pois temos de fidar ndo apenas com fa semelhanga entre dois parentes, mas com suas identidades, com a combinaséo de duas ou mais relagdes de parentesco em ‘uma s6 pessoa. Entretanto, ainda que coloquemos este aspecto de lado, pode-se perguntar como € possivel que os termos das relagdes de parentesco nao reflitam a sociologia, se tais simil ridades psicoldgicas so elas mesmas o resultado do metrimdnio entre primos cruzados. Qual a necessidade de criar hipotéticas semelhangas psicolégicas, que so no maximo meras ligagdes intermediérias na corrente de causagées que liga a terminclogia das relagdes de parentesco com condigées sociais antecedentes? Caso se aceite a relagdo causal existente entre os aspectos caracteristicos dos sistemas de Fiji, de Aneityum ou de Gua- dalcanal e a instituiggo do matriménio entre primos cruzedos, lo pode haver dividas que este tipo de unigo matrimonial € 0 antecedente, sendo os aspectos do sistema de relagdes de paren- tesco as conseqiiéncias, Nao suponho que, neste assunto, posse se encontrar alguém que diga terem os fijianos escolhido casar- se com seus primos cruzados porque tal tipo de matriménio foi imputado a eles pela natureza de seu sistema de relagdes de parentesco. Temos de lidar, neste caso, nao apenas com um ou dois aspectos que podem ser as conseqiiéncias do matriménio centre primos cruzados, mas com uma grande ¢ complicada rede de semelhancas © diferengas na nomenclatura das relagdes de parentesvv, unde cada clemento decorre diretamente de tal tipo de instituigao, enquanto que nenhum dos sistemas que conside- rei possui uma tinica caracteristica que no seja compativel com as condigées sociais que surgem de tal tipo de unio. A parte das verificagées quantitativas, duvido que seja possivel, em toda 89 1 esfera da ciéncia, encontrar um caso em que se possa estar mais confiante de que um fendmeno seje condicionado por ou- to; sintome quase que culpado por desperdigar vosso tempo lidando de forma tao detalhada com este assunto, e dificilmente © faria se a causagdo social no houvesse sido negada de forma explicita por alguém com uma reputagdo tao grande quanto a do Professor Kroeber. Espero, entretanto, que o argumento tenha sido stil como um exemplo do método que aplicarei a outros casos em que a evidéncia no seja tao convincente. As caracterfsticas da terminologia que deriva do matrimé- nio entre primos cruzados eram conhecidas por Morgan, estando presentes em trés dos sistemas que ele registrou no sul da India € no sistema de Fiji para ele coletado pelo Sr. Fison. A primeira referéncia” que encontrei & unio institucionalizada entre pi ‘mos cruzados foi entre os Gond, na India Central; este tipo de ‘matriménio foi registrado pela primeira vez em 1870 e, embora fem data anterior 20 aparecimento do livro de Morgan, sua di- vulgagao s6 foi feita posteriormente, de modo que acredito pos- samos estar confiantes de que ele ndo conhecia este tipo de instituigéo que teria explicado as caracteristicas peculiares dos sistemas indiano e fijiano. Entretanto, é evidente que Morgan estava tio absorto na sua demonstracio da similaridade desses sistemas com os da américa que quase ndo prestou atengio, se € que prestou alguma, as suas peculiaridades. Perdew, assim, uma grande chance; se tivesse percebido estas peculiaridades © seu significado, teria podido prever um tipo de matriménio que mais tarde seria descoberto independentemente. O sucesso da previsdo teria trazido & atengdo dos estudiosos a significéncia social da terminologia das relagdes de parentesco, de tal modo que nos teria cido poupado muito da controvérsia que durante tanto tempo obstruiu o progresso deste ramo da sociologia, ou pelo menos, teria agido como um estimulo a coleta de dados so- bre sistemas de relagdes de parentesco. Dificilmente seria possfvel que agora, passados quarenta 20 anos da publicagdo do livro de Morgan, ainda estivéssemos numa completa ignoréncia da terminologia das relagdes de pa- rentesco de diversos povos, sobre os quais volumes inteiros foram escritos. Seria impossivel, por exemplo, que nosso conhe- cimento sobre os sistemas indianos de relagdes de parentesco fosse 0 que & hoje — a India seria o primeiro pafs no qual 0 sucesso das previsoes de Morgan teria sido verificado, ¢ este evento teria evitado 0 abandono quase total que as relagdes de parentesco sofreram nas mios dos estudiosos sobre a sociologia indiana. Traducao: Sonia Bloomfield Ramagem a” ante NOTAS 1 Lewis Morgan, Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family: Smithsonian Contributions to Knowledge, Washington. 1871, vol. XVIL ‘John Ferguson MacLennan, Studies in Ancient History, Ist series, 1976, p. 331 3 Tbid., p. 373. «Zur Ungeschichte der Ehe”, Stuttgart, 1897 (extratdo de Zeitsch F. vergleich, Rechiswiss, 1897, X1i, 197). Journal Royal Anthropological Institute, 1909, XXXIX, 77. Uma versio completa destes e de outros fatos citados nestas conte. réncias aparecerd brevemente num trabalho intitulado “The history of Melanesian society", » ser publicedo pela Cambridge University Press TJohn Ferguson Maclennan, op. cit. p. 366. Neste, como nos demais diagramas, as letras maidsculas represen- tam o sexo masculino ¢ as mintsculas 0 sexo feminino. $ Grant, Gazetteer of Central Provinces, 24 ed., Nagpur, 1870, p. 276 93

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