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Os Arautos do Liberalismo Maria Helena Capelato Cafeiculeura Homens, mulheres ¢ capital (1850-1980) Verena Stoleke ‘Da Monanquia a RepGblica Emilia Viotti Formagio do Brasil Contemporineo Caio Prato J. Hist6ria Eoonémica do Brasil Caio Prado Jr. 1930 siléncio dos vencidos Edgar de Decea Partido Republicano Paulista (1889-1926) Jost Bnio Casalecchi A Revolugio de 30 Boris Fausto Vargas: O Capitalisnso em Construgdo Pedro César D, Fonseca Colegio Tudo € Histéria A Civilizagdo do Agicar Vera Ferlini OCoronelismo _* Matia de Lourdes Janott ‘A Economia Cafecira J.R. do Amaral Lapa A Familia Brasileira Eni de Mesquita Samara A Industeializagho Brasileira Francisco Igléssias A BURGUESTA BRASILEIRA wgNG BRO? Bibierece - GE editora brasiliense Copyright © by Juco Gorenster, 198) Nentume parte desta publicaciopode ser gravetda, cemzenada em sistemas eletronicas, forocopiada, repr por meiox mavanios oon gate ~ sean antorizacéo prévia do editor NIDADE - 1FCH i Ne CHamadad30.12% Gash, ee sso 95.11-02020.2 SATB Primeiva edit, 181 3B | . edigao, 1990 - ee Juno de 1998 Artistas Graficos, EDITORA BRASILIENSE S/A RUA AIRI, 22 - TATUAPE CEP 03310-010 - SAO PAULO-SP TELEFONE E FAX: (Oxxt1} 218-1488 e-mail: brasilienseedit@uol.com.br home page: www.editorabrasiliense.com.br | I | { | i i a A Burguesia Brasileira INDICE Génese do capitalismo brasileiro .... . Duas variantes na formagao do capitalismo «.. Desenvolvimento do capitalismo na Primeira Republica . sesee Origens e caracteristicas da burguesia industrial Industria e economia de exportagao: ajustamen- toe oposigao . A virada de 1930 . Burguesia e Estado .....++++++++ Burguesia e capital estrangeiro ... A burguesia como classe dominante principal Conelusées ....- tee . . Indicagées para leitura Jacob-Gorender A Burguesia Brasileira GENESE DO CAPITALISMO BRASILEIRO © leitor j4 conta 4 sua disposi¢io com uma teoria sobre o tema deste capitulo num dos volumes da colegio Primeiros Passos, da Ed. Brasiliense. Re firo-me a O Que E 0 Capitalismo de Airfinio Mendes Catani, o qual, em sua exposig%o, se apbia nas obras dos Profs. Fernando Novais ¢ Joio Manuel Cardoso de Mello. Acontece que discordo da linha de pensa- mento desses historiadores e devo,. pois, apresentar, sempre no estilo de roteiro para leituras posteriores, minha propria concepcdo sobre o assunto. Uma vez que n3o me deterei na argumentagiio das divergén- cias, careco de deixar claro, nfo obstante, a dife- renga do ponto de partida, pois este 6 um aspecto decisivo, Tal diferenca consiste em que Novais ¢ Car- doso de Mello partem do sistema colonial mundial como totalidade que determina 0 conteiido da for- magiio social no Brasil, ao passo que eu inicio minha andlise com o modo de producio escravista colonial, a cuja dinamica propria atribuo uma determinacao fundamental. ‘Uma vez que, julgo indispensavel adquirir 0 en- tendimento do mencionado modo de produgio, nao me resta alternativa sendo a de remeter 0 leitor a minha obra O Escravismo Colonial, na qual abordo 0 tema de um ponto de vista -abrangente ¢ sistemAtico. Acumulagio originaria do capital e burguesia mercantil A constituigao do modo de producio capitalista, qualquer que seja a via pela qual se processe, tem sempre uma fase precedente — a da acumulacao origindria (também chamada primitiva) do capital. Ou seja, trata-se de uma acumulagiio do capital rea- lizada por meio de mecanismos ainda nao essencial- mente capitalistas, nfo se baseando, portanto, na produgo de mais-valia mediante a exploragio do trabalho assalariado livre. Ao atingir certo nivel ¢ num quadro social ja transformado, a acumulacio originaria do capital culmina na constituigdo do mo- do de producao capitalista. Na Europa, a acumulacio originaria do capital realizou-se no bojo do feudalismo. No Brasil, nunca houve feudalismo, o que Caio Prado Jr. foi o pri- meiro a demonstrar de maneira fundamentada. A acumulagio originaria do capital se processou no Jacob Gorender ; anilise com o modo de produgao escravista colonial, a cuja dinamica prépria atribuo uma determinagio ; tendimento do mencionado modo de produgio, nao * minha obra O Escravismo Colonial, na qual abordo o fundamental. Uma vez que julgo indispensdvel adquirir 0 en- me resta alternativa sendo a de remeter o leitor 4 tema de um ponto de vista abrangente ¢ sistematico. Acumulagio originaria do capital e burguesia mercantil Aconstituic¢do do modo de produg&o capitalista, qualquer que seja a via pela qual se processe, tem sempre uma fase precedente — a da acumulagio origindria (também chamada primitiva) do capital. Ou seja, trata-se de uma acimulacio do capital rea- lizada por meio de mecanismos ainda nao essencial- mente capitalistas, nao se baseando, portanto, na produgio de mais-valia mediante a exploracio do trabalho assalariado livre. Ao atingir certo nivel e num quadro social j4 transformado, a acumulagio originaria do capital culmina na constitui¢do do mo- do de producio capitalista. Na Europa, a acumulagio originaria do capital realizou-se no bojo do feudalismo. No Brasil, nunca houve feudalismo, 0 que Caio Prado Jr. foi o pri- meiro a demonstrar de maneira fundamentada. A acumulagio originaria do capital se processou no A Burguesia Brasileira 9 Ambito do escravismo colonial e tendo este como a fonte da propria acumulacao. Mais ainda: a base para a acumulac&o origina- ria do capital comecou a se formar na época em que 0 Brasil foi colénia de Portugal. Nem toda a renda produzida no Brasil era, ent4o, dirigida para fora, conforme supde Florestan Fernandes (v. A Revolu- ao Burguesa no Brasil, p. 61 € ss.), porém uma parte muito considerfivel ficava na prépria Colénia, soja para a ampliacdo direta da produgao escravista, em mios dos plantadores, seja sob a forma de capital mercantil, em mios dos mercadores, que financia- yam e comercializavam a producio das plantagens escravistas. A Abertura dos Portos, decretada pelo Regente D. Jofio em 1808, e a Independéncia politica, con- quistada em 1822, nao alteraram em nada a esséncia do modo de produgio dominante na formagio social vigente no Brasil. O modo de produgdo continuou tio escravista e tio colonial (no sentido econdmico) quanto o fora sob o dominio da Metrépole portu- guesa. Em 1850, quando se extinguiu o trffico de escravos africanos, 0 quantitativo servil no Pafs al- cancou seu pico maximo (2500000 escravos, em ter- mos estimativos). Se acrescentarmos a este fato a prosperidade da cafeicultura, concluiremos que a acumulacio do capital mercantil se incrementou, no Brasil independente, por conseqiéncia da expansio do préprio escravismo colonial. Contudo, isto ndo significa que a Independéncia tenha sido acontecimento indiferente para # econo- 10 Jacob Gorender A Burguesia Brasileira mia, A instituigdo de um Estado nacional unificado, sob o dominio dos plantadores escravistas, teve re- percussées positivas sobre o fortalecimento da bur- guesia mercantile, mais tarde, sobre o aparecimento dos primeiros micleos da burguesia industrial. Tais repercussSes podem ser sumariadas nos seguintes pontos: a) Eliminagao da intermediacdo parasitéria do comércio portugués. A exportacio e a.importacio passaram a ser feitas diretamente através dos portos brasileiros, sem a baldeacdo. obrigatéria ¢ onerosa nos portos lusitanos. Os portos brasileiros, sobretudo 0 Rio de Janeiro, cresceram como centros comerciais ese fortalecen a burguesia mercantil neles radicada. b) A receita dos impostos de exportag&o e im- portacdo, antes pertencente 4 Coroa lisboeta, passou aintegrar a receita orgamentria do Estado nacionat brasileiro, o que representou considerdvel acréscimo Arenda circulante dentro do Pais. c} Os artigos de importacdo, tanto os bens de consumo como os bens de produgho, tornaram-se mais baratos para os brasileiros, pois chegavam j4 sem gravame do comércio e do fisco de Portugal. Isto viabilizou e prolongou a existéncia do escravismo brasileiro, numa conjuntura em que os pregos dos escravos subiram em elevadas proporgées. d) .As fungdes estatais superiores (Governo, tri- bunais, forga militar, etc.), antes concentradas em Lisboa, transferiram-se para o Brasil, Dai formar-se, aqui, uma burocracia estatal desenvolvida, contri- buindo para o crescimento do Rio de Janeiro e de seu mercado urbano. Surgimento da burguesia industrial O engrossamento da burguesia mercantil, com oseu desdobramento em comerciantes ¢ banqueiros, nfo caracterizava a existéncia do capitalismo, nem era incompativel com a sobrevivéncia prolongada do escravismo colonial no Brasil. A burguesia mercantil prospera nas formagdes sociais anteriores ao capita- lismo, enquanto o agente organizador do modo de producio capitalista € somente a burguesia indus- trial. Esta pode engendrar-se, em grande parte, na propria burguesia mercantil, como sucedeu no Brasil ¢ outros paises, na medida em que certo mimero de comerciantes investe na industria e organiza a pro- dugiio de artigos, que antes se limitava a comprar € vender. Mas o capital industrial, como diz Marx, é a unica forma do capital cuja fungdo n&o consiste ape- nas na apropriagao da mais-valia, pois também é 0 promotor da sua criagao. Somente ele, por conse- guinte, modela a forma capitalista de produgio, aquela em que a exploragdo do sobretrabalho e a extragio do sdbreproduto se fazem com operrios assalariados livres (e n&o com escravos ou servos) como agentes diretos do processo de criaciio do valor. see Antes de abordar os comecos da burguesia in- | 1. ———————————— —————— 12 Jacob Gorender A Burguesia Brasileira 13 dustrial no Brasil, devo dedicar algumas linhas a um personagem certamente excepcional: Irineu Evange- lista de Sousa, Visconde de Maua (1813-1889), Como situar este grande empresfrio do ponto de vista da formacio do capitalismo brasileiro? Notemos que Maus foi banqueiro e quase todas suas iniciativas empresariais visaram suprir servigos ptiblicos, como concessdes do Estado em condicdes de monopélio e, em varios casos, com subvencdes ou empréstimos do Estado. Foi assim que organizou empresas de transportes urbanos e de iluminaciio publica a gés, companhias de navegacdo fluvial a vapor, varias estradas de ferro e a comunicacdo por meio de cabo submarino. Entre suas numerosas em- presas, quase a unica de transformagio industrial direta — o Estaleiro e Fundicao da Ponta da Areia, que chegou a reunir cerca de mil trabalhadores —, mesmo esta surgiu do projeto de fornecimento de tubos de ferro ao Governo, com vistas 4 canalizagao das Aguas do rio Maracan4. Por conseguinte, os em- preendimentos de Maud eram compativeis com o regime escravista e contribufram para tornar viivel seu funcionamento, num perfodo j4 de declinio. Ade- mais, uma vez que dependia do Estado, empenhou- se em intensa atividade politica e teve bom relaciona- mento com v&rios gabinetes ministeriais do Império, que © nobilitou com os titulos de bardo e visconde. Quando o Império se recusou a cobrir os débitos do Banco Maui, faliu. E faliu também porque, na cons- trucdo da Estrada de Ferro Santos a Jundiaf ( que yeio a se chamar Sao Paulo Railway), recebeu uma. rasteira do capital inglés, ao qual diversas vezes. re- corren, antecipando um comportamento comum a burguesia brasileira posterior. O fenémeno Maud teria sido impossivel se i nao houvesse capitais acumulados dentro do Brasil e cuja disponibilidade aumento apés a cessagio do trAfico de escravos africanos. Mas © préprio Vis- conde nao foi mais do que um tipo de transi¢do, ainda um capitalista inserido na formagio escravista, embora se chocasse com a estreiteza dos seus limites para a realizagio de empreendimentos modernos que, sob outro aspecto, ndo deixavam de prenunciar o advento do capitalismo. Do ponto de. vista da formag4o da burguesia industrial e a da afirmagio do modo de produgio capitalista, muito maior importancia tiveram as cen- tenas de pequenos e médios.empresfrios que, dos anos 40 aos. 80 do século XIX, instalam e adminis- tram, em varios pontos do Pais, fabricas téxteis e de artigos de vestuério, de massas e outros produtos alimenticios, de cerveja, de chapéus ¢ calgados, de pegas de mobilidrio, de artigos'de ceramica, de mate- riais de construgio, de implementos para a agricul- tura, etc. A principio, algumas dessas f&bricas em- pregaram escravos ao lado de operfrios livres. As vezes. a forca motriz veio inicialmente da roda de Agua e sé depois da mAquina a vapor. De maneira geral, os produtos de tal inddstria fabril incipiente eram de baica qualidade e concorriam com os simi- lares locais de origem artesanal. Ndo se tratava ainda da substituigdo de importagées, que tdo-somente fl i Jacob Gorender mais tarde se acentuaria, porém da substituigzo do artesanato local. O “‘pano de Minas", por exemplo, produzido por centenas de artesdos domiciliares ¢ com uma tradicto mercantil de meio século, quase desapareceu de circulagio nos anos 60 do século passado, O mercado das primeiras fabricas téxteis nacio- nais era o de roupas para escravos € para as camadas pobres da populacio livre, bem como, o de sacaria para os produtos agricolas de exportacdo, substi- tuindo as caixas de madeira e os fardos de couro que anteriormente os acondicionavam. Em 1866, um relat6rio oficial registrou o funcio- namento de nove fabricas de tecidos de algodao em todo o Pais, sendo cinco na Bahia, duas no Rio, uma em Alagoas e uma em Minas Gerais, com um total de 768 operfrios. Fundada em 1844, a mais antiga e a maior delas era a Todos os Santos, na cidade de Valenga (Bahia), com 200 operdrios, 4600 fusos ¢ 136 teares. Em 1881, jA eram 44 as fébricas de tecidos, reunindo mais de tr€s mil operérios e com a seguinte distribuicdo geografica: Bahia — 12; Sao Paulo — 9; Minas Gerais — 8; Rio de Janeiro (provincia) —6; Rio de Janeiro (capital) — 5; Alagoas — 1; Pernam- buco — 1; Rio Grande do Sul ~ 1; Maranhao — 1, Com o declinio do modo de producto escravista colonial ¢ ainda nos quadros da formagdo social es- cravista, houve, portanto, um desenvolvimento de forcas produtivas sob a direcdo da burguesia indus- trial emergente. Com ela ¢ 0 jovem proletariado, nas- cia o modo de produgio capitalista no Brasil, DUAS VARIANTES NA FORMACAO DO CAPITALISMO O feudalismo-como meio ambiente original Ao nascer nas entranhas do feudalismo euro- peu, 0 modo de producdo capitalista deveria enfren- tar, no processo de sua expansio, obstaculos bem caracteristicos da ordem feudal dominante. Veja- Mos, numa exposicAo esquematica, quais eram estes obstaculos, cabendo observar que sua incidéncia va- riou conforme cada pais: a) Os camponeses, que representavam © grosso da forga de trabalho, estavam vinculados a terra sob diferentes formas. Em alguns paises, como Portugal e Inglaterra, a serviddo da gleba desapareceu nos séculos XIII ¢ XIV, mas em outros, como Alemanha e Russia, persistiu até meados do século XIX. Em Jacob Gorender A Burguesia Brasileira geral, a servidio da gleba foi substitufda pela vincu- lagiio da enfiteuse — uma instituic#io que dava ac camponés o direito de explorar a terra, transmiti-la por heranca ou mesmo vendé-la, porém niio o tor- nava proprietério pleno, pois permanecia a obriga- cho perpétua de pagar uma renda, como foreiro, ao senhorio feudal. b) Salvo excecdes pouco expressivas, a proprie- dade da terra nfo era alodial: estava sempre gravada pelos tributos privados que deviam ser pagos a um senhorio da nobreza, 20 clero ou ao monarca: * c) O mercado de terras se submetia a extremas restrigdes juridicas. Com a vigéncia do institute do morgadio, os feudos sé podiam ser herdados pelo filho primogénito e, além de indivistveis, tinham a condigio de inaliendveis (nko podiam ser transfe- ridos por via de compra a um novo proprietirio). Cerca de um terco das terras da Europa, durante a Idade Média, pertencia A Igreja Catélica e, por con- seguinte, era insuscetivel de transacdes mercantis. d) Os artigos industriais, produzidos ainda com uma técnica artesanal, constitufam privilégiolegal das corporacées ou guildas, em cada localidade. Cabia- thes regulamentar o nimero de produtores, os pro- cessos de produciio, a qualidade e a quantidade dos artigos, seus precos, ete. A ptoducio industrial se achava, portanto, rigidamente controlada. e) O trifego de mercadorias, além de inseguro, sofria tributagio toda vez que passava por um feudo. Cada feudo cobrava impostos privativos, cunhava sua propria moeda e usava um padrio particular de pesos ¢ medidas. Tudo isso entravava a circulagho de mercadorias. f) A nobreza e o clero constituiam estamentos privilegiados: nio pagavam impostos e monopoli- zavam © acesso aos cargos piiblicos das instAncias superiores do Estado, Com maior ou menor radicalismo, as revolugdes burguesas européias eliminaram os obstéculos acima enumerados e desobstrufram o caminho ao desenvol- vimento do modo de producdo capitalista e a afir- magao da burguesia como nova classe dominante. Assim é que, em resumo, as revolugdes burguesas desvincularam os camponeses da terra e jogaram uma parte deles (na Inglaterra, praticamente todos) no mercado de trabalho assalariado, onde podiam ser livremente contratados pelos capitalistas. A terra tornou-se alodial, completamente isenta de encargos privados, Extinguiu-se o morgadio e a Igreja teve os seus dom{nios confiscados e postos A venda. Criou-se um mercado capitalista de terras. As corporag&es foram dissolvidas, suas regulamentacdes anuladas a instalagio de manufaturas e fabricas deixou de sofrer qualquer restric. Unificou-se o mercado na- cional e ficou estabelecida a uniformidade moneté- ria, tributéria e de pesos e medidas. Cumpriu-se o jJema dos economistas liberais: laissez-faire, laissez- passer (liberdade para produzir e circular). Aboli- ram-se os privilégios estamentais da nobreza e do clero, . Jacob Gorender A Burguesia Brasileira Oescravismo colonial como meio ambiente original Se nos voltarmos para o Brasil escravista, cons- tataremos.a auséncia dos obsticulos de tipo feudal ao desenvolvimento do modo de produgio capitalista. A propriedade do solo sempre foi alodial e ali navel, motivo por que, desde 0 século XVI, se assi- nalam operagdes de compra e venda de terras, tor- nadas, com o tempo, bastante freqiientes. certo que os plantadores gozaram, sob o dominio de Por- tugal, do privilégio varias vezes renovado da impe- nhorabilidade dos seus bens, mas isto, se dificultava as operacdes de crédito e thes agravava o carter pré- capitalista, ndo chegava a impedir de todo as transfe- réncias da propriedade da terra. Em 1833, ainda em plena vigéncia do escravismo, a Regéncia decretou a exting&o do privilégio da impenhorabilidade. Regis- traram-se casos de morgadio, porém sua incidéncia nao alterou o carater geral do regime juridico fun- difrio. Uma lei de 1835, também sob a Regéncia, declarou extintos todos os morgadios. A propriedade de terras pela Igreja Catélica deixou de ser questo grave ainda na época colonial. Isto porque a Com- panhia de Jesus, entidade clerical detentora das maiores extensdes territoriais, foi expulsa de Portu- gal pelo Governo do Marqués de Pombal, em 1759, € teveseus bens confiscados pela Coroa lusitana. Outras ordens religiosas sofreram o mesmo tipo de confisco. Por isso, j4 no Brasil independente, os bens territo- tiais confiscados da Igreja eram chamados bens da nacao. Nos dias atuais , resta A Igreja Catélica a propriedade residual de terrenos urbanos muito valo- rizados, cujo usufruto costuma ceder sob o regime de enfiteuse. Tal circunstancia, nfo obstante, se tornou indiferente ao desenvolvimento do capitalismo. As corporagées de offcios existentes rio Brasil colonial eram ficticias, se comparadas as européias. Nao dispunham de forca juridica efetiva ¢ foram abolidas pela Constituicao imperial de 1824. Organizado em pais independente, o Brasil ad- quiriu um Estado nacional unificado, sob um Poder politico fortemente centralizado, apropriado 4 defesa da instituigio escravista, conforme o interesse da classe dominante dos plantadores. Ja no Primeiro Império, foi estabelecida a uniformidade tributaria, monetéria e de pesos e medidas. Quanto ao privilégio estamental da isenc&o de pagar impostos, inexistiu. sequer no Brasil-Colénia. Entao, que obst4culos ao desenvolvimento do modo de producao capitalista eram especificos do escravismo colonial? O principal, 0 fundamental cra a propria insti- tuicdo escravista. Se as primeiras fabricas, como afir- mei acima, empregaram escravos, isto s6 podia re- presentar recurso muito restrito ¢ efémero. O modo de producao capitalista é absolutamente incompa- tivel com o trabatho escravo, Seu desenvolvimento depende da formagao de um mercado de mio-de- obra despossuida, abundante e juridicamente livre para ser assalariada, sob contratos de trabalho res- 20 Jacob Gorender A Burguesia Brasileira cindiveis quando convier ao empregador. Esse tipo de mercado de milo-de-obra comegou a se constituir no Brasil na segunda metade. do século XIX, porém sua expansdo permaneceu fortemente restringida en- quanto subsistiu a instituicdo servil. A persisténcia da escravidao fazia do écio apandgio do homem livre, de tal maneira que muitos despossufdos preferiam a marginalidade e a indigéncia ao trabalho assala- riado, Também a imigracio de trabalhadores euiro- peus, enquanto sobrevivesse a escravidao, encontra- ria sérios impedimentos. Acresce que, sob varios aspectos, o ordena- mento juridico vigente no Brasil-Império se revelava inadequado ao desenvolvimento capitalista. A orga- nizagio judiciaria era apropriada a um regime domi- nado por plantadores escravistas, porém cheia de falhas graves quando se tratava de proteger empreen- dimentos capitalistas. $6 para citar um exemplo, Bor uma lei de-1860, parcialmente alterada em 1882, as sociedades andnimas no podiam ser constituidas sem autorizagaé-expressa do Governo e estavam proi- bidas de colocar suas agdes & venda. Finalmente, a condi¢&o do catolicismo como religido oficial ¢ as restrigdes 4 pratica dos demais cultos opunham difi- culdades 4 vinda de imigrantes protestantés e de outras confissdes. A revolug&o abolicionista Para os fins do meu tema, n4o carego de tratar em detalhe do evento da Abolig%o (abordado, nesta colegdo, por Suely Reis de Queiroz). O que, aqui, me interessa ressaltar consiste em que considero a extin- gao das relacdes de producio escravistas, no Brasil, um evento revoluciondrio. Ou, dito de maneira mais taxativa: a Aboliedo foi a iinica revolugao social ja- ‘mais ocorrida na Histéria de nosso Pais. Com o desaparecimento da escravidao, desapa- receram também 0 modo de produgio escravista co- jonial — dominante durante quase quatro séculos — ea formagio social escfavista correspondente. A pro- funda transformagao na estrutura econdmica nio deixou de se manifestar na superestrutura politico- juridica. A Monarquia centralizadora estava esclero- sada e se tornara um trambolho, Dai ter sido substi- tuida pela Republica federativa descentralizada, na qual os Estados ganharam ampla autonomia, sob a batuta hegem@nica dos dois Estados mais poderosos: Sao Paulo ¢ Minas Gerais. Pode-se objetar: mas a Abolic&o deixou o Lati- fiindio intocado. E verdade. E nfo poderia ser de outra maneira, por dois motives principais: 19) A possibilidade de efetivacio da reforma agraria seria concebivel somente se jA existisse um movimento camponés capaz de lutar por ela em alianga com o movimento abolicionista. Ora, como se sabe, 0 abolicionismo nao encontrou apoio em ne- nhum movimento camponés. 2°) A mais elevada forma de luta dos escravos consistiu na fuga das fazendas, o que se deu sobre- tudo em Sao Paulo, a regio do escravismo mais Jacob Gorender A Burguesia Brasileira préspero dos anos 80 do século passado. Em conse- qiiéncia, ao abandonar as fazendas, os escravos se incapacitavam para a luta pela posse da terra, apesar de manifestarem aspiragio nesse sentido. Com todas as suas limitagdes, a Aboligao nao deixou de ser uma reyoluc%o, Pela via da luta poll- tica, deu vigoroso impulso a eliminagao de formas de exploracdo j4 esgotadas. Porém nao o fez para trazer © paraiso aos trabalhadores, negros ou brancos.. No- vas formas de exploracao vinham sendo instauradas e se expandiram apés a Aboligio, pois eram ade- quadas ao nivel mais elevado das forcas produtivas. Em especial, todos os trabalhadores se tornaram juridicamente livres e, com isso, a difusio das rela- des de produgo capitalistas ficou desembaragada. ‘A Repiblica pés em vigor algumas medidas, que completaram a transformagio abolicionista: a Igreja Catélica foi separada do Estado e ficou garan- tida a liberdade da pratica publica de outros cultos religiosos; uma lei de 1890 agilizou a organizaciio de sociedades andnimas, afastando a interferéncia do Estado e permitindo a negociacio piiblica de agdes. Coloquemos, no entanto, a seguinte questiio: que papel teve a burguesia em transformagdes de to grande envergadura? No concernente & Abolicao, nAo contamos ain- da, em nossa historiografia, com um estudo mono- grafico sobre a atuacdo da burguesia. HA somente referéncias ocasionais & militincia abolicionista de comerciantes ¢ industriais. Se é possivel conjecturar que a burguesia bancé- ria (Machado de Assis alude a isso no seu romance Esaii e Jacob) seria hostil 4 Aboligao ou temerosa de suas conseqiléncias, uma vez que Os fazendeiros eram os principais devedores dos bancos ¢ a proprie- dade servil representava a garantia mais substancial dos débitos, pode-se supor, pela légica dos interesses de classe, que a burguesia industrial deveria assumir uma atitude oposta. Mas a burguesia industrial ape- nas estava em formagio e, na vida real, suas posigdes nao foram sempre coerentes. ‘Ao menos, & caracteristico o caso de Antonio Felicio dos Santos. Industrial téxtil em Minas Ge- rais, presidente da Associagio Industrial e signatério do seu Manifesto de 1881, no qual defende uma politica tarifaria protecionista em favor do desenvol- yimento da industria nacional, Felicio dos Santos conciliava semelhante posi¢Zo com a de antiabolicio- nista. Em 1885, foi eleito para a Camara do Depu- tados como candidato dos escravocratas. & DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO NA PRIMEIRA REPUBLICA Car&ter subordinado do modo de producio capitalista Se é fato que a extincao do escravismo colonial retirou o principal obstéculo 4 expansio, das forcas produtivas modernas ¢ das relagdes de produgio ca- pitalistas, isto no significa, contudo, que o modo de producdo capitalista se afirmou de imediato como o dominante na formacio social emergente. Ao proclamar-se a Reptiblica, a indiistria reunia pouco mais de 54 mil operdrios ¢ sua produgio repre- sentaya uma fragiio pequena do produto nacional. Quase vinte anos depois, em 1907, cabiam A agricul- tura quatro quintos do valor Mquido da produgio fisica do Pafs, ficando a indistria com o quinto res- EEE IE? A Burguesta Brasileira 25 tante. Ora, a agricultura brasileira ndo se tornov capitalista ‘em seguida 4 exting%o do trabalho es- cravo. Nem sequer a cafeicultura do Oeste de Siio Paulo soffeu uma transformacao capitalista com a introducto do trabalho livre, s6. parcialmente pago em salarios. Além do que a presenga de salarios nem sempre indica, por si mesma, a vigéncia de relagdes de produc&o capitalistas, Esta 6 uma questo rele- vante, acerca da qual discordo de Caio Prado Jr. e de outros historiadores da economia brasileira. Sem entrar em detalhes, saliento que prevalecia no setor agricola da economia nacional o latifindio plantacionista ou pecudrio, em cujo ambito vigo- ravyam relagdes de produg&o que combinavam ele- mentos de economia camponesa com 0 pagamento de salérios-de modalidade pré-capitalista. As formas mais tipicas e difundidas de tais relagdes de pro- dugao se manifestavam no colono da cafeicultura paulista, no “morador” das plantagens canavieiras ¢ das fazendas de gado do Nordeste, nos meeiros e parceiros muito numerosos no Nordeste e em Minas Gerais, nos vaqueiros que trabalhavam pela ‘‘quar- ta”, No conjunto desta agropecudria, sobressaia a cafeicultura, que fornecia o principal produto de exportacao. A semelhanga do que ocorria A época da economia escrayista colonial, a nova economia con- tinuava a ter seu eixo na exportagfo de produtos primarios. Na primeira década do século XX, dois tercos da producio agricola nacional, em termos de valor, eram exportados e, no total da exportacao, o Jacob Goreniler 27 A Burguesia Bras café participava com 53% (seguido pela borracha, com 26%). Uma vez que Sao Paulo fornecia cerca de dois tergos do café exportavel, compreende-se a forca econémica concentrada em miios dos cafeicultores paulistas. A classe dominante era constituida, por conse- guinte, pelos propriet4rios das plantagens (de café, cana-de-agiicar, cacau, algodio, etc.) ¢ das fazendas de gado. A grande burguesia comercia] e bancdria associava-se intimamenhte aos latifundiarios, além do mais porque, com freqiéncia, procedia do meio deles. Seria, no entanto, erro grosseiro identificar esta economia pés-Abolig&o com a do escravismo colo- nial, simplesmente porque, em ambas, a exportacdo de produtos primArios exerceu funcao primordial. Nas novas condigdes pés-Abolico, difundem-se as relagdes salariais e amplia-se num ritmo acelerado 0 mercado interno. Este acabar4 suplantando a impor- tincia estratégica da exportagZo e se converter no eixo do desenvolvimento econémico. Semelhante di- namismo do mercado interno teria sido compleia- mente invidvel nos quadros do escravismo colonial. O Encilhamento: uma loucura juvenil A especulagilo é inerente ao capitalismo e faz parte do seu curso rotineiro, Mas hé momentos em que as manipulacdes especulativas se exacerbam ¢ proyocam uma febre de alta temperatura. O capita- lismo brasileiro foi acometido por uma dessas febres, entre 1889 a 1892, quando mal ensaiava seus pri- meiros avangos. O episédio ficou conhecido como “encilhamen- to”, porque assim se-designava, na época, 0 mo- mento, nas corridas de cavalo, em que estes estavam encilhados antes da largada ¢ 0 jogo dos apostadores chegava ao frenesi. Por analogia, o termo foi apli- cado aos lances dos investidores na compra e venda- de agées de companhias diariamente constituidas, em escala desmedida. ‘A iebre especulativa comegou ainda sob o Impé- rio, quando era Primeiro-ministro o Visconde de Ouro Preto. A libertacZo dos escravos -provocara 0 stibito aumento da necessidade de pagar salarios e os fazendeiros sentiam caréncia de dinheiro, cujo mon- tante, na economia escravista, n4o precisava ser ele- vado, A fim de atender a esta falta de liqitidez, como dizem os economistas, o Governo imperial forneceu, sem juros e com outras cpndigdes vantajosas, certas quantias aos bancos, que eles repassariam em dobro aos: fazendeiros, a juros de 6% ao ano. Imediata- mente se valorizaram as acdes dos bancos existentes ¢ novos bancos se criaram. Numa reagdo em cadeia, subiu a cotacZo dos titulos de toda espécie de socie- dades por ages, organizando-se depressa novas so- ciedades que negociavam seus titulos com Agios cres- centes. Quando Rui Barbosa assumiu o Ministério da Fazenda, no primeiro governo republicano de no- Jacob Gorender vembro de 1889, j4 encontrou o carro em movimento. Convicto de que a circulagio monetéria era insufi- ciente e, ademais, aberto a idéias de industriali- zagio, embora sem coeréncia doutrindria, estabe- jeceu um mecanismo de bancos privados emissores, 0 que incitou ainda mais a especulagio. No entanto, a grande maioria das companhias entio criadas nfio dispunha de viabilidade e, nos primeiros meses de 1891, as cotagSes da Bolsa comecaram, a cair, Em janeiro do mesmo ano, Rui jé havia renunciado ao cargo de ministro. Acerca do episédio do Encilhamento, cumpre fazer duas observacdes. Em primeiro lugar, o investimento em acdes € outros titulos privados, estimulado pela nova lei das sociedades anénimas, aparecen como alternativa & tradicional aplicac&o da poupanca privada dispont- yel em apélices do Governo. Ao descongelar a pou- panga investida nessas apélices estatais de renda fixa e transferir capitais disponfveis para empresas priva- das, a especulagiio serviu, apesar do inevitdvel des- perdicio, de mecanismo de transmiss&o entre a acu- mulagio originfria de capital e a acumulacg4o pro- priamente capitalista. Em segundo lugar, dada a estrutura da econo- mia da época, este mecanismo de transmissio favo- receu principalmente os bancos e as companhias de estrada de ferro e de navegacio, que absorveram as maiores fatias do capital em titulos posto em circu- lag&o. Mas a industria de transformacto, sobretudo a inddstria téxtil do Rio de Janeiro, como assinalou Stanley J. Stein, também recebeu significativa inje- Ho de capital, o que lhe permitiu dar um passo mais largo a frente. Particularidades regionais do desenvolvimento industrial A industrializacio brasileira — no que nfo dife- riu da inglesa e de outros paises do capitalismo “clas- sico” — comegou com a predomindncia da industria leve de bens de consume nio-durdyel, ocupando os primeiros lugares, durante longo tempo, os ramos de. tecidos ¢ de alimentos. Os Censos de 1907 (este nao oficial, promovido pelo Centro Industrial do Brasil) ¢ de 1920 nos oferecem o seguinte quadro compara- tivo. PARTICIPAGAO PERCENTUAL NO VALOR DO PRODUTO INDUSTRIAL NACIONAL 1907 1919 Indéstria téxtil 4,6 29,6 Indéstria de alimentos 19,1 20,5 Total 43,7 $0,1 Outro aspecto relevante consiste no cardter ini- cial bastante regionalizado da formagdo da indiistria nacional, Dado 0 custo excessivo dos meios de trans- porte na época, do baixo nivel da acumulagio de capital e da incidéncia de um imposto interestadual 30 Jacob Gorender 31 sobre a circulaco de mercadorias (imposto s6 elimi- nado em 1937), as fAbricas das regides mais desen- volvidas conseguem, nesta fase inicial, uma espécie de protecio para reservar seu proprio mercado, ao abrigo da concorréncia dos produtores de outras re- gides. Com o tempo, a concentracao industrial se acentuara em Sto Paulo e as indiistrias regionais passaréo a competir entre si num mercado jé de carater nacional, sobrevivendo e expandindo-se aque- Jas favorecidas por fatores como base regional mais poderosa, abundancia de matérias-primas, especiali- zacHotecnoldgica, situacAo geogrifica estratégica, etc. Sob tal aspecto, distinguimos quatro casos ti- picos: Nordeste. Sua agricultura de exportacfo, na se- gunda metade do século XIX, encontrava-se em de- cadéncia e, por conseguinte, proporcionou uma base fraca 4 acumulacdo origindria do capital. Apesar disso, a Bahia foi pioneira na criagdo de fAbricas de tecidos e, ainda em 1911, sua produgio téxtil ocupava o quarto Iugar no Pais. Mas, ao que parece, a expansdo da nova cultura do cacau absor- veu o fraco impulso da economia baiana. A industria téxtil no se modernizou e sucumbiu 4 concorréncia, quase desaparecendo apés a Segunda Guerra Mun- dial. O fio do desenvolvimento industrial da Bahia sé viria a ser reatado nos recentes anos 60. A indistria téxtil de Pernambuco surgiu mais tarde e conseguiu resistir, sobrevivendo na fase de concorréncia no mercado nacional. A par disso, Per- nambuco continuou a liderar a producdo nacional de agticar até os anos 30. Como nos esclarece Peter L. Eisenberg, 0 ntcleo de usinas modernas se formou com substanciais empréstimos do Governo estadual, os quais nunca foram restituidos e resultaram em doagdes as custas do erfrio pitblico. Os usineiros assumiram o controle da economia acucareira e se tornaram a forca politica decisiva em Pernambuco. O fraco dinamismo:do seu mercado interno re- gional fez do Nordeste um fornecedor de miio-de- obra e de capitais As regides meridionais. Extremo Sul. No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, temos o caso inico de uma acumulaciio origindria do capital que se processa, nito a partir da economia de plantagem escravista, porém a partir da economia de pequenos camponeses € artesdes livres, estatielecidos nas zonas de colonizacito alema e ita- ana. A medida que esses pequenos produtores ru- rais, cujo autoconsumo era o mais elevado do Pais, encontraram vaz4o para seus produtos no mercado nacional, avolumou-se a capacidade aquisitiva mo- netdria regional e surgiram numerosos estabeleci- mentos fabris em Blumenau, Joinville, Porto Alegre, Sao Leopoldo, Novo Hamburgo, Caxias do Sul e outras cidades. Atuando, a principio, no mercado regional, a indtistria sulina encontrou na especializacAo tecnolé- gica o fator que lhe permitiu enfrentar com éxito a concorréncia de S40 Paulo na fase de competic¢4o no mercado nacional. Assim é que se reforgam e alcan- cam grande porte grupos industriais sulinos como Gerdau-Johannpeter, Eberle, Renner, Hering, Han- sen, Tupy e outros. Rio de Janeiro. Na antiga capital do Pais, ocorre uma combinag&o entre a acumulaciio origindria de capital procedente da agricultura de exportagio e a disponibilidade prévia de um mercado urbano de dimensdes relativamente amplas. A cafeicultura da zona fluminense do Vale do Paraiba prosperou durante.o século XIX e somente nos anos 80 é que entrou em declinio, cedendo a primazia 4 cafeicultura paulista, Por sua vez, 0 Rio de Janeiro, por forca da condigio metropolitana, tornou-se a cidade mais populosa e rica do Pats, Em 1900, sua populacdo atingiu os 692 mil habitantes, quando a da capital de Sao Paulo nfo passava ainda dos 240 mil. O Rio de Janeiro se formou, antes de tudo, como grande centro comercial e bancdrio. Sua situagio de cidade portudria lhe deu o controle do comércio de exportagiio e importagZo da regifo fluminense, de Minas Gerais e do Norte de Sdo Paulo. A acumu- lac&o de capital comercial e bancdrio, associada a amplitude do mercado urbano e rural, fez do Rio de Janeiro o maior centro industrial nacional até cerca de 1910. Sao Paulo. A respeito da correlacdo entre cafei: cultura e industrializago em Sao Paulo, o leitor encontrar4 abundante literatura. Todavia, penso que tal conexio — verdadeira, no geral — nio foi corre- tamente esclarecida sob aspectos importantes. Em primeiro lugar, atribui-se 4 cafeicultura 32 Jacob Gorender A Burguesia Brasileira 33 paulista uma precocidade capitalista, que dataria, segundo alguns, do inicio de sua formac4o. Exagero flagrante costuma ser cometido, por exemplo, no referente 4 introdugio do trabalho livre nessa cafei- cultura. No cap. XXVII do meu livro ja citado, creio haver demonstrado que as plantagens cafeeiras de Sao Paulo, inclusive de sua Zona Oeste, se basea- ram no trabalho escravo até as vésperas da Abolicao. Em segundo lugar, como afirmei antes,.a cafei- cultura de Sio Paulo, no periodo pés-Abolicio, 20 explorar o trabalho de colonos, tampouco adquiriu carater capitalista. Por isso, considero erréneo cha- mar os fazendeiros paulistas daquela época de “‘bur- guesia cafecira’’. Conquanto ndo-capitalista, a cafeicultura de Sao Paulo, sobretudo a da Zona Oeste, formou-se e prosperou na fase em que se iniciava 0 desenyolvi- mento capitalista no Brasil. Acrescente-se, pois se trata de aspecto decisivo, que as fazendas de café eram de propriedade de residentes no Brasil e nao do capital estrangeiro, a exemplo do que sucedia com as plantagens de produtos tropicais em muitos paises da América Latina, Asia e Africa. Em conseqiéncia, a agricultura de exportacio forneceu ao desenvolvimento industrial de So Paulo uma acumulagdo origindria de capital e um mercado regional com um potencial superior ao das outras regides do Pais. Embora sé possam ser mencionados, tais fatores positivos implicam outros correlatos: grande disponibilidade de forca de trabalho imi- grante, desenvolvimento da rede ferrovidria, o porto 3 Jacob Gorender A Burguesia Bra. de Santos, locatizag%o geogrifica central, etc. No entanto, é preciso salientar fortemente que a corre- Jacdo entre cafeicultura ¢ industria niio deve ser consi- derada simétrica, conforme a concepgio errénea de autores como Wilson Cano. Nos tltimos vinte anos do século passado, a cafcicultura paulista atravessou um perfodo de auge. Com o extraordindrio afluxo de trabalhadores imi- grantes, ampliou:se rapidamente o mercador regio- nal. Assim é que uns tantos fazendeiros aplicaram parte dos seus excedentes liquidos na montagem de fabricas. Em numerosos casos, porém, o capital ini- cial para a indistria veio do comércio. As vezes, também os bancos adiantavam empréstimos para iniciativas industriais, como se deu com Francisco Matarazzo, cujo investimento num moinho foi apoia- do por um banco inglés. De modo geral, os bancos preferiam transacionar com os fazendeiros de café, uma vez que este era, ent4o, o negécio mais seguro. A formagiio de um novo cafezal, pelo sistema de empreitada, nfo exigia adiantamento de capital. Mas o aumento do parque cafeeiro requeria gastos na compra de novas terras, no desbravamento e cons- trugiio de vias de acesso, na ampliagio das insta- lagdes e equipamentos de beneficiamento, na cons- trugao de casas para maior mimero de colonos, no pagamento dos seus salrios antes da venda da co- lheita, etc. Por isso mesmo, 0 grossé dos excedentes liquidos gerados pela cafeicultura ¢ concentrado pe- Jos bancos ou pelos comerciantes foi reaplicado na expansio da propria cafeicultura. Entre 1880 ¢ 1902, ontimero de cafeeiros em produgio no Estado de Séo Paulo passou de 105 milhdes a 685 milhdes, com um aumento de 577 milhdes de pés de café, ou seja, um acréscimo de 550%. Esta é, portanto, uma fase em que a cafeicultura paulista, apesar do auge de sua prosperidade, forneceu capitais A indistria em escala moderada. Isto explica porque, em 1907, apesar da acen- tuada decadéncia da cafeicultura fluminense, € ao Rio de Janeiro que cabe de longe a primazia da inddstria de transformacao no Brasil. Se juntarmos 0s 30,3% do valor da produgio industrial da Capital Federal aos 7,5% do Estado do Rio de Janeiro, temos 37,8% para a industria da regifio fluminense. Na mesma data, o valor da produgio industrial do Es- tado de Sao Paulo nao ia além dos 15,9% da pro- ducdo brasileira. Contudo, ao iniciar-se o século XX, caem as cotag&es internacionais do café e o volume das safras paulistas configura uma situagdo de perigosa super- produgio. A solugdo encontrada consistiu no plano de valorizagio adotado pelos Estados cafeeiros no Convénio de Taubaté, em 1906: uma parcela das safras serd estocada e retida, com financiamento de importadores e bancos europeus, a fim de sustentar ‘os pregos. Ao mesmo tempo, criou-se um imposto sobre novos cafeeiros, 0 que-contribuiu para inibir 0 plantio, Em 1917, aplicou-se o segundo plano de valorizagiio. Tais medidas foram coroadas de éxito. Entre 1902 e 1921, a quantidade de cafeeiros pautis- tas em producio s6 aumentou em 20%, alcancando IE EEE IIOSSSSSSS'=S

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