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Rosalind Krauss O fotografico ‘Titulo original: Le Photographique. Pour une Théorie des Beats Publicado originalmente por Editions Macula, Paris, em 1990 ‘Traducio: Anne Marie Davée Revisio: Maya Hantower e Lane de Castro Capa: Toni Cabré, Editorial Gustavo Gili, SA Fotografia da capa: Roger Parry, 1930. © Parry. Droits réservés. ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicagdo protegida por copyright pode ser utilizada ou reproduzida de qualquer forma ou por quaisquer meios ~ grifico, eletré- nico ow mecanico, incluindo fotocépia, gravacdo ou sistemas de arm: missio de dados — sem autorizacio por escrito da Editora. A Editora expressa ou implicitamente, a respeito da acuidade das informagdes con nfo aceitaré qualquer responsabilidade legal em caso de erros ou omissocs. © Editions Macula, 1990 Ps © Editorial Gustavo Gi , Barcelona, 2002 Printed in Spain ISBN: 84-252-1858-6 Impressao: Hurope, SL, Barcelona indice Prefacio, por Hubert Damisch . . Introdugéo I A expresso «Historia da Fotografia» refere-se um objeto de pensamento existente? Seguindo os passos de Nadar .... 6... Os espacos discursivos da fotografia. A fotografia e a historia da arte O impressionismo: narcisismo da luz Marcel Duchamp on 0 campo imaginario ..... A fotografia como’texto: 0 caso Namuth/Pollock Fotografia e surrealismo : A fotografia e a forma Stieglitz: equivalentes Os noctambulos ........ Sobre os Nus de Irving Penn: a fotografia como colagem A margem da fotografia Corpus delicti ........5..0.. oe Quando falham as palavras 0... Nota sobre a fotografia e o simulacro . Bibliografia indice onomistico . Créditos Fotograficos s ieacivesvexe BB weve 40 63 PRKERAGU A partir da fotografia A fotografia invadiu os saldes de exposicao de museus e galerias de arte. Mais ainda, seu ingresso relativamente recente no campo da critica como objeto de saber € andlise, assunto de pesquisa ou tema de reflexao tem o efeito parado- xal de ocultar a realidade da qual é, a0 mesmo tempo, signo e produto. Por ocultar esta realidade, por mascaré-la ou t40 bem deturpar o seu sentido sob ‘o véu de um discurso de legitimacio, a proliferacdo de escritos de todo tipo dedicados a uma pratica considerada por muito tempo demolidora parece andar par e passo com a afirmagdo propria da modernidade de uma cont- nuidade restabelecida para além da ruptura. O surgimento de um comércio especializado particularmente florescente e a especulagio desenfreada acaba- ram de vez com controvérsias fiiteis sobre o estatuto da arte fotografica, enquanto os precos alcancados pelas chamadas tiragens “de época” corres- pondem a um retorno no melhor dos casos equivoco — e até contraditério quanto a operagao constitutiva da fotografia — das nocées de “autenticidade” e “originalidade”. Chegon a haver o ressurgimento de uma nova forma de aura, substituta fetichista da que €avolvia a obra de arte tradicional, quando era de se supor que © desenvolvimento dos meios de reprodugao mecanicos da fotografia precipitaria o desaparecimento dessa aura. Mas o fendmeno tem outras conseqiiéncias: come aconteceu na sua época com a pintura, o ingres so da fotografia no mercado da arte tem como corolatio o florescimento de uma “literatura” especializada por género, ordem de prioridade, catalogos, monografias, prefécios ou textos criticos que obrigatoriamente a acompa- nham, Como se algo pudesse ou devesse existir de fato como literatura da foto- grafia; como se a fotografia devesse ou pudesse ser objeto de literatura, Parte dos textos reunidos por Rosalind Krauss sob 0 titulo O Fotogréfico res- ponde aparentemente a esta descrigio. Nesse livro, 0 leitor encontrara o pre- facio que ela redigiu por ocasido de uma exposicao dos Nus de Irving Penn, bem como os dois ensaios dedicados a fotografia surrealista, que escreveu como introducio a uma exposicio memoravel que parcialmente montou. Estes textos, porém, transgridem a lei do género, na medida em que a autora, em vez de escrever sobrea fotografia, é tentada a escrever contra ela: nao exa- tamente contra a fotografia, mas antes contra uma determinada maneira de escrever sobre ela e, em particular, sobre sua historia, De modo que este livro, 7 fragorosa testemunha da irrupeao da fotografia no campo da critica, assume posicdo de ruptura com 0 discurso dominante ¢ trabalha indo de encontro a cle, porque age A maneira de um corpo estranho que perturba sua economia por demais regulamentada, por demais azeitada ou — melhor ainda — que desloca essa economia. ‘Tenho por exemplar o trabalho realizado por Rosalind Krauss a partir da fotografia — repito: a partir da fotografia e nao sobre ela — em primeiro lugar por causa do olhar de singular acuidade que ela quis soube dirigir sobre sua propria trajetéria critica: uma trajetéria que, depois de acompanhar ao que parece um movimento de época — quando nao de moda — evoluiu progre: sivamente voltando-se sobre ela mesma e soube extrair desta involucao refle- fa seus recursos mais constantes. Frente ao excesso de anilises ¢ comenté- ios de que a fotografia € objeto nos dias de hoje, Rosalind Krauss obriga seu leitor a se perguntar o que se deve entender por “histéria” aplicada a e Historia como a escrevemos, supondo-se que seja possfvel escrever algo além de uma “pequena historia” da fotografia, para retomar o titulo atibuido por Walter Benjamin; como se a fotografia nao pudesse se prestar tampouco a lite ratura, assim como 2 hist6ria no sentido que Ihe atribuem os historiadore Tratase, porém, igualmente de uma historia tal como cla nos escreve, tal como irrompe em nossas vidas, aqui, agora, pelo canal ¢ sob a iluminacao, entre outras coisas, da luz ¢ das sombras que pertencem a fotografia: uma his- t6ria revestida de uma dimensio eminentemente pessoal quando atinge sua meta de chofre por intermédio do que Roland Barthes designou como seu puncum, 0 detalhe, 0 traco que nela me pontua, aponta para mim, me punge A fora do texto de Rosalind Krauss basta para colocitla lado a lado com a “Pequena histria da fotografia” de Walter Benjamin ou a “Camara clara” de Roland Barthes, duas obras em que ela reconhece a honra do que chama, muito pensar, de literatura fotogrifica. Essa forca provém decididamente do grau de imterioridade, em resumo, de intimidade que este texto pode atingir na descricao da foto de um nu assinado por Man Ray ou Irving Penn, assim como da intensidade dos encadeamentos, deslocamentos, curtoscircuitos com 0s quais joga no registro de parte do inconsciente entre imagens mobili- zadas pela andlise, mas sem por isso perder jamais a posicio de exterioridade e até de controle que decidiu assumin, Isto vale para o olhar que cla dirige sobre sua propria experiéncia: 0 elemento autobiografico se limita aqui a bali- zar um ilinerario que conduzira uma critica formada pela escola de Clement Greenberg — e, por este motivo, habil em todas as sutilezas do “formalismo” (termo despojado de qualquer conotagao pejorativa, tanto para ela quanto para mim) — a querer testemunhar a aparic&o em Nova Iorque, nos anos 70, de formas de arte que pensava poder ainda qualificar de abstratas, embora fos- arte, sem elas premissas de algo completamente novo. Prova disso 0 espaco outor- & gato. fotografia no-que se se chamou Body Art ou Land Art, sob dupla forma, stro das etapas de um trabalho-ov' das sucessivas fases de uma agao que 86 podia se prestar a exposicao pelo viés de uma montagem documentale, de forma mais sutil, de processos, operacoes, intervencées, performances eféme— “Tas que ela tinha a funcio de registrar, fixar no tempo. Processos, operacdes > que ressurgiam elas mesmas Como traco (Fasiro aberio, riscado no proprio chao, no caso do Land Ar‘) ou vestigio da impressio (deixado ou exibido por um corpo, no caso do Body Art), em que Rosalind Krauss soube reconhecer a forte influéncia do modelo fotografico. Melhor ainda: revelaresta influéncia a ponto de Ihe atribuir valor de sintoma ou indice, ao estilo da sohucao quimica que, por reducio dos sais de prata expostos A luz em prata metilica, tora Vi vel, na etapa da revelacao, a imagem latente impressa sobre a placa ou pelicu: lano fundo da caixaescura e a revela pelo que é: um indice no sentido atribu- ido pelo filésofo americano Charles S. Pierce, tim signo que mantém com seu referente una relagio direta, fisica, de derivacio, de causalidade. Devemos a Rosalind Krauss 0 fato de ter desenredado os motives propriae mente estéticos da ascendéncia-exercida por Marcel Duchamp sobre a gera- So de jovens artistas americanog que ingressaram no paleo nova-iorquino no momento em que expressionismo abstrato perdia o folego. Isso (a perda de folego), por motivos que nada tém a ver com o desgaste ou com a moda, escla- rece a pergunta que obcecou os grandes mestres da abstracao lirica america- na ¢ serve para situé-la como um dos grandes momentos da arte deste século: © que acontece com 0 sujeito da pintura, ou, literalmente, com o sujeito na pintura? Pergunta que talver nao peca resposta, pelo menos nao uma respos- fa que a anularia enquanto pergunta, questo que nao se pode resolver, se for verdade que ela se inscreve, enquanto tal, nos primérdios desta arte ¢ que dela faz sua condicao e motivacao. A lenda classica da origem da pintura contada por Plinio — o tracado, realizado pela filha de um oleiro de Sicione, da som- bra de seu amante desenhada numa parede — assinala seu irredutivel com- ponente indicial. Pois uma sombra projetada (nio ha sombra sem corpo, como nao existe fumaca sem fogo) € um indice, no sentido atribuido por Pierce: ¢ indice, mas que nao deixa qualquer traco permanente, a nao ser que possa ser circunscrito ¢ fixado, A nocao de projecio— esta puramente tedrica — sobre a qual boa parte da pintura classica se pautou através do dispositive perspectivo, nao tinha outro significado. A ela responde o mito que Alberti pretendeu colocar no lugar da lenda tradicional: o de Narciso mirando-se na superficie da agua. Um mito, nao mais uma historia como aquelas contadas por Plinio, que tem como fungao prim fabula na pintura ¢ como seu inventor (no sentido em que se fala de invencdo da fotografia); tanto € que Narciso nao pode alimentar a esperanga de apre- ira inscrever © sujeito como herdi de 9 ender a imagem que 0 espelho Iiquido lite devolve, s6 apontar este espelho como uma superficie que suas mios nao saberiam como atravessar ¢ que Ihe cabe abracar (mas cada um de nés percebe logo que a.questio do sujeito existia na lenda da filha de Sicione, através da troca de posicées entre objeto e sujeito do desejo, a irrepreensivel passagem de um a outro a que se resume “Fazer arte). - ‘Nao caberia dizer que 0 componente indicial da pintura tenha sido algum dia motivo de forclusao. A propria Rosalind Krauss nao poderia ter deixado de observar que a grande pintura americana dos anos 50 apresentava uma forte caracteristica indicial: quer se trate dos tracados em pleno véo de Pollock, dos sutis arrancos de Barnett Newman ou do fluir cuidadosamente organizado de Morris Louis, todos estes tragos remetem diretamente ao gesto que 0s origi- now, O mesmo, porém, ocorria na pintura classica, com os tragos visiveis da escova, o toque deixado em evidéncia: 0 toque em que gostariamos de reco- nhecer o vestigio da subjetividade, porque nela se inscreve a presenca do pré- prio pintor e, se nao dele, de sua mao na origem de obra. Se a eritica, se a his- téria da arte foram levadas a enfatizar 0 componente icénico da pintura em detrimento de sua aparéncia sensivel e a confundir a imagem com o quadro, nao se deve procurar a razdo dessa atitude numa cegueira qualquer ¢ sim na yontade cada vez mais afirmada de ignorar o que acontece com 0 sujeito da pintura, com 0 sujeito na pintura, esta arte cuja intimidade no coracio do homem aumenta 4 medida que se torna mais material, como dizia Delacroix. Q.que a geracdo dos anos 60 reteve da li¢io dos mais velhos nao teve nada a Yer, no entanto, com os exercicios “materiolégicos” a que se tinha entregado, deste lado do Atlantico, um pintor como Dubuffet. Se esta geragdo se desviow de Picasso para olhar 0 territério de Duchamp foi com a idéia de aprender com este tiltimo a utilizar o proprio real como matériaprima, como fazem a fotografia e o cinema. Do préprio real, incluindo-se © syjeito dito produtor ou “artista”, cuja atividade no teria outra funcio nem outra razio de ser senao a de montar 0 palco cada vez mais desmantclado de sua comparéncia ou entao de “desconstrui-la” com obstinacao, por uma decisio justificada doravante somente pela sua propria reiteracao, por sua repeticao convulsiva. E, portanto, o proprio movimento da arte que tera conduzido Rosalind Krauss, num primeiro momento, as raias da fotografia. As razSes que a leva ram a escolha deste campo, € nele realizar mais do que repetidas incursées, s40 miltiplas. Parte do interesse suscitado por este livro nasce da preocupacio da autora em entender a receptividade da fotografia por parte do pitblico a par- tir da sua experiéncia pessoal, de seu proprio percurso critico. Por que a foto- grafia é tao importante hoje para nés? A esta pergunta, que formulou “sem rodeios, Rosalind Krauss soube dar uma resposta singular, subjetiva (como 10 tem que ser quando se trata de julgamento estético), mas que, por apresentar essa mesma subjetividade e singularidade, se reveste de maior valor geral. Uma questio de humor, entre outras: se estivermos dispastos a investir (em todos os sentidos da palavra) na fotografia, seria em parte por lassidio, cansados dos {jogos cada ver mais regressivos em que se perde a pintara, mas também sedu- idos por uma forma de arte dirctamente conectada ao real, uma arte funda- mentalmente realista, no sentido estrito da palavra, por sua prépria natureza, sua funcio de indice. O movimento que faz com que nos voltemos para a foto- grafia seria somente um sintoma, entre outros, do mal-estar da modernidade? Isto seria ignorar que a fotografia passou por um de seus momentos mais cria- tivos na época em que a abstracao tinha conseguido imporse como um dos artigos do credo modernista: sob muitos aspectos, o trabalho dos anos 20 sobre as condices materiais de producao da imagem fotogréfica, assim como © wabalho sobre seus componentes técnicos e formais néo tem equivalente hoje. Que este trabalho tenha sido levado adiante no contesto do surrealismo, como aconteceu com 0s raiogramas ou as solarizagdes de Man Ray, € que as pesquisas empreendidas no programa de ensino na Bauhaus tenham conse- guido se inscrever sob a bandeira da “Nova Visio”, dando um salto por cima da instituicdo, estes dois elementos hist6ricos analisados com pertinéncia por Rosalind Krauss atestam a complexidade do relacionamento que a moderni dade nunca deixou de cultivar com a realidade, de uma forma ou outra, ¢ nao tém nada a yer com um “retorno a ordem” qualquer. Este livro descreve assim uma trajet6ria que corresponde a um verdadeiro deslocamento epistemolégico: Id onde 0 discurso oficial se esforca em tazer a fotografia A ordem, em deitar-se na cama de Procusto da histéria da arte, em apagala enquanto acontecimento para introduzita novamente na longa duragao e contimuidade de uma historia, a da arte. Arte de que seria produto, arte que a teria preparado, suscitado, chamado ha muito, 2 ponto de reduzir sua inven- cio a uma formalidade sem conseqiténcia (como pretendia a exposicao Before Photography, apresentada em 1981 no Museum of Modern Art de Nova Torque), todo 0 esforgo de Rosalind Krauss tem, a0 contrario, 0 objetivo de res- tituirthe algo da forca, do valor de ruptura_que teve_originalinente ¢, a0 ‘mesmo tempo, sublinhar sua irredutivel exterioridade. Tamanho empreendi- mento pressupGe umia descentralizacdo calculada do discurso: a fotografia nao _ se deixa reduzir as dimensdes essencialmente “estilisticas” da historia da arte ‘Como mostra a autora a partir do exemplo do trabalho de Timoty O’ Sullivan, Auguste Salzmann ou Roger Fenton, do proprio Eugéne Atget, que conquis- tou de pleno direito seu lugar no Pantedo do século XIX, ela opera em outros espagos de discurso que nao sao estritamente artisticos: o espaco da repo gem, da viagem, do arquivo ¢ até da ciéncia. A aura algo suspeita que Ihe con- u fere hoje seu ingresso no museu, o verdadeiro culto de que 0s vintage prints io objetos doravante sio como a parddia inversa do proceso de dessacralizacao da obra de arte que teria chegado ao seu término com a invencao da fotogra- fia: o valor de exposicio leva vantagem sobre a funcao de documentar. O resul- tado é que acreditamos dispor da fotografia como as obras de arte conser’ das no muscu, quando ela continua evidentemente a dispor de nés, como 0 revela a imagem que nos assalta de repente, nos punge na hora da leitura dos jornais ou quando irrompe de nosso arquivo particular. O Futogrifica: decidi- damente, 0 titulo diz bem a que veio. Se a fotografia se impuser hoje como um dos pélos do discurso critico, ela nao conseguir produzir todos os seus efei tos na ordem teérica senio sob condicao de sobrevir, como o fez historica- mente, falando no campo cultural, ¢ como o faz diariamente na vida intima, desde que conservadas as condicées tedricas desta sobrevinda. E preciso entdo rejcitar, por motives tanto de carater estratégico como de principio, o lugar comum segundo o qual a pintura abriu caminho para a foto- grafia, que a antecipou, assim como as formas modernas de narracao teriam aberto caminho ao cinema ¢ 0 teriam antecipado, quando nao ha neste caso nada senao uma ilusao retrospectiva, € que € a partir das novas praticas artis- ticas, dos processos € procedimentos que as caracterizam ¢ igualmente por meio da linguagem ¢ da grade conceitual fornecida por ela que julgamos as praticas que as precederam. Da mesma forma € mister rejeitar, pelo menos por precaucio, a participacio na redacio coletiva de uma “historia da fotografia” que quisesse modelarse na historia da arte. Nao porque a fotografia nao tem hist6ria, mas porque nos cabe novamente entender primeiro 0 significado de hist6ria sob sua ihuminacio. A fotografia n&o é apenas um indice do real. Mais ainda que o chamado “cinema de atualidades”, ela quer estar presente na his- t6ria, tanto a oficial como a mais secreta, presente na hist6ria coletiva bem como na histéria individual, A indiscrigao necesséria, constitutiva, que é a sua, a faz multiplicar os angulos de visao ¢ escolher os pontos de vista sempre mais improvaveis para dar-nos a ver a historia, eventualmente nossa prdpria histd- ria para excitar em nds a inquictagao € até o desejo — no pior dos casos — de despertar-nos (como dizia Joyce) deste pesadelo. Tao empenhada nesta labu- ta, € freqitente que s6 consiga abordar o contrapé desta historia, seu avesso, sua auséncia ou, ao contrério, o momento de seu climax, quando 0 fotégrafo quer permanecer a margem, testemunhar, se relacionar com a realidade man- tendo com ela um contato instrumental e estritamente pontual, instantineo, © tempo de um clique. A eficécia propria da fotografia no campo estético nao se deixa efetiva- mente isolar da eficdcia de sua mecénica. Delacroix ja se regozijava, na época, por ter 4 sua disposicao um meio de produzir, automaticamente a armacio da perspectiva do quadro, com o aparelho de apreensio da vista: a caixa fotogré- 12 fica tem uma disposigao interna tal que a imagem formada no fundo da cama: ra escura obedece a uma regra projetiva analoga a regra basica do principio de construcio da perspectiva. A parte de automatismo do processo fotograti- co, porém, n&o € apenas uma questao de dtica, como Rosalind Krauss consta- tou no exemplo da fotografia surrealista: considerado a partir deste crivo, é todo o problema do automatismo psiquico ou escritural que precisa ser estu- dado novamente, no sentido que André Breton € seus amigos deram a estas palavras. Se for sempre a relacao do fotégrafo com sua técnica que julgara a fotografia em definitive, como escreven Walter Benjamin, surge aqui uma das explicacdes para o mal-cstar que por muito tempo prejudicou o desenvolvi- mento de uma teoria, quando no de uma estética da fotografia. A concepcaio fetichista de arte é inimiga da técnica como o é também da teoria; nao aceita facilmente que noves objetos venham reconduzita a eles, como disse Louis Jouvet sobre o cinema, alegando que esse condenava os homens de arte a fazer. teoria do teatro!. A fotografia representa um destes objetos que chamamos “tedricos” € cuja irrup¢ao em determinado campo transtorna tanto © mapa, que se torna necessdrio retomar o trabalho de medicio comecando do zero, introduzir novas coordenadas ¢ talvez mudar o sistema de representacio. A historia da arte bem pode fingir ter digerido e até assimilado visceralmente a fotografia com a ajuda do mercado. Um livro como este tem como primeiro mérito dissipar esta iusio ¢ invocar outra forma de projes@oque, longe de fazer um balanco da fotografia, a tomaria como ponto de partida e trabalharia com ela obstinadamente. Hubert Damisch Nota: 1. Louis Jouvet, Le Comin désincarné, Paris, 1954. 13 Introdugao O Fotogrifico nao vemete fotografia como objeto de pesquisa, mas apresenta oq ; poderiamos chamar de objeto térico. Assim, quer abordem o material fotografico reunido pelas expedicdes geograficas do século XIX ou os trabal- hos de Atget, Nadar ou Brassai, os ensaios compilados neste livro nio pode- tiam ser definidos como ensaios sobre fotografia. Ao assumir essa atitude, inclusive, nada mais fazem senao seguir 0 exemplo dos classicos do discurso fotogrifico, aqueles autores a que nos referimos sempre e cuja afirmacao desejamos refutar, segundo a qual 0 que se escreve sobre fotografia carece de interesse ¢ profundidade. De fato, se poderia argumentar que a obra desses autores — cuja breve lista iniciase por Barthes ¢ Benjamin — sequer versa sobre fotografia. “Nota sobre a fotografia” é 0 subtitulo dado por Barthes a La Chambre claire (A Camara clara), ¢ no entanto cle elimina de seu tema, uma apds a outra, cada pritica discursiva que teria permitido instituir a fotografia como objeto proprio de sua anilise, Para ele, a fotografia nao € um objeto estético; nao é um objeto hist6rico; nao é um objeto sociolégico: A foo me comove quando a subtmio de sew blablabla habitual: ‘Técnica’, 'Realidade “Reportagem’, ‘Arte’, etc. Calarse, fechar 03 othos, deixar o detalhe emergir na conscié cia afetiva.” (p. 89) Na verdade, Barthes da as costas para todas as leis que autorizariam um nivel de generalizacao suficiente para organizi-la em objeto de discurso — uma linguagem que seria formulada sobrea fotografia; a Barthes agrada enten- der aquilo que revela o filme como depositario de uma promessa utépica, ada “ciéncia impossivel do ser tinico”. Para ele, a fotografia se constitui de fato bruto no seu estatuto de prova, testemunha muda sobre a qual “nao ha mais nada a acrescentar”. E neste exato momento, quando © que lhe da valor de prova tornase essencial, que a fotografia muda de condicdo ¢ se transforma em objeto iedrico, ow seja, uma espécie de crivo ou filtro através do qual pode-se organizar os dados de outro campo, situado em segundo plano. A fotografia é o centro 2 partir do qual torna-se possivel explorar este campo, mas, por ocu- par essa posicio central, transforma-se de algum modo em mancha cega. Nao ha nada a deciarar sobre a fotografia, em todo caso. 4 Se for verdade que cada um dos textos de Barthes que abordam a fotogra- fia pode ser considerado como um texto que, na realidade, nao versa sobre a fotografia, 0 que dizer entio de Benjamin, 0 outro her6i do discurso sobre fotografia? ‘Assim como a fotografia se constitui para Barthes no objeto teérico que permite éxaminar a evidéncia bruta em sua relacio com a imediatez ou com cédigos de conotacdo, como a morie ow a publicidade, ela contudo represen: ta igualmente o objeto tedrico de Benjamin. E a fotografia que Ihe permite refletir sobre a cultura modernisia a partir das condigdes geradas pela repro- ducio mecanica. A fotografia é 0 dispositivo com o qual se calibra os objetos da paisagem cultural em termes de “reprodutibilidade”. Essa reprodutibilida- de percebida recentemente € que poe a disposisiio de Benjamin os objetos especificos de sua andlise — como 0 desaparecimento da aura ou o relativis: imo histérico da nogao estética de original, por exemplo. Um outro tipo de calibragem a que se pode submeter os objetos da expe- riéncia através da fotografia tem 0 nome de “indice”. Na medida em que a fotografia faz. parte da classe de signos que mantém com sua referéncia rela- Ges que subentendem uma associagao fisica, ela faz parte do mesmo sistema que as impressGes, os sintomas, 0s LrAcos, Os indices*. As condi¢des semiologi- cas proprias da fotografia se distinguem basicamente das condigdes semiolo~ gieas de outros modos de produgio de imagem designadas pelo termo “icone”; € é esta especificidade semiologica que permite transformar a foto- _grafia em objeto teorico, por intermédio do qual se pode pensar as obras de arte em termos de sua funcdo de signos. ‘Ao longo da década que presenciou a mudanca dramatica de figuras exemplares da pritica modernista — Picasso substituide por Marcel Duchamp para a geracao dos anos 60 —, a tadicao da pintura ¢ escultura, considerada imutavelmente icdnica desde a noite dos tempos, revelou-se de extrema fragilidade quando submetida 4 calibragem fotografica. Isto porque a obra de Marce] Duchamp procede a uma redistribuicao das pri ticas pict6rica e escultdrica dependendo do molde do “indice”, propondo uma nova interpretagao para o que constitui a imagem estética. Se nio fosse para considerar La mariée mise a nw par ses célibaiaires, méme (A noiva despida pelos seus celibatarios, mesmo) até como uma grande e complexa {fotografia — com aquelas marcas em suspensio sobre uma gigantesca placa de vidro — a partir do modelo de um quadro particularmente complexo ¢ de grandes dimensées, aconteceria uma mudanea radical na maneira de perceber esta obra. Seu caréter indecifravel, seu estatuto de enigma deixa- riam de ser relacionados a um programa iconografico que se pudesse atri- buir.a um quadro ou nao. Antes de tudo, a obra seria considerada em rela- do ao que ha de fundamentalmente mudo no signo indicial, o siléncio do 15 que Barthes denomina 0 “nada a declarar” da fotografia € a que se refere na sua conclusio: E precisamente nesta interrupcio da interpretacao que a conviecao da foto se afirma: cons ato a exaustio que aguilo foi: para qualquer pessoa que tenha un “crenga fundamental”, uma “Urdoxa” que nenhum ato pode desfazer, a menos que me provem que esta imagem nao € uma fotografia. (p. 165) ‘oto is mios, esta é uma. Os ensaios agrupados em O Fotogrdfico refletem o fato que, na qualidade de uma pessoa que escreve sobre arte (como critica € te6rica), foi precisamente esta substituicao das regras de indexacao pelas regras de ‘iconicidade’ empre- endida por Duchamp que me levou a falar de fotografia, foi essa substituicao que me permitiu ver até que ponto o exemplo do autor do Grand Verve (Grande vidro) revolucionou © trabalho dos artistas americanos de minha geracao. Analisar a natureza desta ansformacao implicava em que eu escre- vesse nao sobre a fotografia, mas sobre as condicaes indiciais impostas pela fotografia ao universo anteriormente fechado da arte. Falar nao da fotografia, mas da natureza do indice, da funcio de trago em sua relacio com o signifi- cado, da condicio dos signos dicticos. A producio estética contemporanea nao é, obviamente, o tinico terreno de aplicacio deste objeto teérico, o fotogréfico, nem 0 tinico territ6rio cujo campo de andlise ele possa reorganizar. Pode-se efetuar a mesma operacao de recali- bragem sobre dados histricos de movimentos anteriores, como o surrealismo, por exemplo, ¢ abrir caminho para uma forma inteiramente inovadora de enfocar conceitos como o acaso objetivo ou © automatismo, que tinhamos relegado a categoria do “que nao reserva surpresa”. Estes conceitos adquirem, porém, um aspecto muito diferente quando abordados a partir de nocdes como a de trazo, ou ainda a de duplo produzido de forma mecanica. Varios textos deste livro utilizam a fotografia como instrumento de uma calibragem teérica no sentido que atribuo a palavra calibragem e, ao adotar este procedimento, a tratam de viés, de algum modo. Alguns ensaios, entre- tanto, como os que refletem sobre Stieglitz ou sobre Irving Penn, abordam a fotografia de frente, sem rodeio, diretamente no cerne. Por ter ingressado no mundo da fotografia partindo da problematica do signo como indice ¢ me defrontado com o que parecia ser, queiram ou nao, um novo tipo de midia, minha primeira resposta foi interrogar a prépria midia, como teria procedido com qualquer outro suporte de imagem, para definir os critérios criticos que Ihe sio peculiares, De que maneira o fato de tratarse de uma fotografia ¢ nao de um quadro afeta 0 sentido desta imagem? Que categorias de condicdes for- mais vigoram em um caso ¢ no no outro? Em suma, qual é 0 ‘espirito’ pré- prio a fotografia? 16 } Encerrando: se nao me dei por inteiramente satisfeita com este projeto cri- tico sobre 0 objeto fotografico, isso se deve a razdes que, finalmente, se atéim a0 fato de que a fotografia € um objeto ‘edriw € incide de maneira reflexiva tanto sobre projeto critico como sobre o projeto hist6rico que a escolhem como objeto. Pois se é verdade que a fotografia teoriza traz uma nova confi- guracdo aos componentes de determinado perfodo ou estilo especifico da his- toria da arte, esta teorizaco também vale para as unidades através das quais a histéria da arte reflete tradicionalmente sobre o seu objeto, transformando em relativos conceitos como autor e obra. Mas, seja qual for a funcao critica que possa exercer a fotografia sobre a histéria da arte, ela também a exerce sobre sua propria historia, pelo menos na medida em que esta histéria se deixe interpretar em termos congruentes com os da hisiGria da arte. Assim, este objeto tedrico, o fologréfico, nos ensina a esséncia problemitica de toda hist6- ria da fotografia, como ja tinha tornado essencialmente problematica a trans- posicao do discurso critico da arte no plano da fotografia. Pode-se escrever uma histéria da arte, mas nunca ser o mesmo tipo de hist6ria que se escreve- 1A sobre a fotografia. Pensar sobre Os Espacos discursivos da fotografia, As Condicoes folograficas do Surrealismo, A Fotografia eo simulacro, mas nao sobre'a fotografia; estes ensaios gostariam de pensar a fotografia da tinica maneira que ela aceita ser pensada: através do viés de uma teoria dos distanciamentos. Notas: ou! a memoria da pessoa que a usa como signo, de 1, Index em inglés, no send de Peitce. “[Um ‘ouro.” Charles 3. Peitce, Bots sw le signe. Textos indice é] um signo ou uma iepresentagio que 0s _compilados, waduzidos ¢ comentades por Gerard Temete a0 seu objeto, nao tanto por possuir Deledalle (Paris, Seuil, 1978), p. 158. (Nota de qualquer similaridade ou analogiacom ele. nem —_traducao da edicao francesa) or estar asociado as caracteristicas gerais que acontece desse objeto posuir, e sim porque esti No sentido policial da palavra, clues em inglés em conexio dinamica (inclusive espacial) como (Nota da traducio francesa). Pistas (Nota de objeto individual, de um lado, ¢ com ossentidos —_tradugao da edicao portuguesa) 17 ! A EXPRESSAO “HISTORIA DA FOTOGRAFIA” REFERE-SE A UM OBJETO DE PENSAMENTO EXISTENTE? | we Seguindo os passos de Nadar Nadar escreveu suas memérias Quand j'étais photographe (Quando eu era fo- tégrafo) nos seus diltimos anos de vida, ainda em plena atividade profissional. O titulo do livro surpreende pelo uso do imperfeito ao referir-se ao passado ¢, de certa forma, assinala que se fechou um capitulo de sua vida. Ele utiliza este tempo verbal nao tanto como uma referéncia ao seu destine pessoal ou a evolucdo de sua propria carreira ao longo dos anos, mas como uma referénci A sua condicio de testemunha. O homem cujo nome de batismo era Gaspard-Félix Tournachon ¢ escolheu a alcunha de Nadar tinha clara cons- ciéncia de ter presenciado um acontecimento extraordinério e, tal como 0 sobrevivente de um cataclismo natural, sentiuse no dever de dar contas do acontecido; mais ainda, quis que seu interlocutor pudesse sentir a intensi- dade emocional, fisica ¢ psicolégica dessa aventura. Nadar escreveu suas memérias com a consciéncia do historiador ¢ aquela necessidade irresistivel de relatar das testemunhas oculares: seu texto € moldado por este senti- mento de responsabilidade. Esta € a razdio pela qual o livro é tao incomum. Foi organizado 4 seme- Than¢a de contos pitorescos, como se tivessem sido recolhidos e confiados & contadora de histérias local pelos habitantes de uma aldeia. Dos treze capitu- los do livro, “O primitivo da fotografia” é 0 nico que significa uma tentativa real de produzir algo semelhante a um relato hist6rico, Embora seja 0 mais longo dos treze, foi colocado quase no final do livro, apés uma série insupor- tavel de reminiscéncias totalmente pessoais, tendo, na maioria das vezes © no melhor dos casos, uma relacao anedotica remota com o assunto indicado no. titulo do livro. Talvez a obra tenha permanecido relativamente ignorada devido a sucessao, de anedotas sem plano definido, explicacdes arbitrarias, detalhes aparente- mente sem cabimento ¢ constantes digressées sobre 0 que seria aparente- mente 0 tema central. Publicado em 1900, nunca mais foi reeditado desde entio € 0s exemplares que subsistiram até os dias de hoje, além de raros, estao em péssimo estado de conservagio'. Além deste texto sobre fotografia, Nadar publicou outras onze obras, tendo sido um novelista fecundo e ensaista proficuo. Suas relacées com o mundo das letras nao se limitaram a amizade que cultivava com 03 mais importantes escri- tores de sua época. Nadar conhecia intimamente a arte de escrever, a cons- 21 trucao paciente e aplicada do sentido. Quando empreende um relato histéri co maneira de um romancista, o faz porque os fatos que espera preservar das destruigdes do tempo sao antes de tudo de ordem psicologica: “Quando correu a noticia’, diz ele, “que dois inventores acabavam de fixar qualquer imagem que Ihes fosse trazida em placas prateadas, espalhowse um espanto universal que nao podemos aquilatar hoje em dia, por estarmos to acostu- mados 4 fotografia ha muitos anos ¢ termos nos tornado indiferentes a ela em fungao de sua vulgarizacao”. (p, 1) Nadar desejava divulgar a importancia formidivel da descoberta e nao o “quem”, o “qué” ¢ 0 “quando” da fotografia. Depois de inyentos que mudaram 0 cotidiano do século XIx (a maquina a vapor, a luz elé- trica, o telefone, 0 fondgrafo, o radio, a bacteriologia, a anestesiologia, a psi- cologia), ele insiste em condecorar a fotografia atribuindo-lhe a palma de ori- ginalidade € pergunta: “Todos estes noves prodigios nao deveriam contudo inclinar-se perante 0 mais surpreendente, o mais perturbador de todos eles: 0 prodigio que, afinal, parece conceder também ao homem o poder de criar, materializando 0 exypectro impalpavel que desvanece tio logo entrevisto, sem deixar sombra no cristal do espelho nem frémito na Agua da bacia?”. (p. 4) © que Nadar observava retrospectivamente em 1900 era a transformacio deste mistério em fato rotineiro. Assim, concluiase um capitulo definitiva- mente, embora a propria atividade permanecesse inalterada. Se esta foi a men- sagem histérica de Nadar no comeco do século, ela merece toda atengao, par licularmente no momento atual, pois cabe a nos avaliar agora o imenso impacto da fotografia, a maneira como impregnow nossas sensibilidades sem que o percebéssemos realmente, além da utilizagao de estratégias profunda- mente estruturadas pela fotografia® no conjunto das artes visuais. Sao intime- ros os sintomas de percepeio deste fato por nossa cultura, espelhados na repentina multiplicagao de exposicdes, colecionadores, trabalhos université- tios € o sentimento cada vez mais forte de frustracdo no terreno da critica quanto a verdadeira natureza da fotografia, um pouco como 0 paciente que, depois de muito relutar, accita finalmente 0 diagndstico do médico e exige conhecer a natureza exata de sua doenca. Na qualidade de pacientes do ambiente cultural, queremos atribuir uma ontologia abordéla. O argumento de Nadar, porém, ¢ que a fotografia vem a ser um fendmeno historico, entre outras coisas, e que nao se pode portanto diseri nar 0 que é e 6 que foi em determinados momentos do passado, ap: uma sucessio de respostas que nem sempre foram idénticas. No seu ensaio, Nader trata a si mesmo como um paciente sob anilise, detendo-se & cavou- cando detalhes com 0 propésito de reencontrar um passado que €coa no seu préprio significado. ar as A fotografia antes de im tando 1 8 Nadar, reproducao de um retrato daguerrestive de Balzac Os trés primeiros capitulos da obra ilustram este método. O primeiro assue me como ponto de partida um objeto que pertence a Nadar: o tinico daguer- re6tipo conhecido de Balzac, comprado do caricaturista Gavarni. O segundo capitulo, motivado pelos sistemas de retransmissao de longa distancia como 0 telégrafo ou a TSF. (transmissio sem fio), traz 0 relato de um epis6dio de abuso de confianga que vitimou Nadar nos anos 1870. O tereciro, ao que tude indica, consiste de uma série de observagoes fiiteis quanto ao sucesso real da tecnologia aeronautica, que Nadar sempre defendeu em detrimento da tee- nologia dos acréstatos. Estes relatos, desiguais em importancia € cada vez ma distanciados da historia da fotografia propriamente dita, constituem um inicio de livro bastante estranho, em funco de suas diferencas e da impressio que a suscitam estar abordando um assunto afastando-se dele. Ha entretanto um elo que os une, um tema subjacente que Nadar descja valorizar, © capitulo sobre Balzac gira em wrno da reagao supersticiosa do romancista diante da fotografia, reacdo que o escritor formulou com algu- ma pretensio sob forma de teoria. Nadar, explicando a Teoria dos Espectros, ie em cada um dos Ora, segundo Balzac, cada corpo na natureza se compdc de sérics de espectros em ¢ das infinitamente superpostas, laminadas em peliculas infinitesimai sentidos em que a Gtica percebe este corpo. Como 0 homem jamais pode criar — ou seja, constitu Go, do impalpivel, ou do nada fazer wma coisa —, cada operacdo daguerreana vinha entio surpreender, destacar € reter ao aplicarse uma das camadas do corpo visado. De onde se conclui que 0 dito corpo, i cada nova operacao, softe a perda evidente de um espectro, ott |, uma parte de sua essncia constitutiva. (p. 6) algo sélido a partir de uma apa Em todo 0 resto de seu relato, Nadar mantém um tom carinhosamente zombeteiro, Théophile Gauticr ¢ Gérard de Nerval se apressaram a cerrar fileiras com Balzac, adotando imediatamente a mesma atitude em relacio aos espectros, ¢ Nadar prefere destacar a pose aletada dos dois discipulos do que eventuais diwidas quanto a falta de sinceridade do proprio Balzac, Nadar, homem de ciéncias, € magnnimo quando presta ouvidos aos fantasmas pri- mitivistas evocados por seus amigos escritores. Mas o segundo capitulo do estudo, "Gabezon vingado”, repete a mesma imaginaria cm termos diferentes. Nadar comeca por uma carta que um pro- vinciano chamado Gabezon the enviou nos anos 1850, Nesta carta, esse senhor solicitava que 0 fordgrafo fizesse seu retrato. Nada haveria de insolito no pedi- do a nao ser a crenca do senhor Gaberon: confiando nas garantias de um “amigo” de Nadar, ele acreditava que poderia tirar 0 retato em Paris sem pre- cisar sair de Pau. Nadar decidin desconsiderar este tipo de brincadeira nao respondendo ao destinatirio. Esqueceu toda a historia até que, vinte anos depois, apresentou-se um jovem no seu atelié alegando ter descoberto uma técnica que transformaria 0 desejo de Gabezon em realidade, ou seja, a foto- Srafia A distancia. Foi entiio que um grande amigo de Nadar, convencido pelo Jargio teenologico utilizado pelo rapaz para defender o que alegava ser pos vel, deixouse entusiasmar cada vez mais pela idéia de fazer a experiencia Nadar financiou © projeto sabendo que seria vitima de um golpe ¢ que nunca mais veria o jovem “inventor”. Nao ha qualquer elo explicito entre esta histé- ria € a teoria dos espectros, a nao ser a idéia subjacente no plano psicolégico, a saber, que Nadar tinha certeza absoluta da impossibilidade da fotografia & distancia, o que representa uma variacao da teoria sob 0 angulo da ciéncia. Comparavel aum enxerto fisico, a fotografia esta necessariamente em relacdo 24 A consciéncia da presenga fisica simultanea consubstancial da fotografia assume uma dimensao sentimental na historia da “Princesa cega”, que Nadar relata na seqiiéncia: nos anos 1870, os filhos de uma senhora cega a levaram ao atelié de Nadar para posar para um retrato. Como a dama pertencia a fami. lia real de Hanover, Nadar aproveitou a oportunidade para se informar sobre um jovem aristocrata que havia conhecido e © havia ajudado, dois anos antes, quando ele sofreu um extravagant acidente de bakio que o reteve nesta cida- de. Sentiram simpatia um pelo outro por compartilhar © mesmo menosprezo pelos aeréstatos ¢ a mesma conviccio de que era possivel fazer voar engenhos mais pesados que 9 ar. Como Ihe chegara aos ouvidos que 0 jovem aristocrata estaya no exilio por ter matado alguém em duelo, Nadar perguntou a um dos filhos da princesa se a informagio era correta. O aspecto dramatico da per- gunta, que por sorte a princesa nio ouviu, estava. em que a vitima do referido duelo era o primogénito da princesa. A funesta noticia Ihe tinha sido oculta- da até 0 momento e a pergunt: ja por ela, terthe-ia revelado a morte do filho. Nadar rememora seu préprio constrangimento ¢ termina o relato com uma série de reflexdes sobre os desdobramentos psicol6gicos ¢, portan- to, sobre © poder potencial das circunstincias que rodeiam o ato de fotogra- far, que chegam a afetar a vida de uma pessoa pela “eventualidade de uma s6 palayra pronunciada por acaso em visita fortuita no atelié de um fotdgrafo num pais estrangeiro”. (p. 50) A idéia central desta conclusio € que as mudancas acarretadas pela indus- trializaco em todos os niveis da sociedade atropelam as distincias ¢ provocam a implosio na repartic’o das classes sociais, fazendo com que um aerdstato francés se veja atendido por um membro da familia real da Alemanha e uma princesa se entregue a esta nova atividade mundana, posar para um retrato fotografico. Quando descreve em forma de historia a intimidade decorrente da situacao fotografica, Nadar se interessa novamente pela proximidade fisica, condicio absoluta da fotografia, ¢ pelo fato de que ela depende de um inter cambio entre dois corpos. em um sé lugar, sejam quais forem os demais siste- mas de transmissao de informacao. ow Nestes trés capitulos, Nadar circula portanto em torno do que the parece sero cerne da realidade da fotografia, qual seja operar através da impressio, da marca € do traco. Como semidlogos, diriamos que Nadar define o Signo. “fotografico como indice, como marca significante cuja relacao com aquilo que representa é a de ter sido fisicamente produzida pelo seu referente. Descreve- riamos em seguida a dimensdo limitada de significado que pode possuir este tipo de signo'. Nadar, porém, nao era semidlogo ¢, embora convencido da 25

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