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ALBA cary Vy AA ha bel Luis PAIXAO © p MUSUMECI © php taurus [aa ites Meme eer (oly eros MM 13a) 14-5 7.10) OU REDUCAO DE RISCOS LEITURAS AFINS Conformlsmo ¢ Resisténcla Aspectos da cultura popular ‘70 Brasil Macilena Chai Drogas ‘Substdios para discussao Masur/Caslini ‘A Maquina ea Revolta ‘Alba Zaluar Colegio Primeiros Passos O que € Alcoolismo Jandira Masur O que € Cidadania Maria de Lourdes Manzini-Covre © que € Prevencio de Drogas Roberto Wisthott (0 que € Toxicomania Jandira Masuc DROGAS E CIDADANIA REPRESSAO OU REDUCAO DE RISCOS : ANTONIO LUIZ PAIXAO BARBARA MUSUMECI DOMINGOS BERNARDO SILVA SA 4 EDWARD MACRAE GILBERTO VELHO editora brasiliense Copyright © dos autores, 1994 Nenhuma parte desta obra pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrénicos, fotocopiada reproduzida por meios mecinicos ou outros quaisqiler sem autorizagao prévia da editora. ISBN: 85-11-08077-5 Primeira edigdo, 1994 Preparagao de originais: CAssio de A. Leite Revisto: Carmem T. §. Costa e Laura Bacellar (Capa: Maria Eliana Paiva An Marquts de Séo Vicente, 1771 css 8 «Sao Pato 'Sb. Fone (011) 861.3366 - Fax 861-3024 IMPRESSO NO BRASIL SUMARIO. 1. Introdugio: Drogas e cidadania ‘Alba Zaluar 2. A dimensio cultural e polftica dos mundos das drogas Gilberto Velho 3. A importincia dos fatores socioculturais na determinagio da politica oficial sobre oso ritual da ayahuasca Edward MacRae 4. A guerra is drogas é uma guerra etnocida ‘Anthony Henman 5. O consumo de dlcool no Pais Bérbara Musumeci 6. A criminalizago das drogas e o reencantamento do mal ‘Alba Zaluar 7. Problemas sociais, politicas publicas Antonio Luiz Paixao 8. Projeto para uma nova politica de drogas no Pais Domingos Bernardo Silva Sd 23 34 aT 83 7 129 7 1 INTRODUGAO, DROGAS E CIDADANIA Alba Zaluar Este livro tem por objetivo preencher uma lacuna nos debates que invade de idéias preconcebidas todos os nos- sos meios de comunicagio: a questo das drogas ilicitas ¢ as conseqiiéncias da criminalizacio, assim como a alterna- tiva da descriminalizacio. O Brasil encontra-se décadas atrasado nesta polémica. O conhecimento divulgado pela midia ainda é extremamente estigmatizador € precon- ceituoso em relagZo aos usuarios de drogas, o que sé vem a piorar a situagZo deles, especialmente dos que se tornam obcecados e acabam, por causa do cenario econdmico, po- licial, social e medico extremamente hostil, envolvidos pelas malhas do crime organizado. Além disso, a perspec- tiva que se adquire da questio via o contexto sociocultural do usuario da droga tem perdido espaco para a visio farmacolégica e aepidemiol6gica, assim como a visio psi- colégica, mesmo entre aqueles que consideram a atual po- Iitica nacional das drogas repressiva e atrasada. ‘A nossa situagio em relagio a0 uso e abuso da droga chega perto da calamidade. Um médico santista - Fabio Mesquita ~ fez pesquisa que revelava nao s6 a associago cada vez maior entre o uso de drogas injetaveis e o alastra- mento do HIV, mas também como a geografia da doenca 7 DROGAS E CIDADANIA coincide com a geografia da rota do trdfico no Brasil decorréncia das medidas repressivas nos paises produto. +85 de coca, Nem por iss0 as medidas preventivas da coflseguiram mt in RDS coneeguiram maar o entendimento da droga © 0 As medidas de distribuigio de seringas ¢ agulhas AIDS parecem ter se consolidado em poucas prefeitures como a de Santos, mas ainda estio longe de ser um pro” om nacional. Assim mesmo, visam sobretudo contro- lar o alastramento da AIDS, apenas um dos riscos que correm os usuarios de drogas. Foi com esse espiito que ¢ ex-prefeita de Santos, Telma de Souza, instafou em 1989 tum programa de trocas de seringas velhas por novas entre gs usuitios de drogas para conter 0 avango da AIDS, aléms distribuir preservativos e realizar gratuitamente tester do HIV a maneira de muitas cidades européias. Entretan, to, a medida foi alvo de presses do Ministério Public que chegou a instaurar inquérito policial sob 2 alegagio gue o programa incentivava o uso de droge. de lei sobre as drogas no Brasil, considerado tind, a ae ™ einer: medidas desriminalizadoras que sugere, e foi apresenta, do no CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes) roposta era de que a apreensio da droga e a punigio aplicada ao reincidente (quando caracterizado como usd, tio) deixassem de ser julgadas pelo Cédigo Penal, passan. do a ser problema de ordem sanitéria ou administrative, Isto porque “o consumo é préprio do direito privado”™ (ou civil *o direito penal nio pode ter por objeto con lutas estritamente privadas". © documento defende aac th, como seu principal alvo, uma estratégia preventive extensa 2 todas as substancias psicoativas licitas e ilfeitas, O alvo é.a “pessoa humana” e nio a substncia psicoativa om si. Apenas de seu carter liberal, se comparade 3 ler $44 0 anteprojeto INTRODUGAO ’ em vigor desde 1976, este anteprojeto nfo advoga a legali- zagio de nenhum tipo de droga ilicita, apenas o tratarnen- to diferente do usudrio. Este projeto parece ter sido abandonado, pois os conselheiros que o defendiam foram demitidos e acusados de conivéncia com o trifico. Os seus autores tém também sido acusados pela imprensa de pertencerem a quadrilhas de traficantes e de serem “vicia- dos em drogas”. Entretanto, apesar desta politica repressiva de combate as drogas, apesar dos fortes preconceitos apontados con- tra os usudrios e aqueles que defendem uma politica me- nos repressiva, 0 coasumo delas continua se alastrando rapidamente, em especial entre os mais jovens e entre as populacées mais pobres, Nestes setores mais vulnerdveis 4 agio policial, os efeitos da propria repressio podem ser desastrosos por estimularem a criminalidade violenta. Isto porque, no combate ao uso de drogas, a policia tem um enorme poder em determinar quem seri ou nio, processado e preso como traficante, crime considerado hediondo. Jovens de classe média e alta nao chegam a ser estigmatizados como problemiticos, anti-sociais ov violentos, apresentando-se muito mais como jovens em busca de diversio ou, quando exageram, jovens que neces- sitam atendimento por médicos e clinicas particulares. Nestas classes sociais costumam funcionar também os grupos de narcdticos anénimos, considerados interna- cionalmente os mais efetivos na diminuigio dos abusos ¢ riscos que eavolvem as drogas ilicitas. Jovens pobres, porém, nio gozam da mesma compreensio: so presos como traficantes por carregarem consigo dois ou trés gra- mas de maconha ou cocaina, o que ajuda a criar a super- populasion carceriria, além de tornar ilegitimo e injusto o incionamento do sistema juridico no Pais. O texto de Alba Zaluar trata de pesquisa receate feita num bairro popular do Rio mediante depoimentos reco- 10 DROGASE CIDADANIA Ihidos entre os que ji tinham convivido de uma forma ou de outra com as bocas de fumo. Descobre que poli- siais costumam prender meros fregueses ou pequenos repassadores de drogas (avides) para mostrar eficiéncia ne eal, Os dados estates recolhidos nas duas olicias Confirmaram estas afirmagdes. Entre 1983 e © 18° Batalhio da Policia Militar apreendeu na tee que funcionam cinco bocas de fumo, movimentando cer cade trinta quilos de maconha e quarenta quilos de coca. fa semanais, trés vezes menos por tréfico do que por posse € uso de droga. Além disso, tanto na Secretaria Estadual da Policia Civil quanto no 18% Batalh3o da Poli. cia Militar, ndo se faz distingio clara e efetiva entre 6 usurio de droga ¢ 0 traficante, embora haja artigos die rentes para eles no Cédigo Penal. A quantidade apreen- la nfo é 0 critério diferenciador, pois encontraram-se 2805 classificados como “posse e uso” com 1860 quilos de maconha apreendida € casos classificados como “tréfico” com apenas dois gramas. Esta indefinigio, que estd na legislagio mas principalmente na prética policial, s6 vai magnificar o poder policial, o que, por sua vez, inflaciona a conmupeao. As conseqiiéncias desse poder sobre as tela. see entre os usuarios os policiais so analisadas neste exto. Um dos critérios de avaliacao da existéncia de ci nia nos dias de hoje & a maneira como o Estado Penc a distribuigdo de seus beneficios e servigos a fim de garan. tir o atendimento de seus cidadios, diminuindo a parcela dos marginalizados. O Estado brasileiro ainda nao encon- Ligue caminho para eftivar os direitos sociis de seus cidadios. As politicas sociais sempre estiveram subordi- sadas 20 processo de acumulacio de capital, o que explica Por que a oitava economia mundial tem a ectogésima per siglo em desenvolvimento social, que se mede pelos direi. tos sociais fundamentais: trabalho, educagio e satide. Bo Rite sh iin SRR athcer the INTRODUGAO u E neste contexto sécio-econdmico mais amplo que 0 consumo de drogas tem crescido grandemente entre as parcelas mais pobres da populagio no Brasil, as mais afetadas pelas falas da escola e do mercado de traba- Iho em lhes dar esperancas e projetos para 0 futuro, Nao falta, pois, no Brasil, o que Becker chamou de “motiva- gio de um ato desviante”, derivada de uma situago na qual o agente social no aceita a ordem social ou o atual estado do jogo social e politico e se revolta contra ele. Nio que a pobreza explique o ato desviante, mas ela pode, em conjugacio com as falhas do Estado na cria- 40 de possibilidades de ascensio social, assim como a nova cultura hedonista que faz parte da cultura jovem, facilitar a escolha ou a adesio 3s subculturas de uso de drogas ilicitas. Essas subculturas, no entanto, nfo sko derivadas de alguma relagio intrinseca com a subs- vincia ingerida. Elas também tém sua historia e se trans- formaram nas iltimas décadas, como aponta o texto do professor Gilberto Velho. O estudo desses valores associ- ados 4s culturas jovens é importante na medida em que sabemos ser 0 ato desviante ou a sua repeticio uma decor- réncia do seu aprendizado no grupo social do qual 0 jovem faz parte. Esse pertencimento vem a gerar uma série de atitudes, valores ¢ identidades que néo necessa- riamente sio anti-sociais, desviantes ou perigosos, nem violentos. $6 num contexto de extrema marginaliza- gio dos jovens, ou seja, pela prépria atitude dos demais em relagio a-eles, podem tais atitudes se cristalizar e, devido aos lagos reais de amizade, dominio ou divida criados, dificultar o rompimento com o grupo, portanto com 0 proprio desvio. Por tudo isso, 0 professor Gilber- to Velho defende a descriminalizagio do uso ea repressio 20 trifico. Faz parte do contexto cultural e institucional da forma- 40 das subculturas jovens a propria atitude dos outros 2 DROGASE CIDADANIA agentes governamentais ¢ dos outros grupos sociais em relacdo aos ususrios de droges. As imagens negatives oe reconceitos, o medo, que, no Brasil, chegam is raias da demonizaao do viciado, contribuem decisivamente para a cristalizasio da subcultura marginal e dos tons agressi- vos e anti-sociais que algumas vezes adquirem, A violén. cia ¢ 0 arbitrio policiais, derivados do poder de iniciar rocessos criminais contra o usuirio,‘criam em toro dele um efrculo infernal de inseguranga, perigo e incenti. vo ao crime. E isto que os textos de Alba Zaluar e Ant. nio Luiz Paixio procuram mostrar. Nio seria exagero afirmar que, entre os pobres, existe maior pressio para o envolvimento com os grupos de criminosos comuns, por conta da facilidade de entrar em divida com o traficante, da facilidade em obter armas e estimulo para a acto crimi, nosa, da facilidade de esbarrar na repressdo policial que prende os “maconheiros” pobres para acrescentar alitne, Fos na sua folha de servicos, bem como da dificuldade em encontrar atendimento médico e psicolgico quando vém a ter problemas reais no uso e controle das drogas. ‘Apesar disso, ndo se pode dizer que os preconceitos em relagio aos chamados “viciados” sejam maiores entre os pobres do que nos demais setores da populasao. Recolhi depoimentos draméticos de jovens bandidos que conta. vam como haviam se envolvido com grupos de crimino. 50 por um processo miltiplo de exclusdo na familia, na escola, na vizinhanca, de perseguigao pela policia e de di- vida com a quadrilha da “boca de fumo”. Ao mesmo tem. po, encontrei também afirmagbes sensatas, algumas mais, utras menos represivasejustas, que contestavam aatual situagio de perseguicio indiscriminada aos “maco- aheiros”favelados e pobres: eee “(..) As drogas que fossem combatidas a pantir no do consu- midor e sim da chpula mais alta que sio os chefBes (.)*" iNTRODUGAO 13 “Maconheiros, no matélos, ees nio matam, nfo roubarn, 0 que eles fazem de errado & pegar esse vicio horrivel, na hora que fumam ficam abusados nio sabem 0 que estio fazendo. Se é para matar maconheiro, mas antes matar os bandidos, assassinos, que tiram a vida de outeas pessoas sem mais sem ‘menos. Eu no acho certo ninguém tirar a vida do outro (.)” Principalmente, nio se pode concluir que todos os usu- Arios de drogas so iguais ou até que professem o mesmo credo cultural. Nada mais enganoso. Pesquisas feitas em todo o mundo sugerem diferencas em graus de envolvimento ou de relagéo com a droga e com 0 grupo - se a tomam nas horas de lazer ou divers%o ocasionais, se ela é central na definigio de um estilo de vida alternativo compartilhado com outras pessoas, ou se ela é 0 eixo na definicio da identidade individual do usuério compulsi- ‘vo. Os textos de Anthony Henman e de Edward MacRae falam de usos rituais e controlados socialmente da maco- nha e de outras substdncias psicoativas que nada tém a ver ‘com as imagens geralmente associadas a este uso nos seto- res urbanos e modernos da populacio brasileira, O texto de Edward MacRae trata também da luta tra- vada dentro do CONFEN para tornar legal o uso da ayahnasca, substancia de uso milenar entre populagées in- digenas e recente entre populasdes urbanas brasileiras. O uso da ayahuasca & ritual e, portanto, socialmente contro- lado. $6 permitido bebé-la em situagSes especiais, com a participagio da comunidade de fiéis. Mulheres gravidas criangas esto excluidas dessa atividade, que retine os membros da comunidade religiosa em torno de valores de solidariedade e do amor a Cristo, identificado com o san- to daime. Por esse trabalho, e pelos de Anthony Henman ¢ Barbara Musumeci, é possivel entender como o préprio conceito de “droga” historicamente datado e vinculado avalores sociais nem sempre consensuais. “ DROGAS E CIDADANIA texto de Birbara Musumeci revela com clarezaain- consisténcia na definisfo oficial atual do que é uma droga Prejudicial ao ser humano, jé que trata do dleool. Apersr de ser a maior causa da violéncia doméstica, de acidentes com mortes no transito ¢ de gastos nos hospitais piblicos com o tratamento de seus usuérios contumazes, 6 cons, mo do Alcool é liberado. Ela nos conta a histéria penal desta substancia que jé foi contraven¢io, crime por uso volitivo, mas que hoje &dirimente penal quando a pessoa ahs fometeu atos criminosos extiver sob seus efeitos. Tro indo em mitidos, uma alcootizada acidente de tinsto cesttando em morte do sien ck sua pena diminuida justamente por estar alcoolizada. _ Falar em direitos humanos hoje deixou de ser uma ati- vidade de filésofos ¢ a sua definigao nfo é mais considera. da uma questio filosdfica que discute o que seria afinal 6 humano. O problema é politico ea sua discussfo é publi, ca. Assim, estamos diante de uma ago contraditéria do Bado. Ao Esado compete assegurar 0s direitos socais, Politicos, civis ¢ os de quarta geraco (os ecolégicos) dos cidaddos. Mas 0 Estado, no caso do. ne das aecleae tem apresentado sua outra feicdo: a de repressor das ativi, dades condenadas criminalmente. Como esta tema interfe. tido naquela é um tema de pesquisa ainda a ser desenvalido £n2 Vda de muitos joven, a rani de tan as histérias dramdticas i Violéncia, abandono, porta iat ad ana No caso brasileiro, além das anomalias assinaladas dlversos autores nas politicas socinis, tais como a frag. mentagio institucional e a centralizacio decisbria que, en tte outros problemas, acarretou a burocratizasio’ dos servigos piblicos, temos o total desrespeito 3s garantins constitucionais que limitam 2 ago da policia. Revise bhumilhantes, provas plantadas, processos pelo porte de ‘ga com a caracterizacio de crime de trifico (que é con. INTRODUGAO 15 siderado hediondc), dependendo do arbitrio do policial, resultam em prises injustas ou em extorsées ilegais. ‘Nos hospitais piblicos em que existem programas de ~ tratamento de viciados todos os problemas apontados coalescem de forma tragica. Normas internas rigidas, aten- dimento precicio por falta de equipamentos e de pessoal tecnicamente qualificado, atrasos, burocratas sem com- promissos com os objetivos humanos e politicos desses programas que prejudicam a agao dos poucos médicos realmente mobilizados neles. Os efeitos negativos dos internatos, que criam outras formas de exclusio dos vicia- dos, ja foram bastante apontados na literatura, Vao desde os danos A identidade pessoal e 3 dignidade do usudrio até ao artificialismo embutido na ndo-reincidéncia do uso da droga, porque baseada no isolamento do usudrio de seu grupo de referencia, ou seja, do grupo de usuarios que for mam o contexto cultural ¢ social do uso. 'A questio mais importante discutida hoje nos paises democraticos diz respeito justamente aos direitos huma- nos dos usuarios de drogas e a aco contraditéria do Esta- do em relagao a eles. A criminaliza¢io do uso vem sendo apontada nio sé como uma agressfo aos direitos privados ¢ individuais do cidadao, mas também como um empeci- tho para que ele, por temor de ser processado e preso, procure os hospitais piblicos quando sofre as conse- qiiéncias do abuso de drogas ilicitas, Relatério entregue a0 orgios da Comunidade Européia sugere, por isso, a diminuigao das medidas repressivas ¢ o estimulo 4 pro- cura, pelos usudrios, dos servigos de satide publica (Silvis etal., 1992). ‘A tendéncia hoje nesses paises ¢, pois, adotar medidas no repressivas de inspiracio liberal, cujo esp{rito poderia ser sintetizado na idéia de que as politicas proibitivas com relagio as drogas nas ultimas trés décadas foi um comple. to fracasso (Jiirgens et al., 1992; Drucker, 1992). As novas 6 DROGAS F.CIDADANIA medidas de redugdo de risco tornaramsse ainda maié ne- cessérias visto que 0 uso de drogas injetiveis, cujo aumen- to é continuo apesar de toda a criminalizacio resultante da politica repressiva, jé se caracteriza como uma epide- mia capaz de desencadear outras como 2 da hepatite e a da = AIDS. A rejeigio aos paises que adotam a pena de monte para traficantes, como o Ira, a China e a Tailindia, embo- ra quantidade de apreensio da droga para caracterizar o traficante seja bem maior do que nos palses europeus ¢ ainda mais no Brasil, se dé também pelo entendimento de que tais medidas colidem com a nogio de direitos huma. nos (Hendriks, 1992; Silvis, 1992). A reformulagéo da questéo provocou uma verdadeira revolucio no atendi- mento ¢ protesio 20 usuério de deogas illctas, vistos ago. ra como um objetivo da sociedade democritica e da sade Piiblica ao mesmo tempo. ‘ Nfio que a polémica tenha terminado. A distribuiggo de drogas por organismos estatais, politica hoje seguida i pela Inglaterra, Holanda, Suica ¢ Alemanha, continue rovocando acirrados debates em torno dos efeitos das . drogas distribufdas sobre a sade do usuério, sobre os di- reitos do usudrio que, a6 se transformarem nam grupo de ressifo, exigem cada vez mais drogas de graca, e da pe manéncia de um mercado negro, ainda que menos vi lento ¢ ameagador, ao lado dos centros de distribuigio = Rratuita, Esto em questo até onde vio os direitos indivi. od Suais dos usudrios de drogas e onde comesam os direitos sociais de todos, inclusive o direito A seguranca, A Inglaterra foi o primeiro pafs europeu a implantar uma politica de prescrigfo médica de drogas, além de se- x ringas e agulhas para as doses endovenosas, por clinicas = aurorizadas, com a finalidade de controlar os riscos de infecgdo ¢ a delingiiéncia associada ao tréfico. Mas hoje a existe uma crescente preocupacio nesse pals com as medi- das radicais da liberacio de droge: fevadasisGltimas con. # a” = eo INTRODUGAO v seqiiéncias em alguns paises. A Sufga, por exemplo, desde 1988, vem distribuindo utensilios aos seus viciados para doses endovenosas, e permitiu que uma de suas pragas se tornasse espaco aberto ¢ inveiramente livre 20 uso de quaisquer drogas, como meio de controlar (e saber) 0 ni- mero de viciados entre os seus cidadaos, eliminar 0 tréfi- co, ¢, sobretudo, quebrar a cadeia de contaminagio do virus da AIDS, capaz de atingir os usudrios ocasionais de drogas injetiveis. Em 1992 esse pais, encurralado pelas es- tatisticas que o colocavam como o primeiro no mundo em niimero de viciados per capita, aliado aos alarmantes niimeros de dbitos por overdose, tomou outra medida: coloca sob controle médico, e em certos locais apenas, a distribuicio de cocaina, morfina, metadona injetdvel, anfetaminas e heroina, numa tentativa de livrar-se dos tra- ficantes e dos crimes violentos, assim como estabilizar o admero de drogados até 1993. Deixa, portanto, a politica da liberacio para entrar na descriminalizagio controlada, no caso, pela medicalizacio. Na Holanda, a politica de distribuigio de drogas ilici- tas limita-se 4 metadona (um opiéceo substituto da herof- na), obtida sob controle de agentes que trabalham em programas das prefeituras de diversas cidades, atingin- do sobretudo as prostitutas e os jovens com o intuito de reduzir os riscos do uso: as infecgées, os crimes associados a0 trifico e & dependéncia do traficante. Esses programas nfo funcionam em hospitais, altamente equipados, buro- cratizados ¢ grandes, mas em casas modestas com equi- Ppamento barato, e contam com pessoal altamente envol- vido nos objetivos humanitarios e sanitarios do projeto. A metadona é uma substincia sintética que, apesar de cri- ar também dependéncia, s6 é produzida pelo servigo mé- dico. Nao é, portanto, mercadoria disponivel para trafi- cantes. Outras drogas, como a cocaina e seus derivados, © épio e a morfina, continuam proibidas. Mas podese 1" DROGASE CIDADANIA obter pelo menos uma das drogas, consideradas ilitas em outros paises, no mercado legal das cidades holande. sas: a maconha é vendida nos bares das cidades. Nesses paises em que os programas de redugao de risco se montam em sistemas de distribuigio gratuita de drogas ilfcitas e de seringas, hd, de fato, uma ideologia da liberda- de individual que limita a intervengfo estatal. Se a Pessoa deseja ser ajudada, ou para livrar-se do vicio ou para dimi- nuir 0s riscos de infeceio, entio procura por vontade pré- Pria o programa correspondente, O respeito A subjetivi- dade do usuario § garantido, porém nada se faz em termos Sociais mais amplos para mudar as idéias vigentes acerca da droga, do vicio e do viciado. Ms ndo se eae colo liberagdo de todas as drogas ilicitas, visto inexistir acordo Quanto aos seus efeitos nocivos e quanto is conseqiiéncias Para o trifico, controlado hoje pela mifia. ~ A Franca, a0 contririo, é um dos paises que ainda pro- movem politica repressiva ¢ que se recusam 2 seguir os paises vizinhos na distribuicao controlada e gratuita de drogas. Representantes do governo francés ndo mais, tem a maxima do ministro do Interior, Paul Quilés - ‘Drogue douces et drogues dures, le méme régime if s'applique” -, que tanta polémica provocou quando fe dita publicamente, em fungio das presses que os paises de politica mais liberal vém exercendo sobre os de polit a repressiva, Uma das conseqiiéncias na Europa é que os usudrios de drogas dos paises com politica repressiva, tra. tados como criminosos ou incapazes de procurar (¢ rece. ber) tratamento médico, acabam procurando refigio nos paises mais liberais. Isto, & claro, tem criado muitos pro- blemas para a execusio dos programas de teatamento, reeducagio ¢ prevengio nos paises que desistiram dj-——~ criminalizacio. Entretanto, é na Franca que existe um proj , : jeto ~ no qual trabalha uma brasileira, Lia Cavalcanti ©, oais clare INTRODUSKO. a mente educador, no sentido de mudar as i dos usuarios de drogas, para fazé-los deixar o vicio, e de seus parentes e vizinhos. Sua abordagem é “comunitéria” e diz-se inspirada pelas experiéncias latino-americanas. Por isso entendem o trabalho de esclarecimento e debate que retine os vizinhos, sejam usufrios ou nfo, com tuito de.diminuir os preconceitos e o medo em relagdo aos chamados “viciados”, que sofrem as conseqiiéncias sociais penosas de serem rotulados de desviantes. $6 fun- ciona num bairro pobre, habitado principalmente por imigrantes drabes. No tem escala nacional, nem se desti- na aos usuarios de outras classes sociais. No entanto, a sua Preocupagio com a diminuigao ou neutralizagio do pre- conceito chama a atencio para o fato de que nenhuma politica de distribuigio gratuita de drogas dar4 resultados se nfo for acompanhada de um trabalho que mude as re- lagSes entre os viciados e os que com eles interagem. Na Franga, nfo seria exagero dizer, a politica de prevengio é asunto de todos e nfo apenas do usuério individual. ‘Os Estados Unidos também vém adotando uma politi- ca repressiva das mais violentas ¢ intiteis nos dltimos tem- 10s. Apesar de liderar a war om drugs, com gastos Rabulosos nas ‘campanhas internacionais (foram gastos 45 bilhSes de délares nos iltimos quatro anos, pagos pelos contribuintes norte-americanos), para desmantelar as grandes redes e rotas do narcotrifico, assim como a des- truigdo de plantagSes nos paises latino-americanos produ- tores das drogas ilicitas, e apesar de ter também o maior miimero de traficantes e usuirios de drogas encarcerados, 08 Estados Unidos continuam apontados pelas estatisticas pelos especialistas como o pais com maior ntimero de drogas diversificadas em circulagZo. A cocaina, 0 crack, 0 “base”, as anfetaminas, a herofna, o éxtase sio as mais co- nhecidas, algumas consideradas muito nocivas ao organis- mo, por criarem dependéncia (heroina), e outras nocivas » DROGASE CIDAPANIA & mente, por induzirem a crises parangicas e psicéticas (cocaina e crack). Nem as taxas de criminalidade violenta baixaram em decorréncia dos gastos com a repressio. Ao contrério, essas taxas continua a aumestar nos princi pais centros urbanos do pais. Em Baltimore, 12* cidade americana com 740 mil habitantes, populaglo predomi. nantemente negra e com renda média de 19 mil délares anutis, estima-se que 60% de todos os crimes envolvem drogas. Entre 1986 e 1991, a policia dessa cidade prendew 82 mil pessoas por crimes e contravencées relativas a dro- gas. Em 1991, 46% dos homicidios tinham aver com dro. ga (Lavine, 1993). Hoje a sociedade norte-americana apresenta uma di so provocada pelo acirrado debate em torno da legaliza- $40 do uso de drogas. Representantes do préprio governo expressam preocupagao com a superpopulagao carceréri resultante da repressio aos viciados, agentes penitencidri- osdenunciam que hoje encarceram e vigiam simples usu tios de drogas ¢ nao perigosos criminosos. O texto de Anténio Lutz Paixdo recupera os termos principais do debate em curso. Na discusséo européia, também chega-se i conclusio de que as campanhas de prevenci0, com sua énfase sobre os horrores da droga, sio ineficazes por induzirem a desmo- ralizasio dos servigos puiblicos pelos usuarios que conhe- cein os efeitos de diversas drogas e aqueles que sabem como controlélas socialmente. Além disso, ndo resolvem os pro- blemas da discriminaco contra os usuarios que, sentindo- se mais estigmatizados, tenderiam a fugir dos orgios encarregados da prevengio, A experiéncia destes, contu. do, tem sido importante meio de ajuda na prevengao, prin. cipalmente mediante conversas informais e palestras com 5 grupos mais afetados pelo uso abusivo das drogas. Assim, a discussio livre e aberta em varios féruns entre usudrios € nZo-usuirios, entre pesquisadores das cifncias a INTRODUGAO. a exatas e das humanas, sobre os efeitos farmacolégicos de diversos tipos de droga, assim como sobre a personalida- de ea saide mental do usuétio e o contexto social do uso da droga, parece ser a saida para os impasses ¢ desafios de uma nova conceituacio das substincias classificadas hoje como “drogas”. Esta abordagem tem 0 mérito de aprov. tar aexperifncia dos préprios usudrios, o seu saber adqui- rido sobre o1usoe os problemas do abuso. E ndo sed por falta de pessoal que se deixard de tentar esta saida BIBLIOGRAFIA DRUCKER, Emest. “Drug prohibition in America: a human sights perspective", in Drogues et droits de 'bomme. Ligue Suisse Des Droits de Homme, Genebra, 1992. EGO (Espoir Gotte d'Or). Developpement social du quartier de la ‘Goilte d'Or et prevention communantaire de Infection par le VIF. Paris, 1993, mimeo. JORGENS, Ralfe; GILMORE, N. e SOMMERVILLE, M, “Drugs and drug use”, in Drug use and human rights in Europe: Report for the European Commission, Urrecht, Faculty of Law, Utrecht ‘University, 1992. : LAVINE, Howard. “Remarks for mayor Kurt Schmoke’, in 4th international conference on the reduction of drug related barm. Roterdi, 1993, mimeo. : SILVIS, Jos. “The history of drug control with regard to human. rights", in Drug use and buman rights in Europe: Report for the European Commission. Utrecht, Faculty of Law, Utrecht University, 1992. 2 A DIMENSAO CULTURAL E POL{TICA DOS MUNDOS DAS DROGAS. Gilberto Velho I Faz parte do senso comum, especialmente na impren- sa, a nogio de um “mundo das drogas”. Gostaria, neste texto, de examinar algumas idéias associadas a essa pre~ missa, Nas ciéncias © conceito/nogio de mundo vin- cula-se principalmente 4s obras de George Simmel e Alfred Schutz, que sugeriram a possibilidade de classificar e identificar dominios da realidade que se distinguiriam mediante fronteiras sociolégicas e descontinuidades cul- turais.! Particularmente, no nosso caso da sociedade moderna-contemporinea 0 processo de complexificagio e diferenciagio tende a multiplicar espagos e dominios sociais ¢ simbélicos que denomiinamos genericamente de mundos. Assim, a existéncia de um “mundo das drogas” vincular-se-ia & observacio de redes sociais que organizam sua produsio, distribui¢ao e consumo, bem como a con- juntos de crencas, valores, estilos de vida e visGes de mun- do que expressariam modos particulares de construgio social da realidade. Embora seja possivel, em termos mui- to genéricos, estabelecer tal recorte, parece-me essen: caracterizar a heterogeneidade de um hipotético “mundo das drogas” dentro da amplitude da sociedade contempo- m DROGAS E CIDADANIA rinea, Isto aparece, por exemplo, quando pensamos em uma aldeia do altiplano boliviano, em traficantes interna. cionais de diversas procedéncias e em centros de consumo em cidades como Nova York, Paris ou Rio de Janei Dentro dessas grandes metrépoles, por sua vez, ident camsse variados grupos, categorias sociais e individuos que consomem drogas de modo diferenciado, Jé chamei a aten¢io em outras oportunidades: para a necessidade de relativizar e contextualizar 0 estudo do que se classifica de droga. “A prépria nogéo de téxico e o conceito de drogas so altamente problemiticos ¢, dependendo do critério ¢ da posigéo do investigador, podem abarcar des- de a heroina até 0 papo-de-anjo. (..) A contribuisio da antropologia para a compreensio desta problemética con- siste em mostrar como existem n maneiras de utilizar as substincias, em fungio de variéveis cultutais ¢ sociolégi- cas Estas nio sé se somtam, como complexificam as dis- ; ; i tngbes que postam sr regiradas a0 nivel da andlis Nio h4 como, por conseguinte, pressupor ee ma chamar de “mundo das drogas”, Tratase de nogio muito ampla, a partir da qual precisamos estabelecer dis- tingSes e particularidades. Essas diferencas, até certo pon- to, acompanham as fronteiras da estratiicagio cio. econdmica mais geral. Mas associam-se também a distin. tas orientacées e tradigbes culturais e As peculiaridades no consumo de drogas especificas como maconha, cocai- na, crack, écido, dlcool ete. Historicamente, por sua ver, a mesma droga pode apresentar usos e padres de consu. mo muito diferenciados. No caso brasileiro, 0 uso da maconha é exemplar em termos dessas transformagées. Tradicionalmente, esta droga foi consumida pot camadas populares em varias regides do Pals, tanto no campo como na cidade, E fendmeno muito recente 0 seu uso DIMENSAO CULTURAL E POLITICA 3s mais disseminado nos setores médios e elites. Este fend- meno s6 teve 0 seu inicio observado a partir da década de 60. Nas pesquisas que realizei durante 0s anos 70, registrei alguns depoimentos que explicavam a difusio da maconha pelos setores mais abonados mediante a sua introdugio por jovens norte-americanos, freqiientadores de elegantes clubes da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ou seja, dentro de um quadro geral de difusio de estilos de vida “contra-culturais” dos anos 60, veio também o hébi- to de fumar maconha. Rapidamente, ainda segundo esses depoimentos, estabeleceram-se selagdes entre os novos consumidores ¢ as tradicionais “bocas de fumo” dos mor ros cariocas. Por outro lado, é inegavel que ndo era uma completa novidade, mesmo para esses setores mais clitizados. Também encontrei pessoas que contavam que “turmas de rua” de Copacabana e Leme, ja nos anos 50, teriam tido acesso 3 maconha. Mas 0 fato mais signi- ficative em termos culturais foi, justamente, a utiliza- 40 da droga dentro de um conjunto de valores imbrica~ do a um estilo de vida alternativ6. Se na situagio ante- rior dos anos 50 fumar maconha poderia ser alternativa esporidica 20 consumo de bebidas alcodlicas, a partir dos anos 60 passa a expressar um significado diferente. Como se sabe, 0 movimento denominado de contrs- cultura caracterizavase por uma rejeigéo de um modo de vida convencional em que os valores familiares, edu- cacionais ¢ de trabalho eram duramente criticados, quan do ndo rejeitados em principio, Enfatizava-se, por outro lado, uma concepgio de mundo em que a liberdade amorosa, sexual, 0 comunitarismo, um certo tipo de hedonismo ¢ o descompromisso com objetivos materiais cram marcantes. Também no se tratava de um movi- mento homogéneo. Algumas de suas vertentes incorpora- vam a utilizagio regular do Acido lisérgico. De modo geral a misica era um elemento forte e constitutive do a DROGASE CIDADANIA Seu modo de vida, sempre enfatizando uma explicta d- Desejo frisar, portanto, nio sb a existénci jo frsar . ia de expt sean ies xd de pape estilo de vida, mas, principalmente, 2os miltiplos signi Gados atrbuidos& utilizasio das diferentes drogas. E fun, lamental compreender que o uso de drogas nao deve ser examinado isoladamente, Faz ij ; . Faz parte de um conjunto ao gut! pode estar integrado de modos distintos, Por meio a antropologia e da histéria, sabemos como diferentes cultura riaram um espago préprio para o consumo dos mais variados cipos de drogas, muitas vezes em contextos igiosos, em rituais e cerimbnias especificos. Registrar, f¢ diversos casos em que « droga é um veiculo prvilegis lo para a comunicasio com o mundo dos espirleas ¢ com absoluta clareza essa utilizagio,* Como observei no trabalho anteriormente ci no tral ado, * questio € que ao disseminar-se o uso de droges por dlfe FER'EE Segmemtos da sociedade, specificamente, em fami. lias de elites e camada média, criou-se situagio nova. Nao tudes ¢ comportamento dos filhos, netos, sobri soas préximas do mesmo segmento social. A. ae muito mais de uma mudanga global gue se manifesta em as dimens6es da vida, com conflito e desencontro dentro das familias e das escolas™ Portanto, ni estamos lando de uma fotiedade de pequena escals, tribal ou Siibontsa, mas de um mundo metropoticane na socieda de ial de grandes mimeros e extrema diversidade, Nesta, a negociasio da realidade, constitutiva de toda a Vida social, aparece com caréter parcicularmente drama, © em situagdes que ameacam fronteiras ¢ definiges mais estritas de comportamento e crengas mais enraizadas, DIMENSAO CULTURAL E POLITICA 2 U O relativismo cultural da antropologia, quando aplica- do a dreas de confronto e impasse, especialmente da socie- dade do investigador, traz, sem divida, problemas especificos. Insistimos que para a compreensio do fené- meno das drogas, assim como de qualquer outro, é paso indispensavel a sua contexwualizagao. Todas as tentativas de explicagdes genéricas, baseadas em premissas fisiolgi- cas e psicoldgicas, tenderam a ficar no nivel da rotulacio ¢ da estigmatizacio, Seria, por outro lado, ingénuo igno- rar que 0 uso de drogas por diferentes grupos s6 é possi- vel nas nossas circunstancias sécio-historicas, a partir da existéncia de redes nacionais e internacionais que expres- sam interesses politicos e econdmicos. Assim, o fendme- no cultural apresenta a sua inevitével dimensio de poder. Especificamente o trifico internacional de drogas mobili- za recursos ¢ atores que atuam de modo clandestino ou semiclandestino, constituindo-se em poderoso instru- mento de poder. Também nfo atua isoladamente, mas articula-se a outras atividades ilegais como trifico de armas, aparecendo, constantemente, misturado a negéci- 9s oficiais de exportagio e importagio. Sabe-se da fragili- - dade da fronteira entre atividades legais ¢ ilegais em varias Areas do comércio internacional, Como 0 tréfico de drogas é uma das atividades mais lucrativas de que se tem conhecimento, torna-se uma tentagio quase irresistivel para certos aplicadores de capital menos éti- cos, Esta é a principal razéo para as imensas dificulds- des de controlar a circulagio das drogas por meio de medidas policiais e repressivas em geral. Jé comesa a se disseminar pelos setores mais iluminados do aparelho legal a idéia de que a criminalizagio e perseguigio 20 mero usudrio constituem perda de tempo e de energia. Por outro lado, sabe-se cada vez. mais das conexdes entre % DROGASE CIDADANIA traficantes e poderosos setores das elites oficiais, tanto . A GUERRA As DROGAS n {adios ¢ a0 mesmo instante ele no & ele & contra os Indios, isso af eu digo, posso até dizer pra ele, a ele pode mandar me siatar, Se tem lei para matar o {ndio, se no tem, entio (..)" (CIMI, 50, pp. 9-10) Celestino teve a sorte de contar sua histéria a um interlocutor simpatizante dos indios, José Porfirio Fontenele de Carvalho. Ao assumir a chefia da Ajudancia de Barra do Corda no comego de 1978, Carvalho ficou profundamente chacado ao descobrir que a pritica de tortura fora autorizada por seu superior, coronel Arman- do Perfetti - um ex-oficial da Policia Militar sem nenhu- ma experiéncia de trabalho com indios, e cuja nomea- 40 como delegado da 6* Delegacia Regional da FUNAI fora resultado de favor politico em nivel estadual. Era de se esperar como conseqiéncia das indagagdes um caso exemplar de idealismo lutando contra o nepotismo € a corrup¢io. Mas atengio! O desenrolar da historia demonstra claramente como interesses escusos e obscuras maquinagdes conseguem perverter o curso normal da jus- tiga, cada vez que se trata do temivel assunto das drogas. ‘© testemunho de Celestino foi gravado no final de fevereiro de 1978. Em maio do mesmo ano, sr. Mourao, chefe do Posto Indigena Bacurizinho, finalmente concor- dou em fazer uma declarag$o sobre o seu envolvimento no caso do indio Djalma Guajajara: “(..) com relacio a maus-tratos aos indios, tenho a informar que cheguei a presenciar, quando 0 indio Djalma Guajajara estava sen- do interrogado dentro do acampamento do BEC em Grajati, o Dr. Nazareno (segundo ele identificava-se) apli- carthe dois tapas, com as mfos abertas, nos ouvidos do indio Djalma Guajajara. Como nao aprovava as atitudes agressivas contra o indio, retii 1¢ do local no sabendo. ‘0 que ocorreu depois. Explico ainda que a pessoa que se dizia chamar Dr. Nazareno dizia-se pertencer & Policia 7” DROGAS E CIDADANIA Federal e chefiava a equipe em operagio em Grajai” (CIMI, 50, p. 1). Teria sido suficiente perguntar 20 préprio Djalma sobre as torturas que sofreu, mas aparentemente o sr, Mourio nio fez. isso, nem se preocupou em apurar qual. quer informagio sobre © assunto até ser interrogado, qua- se um ano depois, por Porfirio Carvalho. Ja por essa época, Carvalho tivera a oportunidade de sentir na pele as Press6es ¢ as arbitrariedades da Policia Federal, ao tentar sem éxito convencer 0 comandante da Operagio Maco- nha de 1978 dos efeitos nefastos de sua atuacdo sobre as, conturbadas relagées inter-¢tnicas na regiio. A documen- tagio de Carvalho, justamente com o depoimento de Celestino e 0 relatério do indigenista Elomar Gerhardt denunciando a atuagio dos agentes federais dentro das areas indigenas, foi enviada primeiro & delegacia em So Luis e depois a sede da FUNAI em Brasilia, A Polt- cia Federal passou entdo a hostilizar os funciondrios da FUNAI em Barra do Corda, tentando em repetidas ocasides provar que eram eles os grandes traficantes que se beneficiavam da produgio de maconha dos indios. O préprio coronel Armando Perfetti reagiu as acusagdes de tolerar a tortura de indios com a fria declaracio de que no conhecia nenhum individuo chamado Celestino Guajajara. Seu nome finalmente ganhou as manchetes quando insinuou que as acusagdes que Ihe eram feitas par- tiam de traficantes de maconha ataantes no interior do Maranhio (EMa 24.08.78). A prépria comissio de inquérito da FUNAI - obvi mente pressionada pela Policia Federal em Brasilia ~ con- cluiu cinicamente pela improcedancia das acusagdes contra a8 autoridades, isentando de culpa o delegado Perfetti e punindo Carvalho e outros dois indigenistas pela divulgacio de documentos oficiais (ESP 10.10.78). Uma semana mais tarde, o préprio Celestino chegou a AGUERRA AS DROGAS ~ Brasilia e, na companhia de varios chefes tenetcharas, repetiu suas dentincias 20 entio presidente da FUNAI, general Ismarh de Araijo Oliveira. Celestino também foi recebido pela cipula do CIMI e concedeu algumas entrevistas a jornais (ESP 18.10.78). Sua intervengao sus- tow a punicéo a Carvalho e aos outros indigenistas, mas mesmo assim 0 delegado Perfetti continuov no cargo, s6 sendo demitido um ano mais tarde, quando foram com- provados sua anuéncia e seu direto envolvimento em varios casos de invasio e usurpacio de terras nas reser- vas indigenas. Como era de se esperar, as investigagdes realizadas pelo delegado de Ordem Politica e Social do DPF para apurar as dentincias de tortusa também deci- diram - apds um ano de demorados iaquéritos - pela “improcedéncia da deniincia”, devido a0 fato de que Celestino estava encapuzado na ocasifo, ficando portanto impossibilitado de identificar seus torturadores (ESP 22.0679). E dificil acreditar que 0 caso de Celestino Guajajara tenha sido apenas um acidente hist6rico, um aconte- cimento limitado a uma determinada época, quando 0 emprego da tortura ainda continuava em voga nos Srgios policiais. Reportagens esporddicas do interior do Mara- nhio descrevem a repeticao, a cada ano, das tristemente célebres Operagdes Maconha, uma rotina no calendétio da Policia Federal no periodo de abril a julho. Pior ainda, a violéncia fisica contra indigenas ¢ outros pequenos pro: dutoses da regio jé deixou de ser noticia, e faltam funcio- narios de estatura e da coragem de um Porfirio Carvalho para denunciar os abusos praticados em nome da repres- sio As drogas. Existe uma clara légica neste cendrio de indiferenga, pois a politizagdo da questi das drogas avanga inexoravelmente com a contratagio dos agentes do extinto DOPS para as delegacias estaduais de entor- pecentes, e com 2 monopolizasio da repressio poll- ” DROGAS E CIDADANIA tica nas mos da mesma Policia Federal, que tanto tem-se distinguido na luta por controlar 0 tréfica. Que este con- trole tem-se colocado 3s ordens das grandes mafias inter- nacionais ~ como no caso da corrup¢io comprovada do Superintendente Regional do DPF no Amazonas, Ivo Americano - ou que 0 excesso de zelo repressive comti- nua dando margem 3 tortura com pancadas e choques elé- tricos (conforme foi denunciado pelo cantor portugués Sergio Godinho em dezembro de 1982, no Rio de Janei- 10), nada disso parece alterar a légica cega da campanha de vitimizaso dos usudrios de drogas, assim como no tem levado a nenhum questionamento fundamental da forma pela qual a nossa sociedade encara a questZo do abuso de tais substincias. ; No fundo, néo se procura solucionar um problema de satide publica, e sim assegurar a representagfo de uma “verdade” cientifica, monolitica e intolerante, que 20 mesmo tempo reflete ¢ justifica © autoritarismo da estra- tura politica no plano maior. Numa época em que o pre- sidente dos Estados Unidos dedica grande parte de sua visita a0 Brasil a insistir na necessidade de uma guerra sem quartel Ss drogas, numa década em que a infiltrapo de agentes da Drugs Enforcement Administration (DEA) norte-americana continua subvertendo os aparelhos esta- tais em toda a América Latina, nfo é de se esperar muito Tespeito ao direito anacrénico dos indios de comtinuarem desfrutando do seu patriménio cultural, Afinal de contas, na heréica luta contra a “erva assassina”, pequenos deta- Ihes como os direitos humanos de um grupo de indios podem ser pisoteados sem preocupacto alguma. & u desservico que rendemos a nés mesmos, pois, ao rotular 8 fndios tenetehara como meros “maconheiros”, perde, mos a oportunidade de aprender uma ligio sobre 0 uso \ adequado desta planta, de inestimivel valor para a nossa civilizagio. AGUERRA AS DROGAS * BIBLIOGRAFIA ‘CIMT ~ Boletim do Conselho Indigenista Missiondvio, Brasilia, CB - Correio Brasiliense, Brasilia. 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Os indios traficarem drogas poderio, ‘em tém tido um tratamento especial is izados em relago 20 problema, 0 que penalmente, ou seja, presos, tem estimulado traficantes a lhes segundo ecisio vomada ontem. proporcionar sementes ¢ recur pelo Conselho Federal de Entor- sos para plantio, voltando 4s pecentes (Confer), depois de tribos apés a colheita e compran- uma palestra e discusses com 0 do toda a produsZo para venda. presidente da Funai, Coronel As informagdes foram dadas Paulo Leal. Aos juizes, no ontem A tarde pelo presidente do entanto, seri recomendada a Gonfen, Arthur Castilho, ressal- aplicagio atenusda das penas wanda que ‘dentro do aspecto previstas na lei antitéxicos, de cultural, o consumo de determi- acordo com_o que prevé o nadas substincias utilizadas em Estatuto do {ndio, inclusive 0 rituais, geralmente de cunho cumprimento da pena em regime religioso, mistico, nfo éum {ator de semiliberdade, em estabeleci- de desagregagio da comunidade’. ‘mento da Funai. Observou, no entaato, que este ‘Esta decisio deve-se ao aumento consumo eventualmente deve significativo do cultivo, uso e ocorrer dentro de rituais e oca- comertializagio de maconha por ses especificas, de acordo com {ndios, priacipalmente no Mara- determinadas regras culturais nfo, em comunidades onde 0 proprias de cada comnidade em, uso desta droga nio fazia parte de que se evita, inclusive, a utiliza: suas culturas, tendo sido intro- ¢fo por parte das criansas. Um dia depois a Folha de S; Paulo (07.05.83) publicou 0 seguinte desmentido: Funai nao reprimird os indios por uso de drogas © presidente da Funai, coronel_ “A operasio contra as drogas, Paulo Moreira Leal, garantiu entre elas 0 epadu (coca) ¢ a ontem que a asio repressiva maconha, se dirige aos nio- contra o uso de alucindgenos Indios que extio wsando o$ grt nfo seri estendida aos indios. pos indigenas na comercializa- ” DROGASE CIDADANIA comunidades, evitando-se 0 co- mércio, Entre as comunidades indigenas que fazem uso de -agas encontramse as Gi jaras no Maranhio, os Maco, Tueuna e Tucano, 20 Amazo- nas, © © presideme da Funai reconhece 0 fato de que estes grupos indigenas usam aluci- ndgenos ‘apenas em rituais’ ‘A Funai, informou 0 coronel Leal, j4 eacaminhou amostras ddas ervas uiilizadas pelos indios para a Central de Medicamen- ‘tos a fim de que sejam feitos estudos sobre 0 uso medicinal dessas ervas. gfe das deoges” - afirmou 0 coronel Leal Disse ele ainda que, na cam- parka de Gscalizasio contra a comercializagio das drogas plan- tadas pelos indios, a Funai "con- ta com total apoio da Policia Federal. Nio podemos repri- mit 05 {odios, pois 0 uso de alguns alycindgenos é cultural. © imporvante agora é coibir ‘musmo perseguir os brancos que se aproveitam deste trago cul- tual’. Para 0 cotonel Leal, o dificil nessa operacio & determinar 0 limite das plantagSes para as Finalmente, O Estado de S. Paulo (10.05.83) se viu na obrigacho de corrigir sua versio original, mediante uma diminura nota: Funai néo pune téxico @ presidente do Conselho Fe- deral de Entorpecentes, Arthur Castitho, negou ontem em Bev silia que o rgSo tenha deter- minado a repressfo 20 consumo de maconha nas comunidades indigenat: “Em nenhum momen to afirmou-se que a Funai iria punir {adios por isso, mesmo porque a compettacia paca a repressio aos tbxicos é da Policia Federal ¢, segundo estudos da Fundaslo, a maconha nfo faz parce da cultura indigena”. Quais sio as principais divides suscitadas por uma lei- ura atemta destes textos? Além das referéncias de praxe aos “rituais", misticos ou no, que estariam orientando o taso de drogas entre as populagées indigenas do Pais, ob- serva-se, em primeito lugar, uma clara discordancia entre A GUERRA ASDROGAS ” o presidente da FUNAI ¢ o presidente do CONFEN sobre o status cultural do uso da maconha entre os indios do Maranhio. Se o primeito considera que “ndo podemos reprimir os indios, pois 0 uso de alguns alucindgenos é cultural” (note-se de passage que nenhuma das duas plantas citadas, nem maconha nem coca, é propriamente um “alucindgeno”), esta posicio se vé abertamente con- testada pelo presidente do CONFEN, com base em dados apresentados pela propria FUNAI: “(..) segundo estudos da Fundag#o, a maconha nio faz parte da cultura indigena”. Sera que 0s presidentes dos dois Srgios federais envol- vidos nessa questio nZo puderam chegar, mesmo apés longas discusses @ portas fechadas, a um acordo sobre a interpretacao dos dados etnogréficos? Nao é possivel que a confusio em torno desta interpretacdo se deva, antes de mais nada, a uma certa confusio também no préprio levantamento dos dados em questio? Enfim, cabe & comunidade cientifica questionar a objetividade e a com- peténcia dos citados “estudos da Fundacio”, especial- mente se tais estudos, 40 serem examinados em detalhe, nada descrevem além de vagos, indefinidos e mistificantes “citvais” e “regras culturais”. ‘Como ja demonstrei no texto principal deste traba- Tho, é muito dificil definir exatamente o que é “ritual” ov “regra” no uso tenetehara da maconha. Se ritual é obser- ‘var wma certa concentragio no ato de fumar, uma reci- procidade nas trocas de baseado com parentes ¢ afins, € um tipo de comportamento padronizado nos gestos e nas, expresses, os tenetchara praticam “ritusis” ao consumir a maconha. Agora, se em vee do carater difuso, ambiguo ¢ espontineo das priticas tenereharas se vé, nas palavras do presidente do CONFEN, “regras culturais” que evi- tam “a utilizagio por parte das criangas”, é de se colocar uma interrogago fundamental.

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