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SIMONE DE Beauvoir : A FILOSOFIA DO SEGUNDO SEXO NO TERCEIRO MILENIO Deise Quintiliano Pereira Se o ano de 2005 foi marcado por intimeras manifestagdes em todo o mundo em torno do centenario de nascimento de Jean- Paul Sartre, 0 ano de 2006 poder, com justiga, fazer-nos recor- dar 0 vigésimo aniversdrio do desaparccimento de Simone de Beauvoir. A riqueza de suas idéias, o rigor de sua reflexo ¢ a criatividade de suas analises estao presentes no livro Simone de Beauvoir Philosophe, recentemente langado por Michel Kail, pela editora PUF. Baseando-se nos argumentos desenvolvidos no Deuxiéme Sexe, Kail remete a questo de fundo “o que é uma mulher 2”, levantada por Simone nesse livro, promovendo uma anilise aprofundada de sua filosofia. © autor debruga-se, assim, sobre a afirmagao da filésofa segundo a qual “a dependéncia das mulhe- res ndo é a conseqiiéncia de um acontecimento ou de um devir, ela nao é dada", apresentando-se, por conseguinte, como um “fato natural” Essa dependéncia é sobretudo tributdria de uma ausén- cia de respostas que os saberes contituidos revelam-se impoten- tes ¢ inoperantes a explicar. Com efeito, esses saberes recusam a angtstia da tensao de uma existéncia assumida em sua autenti- cidade. E a superficie lisa desse lago estatico e sem profundidade que Kail se esforga em remexer, com 0 auxilio dos incessantes questionamentos promovidos por Beauvoir. 220 DeIse QUINTILIANO PEREIRA Nesse sentido, sao fartamente repertoriados os elementos que compéem e definem essa “dominagiio”: a constituigdo do vencido como Outro, a complacéncia das mulheres em face do papel que Ihes ¢ atribuido de Outro, as cumplicidades que se opdem ama tomada de posi¢do com relagao a sua propria responsabi- lidade diante da liberdade; mas, sobretudo, a tese beauvoiriana por exceléncia, que desnuda os interesses mascarados no confinamento das mulheres na figura desse Outro absoluto, mantenedor da dominagio masculina, nio podendo mais ser justificada por andilises bioldgicas, psicanaliticas ou provenientes do materialismo. Assim, a concepgao de um materialismo reno- vado pode ser designada a pedra de toque da coerente arquitetu- ra criada por Simone. Redefinindo 0 termo “mundo”, que ela concebe como linguagem, pois “as coisas nos falam”, a escritora ajuda-nos a compreender a questo da intersubjetividade que tran- sita incessantemente do sujeito ao objeto, reavaliando e modifi- cando a interpretagiio do estatuto atribuido ao “corpo”. Demonstrando que para Beauvoir corpo é histéria, Michel Kail detalha a maneira pela qual a fildsofa relé essa insergao real penetrada pela existéncia, tornando possivel uma comunicagio vital com o mundo. Beauvoir destaca, além disso, que, apreendido como existéncia, 0 para-si anuncia-se um corpo que nfo poderia ser reduzido apenas & dimensio espiritual ¢ & por intermédio da fenomenologia que sua filosofia busca des-objetivar 0 corpo ¢ desespiritualizar 0 para-si. Essa aproximagio das posigdes de Simone das teses de Merleau-Ponty, defendidas na Phénoménologie de la perception, marca uma convergéncia significativa do pensamento dos dois fildsofos, articulando um didlogo polifénico entre Beauvoir, Merleau-Ponty ¢ Sartre. Nesse momento, que precede a “fase ultrabolchevique” do Sartre dos Communistes et la paix, Merleau- Ponty considera ainda que Sartre é capaz de pensar a acao de modo diferente de “agao pura”, regida por diretrizes de um voluntarismo irrefletido, capaz de restringir seu pensamento & fi- losofia de um sujeito substancial. noe Simone De Beauvoir:... 2214 Numa linguagem precisa, Kail desvela 0 complexo né entre a compreensio radical e equivocada que Merleau-Ponty faz das posi¢des sartrianas ¢ o meio termo que habilidosamente Simone consegue depreender quando libera a auténtica ontologia sartriana da “caricatura” proposta por Merleau-Ponty, questionando a exis- téncia do “intermundo”, palavra-chave que define a concep¢ao filosdfica deste. A adesio as inovagées sartrianas que desarticu- Jam os elos do tradicional dualismo sujeito-objeto, a preeminéncia do modelo reflexivo ¢ do voluntarismo, com relagio analise sartriana da distingao entre a liberdade e a vontade, a dentincia do modo como os homens relegaram as mulheres a categoria do Outro e, finalmente, a abertura de uma via ao antinaturalismo sistematico, revelam-se os temas fundamentais que embasam o Deuxiéme Sexe. A contribuicio original que o pensamento beauvoiriano de- nota, de maneira rigorosa, consiste, segundo Kail, numa teorizagao da situagao e da liberdade humana no espago politico. Recusando © dualismo do sujeito (que Sartre se esforga em dessubstanciar) - objeto (a partir do qual Merleau-Ponty interroga o conceito de natureza), Beauvoir ocupa-se em analisar a relag&o entre filoso- fia ¢ politica, concentrando-se na avaliagao de uma condigao de- finida: a opressio das mulheres, Desse ponto de vista, liberdade ¢ situagao nao representam termos justapostos na sua reflexao; 0 que conta efetivamente é a relacdo da liberdade enquanto “desvelamento da existéncia” e da situagdo, apresentando-se como o “desvelado”, cindido pela liberdade da subjetividade e a dos outros, 4 medida que “todo homem relaciona-se com todos os outros”. Fundamentando-se nos estudos de Sonia Kruks, a leitura de Kail evidencia a influéncia que Beauvoir exerce sobre a filo- sofia de Sartre no momento em que este assume, a partir do fim dos anos 1940, uma filosofia do social que reavalia sua concep- 40 individualista da liberdade que nao figurava ainda em L’Eire et le Néant, enquanto a filésofa a desenvolvia desde o inicio dos anos 40, 222 ~ Deise Quintiuiano PEREIRA O poder do opressor provém de sua impossibilidade de re- conhecer no(a)s oprimido(a)s sua capacidade de existéncia ou de antecipagao de uma situago por vir ou de um porvir aberto. Esse fechamento do futuro é marcado pela reificagiio, posto que limita essa antecipacao a um cardter imagindrio ou a um status de de- vaneio para ancorar a liberdade nas margens da condigao huma- na. Tais fronteiras nao delineiam, na realidade, um limite para a liberdade uma vez que essa nao pode jamais existir fora de uma situagdo dada. A importancia atribuida ao corpo permite-Ihe de- sembaragar sua anilise do fisiologismo ou do biologismo, uma vez que as relagdes humanas revelam sua face intramundana, na qual a nogio de corpo nao se distingue da consciéncia. Nesse sentido, 0 para-si que é 0 sujeito nfo se abriga numa pureza cristalina, ele € antes uma liberdade situada ¢ socialmente condicionada, donde a interdependéncia das subjetividades que abre espago para a fra- gilidade do sujeito. O debate sobre a aceitagiio da dominagio pelo sujeito per- mite a Kail fazer eco & voz. de Sonia Kruks que passa em revista © aspecto fundamentalmente inovador da critica de Beauvoir aos detratores do Deuxiéme Sexe, porque a filésofa, diferentemente de Sartre e de Hegel, langa um apelo a uma concepgao de graus de liberdade, esfumagando o limite preciso entre agao livre e acio coercitiva, ambas estando submetidas as situagdes sociais capa- zes de transformar a propria liberdade. O problema que se impde nao é entio o da alteridade femi- nina, simplesmente, mas 0 da alteridade nao reciproca da mulher pelo homem. A constituigao da mulher como um Outro desigual ¢ submisso requer, destarte, uma reflexdo profunda, Kail sublinha aspecto original contido no pensamento de Beauvoir: a necessida- de de legitimagao da dominagao por parte do(a) dominado(a), pois nela inscreve-se igualmente a margem de manobra do(a) oprimido(a). Em outros termos, nenhuma dominagao seria capaz de escapar ao questionamento do Outro nem a possibilidade de erro, 0 que implica um risco para o opressor que tem consciéncia Simone DE Beauvoir:.... 223 Se disso, reforcando a perspectiva de uma universalidade humana de liberdade. A proposta de Beauvoir de sugerir para cada caso particular uma solugao inédita introduz uma novidade radical — toda liberdade esta em jogo diante de outra, Esse raciocinio desemboca nas interessantes anilises de Kail sobre “o paradoxo e a liberdade”. Chamzindo nossa atengao para o fato de que para Beauvoir nossas relagdes com os outros no siio nunca cristalizadas, mas construidas a cada instante, 0 autor indica como para a filésofa insinua-se 0 conceito de impre- cistio na precisao, na definigao da lei da condigo humana: “nesse quadro preciso, a imprecisto ¢ a regra, cada ato de um sujeito isolado por sua subjetividade tornando-se 0 dado do ato de um sujeito isolado por sua subjetividade. Nao hé totalizagdo possivel, pois quem pretendesse operar uma tal totalizagao reforgaria, de modo contratio 4 sua intengio, a imprecistio”, A humanidade é uma seqiléneia descontinua porque os atos nunca sdo transmitidos por qualquer atavismo possivel; eles cons- troem-se de per si; toda tese que tente completar essa descontinuidade remete ao conceito de natureza humana. Des- vencilhando-se da dialética no tratamento do paradoxo, Beauvoir mostra que ele é a propria verdade da condigio humana. Dife- rentemente de Hegel, que reconhece 0 paradoxo para julga-lo intolerdvel e miscigenado com a contradigao, Beauvoir desvalori- za as estratégias discursivas que se esforgam em ultrapassé-lo, qualificando-as de inauténticas, A hermenéutica beauvoiriana inscreve-se, ent&o, na légica do paradoxo, das ambigiiidades ¢ das relagdes, que, longe de engessa-la numa psicologia behaviorista, encaminha-a para o ho- rizonte aberto da liberdade em situagao. E a partir da relagao entre escritura ¢ perversao, aliés, que o estudo de Sade (“Faut-il briler Sade 2”) pode corroborar as reflexdes filoséficas de Beauvoir. Levando a condigao humana ao seu limite, a conjungao da sexualidade ¢ da literariedade, circunscrita no termo “excesso”, permite a Sade conceber, segundo Simone, a ética como obra 224 Deis QUINTILIANO PEREIRA literaria, Por essa razao, 0 erotismo de Sade e sua nogiio de cru- eldade, compreendidos em toda a sua complexidade, abrem uma via de passagem que nos conduz a significagao ética de sua obra, nao se reduzindo a um biologismo, mas nos incitando a considerar a sexualidade como um fato social. Compreendido como espetéculo por intermédio da circula- gio literaria, o ato erdtico Ihe oferece uma legiaio de leitores- voyeurs que nenhuma orgia poderia the oferecer. Trata-se de uma literatura que, precedendo o advento da psicanilise, refere-se ao imaginario, gragas a seu poder de representagao pela escritura, 0 que permite ao marqués escapar de toda espécie de determina- go ou determinismo, visto que a literatura explicita, ao mesmo tempo, toda inquietude ética do escritor. A afirmagao de Sade de acordo com a qual tudo que é humano acontece na terra remete a célebre sentenga de Teréncio: “homo sum : humani nihil a me alienum puto”, em conformidade com as metamorfoses do séc. XVIII que substituiram a idéia de Deus por uma mais adequada de physis, uma vez que o desejo sexual confunde-se com o prd- prio movimento da vida. Todavia, a leitura de Sade nfo se reduz a uma exaltagiio do instante natural que ressuscita a sexualidade. O escritor vislumbra na mesma, igualmente, um convite ao crime. Ao mesmo tempo que Sade constata o carater voraz dessa natu- teza, por uma decistio ética original — adverte-nos Kail — 0 ho- mem pode escolhé-la, aceitando o crime : “sigamo-la !” A destruigao dos valores transcendentais, bem como o anti- determinismo ¢ 0 ateismo de Sade, langam luz sobre o propésito beauvoiriano de estabelecer uma nova concepg&o de “mundo”, segundo a qual apenas o erotismo designaria um modo de comuni- cago possivel entre os homens. Beauvoir reconhece em Sade 0 enorme “poder de incitago 4 reflexao” notadamente nos domini- os da sexualidade e da ética. O fato que a scxualidade represente uma expresso con- creta da existéncia e que ela nao se anuncie em Sade como um dado irredutivel permite que a filsofa antecipe a discussao tedrica Simone ve Beauvoir:... 225 engendrada nos trabalhos atuais sobre a distingiio entre sexo € género, o que leva Christine Delphy a afirmar, em 1989, que, sea primazia do sexo sobre 0 género é explicavel historicamente, ela nao o é teoricamente. Dito de outra maneira, Delphy desmente a antecedéncia do sexo sobre 0 género e aceita a precedéncia do género sobre 0 sexo, admitindo que o sexo (homem/mulher) 56 existe porque a sociedade o constréi enquanto tal a partir do gé- nero (masculino/feminino). Sem parti pris assumido, as contradig&es e os paradoxos assinalados por Beauvoir entre 0 desejo de libertagiio da domina- gio de um lado ¢ o medo de uma real liberacao das taxinomias categoriais de outro sido evidenciados. Pela andlise da “opres- sio”, na sua acepoiio politica, o pensamento beauvoiriano distin- gue-se da doxa, que prefere aludir & “condigao feminina”, servindo-se de uma explicagiio de base naturalista para a avalia- ilo desse fenémeno social. Os princfpios da biologia reforgam a hostilidade que suscita 0 termo “fémea”, com relag&o ao “ma- cho” ¢ Beauvoir os evoca para demonstrar a tese central do Deuxiéme Sexe: “a mulher 6 0 Outro porque ela é apenas o seu sexo, num mundo no qual o principio ¢ fundamentalmente mascu- lino”. Por essa razao, as teses da biologia apressam-se em con- firmar os lugares comuns masculinos que Beauvoir obstina-se em desmascarat quando discute os preconceitos que integram os fun- damentos ontolégicos da diferenciagao sexual. Com efeito, no que diz respeito 4 manutengtio da espécie humana pela fémea, Beauvoir observa que o embrito define-se como um germe andrégino, em fungao da perpetuagio do em- brio do pai ou da mae: “a mulher como o homem ¢ corpo: mas seu corpo ¢ algo diferente dela”. A nogiio de sexo mostra-se as- sim muito complexa, escondendo atras de si a nogiio de género, os “fatos exatos” que sé existem em relagdo, como fatos significantes que permitem a sexualidade manifestar-se enquanto existéncia. O que conta ¢ corpo concreto vivido pelo sujeito mais do que o corpo-objeto descrito pela ciéncia, pois “nao é a 226 DEISE QUINTILIANO PEREIRA natureza que define a mulher: € esta quem se define tomando a natureza sob sua responsabilidade, na sua afetividade”. Mesmo reconhecendo a contribuigao da psicandlise em de- trimento do modelo da psicofisiologia na andlise da sexualidade, Beauvoir persevera num ponto decisivo para a compreensio do fenémeno: nao ha qualquer via de acesso, sendo a da existéncia, capaz de permitir a descoberta das significagdes do corpo e da sexualidade. A escritora esclarece ainda que a psicanalise mas- cara a perspectiva existencial no momento em que confina a mu- Iher a categoria de Outro: “o homem é definido como ser humano ea mulher como fémea: cada vez que ela se comporta como ser humano, diz-se que ela imita o macho”. O movimento que permite A reflex4o beauvoiriana ultrapassar as perspectivas dos trés gran- des discursos — da psicandlise, do materialismo historico e da bio- logia ~ 6 a atengiio que ele concede a um “projeto fundamental do existente transcendendo-se em dire¢io ao ser”. Essa hipétese re- mete a “escolha original” intentada pela “psicandlise existencial” de Sartre, que leva em conta “o homem como totalidade e nao como uma colegio”, ¢ que considera cada ato humano, por mais insignificante que seja, revelador para a andlise critica, Beauvoir reivindica uma dimensao da liberdade situando a mulher num mundo de valores no qual ela deve inventar novas solugdes a cada mo- mento, com vistas a transcender sua alienacio como objeto. Kail nada esconde das dificuldade que Beauvoir encontra ao recorrer a ontologia, em detrimento da sociologia, por exemplo, para explicar o “ela nfio é dada” que constitui o fio condutor de sua leitura. De fato, é a ambigiiidade ontolégica que exprime as condigdes sociais da existéncia, ¢ ao advertir-nos de que s6 exis- tem relagdes, 2 ontologia desqualifica a natureza, a biologia e 0 sujeito substancial. Os novos caminhos abertos pela reflexdo de Beauvoir, apregoando a eterna vigilancia, permitem-nos elaborar uma exposigiio sistemitica que até entio a filosofia nao tinha efe- tivamente construido sobre essa problematica ¢ a anélise de Kail nunca desfaz os pontos de tensao, de paradoxo ou de contradigao Simone pe Beauvoir: 227 inerentes ao pensamento beauvoiriano. Ela os leva em conside- ragdo, explorando a riqueza ¢ a originalidade nas quais repousam 0s alicerces dessa articulagao fortemente trabalhada, instituindo, seguramente, 0 maior mérito que se pode atribuir a esse pequeno grande livro. REFERENCIA BIBLIOGRAFICA, KAIL, Michel. Simone de Beauvoir philosophe. Paris: PUF, 2006. Nota ' Método que visa @ compreensio de um individuo integrando sua li- berdade e 0 condicionamento do qual ele constitui o objeto.

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