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Gael CRIME nee VIOLENCIA MARK D. SZUCHMAN PETER LINEBAUGH GIANFRANCO PASQUINO DONATELLA DELLA PORTA BORIS FAUSTO MARIA VICTORIA BENEVIDES ROSA MARIA FISCHER FERREIRA ALBA ZALUAR ot | E PODER | \ ~~ PAULO SERGIO PINHEIRO organizador CRIME VIOLENCIA E PODEE Comentarios de CLAUDIO TORRES VOUGA MARIA HERMINIA TAVARES DE ALMEIDA ANTONIO FERNANDO DE FRANCESCHI ' . ROBERTO ROMANO ; l 7 “ MARCO AURELIO GARCIA 4 £ LIGIA SILVA, MARIZA CORREA BARBARA WEINSTEIN HELIO BICUDO psultado de trés sessGes do seminéri Poder, em que foram debatidos o controle s irbane e prética: Do pretécio de Paulo Sérgio Pinheiro Crime, Violéncia e Poder | FITUR, AS Paulo Sérgio Pinheiro (org.) * A Classe Operaria no Brasil - Paulo S. Pinheiro/Michael Hall « A Estratégia da Recusa — Andlise das greves de maio/78 — ‘Amnéris Maroni 7 BERLE « Arqueoiogia da Violéncia — Ensaio de Antropologia Politica Crime Violé ncia Pierre Clastres > Caos — Crénicas politicas — Pier Paolo Pasolini 5 Ditetos Civis no Basi Existom? ~ Ml Bieudo | e Poder 5 Discureo da Servidéo Voluntaria — Etienne de La Boétie J O'Massacre dos Posscires. Ricardo Kotscho J Viotencia Brasieia~ Diversos autores Colecao Primeiros Passos # O que é Direito — Roberto Lyra Filho # O que sio Direitos da Pessoa — Dalmo de Abreu Dallari # O que é Ideologia — Marifena Chaui # O que é Poder — Gérard Lebrun # O que é Violéncia — Nilo Odélia # O que é Violéncia Urbana — Régis de Morais: | | 3s Colegio Tudo 6 Histéria oe © + Londres e Paris no séc. XIX — M. Stella M. Bresciani cone “Aittasene Amarea Ltn Cbs Ros # Os Crimes da Paixio ~ Mariza Corréa sibotace MA PUL AEN WN Wl ¢ 100062802 | z § 3 | LI 1983 40 anos de bons livros Copyright © dos autores Capa: Moema Cavaleanti Revisto: Rosangela M. Dolis 01223 — r. general jardim, 160 sic paulo — brasil indice Introduao — Paulo Sérgio Pinheiro... Crimes e criminosos em Belo Horizonte, 1932-1978 — Anténio Luiz Paixdo . Continuidades no controle social: a criminalidade na area urbana de Buenos Aires, 1810-1860 — Mark D. Szuchman . 45 Comentario 1 — Claudio Torres Vouga.. ceceee 94 Comentario 2— Maria Herminia Tavares de Almeida... 96 Crime e industrializagao: a Gra-Bretanha no século XVII — Peter Linebaugh ..... 9 Comentario 1 — Maria Stella Bresciani ... 138 Interpretagdes do terrorismo italiano de esquerda — Gian- ‘franco Pasquino e Donatella Della Porta se 143 Comentario 1 — Antonio Fernando de Franceschi m Comentario 2— Roberto Romano... - 180 Comentario 3 — Marco Aurélio Garcia . 188 6 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG.) Controle social ¢ criminalidade em Sao Paulo: um apanhado geral (1890-1924) — Boris Fausto. - 193 Comentario | — Ligia Silva... 2ul Comentario 2— Mariza Corréa . pore 215 Comentario 3 — Barbara Weinstein Tie 219) Respostas populares ¢ violencia urbana: 0 caso de linchamento no Brasil (1979-1982) — Maria Victoria Benevides Rosa Maria Fischer Ferreira ......0000esecssseeeees 228 Comentario 1 — Hélio Bicudo. 244 ‘Condominio do diabo: as classes populares urbanas e a logica do “ferro”? edo fumo — Alba Zaluar ... 249 20000"0485 i Introdugéo Decidimos realizar em Campinas um semindrio que reunisse pesquisadores brasileiros ¢ colegas estrangeiros que estivessem trabalhando sobre o tema do crime na sociedade moderna. Com a apropriagdo pela universidade, e mais especificamente, pelas cién- cias sociais no seu conjunto, desse tema que durante muitos anos somente interessara no Brasil ao direito, julgamos que ja era tempo de fazermos um balango sobre o estado atual da questdo. Muita motivagao também foi dada pelo debate piblico que cada vez mais, incorpora a reflexdo sobre a violéncia. Em vez de solicitarmos a estudiosos avaliagdes precisas sobre as tendéncias em curso na pesquisa, achamos que seria mais conve- niente pedir que apresentassem trabalhos sobre os estuzos em desenvolvimento, em suas universidades e paises. O resultado que aqui est publicado € um painel muito vivo ¢ atual sobre algumas linhas de investigagao inovadoras e muito criativas, no pensamento de ponta das ciéncias sociais, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Italia e no Brasil. Durante trés sessdes foram debatidos 0 controle social ¢ a criminalidade, a industrializagao ¢ o crime, violencia pol tica e terrorismo, repressdo policial e aparelho de Estado, violencia urbana e praticas populares. ‘As exposigdes, 05 comentarios e as discusses demonstraram que nao existem barreiras rigidas entre as contribuigdes que as dife- rentes areas das ciéncias sociais podem trazer para a compreensto do crime. Pareceu também ser impossivel isolar overime de suas relagdes com 0 Podex ¢ com a Politica, sem contar as vinculagdes sociais ¢ econdmicas conhecidas. Ainda que nao tenha sido parti Respostas populares e violéncia urbana: o caso de linchamento no Brasil (1979-1982) * MARIA VICTORIA BENEVIDES ROSA MARIA FISCHER FERREIRA * Comentario 1 — Hélio Bicudo Respostas populares e violéncia urbana: o caso de linchamento no Brasil (1979-1982) MARIA VICTORIA BENEVIDES* ROSA MARIA FISCHER FERREIRA** Pega, mata, lincha!! O rapaz corre. E mulato escuro, fran- zino, aparenta ter, no maximo, uns 20 anos. Acabara de ser visto “em atitude suspeita”” no interior de uma loja e, ao ser perseguido, abandonara os poucos objetos furtados. Os gritos atraem vizinhos € passantes. Pacatos cidadaos transformaram-se em implacaveis justiceiros: socos, pontapés, pauladas, pedradas... até mulheres € ‘criangas participa. Tiram-lhe a roupa; uma corda ¢ amarrada no pescogo do indigitado e no rabo de um cavalo, que o arrasta a galope. Enfim, estracalhado, o jovem morto pela ‘‘justi¢a popu- lar’? sera levado pela policia, que mais uma vez nada pode apurar, sequer a identidade da miseravel vitima. Os linchadores t¢m a cons- ciéncia tranguila: ““Bandido tem mais € que morrer’” (Piabeta, subirbio do Rio de Janeiro, maio de 1981). Que horror, a ignordncia e a selvageria do “povo"” nao tém ites, que barbaros! — assim talvez reaja a minoria que Ié * Direvora do Centro de Estudos de Cultura Contempordnea (CEDEC) em S80 Paulo, ++ Profewsora de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Sto Paulo e pesquisadora do CEDEC 228 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG.) jornais, conhece e respeita as leis. Talvez nao. Pois, se € verdade que a tertivel pratica do linchamento ocorre com mais freqtiéncia 1nos meios populares (¢ ai linchadores e linchados partilham a mes- ma situagdo de miséria e marginalidade frente a justica), ela ocorre também em bairros de classe média, em prosperas cidades paulis- tas, em trangililas comunidades interioranas, as vezes “justfi- cada” pelas proprias autoridades. Como também é verdade que boa parte da classe média e alta nao hesita em defender o lincha- mento ¢ as demais formas de “‘justiga paralela’” — os grupos de exterminio, como 0s “Esquadrdes da Morte”. E claro que o linchamento nao & um fendmeno corriqueiro como, por exemplo, os maus tratos aos presos ou a morte sistema tica de delinguientes e suspeitos em tiroteios nunca bem explicados com a policia. Mas a pratica do linchamento revela aspectos signi cativos da violencia urbana contemporanea: — Aeexacerbacao da agressividade de setores da populacao econo- micamente mais marginalizada e, portanto, mais exposta as violéncias cotidianas de todos os tipos (os dramas do desem- prego, desnutri¢ao, péssimo atendimento nos servigos basicos ‘como transporte ¢ satide, a precariedade de habitagao etc.). — O descrédito na eficécia da policia e na “‘justica’” da ago da Justiga. — A incorporacao dos métodos mais violentos da propria policia. O objetivo deste texto é apresentar um conjunto de dados — basicamente descritivos — sobre a pratica do linchamento no Brasil, expressio mais extremada da violéncia popular coletiva'. ‘Trata-se de uma primeira etapa de pesquisa mais ampla sobre vio- éncia urbana no Brasil, enfocada do angulo dos direitos de cidada- nia ¢ orientada para os tipos de violencia vividos pelas classes popu- lares?, O primeiro passo consiste em conhecer a extensdo e a intensi dade da pratica, assim como 0 “historico"” das causas imediatas ¢ do tipo de participagao. Tais dados séo tteis para a compreensdo do fendmeno e para a reconstrugao do contexto social em que ‘ocorre. A analise desses dados permite, igualmente, se estabelecer "0s tumultos como as depredagdes de trens constituem também uma forma de violéncia popular coletiva, com aspectos andlogos aos linchamentos 2 Pesquisa em realizagdo no CEDEC, sob a coordenacdo das autoras ¢ com apoio financeiro da Fundacdo Ford e do Comité Catholique (Franga). CRIME, VIOLENCIA E PODER 29 uma diferenca significativa entre os linchamentos praticados por uma comunidade e 0s ““andnimos"”, de rua. Linchamentos consu- mados (com a morte da vitima) e tentativas s40 tomados em con- junto, pois constituem um s6 fendmeno ao nivel do comporta- mento do povo. 0 texto procura também refletir, ainda que superficialmente, neste momento, sobre as relagdes entre as camadas populares e os servigos publicos de policiamento e seguranea, visando compreen- der a questo do descrédito popular nas instituigdes e da incorpo- ragdio dos modelos de acao violenta. A interpretacdo mais comumente aceita para a palavra lincha- mento remete a Charles Lynch, fazendeiro da Virginia que, durante a Revolucdo Americana, liderou uma organizacdo privada para a punigaio de criminosos e de legalistas, figis & Coroa. Historicamente so apontados, como analogos & pratica do linchamento, as orga- nizagdes informais que pretendiam substituir (ou complementar) os procedimentos legais de prevengdo e represstio ao crime — uma jus- tiga criminal paralela—,tais como.a Fahmgerichte na Alemanha me- dieval, a “‘gibbet law" ea justiga de Cowper na Inglaterra, as Socie- dades de Santa Hermandad em pequenas comunidades da Espanha medieval, os pogrons na Riissia e na Poldnia ¢ até mesmo a perse- ‘2uigdo aos judeus na Alemanha hitlerista. Em épocas mais recentes sto conhecidos os linchamentos de negros nos Estados Unidos (Ku-Klux-Klan) e na Africa do Sul, Nos Estados Unidos, por exem- plo, estatisticas registram 4730 linchamentos entre 1882.¢ 1951, dos quais 90% das vitimas eram negras. A partir da década de 50 a média americana nao alcanga um linchamento por ano, embora tenham continuado os assassinatos por motivos raciais’ Correntemente 0 termo passou a designar toda a agao vio- lenta coletiva para a punigao sumaria de individuos suposta ou efetivamente acusados de um crime — do simples furto ao assassi- nato — ou, em certas regides, identificados com movimentos ou estigmas de ordem politica e racial. Caracteriza o linchamento a natureza de vinganga, alm de “justiga”” punitiva (geralmente acompanhada de métodos de tortura), @ margem de julgamentos ‘ou normas legais. E mesmo quando sob nitida lideranga ¢ algum > Existeampla bibliografia americana sobre linchamentos nas décadas dle 20¢ 303 hi legistagdo especifica (Lynch Law) vias associag@es foram crindas, destacando- se 2 Commission of Southeen Women for the Prevention of Lynching, Ver Lynching: A National Crime", in Carholie World, vol. CXXVIL, 1928 20 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG.) lipo de planejamento, o linchamento é considerado um fendmeno explosivo e espontaneista, associado a “patologia das multiddes”. Na linguagem popular o linchamento € o “ato de se farer justi com as proprias aos", Linchamento no Brasil Os linchamentos no Brasil, de incidéncia incomparavelmente menor do que as chacinas dos grupos de exterminio, ou as matan- gas “legals” das rondas policiais, nao parecem causar grande esedndalo. Fazem parte de um cendnio de violencia cotidiana, cuja tragédia maior consiste, justamente, na sua banalidade. Sao fend- ‘menos esporadicos, que so atraem a atengao das autoridades e da “grande imprensa”™ quando envolvem toda a populagdo de uma cidade, geralmente descrita como “pacata, ordeira e religiosa””. E que, de repente, arma-se de facas, paus e pedras para, orquestrada no coro do “pega, lincha, enforea"”, fazer justiga com as proprias ‘aos. E digno de nota a inexisténcia de dados sistematizados sobre o assunto, ou sequer referéncias explicitas em estudos sobre violén- cia e criminalidade. Nos Relatorios dos Grupos de Trabalho de Juristas e Cientistas Sociais, do Ministério da Justiga (1979-1980), por exemplo, ha duas breves mengdes. No Relatério dos Socidlogos ha, apenas, uma referencia & associagdo entre a pratica do lincha- mento ¢ o tamanho da comunidade. Dados sobre linchamentos noticiados na imprensa Pesquisa do IBOPE, realizada no Rio de Janeiro em 1980, registrou que 44% dos entrevistados apdiam o linchamento, pois, “se a justiga nao age, o povo tem de agir’”, De setembro de 1979 a Fevereiro de 1982, a imprensa noticiou 82 ocorréncias: 38 lincha- ‘mentos com vitimas fatais ¢ 44 tentativas. Do noticidrio destacam- se as seguintes informaydes: — A maior parte dos linchamentos ocorre nas zonas urbanas do Rio de Janeiro e de Sao Paulo, sao raras as noticias de lincha- ‘mentos em zonas tipicamente rurais; — 0 Rio de Janeiro lidera as ocorréncias, com 23 casos na Baixada CRIME, VIOLENCIA E PODER 21 Fluminense (regido pobre dos subiirbios cariocas); 6 casos no centro da cidade e 9 casos na Grande Rio; — Sao Paulo apresenta 7 casos na periferia, 4 casos no centro e 8 casos no interior do Estado; — 0 motivo imediato para a maioria das reagdes violentas & 0 alarme contra assalto a residéncia, a estabelecimentos comer- ciais ov a pessoas na rua; — o montante do roubo ow o grau de violencia wtilizada pelo assal ante sao irrelevantes: ha linchamentos por causa do roubo de um radio de pilha ou alimentos em supermercado, assim como assalto a joatheria a mao armada; — dos 82 casos noticiados apenas 15 incluiam homicidio ou latro- inio por parte dos linchados: — a violencia sexual contra mulheres ou criangas é um dos princi- pais fatores para motivar o linchamento nas comunidades; — apenas 2 casos ocorreram em favelas urbanas; — a categoria profissional que aparece mais envolvida nos lincha- ‘mentos por vinganga & a dos motoristas de taxi: — em 7 casos a populagao invadiu a delegacia ou o forum, para Felirar presos ja sob a custidia da justiga. Em trés ocasides (Mato, em Sao Paulo; Guanambi, na Bahia; e Macaé, no Rio de Janeiro), o linchamento foi consumado; — em 9 casos as vitimas foram oficialmente reconhecidas como inocentes do delito que Ihe Foi imputado; a maioria dos linchados & composta de assal de idade variante entre 16 25 anos; — em varios casos 0s mortos linchados nao sao identificados, sendo enterrados como indigentes; — dos 82 casos noticiados, nao ha, até os dias de hoje, qualquer conclusio de inquéritos nas delegacias. ites miseraveis, levantamento de imprensa realizado nesta pesquisa inclui ocorréncias publicadas durante 0 periodo 1979-1982 em periddicos do Rio e de Sao Paulo’. E importante lembrar que na década ante- rior (1969-1979) foram noticiados 41 casos de linchamentos s6 no Rio de Janciro. A analise desses dads atuais de noticidrio permite estabelover algumas interpketagdes sobre percepgao social do * Os peratican consults so os jonas O Estado de 8, Paul, Jornal do Brust otha de 8. Panto, Jornal ta Tardee Jornal da Republica; ¢ossemanitios Isto, Vee Movanent 22 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG.) fendmeno. Do lado da sociedade, trata-se de indicar evidéncias de justificativas, de apoio ou de repiidio ao linchamento, manifesta- {das pela populacao envolvida ou nao no ato de violéncia. Do lado do governo, trata-se de conhecer como as autoridades e os respon- saveis pela seguranea publica enfrentam 0 problema. Em ambos os casos 0 ponto crucial se refere a indicacdo das causas diltimas para a pratica dos linchamentos, © que remete diretamente a questao da imagem da policia e da justica percebidas pela populacao. ‘A Baixada Fluminense, tristemente célebre como cenario das barbaras ‘“desovas"” do Esquadrao da Morte e dos demais grupos de exterminio, mantém o recorde de linchamentos. A situacao de miséria e marginalidade — politica social, econdmica — da regiao € conhecida. Nesses termos, Percival de Souza compreende a alta incidéncia de linchamentos: 0 total desinteresse da policia por pequenos roubos, furtos de bicicleta, invasdo de domicilio etc., por um lado, € a oportunidade de vinganca particulares, por outro. O que pode parecer irrisério para muita gente de fora é, contudo, irrisorio para quem mora na Baixada, Por isso os moradores no costumam desprezar eventuais oportunidades de vingangas. Lin- chamentos ou espancamentos chegaram a se tornar comuns. O mais famoso dos casos aconteceu em 1970, quando os moradores de Morro Agudo, em Nova Iguagu, lincharam um vetho louco que perambulava pelo bairro. O velho, espancado, morreu amarrado a um poste. No mesmo Morro Agudo, tempos depois, os moradores lincharam um astrologo, nao satisfeitos com suas previsdes € seus galanteios para as mulheres do bairro* Mas se parcelas significativas da populagdo, profundamente inquieta — fala-se em “panico”, ‘‘paranoia coletiva’”, “*barbat avassaladora”, “cidade sitiada’’, “guerritha urbana’’, “clima alucinatério” etc. —, tém condigdes sociais ¢ econdmicas para criar esquemas de seguranga, particulares ou coletivos, 0 mesmo nao acontece com a populacdo dos assim chamados “bolsdes de violencia”, cujos expoentes méximos sdo a Baixada Fluminense no Rio, a regiao periférica das zonas oeste ¢ sul de Sd0 Paulo. Neste caso, as familias so obrigadas a criar seus proprios mecanismos de defesa, principalmente para a protecdo contra os assaltos e abusos sexuais. Formam-se grupos de vigilantes, de vizinhos, comissoes de mulheres que acompanham maridos e filhos ao ponto de dnibus de madrugada etc. Como depde um morador da Baixada Fluminense, SA Maior Violéncia do Mundo, Sao Paulo, Ed. Trago, 1980, 9, $1 ‘CRIME, VIOLENCIA E PODER 23 “temos que fazer justia com nossas proprias armas, ¢ 0 que existe éenxada, foice, marreta e ancinho" (Veja, 31/10/79). Nessas regides pobres e sem qualquer seguranca, 0 pagamento de um “pedagio” ao assaltante para livrar-se do abuso sexual & comum, Muito pior, no entanto, é 0 descaso da policia diante desse tipo de crime, 0 que aumenta a revolta das familias: as deniincias so, em geral, recebidas com ironia e humilhagdes; nao raro os pais aflitos ouvem a seguinte resposta: “A policia ndo tem tempo para defender o... de sua filha’” (Movimento, 27/10/81). Tipos de linchamento: 0 andnimo e 0 comunitario “Centro de Sio Paulo, em pleno meio-dia, trombadinha entra em agdo. O grupo de populares dispostos a lincha-lo ¢ tao violento que a propria vitima do furto o enfrenta ¢ protege 0 ladrao até a chegada da policia. Tratava-se, alids, de um egresso da FEBEM, tuberculoso ¢ epiléptico” (O Estado de S. Paulo, 18/01/80). “Centro do Rio, um assaltante atingido em tiroteio com a policia € perseguido pelos transeuntes. Estes, além de procurar linchar o ferido, ainda tentaram retirar do camburdo 0 cadaver de ‘outro assaltante" (Jornal do Brasil, 22/03/80). “Um motorista abandonou seu taxi no meio da rua ¢ foi agre- dir, a socos e pontapés, um homem que era conduzido por um guarda. Ele nao sabia que se tratava de um quase suicida, salvo pelos bombeiros no alto do edificio de onde comecava atirar-se, ¢ explicou-se na delegacia, para onde foi levado acusado de agressao: “Pui assaltado varias vezes e jurei que, se pusesse as maos num ladrao, eu matava’"” (Isto, 21/01/81). “No Rio de Janeiro, transeuntes chegaram a amarrar um jovem numa drvore, no centro da cidade, simplesmente porque 0 infeliz, alm de mal vestido, estava com “atitude suspeita’” perto de uma bicicleta e alguém deu o alarme. A policia chegou a tempo de impedir a ‘puni¢ao’ e comprovar a inocéncia do ‘suspeito” — a bicicleta era dele” (Jornal do Brasil, 25/08/80). “O quase-linchamento de um figurante de cena ‘ao vivo" de uma novela, em plena avenida Paulista, € outro exemplo. As cenas, de realismo na agressdo ao ‘trombadinha’ foram tomadas a sério. por transeuntes que atacaram o jovem ator com socos € pontapés”” (Fotha de S. Paulo, 14/02/81). 2 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG,) As ocorréncias acima relatadas revelam como a compulsao Punitiva, mesmo quando nao se trata de legitima defesa, pode ocorrer em meios urbano-sociais diversos dos “bolsoes da mi ria’’, excessivamente identificados com os cenatrios proprios da vio~ lencia ¢ criminalidad Esse tipo de revolta coletiva seguida de violenta agressdo contra © criminoso ou apenas suspeito — de um delito que nao atingiu diretamente os agressores “justiceiros" — & bem diferente dos linchamentos na Baixada Fluminense, por exemplo. Nao se trata mais da “justia do talido”, da vinganga imediata ou de um meio radical de protecao pelo exterminio do criminoso conhecido, ‘mas da explostio de violéncia punitiva de outra natureza, Tratase de manifestagao explicita do que eufemisticamente se tem denomi nado “histeria coletiva’® de pessoas que, de uma maneira ou de outra, além de nao confiarem na agdo da policia ¢ da justiga, intro- jetaram profundamente os principios de que “*bandido tem mesmo € que morrer’’, na defesa implicita dos “Esquadrdes da Morte” e das penas capitais. Tais pessoas nao foram diretamente atingidas pelo delingiiente, mas sera através da violencia na agressao puni- tiva — que pode chegar até a morte — que extravasarao seus mais Profundos sentimentos de inseguranga, revolta ¢ ddio. Esse tipo de linchamento — onde praticamente se ignora a origem do tumulto, geralmente uma correria depois de gritos de “pega ladrao" — nao se inelui nos casos analisados no Relatorio dos Cientistas Sociais. Os exemplos ai discutidos apontam a exis- éncia de uma ‘*comunidade homogénea e identificavel por tras do fato"’, contra a autoridade mas a favor da ‘justiga, que nao vinha"". Tal interpretagao s6 pode ser aplicada aos casos de lincha- ‘mentos em pequenas cidades, mas ndo ds ocorréncias andnimas, de Feagdo violenta de transeuntes aos gritos de “pega ladrao”, Um dos aspectos mais especificos dos “linchamentos comu- nitarios” — ¢ que explicita, duramente, a descrena popular na Justiga — se refere ao fato de que os linchadores assumem “papéis”” de policia, juiz ¢ executor. No caso do linchamento de um “trom- badinha’’ em Curitiba, por exemplo, os motoristas de taxi “tize- Fam as investigagoes"", “yulgaram”” o suspeito, torturaram e mataram. Bra inocente A fitria punitiva & to mais distante de um desejo real de “sjustiga’, que os atos de violncia extravasam, em muito, uma ado “eorreliva’. E 6 caso, por exemplo, de iniimeros linch Mentos nos quais & vitima continua sendo agredida com extrema CRIME, VIOLENCIA E PODER 2as brutalidade mesmo depois de morta. Muitos so casteados (sobre- tudo em casos de deniincia de estupro) e mutilados; outros sao tor: rnados irreconheciveis, vom esmagamento do crinio com paralelepi- pedos. No linchamento do suspeito de latrocinio em Curitiba os motoristas de tii “vingadores” terminaram por enforear a vitima — jit morta ~~ num poste de sinalizagaio (Isto E, 31/10/79). Justificativas ¢ apoio: a “justia” popular~ Em termos de apoio ¢ das justifieativas, também & necessario estabelecer uma distingao entre os linchamentos que ocorrem em pequenas cidades ¢ envolvem toda a populado, dos finchamentos praticados numa Area dos grandes centros urbanos, No primeiro caso, 0 “justigamento” & praticamente programado, hit uma certa coordenagdo, vom liderangas ¢ estratéxias. O crime imputado ao linchado tem caracteristicas de alto poder dle mobilizayao: ou a viti- ma do crime erat pessoa muito estimada na cidade, ou 0 tipo de crime (como seqtiestro de evianga ou estupro) estimula sentiments de profunda revolta e "sede de vinganya’” etn todas as canada dt sociedade. Nesses casos nao ha arrependimento pela selvageria de (0 Faro Os linchadores confeysam 0 linchamento; a0 contrario, 1 ato, até mesmo com orgulh. No linchamento de Mato, por exemplo — & populagao farrancou o marginal “*Tuim” da sala de testemunhas do forum ¢ Tinchou em praga pablica —, “nd havia resquicio de remorso ou Piedade, Para todos, mesmo os que so participaram do lincha- mento, a morte do marginal nada mais representava do que um ato de justiga. A naturalidade com que ox moradores reeeberam aquelas cenas de violencia era to grande que chegava a espantar 0 proprio delegado" (Jornal da Reptiblica, 23/11/79). O proprio padre ~ a cidade & considerada muito religiosa, famosa pela pro- > de Corpus Christi — declarou: “A gente nao concord com acontecett, mas se voos visse em que estado ficou o motorista dlo..."" E-um dos linchadores ainda acrescentou “Para 0 povo de Matio o dia do linchamento foi melhor que o de Corpus Christi”® (Folha de 8. Paulo, 23/11/99) No linchamento de Macaé, eutro exemple, « populagao inva: diu a delegacia, sequestrou o preso (acusado de violRneias sexwais contra iniimeras mulheres da revido), lincharam © mutitaram. O delegado arrolow 27 testemunhas que confessaram sua participagao 26 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG.) no linchamento (incluindo mulheres ¢ criangas) € quase todos admi tiram que fariam de novo “se necessario”’. Todos eram moradores da regido, carpinteiros, pescadores, mecdnicos e serventes, como a vitima (21 anos). As vitimas dos estupros foram & delegacia e se mostraram gratas aos linchadores, que foram todos soltos cinco dias mais tarde (Jornal do Brasil, 16/08/80). © linchamento do menor ‘Testao’ (15 anos, egresso da FEBEM, acusado de varios assaltos e latrocinios), numa favela da Vila Missionaria, periferia de S40 Paulo, foi precedido de requin- tado ritual punitivo: familiares do dono do bar assassinado obriga- Fam 0 menor assassino a assistir ao velorio e depois o lincharam. Em seguida fretaram um dnibus e se apresentaram na delegacia, Dentre as inimeras manifestagdes de apoio ao linchamento, na favela, ouvia-se: “Foi a melhor coisa que fizemos aqui. Deus ajude essa turma que acabou com o bandido. Fizemos uma boa limpeza”” (Fotha de S. Paulo, 21/10/80). © epis6dio de Santa Cruz das Palmeiras — tentativa de seqiiestro de 3 presos acusados de violéncia sexual — envolveu toda a populacao da cidade. Difere, no entanto, dos linchamentos de Mato ¢ Macaé, pois a policia reagiu com violéncia para proteger 0s presos, acionando uma rea¢o popular que teve o saldo de um morto e varios feridos. A populacao destruiu e incendiou a cadeia da cidade ¢ a revolta contra a agao policial era tao grande que 0 Prefeito solicitou a saida da PM para pacificagao dos animos. “*O assaltante pratica todos os delitos imaginaveis, tornando- se até assassino, e ndo raras vezes nenhuma investigagao é realizada (alega-se falta de policiais, de viaturas, de gasolina etc.). No entanto, quando 0 povo, cansado de ser t40 vilipendiado, faz justiga com as proprias maos, através do linchamento, quase sempre aparece uma patrulha ‘salvadora’ do celerado. Por que ela ‘Nunca aparece no momento de um cidadao estar sendo atacado?” (Carta de Leitor, Jornal do Brasil, 16/01/81). O leitor acima lamenta que a “patrulha salvadora” impeca 0 linchamento ¢ defende a ‘‘justica com as prprias mas". Nao se trata de um fato isolado. Em novembro de 1979 a TV Globo rece- beu milhares de cartas comentando a série de reportagens apresen- tada em seu programa dominical Fantastico. De um total inicial de 4194 cartas, 3862 se declaravam favoraveis & pena de morte, ou métodos afins, para os criminosos e assaltantes; destas, 810 apoia- vam explicitamente a pratica do linchamento, sendo que mais da metade do total defendia 0 Esquadrao da Morte e as execugdes CRIME, VIOLENCIA E PODER 27 sumarias na rua. A repercussdo foi tfo grande que o diretor do pro- grama veio a piiblico assegurar que “*nao houve de parte da Globo nenhuma tentativa de induzir os telespectadores a optarem pela pena de morte” (Jornal da Reptiblica, 12/12/79) Varias outras justificativas completam 0 quadro. Um dele- gado do Rio de Janeiro afirmou, em congresso da classe, que ‘os, linchamentos fazem ver aos bandidos que eles ndo so donos da rua; ndo se trata de fazer justiga com ddio aos criminosos, mas com amor as suas vitimas” (delegado Waldemar de Castro, Jornal do Brasil, 10/11/80). Outras autoridades também nao se constragem em aplaudir ou justificar a agao dos linchadores. O prefeito de Matdo afirmou que “os linchadores agiram certo 95% da popu- lacdo esta de acordo” (Jornal da Republica, 23/11/79). E os verea- dores de Macaé felicitaram da tribuna da Camara Municipal os linchadores que “‘defenderam a honra da cidade” (Jornal do Brasil, 22/08/80). Um delegado da Baixada Fluminense declarou que ‘‘matar trabalhador é safadeza, mas se é a ‘policia mineira que mata criminoso, eu faco vista grossa” (Jornal do Brasil, 22/01/81). Opinides sobre as causas dos linchamentos ‘A maior parte das consideragdes sobre as causas dos lincha- mentos registradas pela imprensa permanece num nivel de generali dade que remete, necessariamente, a discussdo mais ampla sobre as causas da propria violéncia no pais, nos seus aspectos politicos, juridicos, econdmicos ¢ sociais. E possivel, nao obstante, tipificar as principais causas apontadas como “‘explicagao” para a crescente ocorréncia de linchamentos: — A desinformacao ¢ a falta de acesso & participagao social e poli tica das amplas camadas populares que vivenciam uma situagao de marginalidade econdmica e social; — 0 descrédito na eficdcia da policia ¢ na agao da justica, pelo envolvimento da policia com os criminosos, por um lado, e pelo sentimento de que “hd uma justiga para pobie © ulra para rico”, por outro, configurando o radicalismo da desigualdade social ao nivel da cidadania; — a explosdo patologica de ‘*psicose coletiva’”’, exacerbada pelo crescente sentimento de panico devido ao aumento da criminali- 238 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG.) dade violenta ¢ a manipulagao ideologica desses fatos ¢ per- cepgoes; — a absoreao dos métodos violentos da policia pelos criminosos ¢ pela populagao que é alvo constante de sua atuagao repressiva; — a consequiéncia natural da exacerbagao da repressao e do arbi. trio em varios niveis, favorecendo a impunidade de alguns e a estigmatizagao de muitos. As opinides dos profissionais do Direito coincidem em alguns destes pontos, entre os quais o principal é o descrédito da popula- 40 na agdo da policia e na justica. “O povo lincha porque nao acredita na justica. O desprezo pela lei, ostensivo a partir do pro- prio governo, desenvolve, no povo, um agudo descrédito na auto- ridade.”” A associagao da violéncia popular nos linchamentos com a familiaridade da populagao com os métodos violentos da prépria Policia — tortura, confissdes arrancadas & forca, morte violenta dos presos e suspeitos — nao parece exagerada. Uma ocorréncia no Rio de Janeiro prova, de maneira exemplar, a tragica simbiose na violncia punitiva: como nos casos de linchamentos populares, a Policia uniformizada também algemou, amarrou em poste e surrou @ socos © pontapés © suspeito j4 dominado (Jornal do Brasil, 20/01/81). © sensacionalismo que, inevitavelmente, envolveu certos julgamentos de criminosos pertencentes as camadas privilegiadas da sociedade que foram absolvidos contribuiu para reforgar 0 sentimento de inseguranca e da impunidade e a percepcdo de que a justica tem praticas proprias para cada classe social. No lincha- mento do fazendeiro de Cantagalo, por exemplo, os linchadores : “Nao acreditamos na policia. Rico nfo vai para a Pesquisa de 1980 do Instituto Gallup de Opiniao Pablica revelou que a grande maioria das pessoas assaltadas no Rio de Janeiro e em Sao Paulo nao apresenta queixa a policia: 70% no Rio € 59% em Sao Paulo. Além desse clamoroso voto de desconfianga na eficiéncia da policia, existe a deniincia de que a populacao deve ter tanto medo da policia quanto dos ladrdes, na medida em que & frequente 0 noticidrio sobre crimes de sequestros, latrocinios extorsdes envolvendo policiais da ativa, © sentimento de perplexidade, inseguranga e descrédito popular é reforcado pelas proprias autoridades, como nas declara- CRIME, VIOLENCIA E PODER 239 ‘gdes do ex-secretario de Seguranga Publica de Sd Paulo, Octavio Gonzaga Junior: "Nos nao temos escolha. Aconteca 0 que aconte- cer, vamos combater a violéncia com a violéncia, porque nao existe outra maneira"’ (O Estado de S. Paulo, 17/01/81). Nao surpreende, portanto, a contrapartida popular contida no desabafo, tragico e perplexo, de um velho e humilde morador da Baixada Fluminense, vitima de muitos assaltos ¢ testemunha de tanta violéncia: “*O radio diz a toda hora para 0 povo colaborar com a policia. © povo colabora linchando” (Jornal do Brasil, 21/01/81). A revolta contra a ineficiéncia dos servigos de seguranga e de policiamento corresponde a revolta contra o péssimo servico de transporte para uma populacao de trabalhadores, em sua grande maioria ja espoliada de seus mais elementares direitos de cidadaios. A violencia das depredagdes dos trens e das estagdes nao difere da violncia das depredagdes dos prédios da delegacia, nos episédios de linchamentos em Cantagalo ¢ Santa Cruz das Palmeiras, por exemplo. Por ocasiao do ultimo quebra-quebra nas estacdes do sistema Santos-Jundiai (10/02/81), dizia 0 maquinista José Antd- nio de Albuquerque: “Eu nao sou louco de usar o uniforme. Eles so capazes de me linchar’’. E o coronel A. Weber, presidente da Rede Ferroviéria Federal, declarou: “Se estivesse la, também quebraria tudo. Acredito que o usuario tem justas razdes para irritar-se e respeito muito a justa e santa ira do usuario com relagao as causas, que so de nossa responsabilidade” (Movimento, 16/02/81). Se 0 noticidrio da imprensa e a opinido de autoridades e espe- cialistas reafirmam a existéncia na populacdo de um sentimento de descrédito no funcionamento das instituigdes de seguranca e jus- tiga, no combate a violéncia urbana, é preciso tentar caracterizar como se dao as relagdes que configuram tais percepcdes em indi- viduos e grupos. Para tanto convém responder operacionalmente a duas questdes basicas quando se trata do tema da violencia urbana: 1. De qual violéncia se fala? 2. O que sdo: de um lado, a populacao que interage com estas 240 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG.) instituigdes ¢, de outro, as institui¢des que lidam diretamente coma violéncia tal qual definida. Para definir a violencia urbana no contexto das metropoles brasileiras & preciso inicialmente separar a ocorréncia de atos vio- lentos em situacdes de criminalidade (assaltos, homicidios, agres- sdes fisicas), da violencia inerente as condigdes de vida das camadas de mais baixa renda que provocam prejuizos mentais, fisicos € sociais nos individuos a elas submetidos cotidianamente. ‘Tomando-se a primeira questo, j4 que a segunda extrapola excessivamente para a questo mais ampla da estrutura sécio-eco- nomica do, pais (embora, ressalve-se, ambas as vertentes conte- rnham muitos ¢ importantes pontos de interligagao), convem definir os indicadores quantitativamente e qualitativamente da violencia criminal, Ha um consenso de que houve um aumento do niimero de ocorréncias criminais em Sao Paulo € Rio de Janeiro que é expli cado pelo inchamento populacional da urbanizagio acelerado ¢ pela ampliacao quantitativa das camadas mais pobres. Entretanto, quando se remete a analise dos dados para contextos mais amplos, observa-se que a associag4o entre aumento de criminalidade ¢ expansfo urbana vem se constituindo em tese excessivamente gen rica e superficial em quaisquer metrdpoles da sociedade ocidental capitalista. Gordon, em artigo sobre a criminalidade urbana nos EUA‘, afirma que esta generalizago nao encontra fundamentacdo nos dados quantitativos, ja que a proporgao do crime urbano é peque- na em relacdo 4 magnitude global das estatisticas criminais. O que ocorre & a influéncia do Estado orientando a percepgio social através da divulgagao dos crimes urbanos que integram 0 “index"* das instituigdes policiais ¢ juridicas, entre os quais 0 homicidio, a agressio fisica ¢ 0s crimes contra o patriménio. Enquanto que os crimes de maior relevancia no sentido do impacto econdmico pro- duzido, tais como as fraudes financeiras e as atividades das organi- zagdes criminais de caracteristicas empresariais, no constituem objeto das estatisticas oficiais e da divulgagao publica, os crimes contra © patriménio ¢ a propriedade privada priorizados para * Gordon, David M., “Crime” D.C. Heath and Cia, 1977, in Poluical Economy in Urban Problems, Mass.. ‘CRIME, VIOLENCIA E PODER 2 Estado constituem os fatores para alicergar as teorias sobre a peri- culosidade dos grandes centros urbanos, representada principal- mente pelas populacdes dos subirbios pobres ¢ guetos negros. No entanto, pelos proprios dados oficiais, Gordon observa que os homicidios nos EUA representam 1/12 das mortes violentas ocor- ridas e que a probabilidade de um individuo ser assassinado por um agressor estranho & 50% menor do que a de ser vitima de pessoa de suas relagdes. Estas caracteristicas s4o igualmente observaveis na realidade brasileira, em pesquisa realizada com dados do Instituto Médico Legal de So Paulo no periodo de 1960 a 1975. Melo Jorge’ observa que houve um aumento de 290% de homicidios em geral, enquanto que o niimero de mortes violentas provocadas por acidentes de transito creseeu 455% no mesmo periodo, © segunda causa mais frequente € representada pelos acidentes ein geral, dentre os quais 30% ocorrem em situagdes de trabalho, prineipalmente na construgao civil. ial no Brasil & igualmente voltada para a @nfase nos crimes contra o patriménio, Em abril de 1981 a regiao da Grande Sao Paulo registrava 1875 roubos, dentre os quais 11 resultaram em morte da vitima. Os dados referentes a década 60-70 ‘em Belo Horizonte indicam que o crescimento de crimes contra 0 patriménio isentos de uso da violencia cresceram duas vezes mais do que os crimes com caracteristicas de violéncia contra a pessoa" Portanto, ao se tratar do comportamento violento da crimi- nalidade urbana, fica definido que se fala de um fendmeno de ocorréncia generalizada; que ndo pode ser identificado diretamente Por dados quantitativos oficiais, os quais refletem padroes estrutu- rais diferenciados da sociedade; e, finalmente, que nao pode ser categorizado qualitativamente em si, porque a avaliagdo do grau de léncia de um ato é produto da percepgao dos envolvidos e dos observadores. Isto remete para a segunda questao: quem é esta populagio; como ela interage com as instituigdes que formalmente exercem 0 controle social? Inicialmente convém reafirmar que a populacao 7 Jorge, M. Helena P, de Melo, “Mortalidade por Causas Violentas em S, Paulo” {ese de doutoramento apresentada a Faculdade de Saude Pablica, USP, SP. 1979. "Conf. Paixao, Antonio Luiz, “Crimes ¢ Criminosos em Belo Horizonte: Una Exploragao Inicial das Estatisticas Oficiais de Criminalidade’, papel interno ea Fundagdo Joao Pinheiro, 1981 2 PAULO SERGIO PINHEIRO (ORG.) que é objeto praticamente exclusivo desse controle & constituida pelas camadas populares e de condigdes sécio-econdmicas precé- rias. Isto configura 0 processo de discriminagao social e dominacao de classe generalizado da sociedade, mas além disso amplia a tarefa de seguranga da organiza¢ao policial para a pratica da repressao dos movimentos sociais, inevitavelmente latentes nas situagdes de exploragdo em que vivem essas camadas A relagdo entre miséria, criminalidade e violencia foi rapida- mente aceita pela ideologia dominante € passou a justificar os procedimentos policiais arbitrarios, como: as operacdes de buscas com grande aparato bélico nos bairros operarios ¢ favelas; a tortura como o instrumento de investigagao e punig#o concomitante; as detengOes ilegais que fundamentam o principio pratico de elucidar © crime selecionando do amplo contingente de possiveis suspeitos (na pratica a maior parte da populagdo urbana) aqueles que even- tualmente podem ter um envolvimento real’ A estigmatizacao do pobre € incorporada pela populagao em geral levando as reagdes de apoio as arbitrariedades, ao mesmo tempo em que o reconhecimento da ineficacia desses provedimentos policiais para garantir a seguranca da comunidade provoca reagdes de revolta, cujos exemplos dramaticos sao os linchamentos. Portanto, 0 nico efeito real dessa relacdo contraditoria entre a policia € 0 povo & 0 processo de atemorizagdo que reprime a expresso pessoal ou coletiva e coloca cada cidadao isolado e aban- donado frente a0 aparato institucional. Os meios que 0 Estado emprega no controle de participagao social levam 05 cidadaos — principalmente das camadas mais carentes economicamente, mas no apenas destas — a considerarem estas instituigdes como instan- cias superiores e externas impermeaveis & intervengdo individual ou coletiva, E provavelmente a situagdo de maior distanciamento — seja ao nivel da agdo, seja ao nivel da concepeaio — entre o cidadao e0 Estado. Assim, enquanto os linchamentos configuram momentos em ‘que estas percepgdes atingem seu apice numa agdo incontrolavel e complexa, a vivéncia cotidiaha das relagdes de desigualdade ¢ 9 “Policia Cientifica é bobagem de escola, nao dem nada, (..) 0 investizador si Aprende depois que sai da Academia ¢ parte para a pritica. No Brasil a Policia parte do criminoso para o crime e no 0 contririo como se v8 nos filmes estran sciros”, Depoimento de investigador de Distrito Polical da cidade de Sa Paulo, abril de 1982. CRIME, VIOLENCIAE PODER 2a opressao fortalecem, pela internalizacao dos estigmas e pelo impe- dimento do exercicio real dos direitos civis, 0 processo de manter os cidadaos isolados e vulnerdveis e sempre no limite da capacidade de resistir ao medo e A inseguranca. Comentario 1 HELIO BICUDO* Se encararmos o problema do linchamento, do prisma estritamente juridico ~ do fato que produz lesdes corporais leves ou graves, ou, geral- ‘mente, a morte —, iremos verificar, de um lado, que é possivel enquadrar 0 ato tipico de linchar em alguns dispositivos do Cédigo Penal — nos artigos 121, 129, 132, 137 € 286, As dificuldades, ainda, deste Angulo, surgem quando se tenta acionar © aparelhamento judiciario’ para a punigdo dos autores de um ato de linchamento. Em geral, pingam-se meia dizia de pessoas, geralmente aquelas que ‘mais se empolgaram.no ato de linchar, ¢ elas s4o levadas a Justica para um arremedo de investigagdo e processo. Como as autoridades nao se querem incompatibilizar com a opiniao publica exacerbada e tem, dentro de si, a certeza de uma co-responsabilidade decorrente da impunidade, em geral ocorrente para crimies assemelhados — violencia policial (tortura e morte) =. as investigagdes tendentes a apontar os autores desses atos de violencia se diluem na propria extensao do numero deles. E 0 que acontece nesses casos é a impunidade, embora por outros motives, como, por exemplo, a adesdo, por veres irracional, & reag2o popular. Permanecendo, ainda, na qualificagao legal do problema, na busca das causas de sua explosdo, que ultimamente, como acentuam Maria Victoria Benevides e Rosa Maria Ferreira, vai numa escalada que podera — ‘mantidas as condigdes atuais — vir a ser incontrolavel, iremos verificar que uuma defeituosa organizagao policial-judicidria, a qual propicia a pratica da violencia oficial, € também responsavel, em parcela substancial, por essa mesma escalada, E que as classes populares, melhor conscientizadas, vém verificando que existe uma diseriminagao na agao da policia e da Justiga, que busca + Ex-procurador do Estado de Sa0 Paulo, CRIME, VIOLENCIA E PODER us sujeita-la a um modelo econdmico-social propiciador de privilégios para uma minoria, as custas do sofrimento de muitos, Poder-se-ia, nesse sentido, encarar como "linchamento™, que é igual a “tortura” e "morte", as execugdes extralegais levadas a'efeito pelo aparelhamento policial estatal Pi pois, fixar-me nesse aspecto da questo — as exe- cugdes “extralegais © problema das execugdes extralegais ¢, sem duvida, mais difundido s do Terceiro Mundo. Nesses paises, como uma consegiiéncia da politica de espoliagao econdmica que teve inicio no século XVI ¢ que ainda se mantém, nao obstante se apresente hoje sob outras roupagens, todo o ordenamento juri- dico se construiu no objetivo de manter os privilégios das classes domi- nantes (que sempre representaram o interesse do imperialismo, seja euro- peu, seja americano), & custa da contencao das camadas populares nos seus anscios de participacao politica e social A legislacao fundamental desses paises contempla um rol de direitos ue nao sdo implementados pela legislardo comum e servem, apenas, para alardear a caracterizagao, face 0 mundo civilizado, de uma organizacao verdadeiramente democratica, As leis penais, civis, comerciais, tributarias e, sobretudo, as leis elei- torais, visam, sem divida nenhuma, esse objetivo. No dircito penal, basta verificar quais as pessoas que sto submetidas 4 processo e encarceradas; no direito civil, como se caracteriza a proprie dade dos bens iméveis; no direito comercial, a predomindncia do interesse dos empresirios; no direito tributario, a repartigao da renda; e no dircito cleitoral, o alijamento das camadas populares das decisoes que interessam & ‘ago, pelo falseamento dos canais de representagao popular, para que se conclua pela procedéncia dos reclamos de significativos segmentos da Sociedade em prol de sua real emancipacao no caminho da igualdade de direitos, Dentro desse contexto, a repressto policial, com 0 apoio de uma estrutura judicidria elitista, nao tem, propriamente, limites. No Brasil, ¢ fora de dividas que a forca policial, que ¢ comandada pelas Forgas Armadas (ela depende na sua organizacao da Inspetoria Geral das Policias Militares, que & um érgao do Estado-Maior do Exército), age, fem larga escala, mediante real intimidacdo — prisdes ilegais, espanct ™entos, torturas e mortes de pessoas das classes populares — para manter fora do processo de conscientizagao politica e de sua participagao cerca de 2/3 da populagao. ‘Ora, essa atividade — as execugdes extralegais, na forma de atuagao dos “Bsquadrde: da Morte" tem um nitide conteddo politivy, muito embora nem sempre atinja militantes politicos. Na estrutura administrativa dos paises do Terceiro Mundo, como se sabe, toda essa atividade permanece impune e, por isso, redobra, a cada nstante, esse tipo especial de violencia, No Brasil, a experigncia tem demonstrado que somente o despertar da consciéncia das classes populares poderd levar a maior seriedade ¢ eficigncia na investigagao dessas execugdes extralegais. os ps 246 PAULO SERGIO PINHEIRO(ORG,) Ent primeiro lugar, ¢ significative que se dé autonomia ao Ministerio Piblico, encarrezado de propor a aeao penal perante o Judiciirio, Sem que lum Turcionario independente € que esteja acima da policia poss agir em nome do interese popular. difieilmente poder-se-a apurar os erimes que se encartam nay execuedes extralegais, No Brasil, © Ministerio Pablice, por uma lei recente, no tent mais qualquer ingeréneia junto a polivia e 0 chefe da instituigdo € nomeado pelo chefe do executive ¢ demissivel ad mutum. Sujeito ao "sistema", nao esta em condigdes de atuar como detensor dia lei le da Sociedade. FE apenas unt representante do poder dominante, ‘Outro ponto importante a ser vonsiderado esta em se dar maior esti- rmulo @ instituigdo, nas comunidades periférieas, de “centros de defesa de direitos humanos Exses “centros"”, com representantes das comunidades, exercem & podem desenvolver essas atividades, uma fisealizagdo efieay sobre a ayao policial repressiva, em especial sobre as execugdes extralegais, fiscalizagao essa que se corporifica no acompanhamento da ago policial e na deniancia publica de suas arbitrariedades Ewes “eentros"” podem ser 0 embriao da maior partivipagao da comunidade nos servigos de seguranga ¢ no proprio sistema de distribuigao da justiva, Da mesma maneira em que inexiste representagdo nos Orgaos poli tivos da administragdo, seja do Executive ou do Legislative, também nao se pode falar emt representayao da comunidade nos Orgaos policiais e judi idrios, os quais Sto elitistas ¢ inteiramente estranhos e impermeaveis mes mo a qualquer modalidade de representacao popular. O Tribunal do Juri, que poderia ser 0 veiculo dessa repreventagao, foi distorcido na sua const luigi, de sorte que & composto pelas elites, estranhas & realidade popular ©, por isso mesmo, mais voltadas A repressao pura e simples, desde que essa aluagao nao interfira na estrutura lo “poder” de que participam, Extender e amparar a participagdo da comunidade nas atividades policisis ¢ judiciirias pode ser um caminho habil para que se chegue a iia na investigaydo das execugdes extralegais. F acompanhada m Ministerio Pablico autdnomo ¢ independent, levard a lum satisfatorio evelareeimento dos fatos e, por conseguinte, a uma atitude rmienos desenvolta dos organs de repressae. Penso que o problema da eficiencia nesas investigagdes & uma ‘questao eminentemente politica, Um governo militarista somente sera sensivel a uma modificaedo de sua atitude, no sentido de mo incentivar ou folerar qualquer tipo de execugdo extralegal, desile que pressionado pela sociedade civil no seu todo. © encorajamento para gue os governos ajam nese sentido deve partir de uma firme dendneia de 6120s de prestizio junto aos organismos internacionais, buscando até mesmo, por parte dos paises industrializados, a cessagdo de ajuda militar ¢ econdmica, condicionadas & participagao Popular € a uma auténtica representagdo popular nos paderes do Estado. No Brasil de hoje intentasse realizar uma eleigdo, para a escolha dos membros dos parlamentos estaduais e federal e também dos cheles dos Executivos estaduais, com modificagdes da legislaglo existente, de tal sorte que 0 “sistema militarista™, apoiado pelas Forgas da diteita, mante- ‘maior efi CRIME, VIOLENCIA E PODER 27 nha o controle do pais, afastadas de qualquer participagao as classes populares, E preciso que os Estados democriticos se fagam representar em todo © proceso dessay eleigdes, pars que possam compreender a maneira pela ual se preiende impedir a livre manifestagio da vontade popular — fal seando-a como se fer nat Guatemala ¢ em El Salvador — para que pe ‘nega © jugo do poder militar, responsive iillime plas execucdes extra legais ‘Os governos s6 podem ser encorajades a instituir inqueritos imps ciaiy e independentes, pressionados de dentro para fora ou, de maneira Je fora para dentro. Aqui, por parte dos paises industrial zados, au uum poder de barganha muito grande relativamente aos paises do Terceiro Mundo, dala as proporgdes a que chegou o seu end damento externo e as grandes necessidades que 1ém de prosseguir em inves- timentos basicos, podem softer pressaes a fim de que, ao invés de restrin- - como ultimamente se fe7 no Brasil, se ampliem as pautas de participa 20 popular no provesso politico © Social, democratizando, enfim, as nstituigdes, para que elas cumpram as suas finalidades de justiga e paz, ao invés de se tornarem fin: de si mesmas ¢ instrumente de opressio do povo.

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