Você está na página 1de 23
A Estrutura das Revolugées Cientificas e 0 pragmatismo cientifico de Thomas Kuhn Anabela Gradim “Em parte este ensaio é uma tentativa de explicar a mim mesmo ea amigos como me aconteceu ter sido lancado da ciéncia para a sua histéria”, inicia o prefacio da mais conhecida obra de Kuhn, 4 Estrutura das Revolugdes Cientificas, representando a tentativa do autor de justificar o seu percurso, da Fisica para istemologia, € o tremendo impacto que o livro teve junto da comunidade cientifica, Kuhn foi sem divida o mais influente epistemélogo do século XX. The Structure of Scientific Revolutions, publicada pela primeira vez em 1962, causou um verdadeiro abalo sismico junto da comunidade cientifica, ao colocar em causa a visto tradicional da ciéncia como processo a-histérico, linear e cumulative, © ao chamar a atengo para a importincia e papel da comunidade cientifica simultaneamente enquanto agente e obstaculo & mudanga cientifica Até a segunda metade do século XX 0 progresso cientifico era visto como cumulative. A ciéncia modema, tributdria do programa iluminista e da visio hegeliana do mundo, concebia a marcha da histéria e dos elementos que a compdem como um proceso constante € de sentido ascendente. Nem fim da histéria, nem evolugdo descendente,! que significariam a irrupgdo do irracional num real totalmente racional, e a morte da dialéctica. 1) Somos, mesmo que ono ssibarmes, ainda de tal forma tributdrios do programa iluminista que expresses come “evolugio” ou “progresso” tom um significado e uma carga simbiliea ascendente (no sentido das metifores orientacionais de que fala Lakof) pelo que expressdes como “evolupio ddescendente” resultam em verdadeiros oximoros. A Construglo da Cigncia: Da Logica da Investigaglo a Medigo do Impacto, pp. 21 - 44] 2 © programa epistemoligico que melhor corporizou esta mundividéncia iluminista foi sem divida 0 Positivismo Légico do Circulo de Viena. © grupo, que inclufa entre outros Hans Hanh, Kurt Godel, Otto Neurath e Rudolph Carnap, comegou a reunir-se a partir de 1924, em torno de um seminario privado lecionado por Schlick na Universidade de Viena? Em 1929 & publicado 0 manifesto do Circulo de Viena, 0 folheto “Wissenschaftliche Weltauffassung — der Wiener Kreis”. Autorado por Canap, Hahn e Neurath, fora coneebido como uma homenagem ¢ agrad ‘mento a Schlick, que acabara de declinar um convite para leccionar em Bona, decidindo permanecer em Viena. Para além do seu caricter pedagégico e politico (Uebel:2004), as principais teses do manifesto, ¢ que viriam a caracterizar todo © movimento, sdo bem comhecidas: rejeigdo do essencialismo e da metafisica tradicional; defesa do empirismo e do positivismo: o conhecimento s6 pode provir da experiéncia, ou a ela ser reconduzido; negagdo da possibilidade de juizos sintéticos a priori; utilizagdo da anélise légica e da légica simbélica para a reconstrugdo, em todas as Areas, dos conceitos fundamentais da ciéncia, que uma ver operada conduziria a cigncia unificada (Camap: 1995), Animados do “espfrito do iluminismo e da pesquisa anti-metafisica factual”, “oposto ao pensamento metafisico e teologizante”, os autores do manifesto declaram-se partidarios “de um modo de pensamento fundado na experiéneia © avesso a especulagao” (Camap: 1995), e partilhar uma mesma “concepgao cientifica do mundo” que se propdem defender e propagar. Este “espirito do iluminismo” é reconhecido pelos autores do manifesto como encontrando-se de forma particularmente vincada em Viena, reclamando para © Circulo, ao reconstruir a histéria dos primérdios do movimento, influéncia de pensadores igualmente “anti-metafisicos” como Russel, Whitehead, Reichenbach, Jame: Gomperz, Mach, Boltzman ¢ Brentano. © grupo que a partir de 1922 se reine em tomo de Schlick tem uma posigdo “nao apenas livre de metafisica, mas oposta & metafisica”. A Emst 2) . “Este citeulo nto tem uma organizacdo rigida; consiste em pessoas animadas por uma bésica «© idSoticaatiade ciemtfica(..) Em muitos casos, um pode representar outro, eo trabalho de um pode ser prosseguido por outro.” (Camap: 19950). A Estrutura das Revolugdes Clentficas ¢ 0 pragma 2B Mach Society, em nome da qual ¢ apresentado o optisculo, tem como missio divulgar junto do grande piblico as teses do Circulo, “a concepsao cientifica do mundo”, orientando-se para uma ciéneia totalmente “livre da metafisica”, Esta acteriza- por ser “uma atitude basica” e uma “direegao de pesquisa” tendo como objectivo “a cigncia unificada” (Carmap, 1995:5). Entre os tragos que distinguirio 0 movimento contam-se a recusa de todas as formas de essencialismo ¢ idealismo, de Platdo a Kant, Tudo 0 que io puder s questo empiricamente verificavel & declarado um pseudoproblema, A tarefa da é de que reconduz os enunciados até ao dado empirico, ou os desmascara como carecendo de significado por ndo denotarem estados de coisas nem poderem ser verificados. O Circulo rejeita a metafisica escolistica, o idealismo alemao, © também “a metafisica oculta de Kant ¢ 0 apriorismo moderno”, ou seja, a existéneia de juizos sin concepgdo cientifica do mundo apenas conhece enunciados empiricos sobre coisas de todos os tipos, ¢ os enunciados analiticos da légica ¢ da matemética” (1995:6). Rejeitam igualmente o intuicionismo como método, sempre que este iio seja objecto de estrita justificagdo racional, no 0 considerando um método privilegiado face aos demais, Finalmente, facto notavel, a recusa do essencialismo dard origem, em termos ontolégicos, a uma posi¢ao muito préxima de certas formulagdes do pragmatismo: “O Circulo de Viena mantém a visio de que os enunciados do realismo (critico) e do idealismo sobre @ realidade ou no realidade do mundo extemo ¢ de outros sujeitos sto de cardcter metafisico, porque estdo expostos as mesmas objecedes dos enunciados da velha metafisica: no tém sentido porque nao sao verificaveis nem tém conteiido, Para nés, algo é real apenas porque esté incorporado na estrutura total da experiéncia” (1995: 6) 0 detradeiro objectivo da ciéncia, ao aplicar a anélise légica aos diversos ramos do conhecimento, ¢ atingir a “ciéncia unificada” através da redugdo dos 1 clarificado com recurso a andlise légica ¢ transformado numa filosofia larificagdo de problemas e assergdes através da andlise logica, icos a priori, proprios da epistemologia kantiana: “A 4 conceitos das diversas éreas a proposigdes empiricamente verificdveis.* “Com a demonstragdo e a designagao da forma do sistema total dos conceitos seré perceptivel simultaneamente a referéncia de todos os enunciados ao dado, ¢, com isso, a forma estrutural da ciéncia unificada” (1995: 7). 0 programa de uma ciéncia unificada, nunca alcangado, nao seré abandonado pelo positivismo légico, Em 1938, jé nos Estados Unidos, 0 da Enciclopédia Internacional da Ciéncia Unificada, da qual 0, Fundamentos da Unidade da Ciéncia, dois volumes ‘culo de Viena inicia a edigé apenas a primeira se contendo dezanove monografias, viria a ser publicada. O projecto original, que pretendia ser uma manifestagio da unidade do movimento cientifico, era grandioso, prevendo 26 volumes e 260 monografias. A IT Guerra e a morte de Neurath, em 1945, adiaram indefinidamente a conclusdo do empreendimento, que nunca passou dos dois primeiros volumes (Morris: 1969). De que modo se relaciona este contexto com Kuhn? A segunda edigao da Estrutura das Revolugaes Cientificas integra o segundo volume do Foundations of the Unity of Science, publicado em 1970. E verdade que a relagdo entre as teses de Kuhn ¢ o positivismo légico ainda ndo é consensual (Reisch: 1991) ¢ presta- se a hermenéutica viria, No entanto a ligagao ao movimento e as suas principais ses ha de ser tida em conta para a compreenso do momento em que surge a Estrutura — uma obra que proclama a provisoriedade, o convencionalismo, ¢ a importincia de factores sociolégicos ¢ axiolégicos na equagdo da ciéncia ~ como chave para a descodificagao da sua recepsao. Revolugao na ciéncia Kuhnnasceu em 1922,no Ohio, e formou-seem Fisicaem 1943, pela Universidade de Harvard, doutorando-se nessa area, na mesma escola, seis anos mais tarde. Profissionalmente ensinou em Harvard, Berkeley, e Princeton, terminando a sua 3) . "Uma vez que o significado de cada enunciado da cigncia deve ser redutivel «um enunciado sobre o dado, do mesmo modo o significado de qualquer conceito, nfo importa a que ramo éa cincia pertenga, deve poder ser enunciado por redugdo & outros conccita, até chegar aos conceitos de nivel mais bisico que sereferem directamente ao dado empirico” (Camap: 1995), A Estrutura das Revolugdes Clentficas ¢ 0 pragma 25 catreira no MIT. Tendo iniciado o seu trajeto como professor de Fisica, acabaria celebrado como professor de Histéria das Ciéncias e epistemélogo. Faleceu em 1996, com 74 anos, A Estrutura das Revolucées como um fisico, mas como um intelectual voltado para a histéria e a filosofia da cigncia, Da Fisica para a Historia da Ciéncia, e “a partir dat de problemas histéricos mais ou menos simples a questdes filoséficas”, (Kuhn, 1990:10). ‘A polémica sobre a obra de Thomas Kuhn gira em tomo das nogdes de paradigma cientifico, de “incomensurabilidade” entre os paradigmas, dos “verdade”. Ao abordar estas “ientificas tomni-lo-ia conhecido néo mais con “ciéncia normal” tos de “revolugao’ nogdes a partir de andlises da histéria da eiéncia, Kuhn chamou a atengao para a importincia das culturas préprias de uma dada comunidade cientifica, e para a forma como os jovens cientistas so socializados no patriménio comum do gtupo, abrindo espaco a toda uma nova abordagem na drea dos Estudos Sociais da Ciéncia, Na verdade todos estes passos foram, a dado momento, objecto de polémica e de criticas dirigidas ao seu autor. Kuhn compreendeu, aceitou € refletiu sobre essas criticas, revendo nas décadas seguintes, ¢ nalguns casos substancialmente, as teses de A Estrutura das Revolugdes Cientificas Os resultados dessa reflexdo, ¢ também da evolug amento do seu pei sobre estas matérias, encontram-se na obra O Caminko Desde A Estrutura, Neste trabalho cotejaremos um ¢ outro em ordem a caracterizar de modo mais abrangente o pensamento do autor. Kuhn sugeriu que a ciéncia em vez de ser um processo cumulative avanga por “saltos” ou “revolugdes cientificas”. As “revolugdes” determinam a substituigo de um paradigma jé ineapaz de responder aos sucessivos “ruidos’ que se foram acumulando nas franjas da teoria, Nessas transigGes de paradigma desempenham ‘um papel preponderante factores sociolégicos como a formagao dos cientistas, hicrarquias, relagdes de poder e condicionalismos de ordem econdmica. Uma revolugdo cientifica corresponde aceitagao, pela comunidade cientifica, de um novo paradigma, distinto € mesmo incompativel com o anterior. ‘Uma revolugdo ¢ to profunda que uma mudanga de paradigma determina toda uma nova mundividéncia para os cientistas: mudam os objetos, os conceitos, as questdes, os pressupostos, os métodos. O paradigma determina tdo intensamente 26 a sua visio do mundo que, quando olham na mesma diregdo, dois cientistas que aceitam paradigmas diferentes veem “mundos” diferentes, Entre os paradigmas existe portanto um abismo intransponivel: os paradigmas sdo, pensa Kuhn, ‘As Revolugdes Cientificas apresentam uma estrutura que se manifesta em quatro fases: 1. Ciéneia pré-paradigmética, em que podem coexistir varios paradigmas sem que nenhum se revele dominante; 2. Ciéneia normal, quando todos os cientistas orientam os seus trabalhos no interior de um quadro mental Uunificado; 3. Crise, acumulagao de ruido e problemas que a teoria é impotente para resolver; 4. Emergéncia de um novo paradigma e sua gradual afirmagio, até que uma nova geragdo de cientistas nele formado reconduza esta fase revolucionatia ao estidio de ciéncia normal, apagando a meméria da revolugdio através da reeserita da histéria do campo. A ciéncia normal A fase pré-paradigmética representa, por assim dizer, a pré-histéria de uma ciéncia. E um periodo em que reina uma ampla divergéncia entre os cientistas sobre quais fenémenos devem ser estudado: consenso sobre os principios teéricos a adoptar, sobre as regras, métodos & valores que devem direcionar a busca, descrigdo, cl novos fenémenos, ou o desenvolvimento das teorias. Hé igualmente divergéncias sobre quais téenicas e instrumentos podem ser empregues, ¢ quais devem ser s, € como o devem ser, Nao hi ificagdo e explicagdo de utilizados Uma disciplina toma-se uma ciéneia quando adquire um paradigma, encerrando-se a fase pré-patadigmitica e iniciando-se uma fase de ciéncia normal. «Ciéncia Normal significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizagdes passadas. Fssas realizagdes so reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade cientifica especifica como proporcionando os fundamentos para a sua pratica posteriom (Kuhn, 1990: 29) Acigneia normal evolui rapidamente, proporeionando grandes quantidades de resultados dentro da disciplina, Quando um cientista aceita e comega a trabalhar A Estrutura das Revolugdes Clentficas ¢ 0 pragma 27 no interior de um paradigma, “nfo tem mais necessidade de tentar construir seu campo de estudos comegando pelos primeiros prineipios e justificando 0 uso de cada conceito” (idem), e essa ¢ a razdo que explica os extraordindrios resultados obtidos pela comunidade durante esse periodo, em que se verificam descobertas, avangos e contributes significativos para o campo. ‘Como o proprio Kuhn reconhece, nao é facil definir paradigma; encontramo- Jo quando uma realizacao cientifica suficientemente espetacular consegue reunir a comunidade cientifica em tomo de uma mundividéncia comum: “A Fisica de Aristételes, 0 Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a Optica de Newton, a letricidade de Franklin, a Quimica de Lavoisier e a Geologia de Lyell — muitos outros trabathos serviram, por algum tempo, para definir implicitamente 6s problemas ¢ métodos legitimos de um campo de pesquisa para as geragdes posteriores de praticantes da ciéneia” (1990-30). Sao paradigmas as realizagdes cientificas que conseguem atrait um grupo de cientistas “afastando-os de outras que simultaneamente sao “suficientemente abertas para deixar toda a espécie de formas de actividade cientifica dissimilares”, e problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da (idem). © jovem cientista € socializado nas priticas priprias do paradigma, tornando- ¢ membro de pleno direito da comunidade cientifica. “Homens euja pesquisa esta baseada em paradigmas compartilhados esto comprometidos com as mesmas regras e padrdes para a prética cientifica. Esse comprometimento © 0 consenso aparente que produz. so pré-requisitos para a ciéncia normal” (1990530) Um paradigma estabelece-se quando tem mais sucesso que os competidores 1a resolugdo de problemas valorizados pelo grupo de cientistas. A ciéncia normal consta depois em “operagdes de limpeza” que consistem em alargar o ambito de aplicagao do paradigma, procurando que a natureza corresponda aos limites & previsées do modelo empregue. “A ciéncia normal nao tem como objectivo trazer tona novas espécies de fenémeno; na verdade, aqueles que nio se ajustam aos limites do paradigma frequentemente nem sao vistos” (1990:45). E a ciéncia normal, com a confianga que o paradigma transmite & comunidade, que permite a especializago profunda e a resolugdo de grandes problemas cientificos. Mesmo quando 0 paradigma muda, uma parte dessas conquistas sera permanente. 28 Assim, o trabalho desenvolvido pelos cientistas sob a égide de um paradigma € tributitio do universo e prética da ciéncia que este define, e desenvolve-se especialmente em tomo de trés tipos de problemas: determinagio dos factos significativos, harmonizago dos factos com a teoria, ¢ articulago da teoria (1990:55). A cigncia normal é sobretudo uma atividade de resolugdo de quebra- cabegas, que muito raramente produzira grandes novidades, procurando sim aumentar 0 alcance e a preciso com que o paradigma pode ser aplicado. paradigma define a visio do mundo ¢ o tipo de problemas (“puzzles a comunidade encara como cientificos, ¢ cuja resolugao encoraja, bem como as sol ") que admissiveis para os problemas que aceita, Essa ¢ uma das razdes por que a ciéncia normal progride to rapidamente (1990:60). A atividade de “puzzle solving” desenrola-se no quadro de “uma sélida rede de compromissos ou adesdes conceituais teéricas, metodolégicas e instrumentais” que proporeionam ao cientista “regras que Ihe revelam a natureza do mundo € de sua ciéncia, permitindo-lhe assim concentrar-se com seguranga nos problemas esotéricos definidos por tais regras e pelos conhecimentos existentes” (1990:66). Um paradigma é composto por uma ontologia, regras, conhecimentos - adquiridos através da pratica e no articulaveis explicitamente -, compromissos conceptuais, téenicos, metodolégicos, ¢ instrumentais, assim como pela aplicago conceptual, instrumental e observarao padronizadas provenientes da teoria, © paradigma materializa-se conferéncias e exercicios de laboratério (1990: 67), sendo simultaneamente citos ‘ocializa os seus cultores através de “manuais”, dificeis de definir e passiveis de determinar com relativa facilidade. No entanto, se sio relativamente faceis de identificar, a busca de um acordo inequivoco sobre a totalidade das suas configuragdes e sentido é mesmo entre os cientistas, muito mais dificil de alcangar. Ou seja, os cientistas “podem concordar na identificagao de um paradigma, sem entrar num acordo (ou mesmo tentar obté-lo) quanto a uma interpretagdo ou racionalizagdo completa a daquele. A falta de uma interpretagao padronizada ou de uma redugao a regras que goze de unanimidade nao impede que um paradigma oriente a pesquisa speito (..) Na verdade a existéncia de um paradigma nem mesmo precisa implicar a existéncia de qualquer conjunto completo de regras” (idem, 69). Esta situagdo & comum, e mesmo caracteristica, dos periodos de ciéncia normal. O debate sobre A Estrutura das Revolugdes Cientficas eo pragmatismo cients 29 regras ¢ metodologia na comunidade ocorre sobretudo na fase pré-paradigmitica ou por ocasio da ocorréneia de alteragao de paradigmas. Isto ndo significa, de todo, que a ciéncia normal seja um empreendimento monolitico presente ou extinto num dado momento. A aceitagdo generalizada de um paradigma ndo exclui modos concorrentes de praticar ciéncia dentro do campo, nem elimina totalmente 0 paradigma anterior que substitu A descoberta cientifica ‘A cigneia normal, atividade que consiste em solucionar quebra-caberas, & um empreendimento altamente cumulativo, extremamente bem sucedido no que toca a0 seu objectivo, a ampliago continua do alcance ¢ da precisio do conhecimento cientifico” (1990:77), sobre isso nao ha qualquer diivida. Sé que a razo, os seus extraordindrios su 8805 tém os dias contados. Parte do proceso cientifico & que no interior do préprio paradigma, descobertas, relativas a factos anémalos ou inesperados, ¢ invengdes, relativa a teorias capazes de acomodar tais descobertas, inevitavelmente ocorrem, gerando ruido e instabilidade no interior do paradigma. Normalmente, este processo termina quando a teoria govemnando 0 paradigma acaba assimilando © novo facto, ¢ incorporando a interpretagdo deste na disciplina. No entanto, casos ha em que a percepgo da anomalia, do facto desconforme ao paradigma, acaba produzindo consequéncias alargadas na propria teoria, Assim, a observagio de factos inesperados, anomalias, encontra- se intrinsecamente ligada & descoberta cientifica, que implica “a consciéncia prévia da anomalia, a emergéncia gradual e simultnea de um reconhi imento, tanto no plano conceptual como no plano da observagao © a consequente mudanga das categorias © procedimentos paradigméticos - mudanga muitas vezes acompanhada por resisténcias” (idem, 89). Quando, por assimilagio, 0 anémalo se transforma no previsto, “nese momento completa-se a descoberta” A dindmica da sucessdo de paradigmas implica nao s6 que a observagao de anomalias dé origem a novos factos aceitiveis, como que, ao nivel das teorias, também se v4 criando uma consciéneia da sua insuficiéncia, “A emergéncia de 30 novas teorias ¢ geralmente precedida por um periodo de inseguranga profissional pronunciada, pois exige a destruigdo em larga escala de paradigmas e grandes alteragdes nos problemas ¢ téenicas da ciéncia normal (...) essa inseguranga 6 gerada pelo frac: produzir os resultados esperados. © fracasso das regras existentes o preliidio ppara a busca de novas regras” (1990-95). A cigncia normal & particularmente produtiva porque os instrumentos Proporcionados pelo paradigma se revelam muito eficientes na de problemas, Sé quando se comegam a acumular fracassos na atividade de resolugdo normal de problemas, ou seja, quando o paradigma entra em crise, se so constante dos quebra-cabegas da ciéneia normal em esolugo chega a fase de criagdo de novas teorias, ou seja, de renovagaio dos instrumentos do paradigma. Dependendo da profundidade e extensio desse movimento, 0 proceso pode redundar numa revolugao cientifica, ou seja, na substituigao do paradigma vigente. A fungao das crises Num primeiro momento da crise, quando aparecem os primeiros sinais de insuficiéneia do modelo vigente, a resposta dos cientistas & resistir, no remunciando ao paradigma. Deste modo, um paradigma s6 seri abandonado quando existir uma altemativa valida para substitui-lo, “Decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro, e o jufzo que conduz a essa decisdo envolve a comparagai entre ambos os paradigmas com a natureza, ‘bem como a sua comparagao miitua” (1990: 108), “Uma vez encontrado um primeiro paradigma com o qual conceber a natureza, jé nfo se pode mais falar em pesquisa sem qualquer paradigma, Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substitui-lo por outro é rejeitar a propria cigncia.” (idem, 110). Sempre que uma anomalia € dificilmente assimilivel pela ciéneia normal pode entrar-se num periodo de crise. As crises podem ter trés desfechos: ou © problema acaba por ser resolvido no ambito da ciéneia normal, isto é, por ser assimilado pelo paradigma; ou conclui-se que ndo hé nenhuma solugdo disponivel dentro do paradigma e o problema ou a observagio anémala é posto A Estrutura das Revolugdes Cientificas eo pragiatismo cientiico de Thomas Kun 31 de lado até que surjam novos instrumentos que o tornem tratavel, ou, finalmente, “uma crise pode terminar com a emergéncia de um novo candidato a paradigma © com uma subsequente batalha por sua aceitagiio” (idem, 216), Estatransigdo entre paradigmas nao é cumulativa, antesimplicaareconstrugo de todo 0 campo cientifico envolvente. Completada a transigdo, os cientistas terdio modificado a sua concepsdo da area de estudos, os seus métodos € os seus objectivos — & toda uma mundividéncia que se altera, dai Kuhn empregar com propriedade o termo revolugdo: “A transigdo para um novo paradigma & uma revolugao cientifica” (1990:122), A fung: das insuficiéncias do corrente, acabando por dar otigem a teorias novas que da crise despoletar a transig@o entre paradigmas, a revelagio constituirdo o paradigma seguinte Persuasiio ¢ Revolugées Cientificas Mas qual a natureza e necessidade das revolu , ou, dito de outra forma, o que fo afinal revolugdes cientificas? “Consideramos revolugdes cientificas aqueles episédios de desenvolvimento ndo cumulative nos quais um paradigma mais antigo & total ou parcialmente substituido por um novo, incompativel com 0 anterior” (idem, 125) A questio aqui, naturalmente, é saber por que a alterag%o ou mudanga de paradigma € chamada de revolugdo por Kuhn, © proceso inicia-se com o sentimento de uma minoria de que hé um desajuste nas teorias que enformam © patadigma existente, que comega a revelar dificuldades na explicagao de certos fenémenos, tomados como anomalias. Essa insatisfag#o, acumulando-+ acabaré por levar ao periodo de cigncia em crise, com as consequéncias jé atras das. Kuhn faz mesmo o paralelo entre as revolugdes politicas e as revolugdes cientificas, dizendo que a escolha entre paradigmas concorrentes & uma escolha entre modos de vida incompativeis. Na verdade, cada paradigma no seu interior funciona muito 4 maneira do jogo de linguagem wittgensteiniano, pelo que ha uma certa incomensurabilidade entre eles ¢ o dilogo de uns para outros se indi 32 torna sempre inevitavelmente citcular. “Quando os paradigmas participam — e devem fazé-lo ~ de um debate sobre a escotha de um paradigma, o seu papel € necessariamente circular. Cada grupo utiliza 0 seu proprio paradigma para argumentar em favor desse mesmo paradigma” (idem, 128). Ora, oargumento circular, oupetitio princiipi, neste caso equivale tio somente a0 argumento da persuasio, essa é a sua forga, diz Kuhn, 6 provavelmente neste asso que a obra mais escandalizou os seus criticos, por convocar o fantasma do relativismo. A partir daqui, na afirmago dos paradigmas Kuhn fard ressaltar 0 papel dapersuasio edaret6rica ao longo de todo o proceso, enasuasobrevivencia, A sua tese & de que na escolha de um paradigma, como nas revolugdes politicas, ndo existe critério superior ao consentimento da comunidade relevante”, Para descobrir como as revolugdes cientificas sto produzidas, é necessério examinar nao apenas o impacto da natureza e da légica, mas igualmente “as técnicas de argumentagdo persuasiva que sdo eficazes no interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos cientistas”. Assim, uma boa parte do sucesso do paradigma consttéi-se a partir do acordo da comunidade de comunicagao, do seu consentimento, ¢ isso faz-se tanto por razdes “de natureza” como por razdes persuasivas. Ou seja, ¢ se bem que haja nele um enraizamento empirico, relacionado & sua capacidade de resolver problemas, a natureza da afirmago do paradigma também é indesmentivelmente socioligica. “O problema da escolha de paradigma ndo tem uma solucao estritamente ligica”, e esta € uma das razdes por que 0 verdadeiro progress ocorte por saltos ou revolugdes cientificas. Dai que estas se constituam como verdadeiras mudangas de concepg2o do mundo para os cientistas, ou seja, a0 integrar um dado jogo de linguagem o cientista fica condicionado pela mundividéncia que este impde © impossibilitado de aceder aos outros jogos existentes através de um penoso e moroso processo de tradugao. “ E como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares sao vistos sob uma luz diferente, ¢ a eles se apegam objetos desconhecidos (...) as mudangas de paradigma realmente levam os cientistas a ver mundo definido pelos seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que o seu acesso a esse mundo dé através do que A Estrutura das Revolugdes Cientficas eo pragmatismo cients 33 vem ¢ fazem, podemos ser tentados a dizer que apés uma revolugdo os cientistas reagem a um mundo diferente “(Kuhn, 1990: 145 e ss). Invisibilidade e Ciéncia Normal © termo da revolugdo cientifica é, naturalmente, transformar-se em ciéncia normal assim que o paradigma é generalizadamente aceite, Outra caracteristica das revolugdes cientificas & que elas permanecem essencialmente invisiveis quer ialmente, aos observadores aos elementos da comunidade cientifica quer, esp extemos Uma das razdes que sempre que ocorre uma revolugdo os manuais € as tradigdes histdricas neles inscritas so reescritos. Ora, ao ser reescrita, a ciéncia aparece mais uma vez como sendo um empreendimento basicamente cumulativo, © 2 meméria da revolugio é apagada da comunidade. Deste modo, os cientistas “tendem a ver o pasado da sua disciplina como um desenvolvimento linear nte. A tentagdo de escrever em diregao a0 ponto de vista privilegiado do pr a histéria passada a partir do presente € generalizada e perene” (idem, p. 176). Ds pés-revolucionérios que acentua a tendéncia a perceber a ciéncia como um c entio uma reconstrugdo histérica feita a partir dos textos cientificos empreendimento continuo ¢ linear. Sdo essas distorgBes que tornam as revolugdes invisiveis, explica Kuhn, Essa invisibilidade acentua-se ainda por se tratar de uma transigdo entre 1 feita incomensuraveis. Assim, a mudanga de um paradigma a outro nao pod: Passo a passo mas antes implica uma “passagem sibita” que deve ocotrer. Este & tum ponto delicado na teoria, pois como explica Kuhn a incomensurabilidade dos paradigmas sem com isso cair no relativismo? “Em um sentido que sou incapaz de explicar melhor, os proponentes dos paradigmas competidores praticam os seus oficios em mundos diferentes (...) por exercerem a sua profissao em mundos diferentes os dois grupos de cientistas vem coisas diferentes quando olham de ‘um mesmo ponto para a mesma diregdo. Isto nao significa que possam ver 0 que hes aprouver. Ambos olham para © mundo ¢ o que olham nao mudou, mas em 34 algumas dreas vem coisas diferentes, que so visualizadas mantendo relagdes diferentes entre si” (idem, p.190). A erosao do programa Iluminista A acrescentar a este jd precario equilibrio entre traducao, incomensurabilidade e relativismo, Kuhn ainda adiciona & obra a destruigio ou 0 afastamento da nog iluminista de progresso cientifico em diresao 4 verdade, 0 sonho que alimentava 0 paradigma positivista ¢ que animava o prdprio projeto inicial da Enciclopédia Universal das Ciéncias Unificadas, onde o texto foi pela primeira vez republicado, E bem verdade que Kuhn admite uma nogdo de evolugdo e de progresso cientifico que é determinada sempre que hé substituigdo de paradigmas, no entanto iio hé nada que nos leve a supor que essa evolugio seja ascendente ou dirigida relativamente a um propésito final. “Algum tipo de progresso inevitavelmente caracterizaré 0 empreendimento cientifico enquanto tal atividade sobreviver. Nas cigncias ndo € necessario haver progresso de outra espécie, Para ser mais pr qual as mudangas de paradigma levam os cientistas e os que com eles aprendem uma proximidade sempre maior com a verdade” A concepgaio do progresso cientifico nao como “um proceso de evolugao so, talvez tenhamos que abandonar a nogdo explicita ou implicita segundo a em diregdo a algo, ou como um empreendimento que se aproxima cada vez mais de um objectivo estabelecido de antemao pela natureza” (1990: 213) haveria de banalizar-se com o pés modernismo, algumas estirpes de pragmatismo, ¢ 0 relativismo, mas & época, da parte de um fisico, parecia um verdadciro sacrilégio. Esta concepgdo alternativa do progresso cientifico eta naturalmente chocante para a epistemologia da altura. O progresso cientifico, na perspectiva kuhniana, deixa de obedecer & ordem teleolégica que tio cara fora ao iluminismo, tal como sucedeu com as teorias evolucionistas. Kuhn compara o seu trabalho em epistemologia expressamente com estas, nomeadamente com o teleologismo evolucionista de Lamarck, Spencer e Chambers, que acreditavam num progresso definido por um fim ulteriormente dado; até Darwin, que vé esse progresso A Estrutura das Revolugdes Cientificas eo pragiatismo cientiico de Thomas Kun 35 como uma evolugdo aleatéria determinada pelas condigdes de adaptagio dos organismos 20 meio, mas nunea pré-determinada por um fim. © proceso cientifico evolui como os organismos darwinianos, por saltos, adaptagBes e rupturas, de um modo a-teleoldgico. E que ideias sobre © evolucionismo ja estavam presentes antes de Darwin — casos de Lamarck e Spencer — s6 que estes acreditavam que a evolugdo tinha um propésito © se dirigia a um fim, era teleolégica, A novidade de Darwin & que toma a evolugao alcatéria, determinada apenas pela adaptabilidade ao meio © sem nenhuma direcgao especial. A metéfora darwiniana de Kuhn pretende dizer que sucede © mesmo com as teorias cientificas: nfo & novidade pensar que evoluem € progridem, 0 que € novidade & dizer que esse progresso € adaptativo e no se dirige a um fim pré-determinado. Uma revolugao cientifica e epistemolégica Na cientifica nos estudos de epistemologia, tomando-se ela pripria, apés as exagero afirmar que a obra de Kuhn constituiu uma verdadeira revolugio profundas rupturas que convocou, paradigma e ciéncia normal E impacto, ninguém pode negar-Iho. A Estrutura das Revolucdes Cientificas foi amplamente discutida e criticada, por cientistas e filésofos, entre os quais Putnam, Quine, Watkins, Toulmin, Popper, Lakatos, Feyerabend, e outros. Entre os aspectos que mais escéindalo causaram contam-se a sugestiio de fico ndo & cumulative; de que elementos societais que o progresso cie grupais tém uma influéncia significativa sobre a delimitagao ¢ funcionamento do campo cientifico — algo a que as ci =) a dificuldade em apresentar uma defini paradigma; a relagdo do progresso cientifico com a verdade e o real; a questiio da objectividade, do papel da experiéncia; e, muito especialmente, a questo da incomensurabilidade entre paradigmas, uma das vias pela qual a obra foi vista abrir portas para o relativismo e irracionalismo — algo que Kuhn, de resto, s ditas “duras” se julgavam imunes substantiva e nao circular de sempre rejeitou veementemente. 36 Sem divida que a sugestdo mais importante do trabalho de Kuhn & a da incomensurabilidade dos paradigmas ¢ a impossibilidade de thes encontrar critérios de validagdo interna, O trajeto que conduz a afirmagao de um paradigma desenrola-se assim em uma luta de discursos onde, na auséneia de um critério que selecione a teoria verdadeira, intervém sobretudo fatores psicolégicos sociolégicos da propria comunidade cientifica Como explica Boaventura Sousa Santos, “o dilogo entre os cientistas tende para © monélogo na proporgo da incomensurabilidade dos paradigmas em confronto, Mais ou menos tempo sera necessétio para o novo patadigma se passa a ser aceite sem discussio...” (1989:153) impor, mas uma vez imposto, Este processo de renovagaio paradigmitica poe em jogo elementos veis pelo apagamento da distingdo entre © paradigma anterior ¢ aquele que 0 substitui. “O proceso de imposigio de ‘um novo paradigma ¢ um processo de negociagao entre diferentes grupos de ciemtistas” (idem, 154), sendo que a escolha entre paradigmas altemativos deixa de poder ser “fundamentada nas condigdes tedricas de cientificidade, uma vez que elas préprias entram em processo de ruptura na A sugestao de Boaventura relativamente a recepgao problematica da obra de Kuhn é que esta se deve precisamente ao facto de que “para explicar a opedes cientificas fundamentais € preciso sair do circulo das condigdes teéricas € dos mecanismos intemos de validagio e procuré-las em factores sociologicos” persuasivos ¢ retéricos tornados inv ise revoluciondria”. razdes de (idem), E sem divida a tese da incomensurabilidade dos paradigmas em confronto—cientistas trabalhando dentro de diferentes paradigmas so incapazes de compreender-se © portanto avaliar-se mutuamente ~ que mais reacgdes provocou, relacionadas com a questo do relativismo e ittacionalismo, que por esta via parecem infiltrar-se no Kuhn reconhecera que este € 0 aspecto da sua obra que mais 0 preocupou e mais trabalhado foi posteriormente. smpo das ciéncias positivas, © proprio O Percurso desde a Estrutura Ao longo dos anos que se seguiram A publica, © explicitaré muitas das suas teses, clarificando ¢ re-situando 0 seu préprio 10 de A Estrutura, Kuhn suavizaré 7 A Estrutura das Revolugdes Clentficas ¢ 0 pragma pensamento quando, muitas vezes, responde aos criticos. Na colectinea de ensaios A Tensdo Essencial aspectos significativos da primeira formulagdo da teoria so abordados, nomeadamente a estrutura ¢ a Iogica da descoberta cientifica, a questo dos paradigmas, da objectividade e dos juizos de valor, entre outras, Noentanto, éem 0 Percurso desde A Estrutura, que retine ensaios produzidos em diferentes situagdes durante os tltimos 20 anos de vida do autor (1970-1993), ies, mormente no que toca & d que melhor se condensam de paradigma, da incomer concepgao de objectividade, realismo e verdade, a problemética uurabilidade, ¢ & metifora darwiniana do progresso cientifico. Ao longo dos anos a reinterpretagdo de Kuln acerca da sua propria obra levou-o a abandonar o que pareceria ser uma versio mais ontolégica da estrutura das revolugées cientificas, em favor de uma abordagem de pendor mais linguistico dessas mesmas questdes. Claro que seria exagerado falar em linguistic turn, ‘mas na expressio feliz. dos editores da obra, James Conant e John Haugeland, “shifis happer préprias hipdteses revolucionarias” ",€ € isso que Kuhn faz na tentativa de “repensar e alargar as suas ‘Uma das teses que sai reforgada & a de que 0 progresso da cigncia nao é cumulative, embora a “reescrita” da histéria que ocorre apés a mudanga de paradigma tenda a apresenti-lo como tal.' Ha a notar, ainda, que esse progresso toma a forma de resolugdo técnica de problemas cada vez mais especializada, poderosa ¢ competente, ¢ ndo de uma aproximagdo crescente verdade, que entendida como correspondéncia, desaparece (2000:93), A obra reforga ainda a met fora biolbgica da evolugdo darwiniana sugerida no final de 4 Estrutura: desvaloriza a evolugao entre periodos de cigneia normal abalados por revolugdes violentas ocasionais, ¢ substitui-a por uma visio em que hi periodos de desenvolvimento dentro de uma tradigo (paradigma) que se podem separar por periodos de “especiagio” em tradigdes distintas, Especiagao € especializagao, e caso um dos ramos morta, entio ocorre aquilo a 4). “Os cientistas posteriores reconstroem o trabalho dos seus antecessores no vocabulério conceptual que eles propriosuilizam e que ¢ incapaz de representar aquilo que esses antecessores fizeram efectivamente. Essa reconstrugio & uma condigto prévia para a imagem cumulative do desenvolvimento cientifico que nos é familiar dos manuais de ciéneia, mas deturpa muita o ppassado” (Kuhn, 2000; 81) 38 que podemos chamar uma revolugao cientifica novas divisdes entre reas no desenvolvimento cientifico so muito semelhantes a episédios de especiacdo na evolugdo biolégica. O paralelismo biolégico com a ‘mudanga revolueiondria nao é a mutagdo, como pensei durante muitos anos, mas a especiagdo” (idem, 92); dai que problemas comuns no processo de especiagao, biolégica, como a dificuldade em identificar um episédio quando ocorre, também sejam comuns no caso do desenvolvimento cientifico, como a dificuldade em identificar a mudanga revoluciondria. Nes a “especiagao” & uma comunidade de cientistas que partilham um Iéxico taxonomia préprias. As revolugdes que produzem te diltimo caso, a unidade que sofre A.cigncia é um empreendimento social mereé da negociago pragmatica da comunidade de cientistas, algo que jé fora avangado na Estrutura, mas isso no significa que as escolhas dos cientistas sejam aleatérias ou uma imposigao a partir de uma posigdo de poder. Pelo contrério, elas correspondem a um acordo pragmitico sobre a adequago de um léxico a resolugdo de problemas dentro de ‘um campo especifico, permitindo quer a diferenciagao do campo (especiagao) quer a sua extraordindria efi Comensurabilidade ¢ incomensurabilidade constituem o aspecto mais controverso de A Estrutura, ao qual todas as criti cia na solugio de puzzles. xr reconduzidas, ss podem © aquele a que Kuhn dedicaré mais reflexao.® Kuhn esclarece, 0 que nio ficara claro anteriormente, que quando fala de incomensurabilidade se trata de relagdes entre estruturas linguisticas, e nfo ontolégicas, Eo significado de termos como “massa” ¢ “forya” mudarem consoante a teoria em que sio empregues que constitui a incomensurabilidade, pois “quando essas mudangas ocorriam, era impossivel definir todos os termos de uma teoria no voeabulirio de outra”, ou se fa seriamente , @ comparabilidade ¢ tradutibilidade entre teorias fi ameagada (2000: 25). Uma das eriticas mais recorrentes a este aspecto da teoria reside na auto-contradigao subjacente & propria obra de Kuhn. Se paradigmas distintos sto incomensurveis, como pode o historiador de ciéncia compreendé- los ¢ expé-los como o faz na Estrufura? Em primero lugar, diz Kuhn, porque 5) .“Nenham ontro aspecto da stratra me preocupou to profundamente como este nos 30 anos desde que livro fo escrito,” (2000:85) 39 A Estrutura das Revolugdes Clentficas ¢ 0 pragma muitas vezes esse emprego € feito “metaforicamente”, ou seja, em vez de referit a inexisténcia de uma medida comum, que era o significado matemitico original do termo (2000: $3), aplicado a teorias cientificas “torna-se em ‘nenhuma lingua comum””, nao podendo portanto ser traduzidas “sem residuo ou perda” (idem, 26). A pattir daqui, e socorrendo-se do conceito de “incomensurabilidade local”, Kuhn desvia a questio para os seus aspectos linguisticos ou nominalistas, restringindo 0 seu uso como categoria ontolégica, “A afirmagdo de que duas teorias so incomensuriveis mais modesta do que muitos dos seus criticos tinbam pensado (..) uma afirmasao sobre a lingua, sobre a mudanga de (2000:27), Para explicar a reformulagao Linguistica do conceito de ineomensurabilidade Kuhn socorre-se também da distingo entre os conceitos de “tradugdo”, “‘interpretagdo” “aprendizagem” de uma lingua. Aquilo que no pode ser traduzido de uma lingua para outra, pelo simples facto de recortarem no real categorias diferentes, criando mundos e questées diferentes, pode ser aprendido ex novo, ¢ a partir dai, corretamente interpretado. “A tradugdo € algo feito por alguém que sabe duas quea sua tradugao para anossa. © éxito na primeira nao implica éxito na segunda” (2000:30), Assim ¢ perfeitamente possivel ao cientista falar e compreender duas linguas que nao consegue traduzir, e é nesta circunsténcia que se encontram os historiadores de ciéncia que falam de teorias passadas — empregam termos significado” entre comunidades de significa 1guas (...) A aquisigdo de uma nova lingua ndo é 0 mesmo “irredutivelmente” nativos, e embora “possam aprender a utilizar o termo, falam a lingua nativa ao fazé-lo” (idem, 31) — a isto, e nada mais, se resume o termo incomensurabilidade. Diferentes Iéxicos, linguagens cientificas incomensuraveis, dato acesso a diferentes conjuntos de mundos possiveis, também el orientados. Para compreender o conhecimento cientifico pasado, o historiador deve adquirir um léxico distinto daquele que Ihe é contemporaneo, ¢ sé a partir dessa aprendizagem “ele podera traduzir com precisdo algumas das declaragdes que s4o basicas para a ciéncia que esté a ser analisada” (Kuhn, 2000:51). Por outro lado, o historiador, ao entrar nessa tradigdo passada, sente a passagem linguisticamente como “uma mudanga de gestalt, quando substituiu o seu anterior vocabulério conceptual por um novo” (idem, 82), 40 A incomensurabilidade nao & uma ameaga & racionalidade cientifica, nem “a ameaga & avaliagdo racional das reivindicagdes de verdade que frequentemente pareceu” (2000:85) pois nesta perspectiva linguisticamente orientada ela torna- se sobretudo “uma espécie de intradutibitidade localizada numa ou noutra area em que duas taxonomias lexicais diferem (...) Os membros de uma comunidade podem adquirir a taxonomia utilizada pelos membros da outra, tal como o historiador o faz ao aprender a decifiar textos antigos. Porém, 0 provesso que 1s4o produz bilingues A posigaio que Kuhn acaba a defender relativamente verdade — rejeitando uma teoria da verdade como correspondéncia ~ ¢ ao realismo — admitindo que “so os grupos e as priticas de grupo que constituem mundos (¢ sto por eles constituidas), e a prética-no-mundo de alguns desses grupos ¢ ciéncia” (2000: 98) — aproxima-se notavelmente de algumas perspectivas pragmatistas.® O priprio defini-la-4 como “uma espécie de kantianismo pés-darwiniano” em que as condigdes prévias da experiéncia possivel podem alterar-se consoante a evolugo da comunidade e dos Iéxicos, enquanto um ding an sich de tipo kantiano, “inefitvel, ind tradutores” (idem, 87), ritivel, indise vel”, permanece a fonte dos mundos possiveis, que ndo sio propriamente verdadeiros nem falsos pois “nenhuma da a jo a um mundo inventado” sso privilegiado a um mundo real, por oposi (idem, 99). Na verdade, “supor que possuimos critérios de racionalidade que sto independentes da nossa compreensio dos prinefpios essenciais do proceso cientifico 6 abrir a porta para o reino da fantasia” (idem, 158), Isto naturalmente permite rejeitar a acusagdo de relativismo, pelo menos num dos sentidos em que unidirecional e irreversivel, quetendo isto dizer que teorias melhor adaptadas & resolugio de problemas, algo que ¢ verificado empiricamente, so o que resulta do processo cientifico, o que nega o relativismo que Ihe fora imputado. formulada: o desenvolvimento cientifico é real, 16). “Pristem rardes pelas quais sou chamado relatvista elas esti relacionadas com os contextos fem que sou eauteloso na aplicagio do rétulo “verdade’, No atual contexto, as suas utilizayies dentro da teoria nfo me parecem problemsticas. Os memibros de uma dada comunidade eientifica estario geralmente de acordo sobre quais as eonsequéncias de uma teora partilhada que passa teste da experiencia e slo, par isso, verdadciras, quas as consequéncias que so falsas quando a teoria é aplicada atualmente, e quis esto ainda por tester” (2000;159), A Estrutura das Revolugdes Clentficas ¢ 0 pragma 4 ‘Além de chamar a atengo para os aspectos sociolégicos da cincia, e para o seu cardeter pragmatico (num sentido muito préximo do realismo pragmatista) Kuhn teve o mérito de criar uma terminologia que hoje é standard para abordar estes fendmenos. No fundo, provocou ele préprio uma revolugao ao reajustar © léxico e as taxonomias em vigor na historia e légica da contributo kuhniano é inestimavel pois criar linguagem é fazer ciéneia gerando féncia, Nesse sentido, 0 mundos, Em termos de posicionamento epistemoligico, a obra teve também o mérito de, a0 chamar a atengao para os aspectos sociol6gicos e persuasivos da atividade cientifica, algo que abriria caminho ao pragmatismo ao pés modernismo, contribuir para esbater o abismo entre a concepgao positivista das ciéneias naturais e as cigncias sociais ¢ humanas.’ “Nao hé nas ciéncias naturais, como nao ha nas ciéncias humanas, um conjunto de categorias neutro, independente da cultura, no ambito do qual a populagdo — quer seja de objectos quer seja de ages — possa ser descrita” (2000:219). Kuhn foi o primero a demonstréelo e essa conquista na histéria da ciéncia tomnou-se irreversivel A © modo como a ciéncia eo jpso funciona, Os 30 anos seguintes foram passados rutura, um trabalho de juventude,* captou intuitiva © empiricamente 4 dar consisténcia © substincia filoséfica a essa intuigio genial, com a vviragem para uma reinterpretagao linguistica da teoria ~ e no sei se & justo chamar reinterpretagdo a este desenvolvimento ~ ¢ a aproximago a uma visio pragmatista da ciéncia que rejeita o relativismo. Esta posigdo a que chamaré de ““kantianismo pés-darwiniano” possui notaveis similitudes, mas & menos radical do que a légica da ciéneia proposta por Peirce, devido ao kantianismo latente Assim sao as revolugdes: rasgos de génio que por muito tempo alimentardo a Ciéneia Normal, 7) . Na verdade consideto que 0 faz pese embora 0 préprio Kuhn por virias vezes ponderar a hipStese de as Cigncias Sociais se encontrarem numa fase pré-paradigmatice, o que explicaria as diferengas elativamente is demais. 8) . Kuhn publicou a #serutura quando contava 40 anos de idade, ov soja, muitos menos anos de ‘vida profissionel que os restantes que passaria a aperfip a2 Referéncias: Carnap, R; Hahn, H.; Neurath, O., La Concepeién Cientifica del Mundo —El Circulo de Viena, traduccién al castellano de “Wissenschafiliche Weltauffassung — der Wiener Kreis” en Otto Neurath, Wissenschafiliche Weltauffassung Sozialismus und Logischer Empirismus, editado por R. Hegselmann, Francfort del Meno, Suhrkamp, 1995, pp. 81-101: http://www.cesfia.org pe/zela/manifiesto.pdf Gradim, Anabela, 2007, Comunicagdo e Etica: a semidtica de Charles Sanders Peirce, col. Estudos em Comunicagao, ISBN 972-8790-58-9 Gradim, Anabela, «My language is the sum total of myself: Universos Dialégicos em Peirce», in Filosofias da Comunicagdo, org. José Manuel Santos, Pedto M.S. Alves, Joaquim Paulo Serra, col. Estudos em ‘Comunicagdo, ISBN: 978-989-654-080-1, Covilha. Iliffe, Robert, History of Science, sd, hitp://www.history.ac.uk/makinghistory! resources/History_of_Science_fullversion pdf Kuhn, Thomas S., 1970 (1962), "The Structure of Scientific Revolutions”, in Foundations of the Unity of Science ~ Toward and International Encyclopedia of Unified Science, ed. Neurath, Camap, Morris, The University of Chicago Press, vol. Il, pp. 53-272. Kuhn, Thomas S., 1990 (1962), A Estrutura das Revolucdes Cientificas, col. Editora Perspectiva, Séo Paulo. Kuhn, Thomas S., 1977, The Essential Tension — Selected Studies in Scientific Tradition and Change, University of Chicago Press, Chicago. A Estrutura das Revolugdes Cientfcas ¢ 0 pragmatismo cientico de Thomas Kuba 4B Kuhn, Thomas S., 2011 (2000), O Percurso desde A Estrutura ~ Ensaios filoséficos (1970-1993) e entrevista autobiogrdfica, col. Historia e Filosofia da Ciéncia, Porto Editora, Mortis, Charles, 1969, “On the History of the International Eneyclopedia of Unified Science”, in Foundations of the Unity of Science — Toward and International Encyclopedia of Unified Science, vol. 1, ed. Neurath, Carnap, Morris, The University of Chicago Press. Radder, Hans, “Philosophy and History of Science: Beyond the Kuhnian Paradigm”, Stud. Hist. Phil, Sci., Vol. 28, n° 4, pp. 633-655, 1997, Elsevier Science. Reisch, George A. Science Vol. 58, No. 2 (Jun., 1991), pp. 264-277, The University of Chicago Press. “Did Kuhn Kill Logical Empiricism? ”, Philosophy of Rouse, Joseph, “Recovering Thomas Kuhn”, Topoi (2013) 32: 59-64, Springer. Santos, Boaventura Sousa, 1989, Introducdo a uma Ciéncia Pés-Moderna, col. Biblioteca das Cigncias do Homem, Edi¢des Afrontamento, Lisboa, Disponivel integralmente no site do autor: http://www. boaventuradesousasantos.pt/pages/pt/livros/introducao-a-uma-ciencia-pos- modema.php Solomon, Stephanie, “Kuhn’s Altemative Path: Seien Resistance to Criticism”, Perspectives on Science 2010, vol. 18, 3, MIT, Uebel, Thomas E., 2004, “Education, Enlightenment and Positivism: The Vienna Circle’s Scientific World-Concepcion Revisited”, Science & Education, 13: 41-66, Kluwer Academic Publishers.

Você também pode gostar