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JUSTICA E DEMOCRACIA John Rawls Sega prt lio CATHERINE AUDARD Martins Fontes So Paulo 2000 ecw Indice Preficia de John Rawls (1992) Inirodugdo: John Ravils eo conceito do politica, por Catherine fda. 1. Acestrutu bisiea como objeto (1978) 2.0 construtivismo kantiano na teria moral (1980), |. Autonomia racional eautonomia completa, I Representago da liberdade c da jgualdade I. Consrugio objetividade... 3. As iberdadeshisiase sua priaridade (1982) 4. A toora da justiga como equidade: uma teoria politic a, eno metafsica 5. Alda de um consenso por justapesgao (1987). 6. Aproridade do justo a eoncepgdes do Bem (1988) 7. Ocampo do politico € 0 consenso por jutaposigao (1989), Giossirio. Bibliograia Indice onomistico Indice tomatico remisivo vit Xu 8 45 ” m ul 199 m3 21 33 373 35 393, 37 Osartigs condos neste volume (todos hascados, em pa te ou no todo, em conferéncias que pronuniei) foram eset- tos durante um periodo em que eu reformulava a intenpreta- ‘elo do conceto de justi, a que chamei de teoria da justica ‘como eqiidade* e que apresentei no meu livro Uma teoria dda justiga'. A questio principal esta em saber se cabe com preendé-Ia como parte de wma doutrina abrangent*,rligio- Sa, filos6fiea ou moral, que poderiamos chamar de doutrina do justo como eatidade, ou se cumpre ver nela uma con ‘epso politics da justice, valida para uma sociedade de- mocratica. Somente o texto mais antigo deste volume, “A «strutura sia como objeto” (1978), no tata dessa ques- ‘to, mas sim do significado e das impicagBes do fato de to- ‘mar aestrutura bisica da sociedade como objeto da justi. “Todos 0s outtos textos, comegando pela série de conferén- cas que fiz na Universidade de Colimbia em 1980 que inttulei (desajeitadamente) "O constrtvismo kantano na teoria mora”, tatam mais especificamente desse problema, Eles visam mostrar em que sentido a teoria da justiga como ceqiidade deve ser compreendia como uma eoncepeio po- litica da justiga € como uma forma daguilo que fui levado a 1.4 Theory of ce, Cambridge. Mas, Hara University Pres 197 {Ta a Uma rd SP Mar Fe 107 Ea ‘pala come 7a og Sa * erhalten), vu usmigs eoewocescia chamar de liberalismo politico*, expresso que aparece pela primeira ver em “A iia de um conseaso por justaposi- 80" (1987), Em primeiro lugar, gostaria de lembra, como pano de fund desss textos, o que disse no Preficio de TJ, ou sea, {que meu objetivo era generalizare levara um grau mais ato de abstragio a doutrina tradicional do coatrato socal. Que- ria mostrar que essa doutrina no era vulnerdvel as objegbes mais freqentes que Ihe sio fetas e que, freqientemente, pensamos Ihe serem ftas. Esperava elaborar com mais cle rTeza os principaistragos estruturis dessa concepgio e de- senvolvé-la como uma andlisesistemaitica da justga que re- presentasse uma solugdo melhor do que a do utilitarismo* Pensava que, dene as concepyies moras abrangentes tra- dicionais, ela representava a melhor apeoximagao das nos- sas conviegbes bem ponderadas® em matéria de justia, € vianateora da justia como eqlidade a base mais apropria- ‘da para asintituigdes de uma soriedade democrtica, Entetanto, o propdsito dos textos aqui reunidos &dife- rente. No enunciado do proposito de TY indicado acima, a teadigo do contrato social 8 considerada como parte da filosofia moral, e nenhuma dstingdo ¢ feite entre afilosofia ‘moral ea filosofia politica. Nao estabelei ali dferenga al- guma entre uma doutrina moral da justga, cua extenséo & brangente,e uma coneepeio estritamente politica. Nenhu- ‘ma andlise, ali, destaca 0 contrast entre doutrinas moraise filosbticas abfangentes © concepgdes limitadas ao campo 4o politic. Nestes textos, a0 contro, essasdistingdes sio fundamen. Pode parecer, enti, que o objetivo e 0 conteido dos ex tos que consituem este volume representam uma mudanga. maior em relagio a TJ. E certo, como ja indiquel, ue exis tem diferenga importantes, Mas, para compreender corr ‘tamente sua natureza e extensdo,€ preciso vé-as como re sultantes de um esforgo para resolver uma dficuldade inter- ‘na da teora da justiga como equidade, a saber, fato de que previcio 1x sua analse da estabildade* de uma sociedade demoeritic, na terceira parte, no esti de acordo com a teoria tomada ‘como um todo. £ 0 que expico na segdo VII de “Le domaine «du politique” [0 eampo do politico] (1989). Creio que todas as diferengas, exceto as que esto presentes na formulagao e imerpretagdo dos principio de jstiga, assim como nos ar zumentos em seu favor, decorrem do esforgo para suprimie esa incoerfncia fundamental. Afora isso, esses artigos a rmitem como aceitosaestutura eo conteido de 7 Gostaria de falar um pouco mais longamente de uma dificuldade que tenho em mente ¢ que se refere ao carter irrealista da idgia de sociedade bem ordenada® tal como cla aparece em TJ. Um tragoessencial dessa idgia & que todos 198 cidadios de uma sociedade bem ordenada pela teria da justiga como equidade subscrevem essa concepeao com base rho que agora eu chamaria de doutina filosfica abrangente les aceitam seus dois prncipios de justiga por pertencerem 1 essa doutina, Da mesma form, na sociedade bem ord nada pelo utilitarismo, os cidadios em seu conjunto aderer a essa concepeio enguanto doutina filoséfica abrangente, © € com base isso que aceitam o principio de utilidade Apesar dea distingo entre uma concep¢o politica da just- (te uma doutrina flosbfieaabrangente nda ser menciona da em TJ, quando a questio se apresenta, fica caro, ereio eu, que o liv trata a teoria da justiga como eqlidade € 0 utiltarismo como doutrinas mais ou menos abrangentes. Ora, ai & que esti o problema. Uma sociedade demo- critica moderna se carateriza por uma pluralidade de dou- teins abrangentes, religiosas, filoséfieas e moras. Nenhu- ma dessas doutrinas &adotada pelos cidadios em seu con- junto. E no se deve esperar que isso acontega ui futuro previsivel. 0 liberalismo politico pressupde que, or razies Politicas, uma pluralidade de dourinas abrangentesincom- pativeis entre si € 0 resuliado normal do exerccio pelos adios de sua rao no seo das instituigdes livres de um re gime democritco consttucional. Ee pressupde igualmente x Jusmiga EDEMOCRAC aque exist pelo menos uma doutrina abrangente razoivel ‘que no rejeta os elementos essencais de um regime demo- Critico,E claro que uma sociedade pode também comportar ma de seu ivr ,sobretudo, ds artigo que a ele se segue ho 0s principio que, aunsa democracia, guiam a legislagio ‘a esferajuridica, assim como a forma como os cidadios 05. percebem ea eles aderem. Por qué? Como? Qual pode sera base moral das democracia se ela j no deriva de uma ideologia comum porque irposta? Ainda haveré elas uma base moral? A ida central de Rawls & que esses principios derivam necessariamente das convicgies express pelos ‘membros da comunidade num dado momento. Eles devem jusificar de mancirasatsfatéri, quer dizer, publicamente reconhecida e aceitivel, 0 que reconhecemos todos num dado ryomento. como senda injusto ~ por exemplo, nossa tejeigdo da escravatra, da perseguigio por motivos politi 0s, religiosos ou sexuais, das desigualdades de direitos resultantes da arbitrariedade natural ou social ete. Trata-se de intuigBes moras bisicas, partlhadas por quase todos 05 ‘membros de uma sociedade demoeritica num dado momen- to som que estjam, no entanto, necessaiamente em rigoro- Jon rawts £0 coxcetro bo poLtrICo xxv 0 acordo com outras convieges moras, porém “privadas” ‘endo mais politics, no momento em que se quer dar uma. {usificativa mais precisa dels, o consenso desmorona. A at- bitragem entre as diferentes conviegbes deve portanto ser {ita sem exercer pressio sobre as consciéncias ou mesmo sobre as opinides minortirias, 0 que parece uma tarefaim= possivel de Jevara terme, ‘Assim, o problema do politico transformou-se nas de~ _mocracas liberais e se tomou 0 da unificagio pela persu so de uma sociedade pluralist, do consenso entre crengas indviduais divergent principios politicos, O que interes- ‘saa Rass, ou igualmente a alguém como Dworkin’ sio as crengas embasadas, os “julgamentos bem ponderados” de ‘cada um, como os evoeados mais acima, sua formagio, tan tono nivel dos simples cidadios como no dos juritas¢ dos legisladores, sua coerénca e suas convergéncias, sua estabi- lidade e a justificagio que delas podemos dar. Nio que se neguem o$ riscos de manipulacio e de condieionamento. Voltaremos a esse ponto mais adiante. Mas no hi sé isso fem nossas conviegdes, hé também justaposigdes, donde {iemula “eonsenso por justaposigio” emprepada no texto de 1987, “A idéia de um consenso por justaposigao” (Ca- pitulo 5 deste volume) eno de 1989, “O campo do politicoe ‘9 cansenso por justaposigdo” (Capitulo 7 deste volume). Rawls, aids, compara a demonstagdo do “senso da justi a0 trabalho do lingtista que, a maneina de Chomsky, procura cexplicitaro “senso de correo gramatical” que cada locutor tem em relagdo sua propria lingua (7, p. $0). E ai que se cencontra, para ele, lugar do politico, no qual a filosofia tem. ‘um papel a desempenhar ‘Com efeito, traduze a opinido publica ndo quer absolu- tamente dizer nio eritieéla. Muito pelo contri, A opi- TH Road Dm Tinh SerotyCambie, 197 2Xvl JusTicaFpewoceacts nio piblica tornou-se, na democracia norte-americana em particular, cada vez mais trinia e contraditéria. Muitas ve 2s ela representa aspecto mais eorrompido e desprezivel tas democracias liberis. As erises do final dos anos 60 (Guerra do Vietni, movimentos pelos direitos civis), assim ‘como as que se seguiram, mostraram as fraquezas do sise- sma ea necessidade de reformularelaramente 0s principos ¢ ‘os valores que consituem, apesar de todas as suas imperfe- Bes, a esncia da democracia, Tal é a responsabilidadeas- sumida por TJ. Encontra-se em Tuma critica moral da trania da opi nif pica majortiria eda assimilagdo discutvel da soci dade a0 mercado ideal. A “tori econémica” da democracia ‘sua concepeo da opinidoe da decisdo pablicas so severa- mente eriticadas nessa obra (TJ, pp. 399-400). Chegou-se, diz Ravls, a privilegiae « opiio publica no momento de tomar uma deciso coma se privilegiara a opnido do consi- midor. “A natureza da decsio fomada pelo legislador ideal no é, portant, substancialmente diferente da de um em- preendedor que decide como maximizar seus lucros por meio da produgdo desta ou daquela mercadoria, ou da de um con- sumidor que decide como maximizar sua Stisfagdo median- tea compra deste ou daquele conjunto de bens” (TJ p. 29). (Os legisladores, assim como os magistrados,j& no

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