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OS PROBLEMAS DA ESTETICA Luigi Pareyson Tradugio MARIA HELENA NERY GARCEZ, NII ©, 4010766678 3.ed./1A Martins Fontes ‘Sao Paulo 200! unipape __2 NE CHAMAD; oe SE, oc D PREGO _ 700 DATA 29-. a ESSE 9 “OMEN DULESIERA og 4A SBS, ‘us ras aon Pant ee aa aaa Tals dts des isp Bras reserva ns Conse Raman 1810 182-00 San Peale SP. Bras Tol (115241 3077 Fas (10 $105 0967 mt: mutninescom de Itsoemarefntessem be PPS 2 Indice Apresentagdo da edigao brasileira, Prefiicio Capitulo -Natureza e tarefa da estética....... 1. Extensio do term women 2. Cariter filoséfico da estética 3. Carter concreto da estética 4. Estética e critica... 5. Estética e teoria de cada arte 6. Estética e postica. Capitulo I -Definigo da arte 1. Trés definigdes tradicionais: a arte como fazer, como conhecer ou como exprimir. 2. Aarte como formatividade Capitulo [11 — Autonomia e fungdes da arte. 1. Extensdo e especificacao da arte.... 2. Aarte eas outras atividades 3. Artee vida. 4, 0 problema da autonomia da arte... 5. Arte ¢ filosofia.... 6. Arte e moralidade.... 7. Aatte sacra . 8. Arte e utilidade 21 25 29 29 34 38 42 41 49 51 33 Capitulo TV —Contetido e forma 1.Diversos significados dos termos “forma” e “conteiido”.. 2. Bstética da forma eestética do conteddo. 3.Intimismo e tecnicismo: formagio do contei- do e formagao da matéria 4. Unidade de forma e contetido: humanidade e estilo 5. Além do conteudismo e do formalismo 6. Assunto, tema, contetido. 7. Arte representativa 8. Arte expressiva .. 9. Arte abstrata 10. Arte enatureza Capitulo V—Questdes sobre o contetido da arte..... 1. 0 sentimento na arte 2. Sentimentos precedentes, contidos e concomi- tantes 3, Sentimentos subseqientes 4. Biografia e poe 5. Daarte a biografia, 6. Da biografia arte. Capitulo VI— Pessoalidade e socialidade da arte. 1. Impessoalidade ou pessoalidade da arte? 2. Critica do impessoalismo artistico 3. Arte e pessoa. 4, Arte e sociedade 5. Condicionamento ou determinism social da arte 6, Pessoalidade ow insularidade da arte..... 7. Socialidade da arte. 8. Influxo da sociedade sobre a arte .. 9. Influxo da arte sobre a sociedade.. 55 35 58 62 66 0 70 2 B 7 83 83 84 87 89 93 95 99. 99 102 106 108 109 112 14 417 120 Capitulo VIL Arte e historia 1. Possibilidade ou impossibilidade da historia da arte 2. Historicidade e especificagao da arte 3. A histéria na obra e a obra na histéria: tempo- ralidade e intemporalidade da arte 4, Originalidade e continuidade: tradi¢ao e imitagao 5. Comunidade e singularidade: escolas, estilos, géneros, formas 6. Fungdes da histéria da arte Capitulo VIIL~ A matéria artistiea 1. O problema da extrinsecagdo fisica da arte 2. Necessidade da extrinsecagio fisica na arte... 3. Coincidéncia de fisicidade e espiritualidade na obra de arte. : 4.0 problema da matéria da arte. 5. Adogio de uma matéria artistica 6.0 problema da técnica na arte 7. Disciplina, oficio, retérica. . 8.0 problema da multiplicidade das artes 9..O fundamento da diversidade das artes Capitulo IX—O processo artistico 1. Aleidaarte. . 2. A formagao da obra: invengao e execugio. 3. Criagdo e descoberta; tentativa ¢ organizagio 4, Inspiragao e trabalho . 5. Relagies entre o processo artstico ea obra de arte... 6. Definitividade ou abertura. 125 125 130 133, 136 141 147 149 149 153 155 157 161 166 169 174 17 181 181 185 139 192 195 198, Capitulo X — Leitura da obra de arte... 1. Fruigdo e contemplagao da obra de arte 20s problemas da execugdo da obra de arte: a execugio e as varias artes . 3. As relagdes entre obra e execuao... 4, Os problemas da interpretacao..... 5. Infinidade do processo interpretativo. 6. Multiplicidade e pessoalidade das interpretages. 7..Os problemas do juizo estético: sensibilidade e pensamento. 8. Gosto pessoal e juizo universal 201 201 208 216 223 226 Zl 237 242 Apresentacéo da edicéo brasileira Hé cerca de oito anos tomei contato com o pensamento estético de Luigi Pareyson, ao elaborar uma tese para o cor curso de professor livre-docente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP, e, apraz-me tomi-lo pii blico, este pensamento constituiu uma revelagdo para mim, Pouco a pouco fii adentrando mais e mais no seu conheci- ‘mento e, com entusiasmo crescente, fui encontrando solugdes equilibradas e claras para problemas que, muitas vezes, me havia proposto como objeto de reflexdo, mas para os quais no havia ainda encontrado formulagdes satisfatérias, nem pessoalmente, nem nas diversas obras lidas e meditadas. Paralelamente, assombrou-me constatar que um pensa- dor tao atual, equilibrado e fecundo fosse, praticamente, um desconhecido do piblico brasileiro, Surgiu assim, gradual- mente, 0 designio de procurar divulgar as suas princip: contribuigdes no campo da estética e, para tanto, inicial- mente, comecei a apresenté-lo a meus alunos nos cursos de graduacao e de pés-graduagio na Universidade de Sao Pau- lo, Verifiquei, com satisfacdo, que as principais colocagdes pareysonianas eram também acolhidas e assimiladas com entusiasmo pelos alunos dos cursos de Letras, que, & sua luz, progrediam, sensivelmente, na compreensao do fenémeno artistico. Pouco a pouco, fez-se mais e mais premente a ne- cessidade de um contato direto dos alunos com a obra de Luigi Pareyson, o que era dificultado no s6 pela barreira do x 0S PROBLEMAS D4 ESTETICA idioma como também pela escassez de exemplares de sua obta no mercado livreiro do Brasil. Procurei, entdo, uma casa editorial que se interessasse pela tradugao e publicagao de uma de suas obras que me pa- receu a mais indicada para os fins didaticos a que me propu- nha, / problemi dell'esterica. Embora esta nio seja a obra de exposicdo sistematica do pensamento estético de Luigi Pa~ reyson, preferimo-la a obra Estetica. Teoria della formativi- td, porque recolhe, em sintese, os principios fundamentais cemitidos nesta iltima, além de ampliar o campo de reflexo, abrangendo uma gama mais diversificada de problemas, to- cando questdes fundamentais na reflexdo artistica, como 0 das relagdes entre obra de arte e sociedade, obra de arte ¢ biogtafia, obra de arte e realidade, ete. Explicados, sucintamente, os motivos que me inclina- ram para a tradugdo da presente obra, passo a dar algumas informagdes biogrificas a respeito de Luigi Pareyson. Nas- ceu em 1918, no Valle d’Aosta, regiao situada no extremo norte da peninsula itélica. Dedicou grande parte de sua vida, cerca de 21 anos, a lecionar estética na Universidade de Tu- rim, onde, atualmente, é professor de Filosofia te6rica. B di- retor da universalmente conhecida Rivista di estetica e da colegio “Biblioteca di Filosofia” da casa editorial Mursia, Principiou sua carreira de pensador dirigindo sua reflexto para o exame do pensamento existencial, reflexio da qual sur- giu, em 1940, a sua primeira grande obra: La Filosofia dell'esistenza e Carlo Jaspers. Trés anos depois, em 1943, publicou seus Studi sull'esistenzialismo e, em 1950, uma obra em que se propds prosseguir o existencialismo na diregao de tum personalismo ontolégico, Esistenza e persona. Também de 1950 é a obra Fichte, em que Pareyson pretendeu interpretar 0 idealismo alemao sob renovadas perspectivas historiogréficas. Deu prosseguimento a esta empresa com as sucessivas publi- cagdes: L'estetica dell idealismo tedesco (1950), L'estetica di Kant (1968), Schelling (1975) ¢ Schellingiana rariora (1977). APRESENTAGAO DA EDICHO BRASILEIRA XL Em matéria de estética, 0 filésofo valdostano formulou seu pensamento original, que denominou “teoria da formativi- dade”, nas seguintes obras: Estetica. Teoria della formativité (Fed. 1954, 3° ed. 1974), Teoria dell'arte (1965), I problemi dell'estetica (1966), Conversazioni di Estetica (1966), L'espe- rienza artistica (1974). Luigi Pareyson é também autor de uma filosofia da interpretagdo, que principiou a desenvolver na obra: Unité della Filosofia (1952) e a que deu prossegui- mento em Meritt ¢ interpretazione (1971) e Rettifiche sull’esis- tenzialismo (1975), obras em que orientou sua primitiva pro- posta no sentido de uma ontologia da liberdade. Finalizando esta répida apresentacdo, gostaria ainda de chamar a atengio para o fato de que Pareyson, a0 apresentar seu pensamento sobre a arte, declara que nfo propde uma estética da contemplagao e sim da produgio, nao uma estéti- ca da expressao e sim da “formatividade”. Desde as posi- Ges iniciais, este autor filia-se a concepgao de arte que nos vem da antigiiidade classica e distancia-se de seu predeces- sor na tradigao cultural italiana, o fildsofo Benedetto Croce, propugnador de uma estética da expressio. Insiste 0 filésofo que, embora deselegante, o termo adequado para designar seu pensamento é “estética da formatividade” e nao “estéti- ca da forma”, mas, ao invés de proceder eu mesma a maio- tes esclarecimentos, prefiro que seja o leitor a encontrar as raz6es dessa escolha no discurso do proprio filésofo. Dese- jo que a leitura desta obra seja tio esclarecedora ¢ itil para 08 estudiosos da matéria quanto o foi para mim e que consti- tua apenas o inicio de um fecundo convivio com o pensa- mento de Luigi Pareyson. De parabéns esté a Livraria Martins Fontes Editora por mais este empreendimento com que se propds a enriquecer nossa vida cultural Maria Helena Nery Garcez Prefécio Ao preparar a segunda edigdo de meu extenso volume Lestetica e i suoi problemi, publicado em 1961, surgiu es- pontaneamente a idéia de dividir seu variado material em trés volumes, mais manejéveis ¢ organicos: um primeiro, contendo o amplo escrito / problemi attuali dell'estetica — que forma como que um livro independente de introducao geral a estética -, e outros dois, respectivamente de ensaios tedricos e de ensaios histéricos. Estes dois tiltimos volumes projetados poderiam também incluir os diversos escritos meus publicados nesse meio-tempo. O volume de ensaios teéricos foi publicado com o titulo de Teoria dell ‘arte, enriquecido com novos estudos. Dentro em pouco sairé 0 volume de ensaios histéricos, que com- preenderd muitos novos escritos, alguns ja publicados e ou- tros inéditos. Com o titulo J problemi dell’estetica sai agora, em segunda edigdo revista e integrada, o longo escrito I pro- blemi attuali dell'estetica, que em 1958 eu tinha preparado expressamente para a vasta obra idealizada pelo saudoso dr. Carlo Marzorati, Momenti e problemi di storia dell'estetica, publicada em 1961 O ensaio era, repito, como um livro auténomo: a atual segunda edicdo apresenta-o, portanto, na sua fisionomia ge- nuina, Foi escrito com a intengdo explicita e consciente de tratar, de um modo ordenado e completo, todos os proble- mas hodiernos da estética, partindo da situaco cultural do xIV OS PROBLEMAS Da ESTETICA leitor italiano de hoje. O aspecto diditico, inerente a este fim imposto, alias, pelo propdsito do ensaio — permitiu-me con- cretizar de modo mais preciso algumas de minhas propostas especulativas, testar sua validade no contato com problema particulares e coneretos, aprofundar algumas idéias em que anteriormente eu apenas tocara e enfientar problemas que ainda no abordara diretamente. Por estas razdes considero este ensaio como uma nova exposi¢io de meu pensamento estético e, 20 mesmo tempo, como um suplemento necessi- rio & minha obra Estetica: teoria della formativita, publica- da por Zanichelli, em 1960, numa segunda edigio ampla- mente revista, Capitulo 1 Natureza e tarefa da estética 1, Extensiio do termo. O primeiro dos problemas da estética é 0 que diz respeito a propria estética: sua natureza, seus limites, suas incumbéncias, seu método. Nenhuma indicagao precisa pode provir do nome “estética”, surgido quando, no Settecento, ao tornar-se a beleza objeto do co- ‘nhecimento confuso ou sentivel, e quando, no inicio do Orto- cento, a0 impregnar-se a arte de sentimento, pareceu natural remeter a teoria do belo a uma doutrina da sensibilidade e a filosofia da arte a uma teoria do sentimento, Desde enti, de fato, 0 termo se foi ampliando cada vez mais, quer para de- signar as teorias do belo e da arte que, desde 0 inicio da his- téria da filosofia, apresentaram-se sem nome especifico, quer para compreender também as teorias mais recentes que nao 86 jé ndo remetem a beleza a sensagio ou a arte ao senti- ‘mento, como nem mesmo ligam a arte A beleza. Por um la- do, na filosofia antiga e medieval faltava propriamente uma estética, ndo existindo nela um nexo direto entre a teoria da arte ¢ a metafisica do belo, e nao tendo também sido explici- tamente estudada a distingdo entre a poética e a retdrica da teoria da “arte”, entendida no amplo sentido antigo que nela também inclui os oficios. Por outro lado, no inicio deste sé- culo, por obra de filésofos alemies, ocorreu a tentativa de distinguir da estética, entendida como filosofia do belo, uma “teoria geral da arte”, que pretende estudar a arte nos seus aspectos técnicos, psicoldgicos, éticos, sociais e assim por 2 5 PROBLEMAS DA ESTETICA diante, Esta tentativa baseia-se sobretudo no fato de que a arte modema nao se preocupa com 0 “belo”, no sentido classico ¢ tradicional do termo, mas, com freqiiéncia, perse- gue deliberadamente 0 “feio. A isto, no entanto, refutou-se autorizadamente, argumentando-se que o belo nio é 0 obje- to, mas o resultado da arte, mesmo que este no se conforme a idéia tradicional de beleza; assim, chegou-se ao ponto de reduzir a beleza A arte, seja no sentido de nao se reconhecer outra forma de beleza que ndo a artistica, seja no sentido de conceber qualquer beleza, mesmo a beleza natural, como re- sultado de arte Estas sucessivas extensdes do termo fizeram com que hoje se entenda por estética toda feoria que, de qualquer mo- do, se refira a beleza ou a arte: seja qual for a maneira como se delineie tal teoria — ou como metafisica que deduz uma doutrina particular de principios sisteméticos, ou como feno- ‘menologia que interroga ¢ faz falar os dados concretas da cexperiéncia, ou como metodologia da leitura e critica das obras de arte, e até como complexo de observagiio técnica e de pre- ceitos que possam interessar tanto a artistas quanto a eriticos ou historiadores -; onde quer que a beleza se encontre, no mundo sensivel ou num mundo inteligivel, objeto da sensibi- lidade ou também da inteligéncia, produto da arte ou da natu- Teza; como quer que a arte se conceba, seja como arte em geral, de modo a compreender toda técnica humana ou até a técnica da natureza, seja especificamente como arte bela 2. Carter filos6fico da estética. Em meio a tal multi- plicidade e, por vezes, confusdo de significados, convira procurar uma definigo mais delimitada e precisa. A pri- ‘meira questo que se apresenta neste caminho é se a estética constitui reflexdo filos6fica ou reflexio empirica. Ha quem sustente que a estética € filosofia, ou no sentido de que pro- cura definir 0 que é ou deve ser a arte, ou no sentido de que NATUREZA E TAREFA DA ESTETICA 3 0 “estético™ se encarrega de deduzir, de principios filoséfi- cos pressupostos, as suas conseqtiéncias no estético, ou no sentido de que, sendo a filosofia pura especulagio, nao é necessirio que 0 estético apele para a experiéncia direta do eritico ou do artista, Pelo contrério, hd quem sustente que a estética nio é Filosofia, ou porque ela é, antes, alguma coisa intermedia entre a filosofia e a histéria da arte, ou porque cla no se encartega de dar uma definigao geral da arte, ou porque, sendo a concrecao necesséria em tais assuntos, os testemunhos dos artistas, as reflexes dos criticos e historia dores e as doutrinas dos tedricos de cada arte em particular podem substituir, validamente, toda estética filoséfica e mes- mo reivindicar, por si sés, o nome de estética, sem preocu- par-se em ser prolongadas ou elaboradas em teorias filos6- ficas, verdadeira e propriamente ditas. Estas concepgdes representam, contudo, os extremos de uma oposigao insti- tuida artificialmente entre termos arbitrariamente separados € enrijecidos, oposigdo que convém mediar e dissolver nu- ma viséo mais colada a realidade dos fatos e ao teste concre- to da experiéncia 0 fildsofo que pretenda legislar em campo artistico ou que deduza, artificialmente, uma estética de um sistema filos6fico preestabelecido, ou que, em qualquer caso, pro- ‘ceda sem considerar a experiéncia estética, torna-se incapaz de explicar esta iltima e sua reflexdo cessa de ser filosofia para reduzir-se a mero jogo verbal. Em primeiro lugar, a re- flexi filoséfica é puramente especulativa e nao normativa, isto é, dirige-se a definir conceitos ¢ ndo a estabelecer nor- 1 No ariginal: esterico. © autor faz um uso especial deste adjetivo, substantivando-o, para com ele designar 0 pensador de questées da estéica, Julgamos que 0 melhor seria conservar otermo eriado por Pareyson, porque “seta, outra possiblidade de trdugdo,apresenta o inconvenient de desig nar, com mais feqiénca, a pessoa que coloca valores estticos acima dé {todos 0s outros. De mais a mais, o termo “esteta” também existe em italiano € fei preterido pelo autor (N. da T.) 4 05 PROBLEMAS D4 ESTETICA mas. A estética, portanto, nio pode pretender estabelecer 0 que deve ser a arte ou 0 belo, mas, pelo contrario, tem a in- cumbéncia de dar conta do significado, da estrutura, da pos- sibilidade e do alcance metafisico dos fenémenos que se apresentam na experigncia estética, Além disso, nfo se trata de “deduzir” de um sistema pré-formado as suas “conse- giiéncias” na estética, seja porque para a formagio de um sistema também deve contribuir o tratamento do problema estético, sendo um sistema mais 0 resultado do que o pres- suposto de uma interpretagdo da experiéncia, seja porque a estética nfo é uma “parte” da filosofia, mas a filosofia intei- ra enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte, de modo que uma estética nfo seria tal se, a0 enfrentar tais problemas, implicitamente também nao en- frentasse todos os outros problemas da filosofia. Finalmen- te, o trabalho dos artistas, criticos, historiadores e teorizado- res é essencial para o filésofo da arte, em primeiro lugar, porque oferece ao estético o Ambito de experiéncia dentro do qual ele deve exercitar sua prépria reflexao, o ponto de partida de sua meditagao, o lugar onde pode testar a validade das suas teorias, do mesmo modo como as observagtes de la- boratério servem de objeto de reflexio para o fisico e de ve- rificagao de seu pensamento; em segundo lugar, porque aque- les, centros conscientes de experiéncia estética, encontram-se nas melhores condigdes para dar um contributo ao pensamen- toestético, sendo o seu um testemunho direto e vivo. Por outro lado, seria empirismo grosseiro privar a est tica de uma tarefa filoséfica ou substituir a estética filoséfi- ca pelos programas de arte, pelas técnicas artisticas ou por ‘uma mera rapsédia de observagdes, ainda que muito concre- tas. A estética é e nido pode deixar de ser Filosofia; melhor, 6 pode salvar-se na sua autonomia — sem reduzir-se a criti- ca, ou a poética, ou a técnica ~ sob condigdo de apresentar- se como indagagao puramente filoséfica, isto &, como refle- MATUREZA E TARE Da ESTETICA 5 xo que se constréi sobre a experiéncia estética e, por isso, nijo se confunde com ela. Em primeiro lugar, nao é pensavel colocar a estética entre a filosofia, de um lado, ¢ a histéria da arte, do outro (com as consideragdes criticas ou técnicas ‘que esta tiltima contém), porque nio hd nada de intermedia rio entre a filosofia e a experiéncia: uma reflexio sobre a arte ou € filos6fica, como a estética, e entéo torna a entrar na filosofia, ow & trabalho de critico, ou de historiador, ou de teorizador da arte, e entdo entra na experiéncia estética, co- mo objeto da filosofia. A estética é Filosofia justamente por- que € reflexdo especulativa sobre a experiéncia estética, na qual entra toda experiéncia que tenha a ver com o belo e com a arte: a experiéncia do artista, do leitor, do critico, do histo- riador, do técnico da arte e daquele que desfruta de qualquer beleza. Nela entram, em suma, a contemplacio da beleza, quer seja artistica, quer natural ou intelectual, a atividade artistica, a interpretacdo e avaliago das obras de arte, as teorizacées da técnica das varias artes. Em segundo lugar, no podemos dispensar a estética de dar uma definigao geral da arte, nem mesmo se tomarmos por base a suposicdo de que toda definicdo geral é a absolu- tizagdo de uma concepgao particular e acaba por prescindir da experigncia. A filosofia tem precisamente a tarefa de che- gar a conclusdes tebricas universais, extraindo os seus dados da experiéncia, ea extrema dificuldade deste empreendi- ‘mento ndo a autoriza, de forma alguma, a simplificé-lo arbi- trariamente. A universalidade do resultado nao fica em nada ‘comprometida pela inexaurivel infinidade da experiéncia ¢ pela historicidade do ambito de experiéncia de que cada fi- lésofo dispde, embora se tore infinitamente mais ardua pe- la necessdria consciéncia critica que dai provém. A abertura © @ historicidade da experiéncia fazem face a abertura ¢ a historicidade da filosofia. A validade dos proprios resultados, a filosofia chega justamente partindo da experiéncia que é, 6 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA de per si, sempre aberta e sempre histérica. B por isso que a filosofia se renova continuamente, sempre estimulada por novos problemas que ela mesma sabe fazer surgir da expe- rigncia, ¢ se coneretiza numa multiplicidade de perspectivas que niio compromete em nada a sua unidade, sendo, antes, sua manifestagao e encamacdo. Esta abertura e historicidade da filosofia, em contato com a abertura ¢ historicidade da ex- periéncia, manifesta-se com particular evidéncia na estética, onde 0 pensamento filoséfico vé-se as voltas com questdes concretas e bem determinadas e com problemas definidos e particulares, ¢ onde a multiplicidade das poéticas vem con- tinuamente acompanhada de uma multiplicidade de estética Entio pode-se dizer que a estética, antes de tudo, por esta sua vizinhanca mais evidente da experiéncia de onde extrai continuo alimento e estimulo, & um feliz exemplo do ponto de encontro das duas vias da reflexio filos6fica: a via as- cendente, que chega a resultados universais partindo da re- flexdo sobre a experiéncia concreta e os problemas particu- lares por ela oferecidos, ¢ a via descendente, que se serve, por sua vez, destes resultados para interpretar a experiéncia e resolver seus problemas. Que ndo se trata de um circulo, isso se vé claramente na propria estética, que mostra como as duas vias nao se podem separar uma da outra, j4 que em filosofia a experiencia é objeto ao mesmo tempo de reflexdo e de verificagao do pensamento e o pensamento é, ao mesmo tempo, resultado e guia da interpretacdo da experiéncia. E assim se dissolve também 0 aparente cfrculo que parece comprometer a prépria possibilidade da estética filoséfica: aquele que parece instituir-se entre a necessidade de recor- rer a experiéncia para saber quais so os fatos artisticos, dis- tingui-los dos outros e delimitar as fronteiras da experiéncia estética, ea necessidade de dispor j& de uma prévia defini- Gao da arte para, na experiéncia, distinguir os fendmenos es- téticos dos outros fendmenos. Além do mais, vé-se clara- NATUREZA E TAREFA D4 ESTETICA 7 ‘mente que 0 reconhecimento da pluralidade das “estéticas” nio implica absolutamente que tenham um carater empirico endo filos6fico. Nao basta o plural para tornar empiricas as, estéticas, pois que se trata da multiplicidade da filosofia una: cada um, propondo a prépria estética, no quer apresenté-ta como a tinica verdadeira, sendo falsas todas as outras, mas propde-na em nome da razao filoséfica, pronto a defendé-la das refutagSes injustas, mas também a corrigi-la com base nas objegdes fundamentadas, como resultado de um diglogo ativo com o pensamento alheio de uma discussio continua com os novos dados oferecidos pela experiéncia. Em terceiro lugar, é bem verdade que, freqtientemente, artistas, historiadores, criticos e técnicos, animados pelo seu real contato com a arte, apresentam como estética as obser- vagdes que eles, na sua prépria qualidade, fazem sobre a arte (0 problema, evidentemente, nfo nasce nem mesmo ‘quando eles préprios se transferem para o plano da filosofia €, como muitas vezes acontece, falam na qualidade de filé- sofos), observagses que, ainda que agudas e penetrantes, per- ‘maneceriam, em estética, notas esparsas, sem uma reflexdo filoséfica que as fecunde e, ainda que titeis e indispensdveis para o filésofo que queira fazer estética, elas préprias ainda nio so estética. Mas esta pretensio ndio é mais do que o erro simétrico ao daqueles filésofos que querem fazer estética sem fazerem caso da experiéncia da arte, Além disso, nem sempre os testemunhos dos artistas sobre a sua arte so dig- nos de atenc0, pelo menos na sua formulagio literal: reque~ rem uma peneirada, uma escotha, um dimensionamento que Ihes restitua o seu exato significado e revele seu possivel alcance no campo da estética. E sempre necessério, para este fim, a ulterior intervengio do filésofo, até no caso de obser- vagGes ja predispostas a acolher o olhar filoséfico que as organizaré numa verdadeira estética propriamente dita 8 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA Portanto, nem o apelo a uma tarefa especulativa veda estética o seu contato com a experiéncia, nem 0 seu dever de conerecao a desvia do campo da filosofia. Precisamente por- que a estética é filosofia, por isso mesmo ela & reflexito so- bre a experiéncia, isto &, tem win caréter especulativo.e con- creto a um s6 tempo. 3. Carter conereto da estética. De fato, Filosofia e experiéncia, precisamente porque nitidamente distintas, so também indissoluvelmente unidas. A filosofia tem um caré- ter especulativo concreto a um s6 tempo, ¢ um é garantia do outro, no sentido de que nao é Filosofia aquela que nao se ergue sobre a experiéncia como pura especulagao dirigida a explicé-la e a justificé-la; mas nao é verdadeira especulagio aquela que nao recorre 4 experiéncia na sua concrecao para dela tirar 0 estimulo para a prépria problemética e verific: G0 dos proprios resultados. Condigao do carter especulati- vo do pensamento filoséfico é ndo somente o levantarse sobre a experiéncia para sobre ela refletir, mas também o contato com a experiéncia, sem o que o pensamento cairia na estéril abstragdo; por outro lado, o recurso a experiéncia nao deve prejudicar a distingao entre filosofia ¢ experiéncia, pela qual o pensamento deve erigir-se sobre a experiéncia para tomé-la como objeto proprio e explicé-la; caso contritio, a filosofia degenera na mera descri¢ao. A cstética é constituida deste diplice recdmbio ao caré- ter especulativo da reflexao filoséfica e ao seu vital e vivi cante contato com a experiéncia: nao é estética aquela refle- xo que, ndo alimentada pela experiéncia da arte e do belo, cai na abstragdo estéril, nem aquela experiéncia de arte ou de beleza que, nao elaborada sobre um plano decididamente especulativo, permanece simples descrigo. Para definir seus proprios limites a estética deve fixar 0 ponto de conjungio entre teoria ¢ experiéncia, evitando tanto sua separagao quan- NATUREZA E TAREPA DA ESTETICA 9 to sua confiusio, e, segundo o perigo aparega mais de uma paite ou da outra, acentuando ora a sua tarefa estritamente filosofica, ora 0 seu dever de concregdo, coisas que niio s6 no esto em contraste, mas caminham inseparavelmente uunidas, A estética deve ser guiada pela diplice consciéncia de que 0 fildsofo ndo conseguiria dizer nada sobre a arte sendo prolongando o discurso do artista ou do critico, e que este discurso, que € pré-filoséfico, vai prolongado sobre o plano especulativo. Em todo caso, o estético deve sempre tirar partido da experiéncia da arte, quer ele se inspire numa propria e eventual experiéncia direta, quer ele se atenha a0 testemunho alheio, devidamente aprofundado ¢ interpretado. Os perigos aos quais a estética pode expor-se por uma aber- tura ao concreto da experiéncia, isto é, 0 risco de confundir- se com a critica ou a historia ou a técnica da arte, sio ampla- ‘mente compensados ¢ retificados pelas vantagens que Ihe provém daquela abertura, isto é, uma inexaurivel multiplici- dade de problemas e uma continua possibilidade de revolu- Go. Por outro lado, 0 contato vivificante com a experiéneia 86 € possivel com aquele limite que, impedindo a estética de identificar-se com a experiéncia estética, garante sua distin- ‘sdo da critica, da poética e das teorias das diversas artes. ‘Tudo isto explica como se pode chegar estética a par- tir de duas diregdes diversas mas convergentes: ou da filoso- fia, quando o fildsofo estende o seu puro pensamento a uma experiéncia de arte, ou da propria arte, quando de um exer- cicio concreto de arte, ou de critica, ou de historia, emerge uma consciéncia reflexa e sistematicamente orientada pela propria atividade. O essencial é que uns e outros fagam filo- sofia, isto é, extraiam da conereta experiéncia da arte, como ‘quer que seja entendida o alimento ¢ 0 estimulo de uma re~ flexio filoséfica, a qual, no momento em que enfenta o pro- blema estético, enfrenta também, implicita ou explicitamen- te, todos os outros. Contanto que, ao fazer estética, 0 filéso- 10 (OS PROBLEMAS D4 ESTETICA fo ndo descuide a solicitagao da experiéncia e os dados que criticos, historiadores artistas ¢ técnicos Ihe oferecem, e, con- tanto que, ao fazer estética, os artistas, historiadores, criticos e técnicos niio esquegam de transferir-se para um plano espe- culativo, todos se encontram na estética, cada um trazendo, na tarefa comum, a particular sensibilidade e competéncia que deriva de sua proveniéncia pessoal e mentalidade. A estética torna-se assim um frutifero ponto de encontro, um campo no qual tém direito de falar os artistas, os criticos, os amadores, 0s historiadores, os psicélogos, os socidlogos, os técnicos, os pedagogos, os fil6sofos, os metafisicos, com a condigdo de que todos prestem atengdo ao ponto em que experiéncia ¢ filosofia se tocam, a experiéncia para estimu- lar e verificar a filosofia, ea filosofia para explicar e funda- mentar a experién 4, Estética e critica. Visto que a poética e a critica tém, indubitavelmente, o cardter de uma reflexdo sobre a arte, pO- de-se pensar em inclui-las na estética ou em reduzi-las & pro- pria estética, quer no sentido de conferir & estética a tarefa de estabelecer as leis da arte ou os critérios da valoracao das obras de arte, quer no sentido de fazer da estética nada além de um programa de arte ou uma teoria sobre a natureza de uma determinada arte ou uma metodologia da critica. Ora, pelo conirério, poética e critica, mesmo podendo ser traduzi- das em termos de reflexdo, nem se incluem na estética nem se identificam com ela, porque, de preferéncia, fazem parte de seu objeto, isto 6, da experiéncia estética. A estética € filoso- fia, e,relativamente a ela, aarte, com as conexas critica e po tica, io experiéncia, isto é, objeto de reflexo. Que a postica € a critica estdo essencialmente ligadas & atividade artistica fica claro no apenas quando se pensa {que a poética diz respeito & obra por fazer e a critica & obra feita: a primeira tema tarefa de regular a produgo da arte, ¢ NATUREZA E TAREFA DA ESTETICA i a critica a de avaliar a obra de arte. Sdo indispensiveis ao nascimento e a vida da arte, porque nem o artista consegue produzir arte sem uma poética declarada ou implicita, nem 0 leitor consegue avaliar a obra sem um método de leitura mais, ‘ou menos consciente, mesmo que nao seja necessério que se traduzam em termos explicitos, isto é, que a podtica seja consignada num eédigo de normas ¢ preceitos ou a critica governada por um método declarado. A propria obra requer tanto a poética quanto a critica, na medida em que exige ser feita e ser avaliada: ela resulta de uma operagao rigorosa que, pelo fato de nao seguir regras escritas ou gerais, nfo ¢ me- nos vinculada e & ao mesmo tempo, portadora e indice do préprio valor, para 0 qual exige e solicita o reconhecimento. A poética é programa de arte, declarado num manifesto, numa retérica ou mesmo implicito no proprio exercicio da atividade artistica; ela traduz em termos normativos e ope- rativos um determinado gosto, que, por sua vez, é toda a es- piritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da arte, A critica € o espelho no qual a obra se refle- te: ela pronuncia o seu juizo enquanto reconhece o valor da obra, isto é, enquanto repete o juizo com que a obra, nascen- do, aprovou-se a si mesma. A estética, pelo contrério, nfo tem nem carter norma tivo nem valorativo: ela nao define nem normas para o artis- ta nem critérios para o critico. Como filosofia, ela tem um ca- rater exclusivamente teérico: a filosofia especula, nfo legisla. Que 0 filésofo no tenha nada a prescrever ao artista, isso ja € dbvio. Hé, no entanto, quem pense que o fildsofo deva for- necer ao critico um critério para as suas avaliagGes. Isto nao € um absurdo menor; se de fato 0 filésofo fornecesse crité- rios de juizo ao critico, por isso mesmo estaria pretendendo prescrever leis ao artista, porque qualquer critério de juizo externo a obra de arte assume, imediatamente, 0 cardter de norma que o artista deveria ter seguido ao faz8-la. A estéti- 2 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA ca, longe de prescrever leis ao artista ou critérios ao critico, estuda a estrutura da experiéncia estética e aqui se encontra com o problema da poética e da critica. Torna-se objeto da sua reflexio 0 esforgo do artista para diigir, segundo leis ou normas, sua propria atividade e 0 do critico para delinear-se um método consciente de leitura e de julgamento. As leis ¢ 0s critérios dos quais a estética eventualmente fala no so prescritos por ela, mas por ela encontrados na prépria expe rigncia da arte. Naturalmente a estética, ao tomar o artista € © critico mais conscientes de seu respectivo trabalho, pode influir de modo decisivo sobre eles, sobre seu gosto e modo de criar e sobre seu juizo ¢ modo de interpretar, isto é, tem 0 cardter da pura especulago que, mesmo no podendo tradu- zir-se em normas, exerce, todavia, uma influéncia decisiva sobre a conduta, De modo especial, nao se pode assimilar a critica a es- tética, nem dizendo que a reflexao critica & de natureza filo- séfica nem dizendo que a estética é, essencialmente, meto- dologia da critica. Antes de mais nada, a reflexo da critica nio tem carter filos6fico: 0 critico, enquanto tal, nao é filé- sofo, mas leitor e avaliador, intérprete ¢ juiz. Relativamente a0 fil6sofo, o critico, juntamente com o artista, insere-se na experiéncia estética, que € objeto, além de ser fonte e verifi- cago, de seu pensamento. O trabalho do critico nem se inchui no do fildsofo, nem se alinha a seu lado, como se fossem dois modos paralelos de considerar a arte. Antes, pde-se a0 lado do artista ¢ ambos so objeto da estética, um enquanto produz arte, 0 outro enquanto a aprecia e julga. Além disso, 1ndo se pode fazer da estética uma mera metodologia da criti- «a, seja porque o método da critica constitui um dos muitos problemas da estética, nao certamente o tinico e nem mesmo © primeiro, seja porque é infundado o pressuposto funda- mental deste modo de conceber a estética, isto é, a idéia de que arte-critica-estética formam uma escala de intensifica- NATUREZA E TAREFA DA ESTETICA B ‘lo progressiva da reflexao. As relagdes que a estética tem com a arte sao diretas e nao mediadas pela critica, como se o problema da arte, em filosofia, devesse reduzir-se aquele da critica. A estética tem, com a critica e a histéria da arte, rela- ges andlogas Aquelas que tem com a prépria arte, no senti- do de que, referindo-se a experiéncia estética para explicé-la filosoficamente e dela tirar estimulo e comprovago, encon- tra nela tanto a pritica da arte quanto o exercicio da leitura, da critica e da historia que dela se fazem. 5. Estética e teoria de cada arte. Além disso néio se po- de confundir a estética com a teoria de uma determinada arte, dirigida a definir o que lhe é “especifico”, a estabelecer seus limites, a institwir suas regras técnicas, a distinguir e fixar sua linguagem. Todos estes so, certamente, problemas que a estética deve enfrentar, mas ela os enfrenta num plano rigorosamente filoséfico, extraindo, obviamente, a matéria ¢ 0 despontar de seus problemas e de seus tratamentos da ex- periéncia artistica e, portanto, daquelas diversas teorias que, ‘em todos os tempos, 0s técnicos e os estudiosos delinearam para cada uma das artes. Certamente, compete a estética es- tabelecer 0 especifico de uma determinada arte; mas a estéti- ca deve fazé-lo num plano que interesse a todas as artes, isto 6, tendo em conta todos os aspectos da experiéncia artistica €, por isso, as repercussdes que a teoria de uma determinada arte pode e deve ter no Ambito das outras artes e as ressondn- cias que, no tratamento de uma determinada arte, pode ter 0 tratamento geral de todas as outras artes. Nem mesmo aqui a real pluralidade das estéticas alcan- a comprometer a unidade da estética como reflexio filosé- fica. De fato, seria confundir os planos dizer, por exemplo, ‘que cada arte tem a sua estética e dar, assim, uma interpreta- Go divisionista as expressdes correntes “estética das artes figurativas”, “estética da arquitetura”, “estética do cinema”, 4 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA “estética musical”, e assim por diante. Analisando bem, com essas expresses apenas se deseja aludir a diversidade do dmbito de experiéncia — ou dos aspectos de uma expe- rigncia —ao qual, de modo particular, se aplicou a reflexao. 0 fato de que o termo “estética” permanega constante alude, precisamente, & unidade desta reflexdo, que nfo muda a sua natureza filoséfica com a mudanga dos ambitos da expe~ rigncia - ou dos aspectos de uma experiéncia — aos quais se refere. Assim, aquelas expressdes pretendem, propriamente, remeter cada arte & unidade daquela reflexdo que, dando conta das suas diferencas, explica-as, fundamentando-as todas numa unidade articulada. Certamente, cada arte prope estética problemas es- peciais, ¢ a estética falta gravemente com seu dever se des- cuida estes problemas especiais para manter-se num terreno indiferente ¢ neutro. A estética deve experimentar e provar seu conceito geral da arte precisamente nestes problemas especiais, de cada arte, ou melhor, encarné-lo ¢ coneretizé- lo nelas. Mas a estética deve traté-los sobre o fundo da uni- dade da arte, isto é, num nivel em que eles se incluam como casos particulates, nos problemas gerais da arte e em que o tratamento de uma determinada arte interesse, direta ou indiretamente, implicita ou expressamente, por ressondncia ou analogia, 2 todas as outras artes. Quando se permanece no nivel separatista ou no plano particularista nfo se faz estética, mas técnica tedrica: estas consideragdes técnicas sio indispensdveis para a arte, porque entram na elaboracio € definigao da “matéria” de cada arte particular e sao indis- pensaveis também a estética, como objeto de reflexio, Ambito de trabalho, ocasido de prova, mas ndo so estética, De resto, querendo abandonar a unidade e aceitar a divisio, por que se deter num determinado ponto e nao num outro? ‘Também a teoria de uma determinada arte pode ser acusada de generalidade, de modo que, de divisio em divisio, uma NATUREZA E TAREFA Dé ESTETICA 15 vez iniciado 0 processo que pretende examinar as coisas “arte por arte” ou “caso por caso”, jé no cessara to cedo, 6, Estética e poética. A distingdo entre estética e poéti- ca é particularmente importante e representa, entre outras, coisas, uma precaugao metodolégica cuja negligéncia con- duz a resultados lamentaveis. Se nos lembrarmos que a esté- tica tem um cariter filoséfico e especulativo enquanto que a poética, pelo contrério, tem um cardter programitico © ope- tativo, nfo deveremos tomar como estética uma doutrina que é, essencialmente, uma podtica, isto tomar como con- ceito de arte aquilo que nao quer ou no pode ser senio um determinado programa de arte. Uma doutrina que se prope traduzir em normas ou modos operativos um determinado gosto pessoal ou histérico, sémente por uma radical detur- aco pode apresentar-se ou ser interpretada como uma teo- ria que se esforga por atingir a universalidade e propor um conceito geral de arte; aquilo que ¢ legitimo quando enten- dido como programa de arte tomna-se absurdo se se pretende valer como conceito de arte. Apresentar ou tomar por geral © universal aquilo que é particular e hist6rico, por especula- tivo aquilo que é operativo e normativo, por teoria filos6fica da arte aquilo que é programa de arte, significa confundir os planos: impingir ou interpretar como estéticas aquelas que no so sendo poéticas, permanecer na esfera do gosto, pre- tendendo encontrar-se na da filosofia, ou transferir para a esfera da Filosofia aquilo que s6 vale na esfera do gosto, ‘Tomemos como exemplo uma dentre as numerosas dou- trinas moralistas da arte que, periodicamente, aparecem so- bre 0 palco da estética. Perguntemo-nos, antes de tudo, se seu intento € 0 de propor o programa de uma arte impregnada de sentidos morais, ou dirigida ao ensinamento do bem, ou marcada por uma determinada concepsiio filoséfica, politi- ca ou religiosa. Se este € o seu intento, ela é uma poética e, 16 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA ‘como tal, exprime um determinado gosto e um determinado ideal de arte, Seu programa é mais que legftimo e nao com- promete, absolutamente, a assim chamada autonomia da ar- te, porque se limita a patrocinar o advento ¢ a recomendar a pratica de uma arte de inspiragiio moral. Se, pelo contrério, a intengdo daquela doutrina é sustentar uma concepgdo mo- ralista da arte, isto é, afirmar que a arte s6 é tal se marcada de sentidos morais, as coisas mudam: encontramo-nos dian- te de uma doutrina que quer ser uma estética e que, no en- tanto, s6 pode ser-uma poética. Tratar-se-4, portanto, de uma poética travestida que sera preciso expelir do reino da filo- sofia ¢ restituir a seu Ambito natural, j4 que tudo aquilo que era legitimo no plano da poética deixa de sé-lo se projetado no plano da estética. Se antes s6 se tratava de auspiciar 0 advento de uma arte de inspira¢ao moral, agora se pretende considerar como arte s6 aquela de inspiragao moral; a mora~ lidade, de desejada inspiradora da arte, tornou-se 0 préprio prineipio de seu valor. Como se vé, uma mesma doutrina muda radicalmente de significado conforme seja considera~ da como uma poética ou como uma estética. Deste modo, quem poderia negar a validade do programa de arte abstrata como se se pudesse estabelecer a priori que nao é possivel fazer arte seguindo aquela poética? Mas quem, em nome daquela poética, desvalorizasse a arte figurativa do passado, u, ao julgi-ta, considerasse o intento representative como absolutamente irrelevante, ou colocasse a nao-figurativida- de como condigao indispensavel e perpétua da arte, confun- diria os planos e tenderia, ilegitimamente, a transformar um programa particular de arte em conceito geral da arte. Do ponto de vista estético, todas as poéticas sfo igual- mente legitimas: ndo importa que a arte seja compromissada ou de evasio, realista ow idealista, naturalista ou lirica, figu- rativa ou abstrata, pura ou carregada de pensamento, douta ou popular, espontinea ou refinada, e assim por diante; 0 es- NATUREZA E TAREFA DA ESTETICA 7 sencial & que seja arte. O estético, como tal, nao toma posi- ao em questdes de poéticas. Diante das freqiientes batalhas que clas travam entre si, ele evita, com cuidado, transformar em divergéncia filosdfica aquilo que é, substancialmente, uma polémica de gostos. Antes, ele deverd esforgar-se o mais, possivel por néo fazer intervir seu proprio gosto na sua pré- pria teoria, a fim de evitar que esta seja somente a concei- tualizagio de um gosto histérico e nada mais do que uma poética travestida, Naturalmente, nao poderd despojar-se do proprio gosto, histérico e determinado: seria como preten- der que ele se despojasse de sua prépria personalidade ou ¢ de sua propria situacdo histérica. Mas devera compor- tar-se de modo que 0 seu gosto nao Ihe dé os principios de sua teoria, mas somenie o indispensdvel ambito de experiéncia estética onde se alimenta. A quem objetasse que isto é im- possivel, recordarei que uma situago analoga é a do juiz da obra de arte, que no deve fundar o juizo da obra sobre 0 préprio gosto, do qual, todavia, ele no se pode despojar. O fato é que a avaliagio é sempre feita no interior de uma interpretagZo e, enquanto a interpretacdo é condicionada e tornada possivel pelo gosto, a avaliagio, ao contrario, extrai © proprio critério diretamente da obra, de modo que 0 criti- 0, ndo podendo prescindir do préprio gosto e nao podendo fazé-lo intervir no juizo, deverd ter 0 cuidado de servir-se do priprio gosto somente como via de acesso a obra ¢ ndo co- mo critério de juizo, Em questdes de poéticas, o estético deverd ater-se aos seguintes principios. Em primeiro lugar, cabe ao filésofo definir 0 conceito de poética: uma poética é um determina- do gosto convertido em programa de arte, onde por gosto se entende toda a espiritualidade de uma época ou de uma pes- soa tornada expectativa de arte; a poética, de per si, auspicia ‘mas nao promove o advento da arte, porque fazer dela o sus- tentéculo e a norma de sua propria atividade depende do 18 (05 PROBLEMAS Da ESTETICA artista. A atividade attistica & indispensavel uma poética, explicita ou implicita, jé que o artista pode passar sem um conceito de arte mas nao sem um ideal, expresso ow inex- presso, de arte. Embora em linha de principio todas as poéti- ‘cas sejam equivalentes, uma poética é eficaz somente se adere a espiritualidade do artista e traduz sen gosto em ter- ‘mos normativos e operativos, 0 que explica como uma poé~ tica esté ligada ao seu tempo, pois somente nele se realiza aquela aderéncia e, por isso, se opera aquela eficicia. A definig&o de um conceito de poética é muito itil ao critico, antes de tudo porque esclarecer a poética de um artista, isto é, colher sua espiritualidade no ato de individuar-se num gosto de arte, colher este gosto no ato de manifestar-se na sua eficdcia normativa e operativa e colher estas normas e estas operagdes no ato de concretizar-se em obras, é um dos melhores trabalhos que 0 ctitico pode fazer. Em segundo lu- gar, porque considetar uma obra como realizagao de uma postica declarada ou implicita significa pér-se na melhor situacdo para poder julgé-la, isto é, vé-la como expresso de ‘um gosto historicamente condicionado, recusar-se a julgé-la com base no préprio gosto, este também histérico e, por isso, diverso daquele, propor-se a avalid-la nao com base em critérios externos, mas tomando como base a prépria obra e, por isso, abrir-se & possibilidade de apreciara arte onde quer que se encontre € como quer que se manifeste, através dos gostos histéricos os mais diversos ¢ até opostos. Cabe, pois, ao filésofo esclarecer os termos de uma poé- tica baseando-se nos principios gerais da estética. Assim se poderd distinguir, numa doutrina, a parte estética daquela mais propriamente poética, com grande beneficio para a interpretagio das teorias da arte € da histéria da estética, Grande parte das doutrinas pré-romanticas sio, precisamen- te, poéticas: consideré-las como estéticas, ¢ também comba- '6-las num plano filoséfico, significa falsear seu verdadeiro NATUREZA B TAREFA D4 ESTETICA 19 significado e empenhar-se numa batalha tio imitil quanto facil. Por exemplo, todas as seculares polémicas em torno da esséncia da tragédia ¢ da arte em geral sio facilmente resti- tuidas as suas exatas proporgdes se pensarmos que a teoria das trés unidades é um principio de poética, conforme a um determinado gosto, enquanto que, em contrapartida, ¢ esté- tico e essencial arte o principio da unidade da obra, tal qual foi teorizado por Aristoteles. E, enquanto se incluem nna poética muitas das interpretagdes do conceito aristotélico de “verossimil”, sobretudo quando se dirigem a recomendar determinados tipos de verossimilhanga ~ ou légica, ou his- ‘rica, ou naturalista, ou outra qualquer, a distingao aristo- télica entre poesia e histéria, com tudo quanto dai deriva, é, no entanto, um principio estético, Tendo presentes estas adverténcias, seguiremos salutares principios de metodolo- gia historiogrifica, evitando a perda de tempo em intteis polémicas e colocando-nos na possibilidade de reconstruir uma teoria no seu mais genuino intento e na sua mais verda- deira consisténcia doutrinal Capitulo Definicao da arte |. Trés definigdes tradicionais: a arte como fazer, co- mo conhecer ou como exprimir. s definigdes mais conhe- cidas da arte, recorrentes na historia do pensamento, podem ser reduzidas a trés: ora a arte é concebida como um fazer, ora como um conhecer, ora como um exprimie)Estas diver- sas concepgdes ora se contrapdem e se excluer uma as outras, ora, pelo contririo, aliam-se e se combinam de varias ma- neiras. Mas permanecem, em definitivo, as trés principais, definigdes da arte. Na Antiguidade prevaleceu a primeira: a arte foi entendida como téxvn, como um fazer em que era, explicita ou implicitamente, acentuado 0 aspecto executivo, fabril, manual. Mas o pensamento antigo pouco se preocu- pou com teorizar a distingdo entre a arte propriamente dita e 0 oficio ou a técnica do artesdo, Permaneceu um equivoco, ro dissipado nem mesmo pela distingdo entre arte liberal e arte servil, que confinava artes grandes, como as plasticas € figurativas, nas artes inferiores, e era intimamente contradi: t6ria, porque, precisamente, exaltava aquelas artes em que era menos evidente a caracteristica que, por definigdo, atri- buia-se a arte, isto é, o aspecto executivo e manual. Com 0 romantismo, prevaleceu a terceira, que fez com que a beleza da arte consistisse ndo na adequagio a um modelo ou a um cfnone externo de beleza, mas na beleza da expressao, isto €,na intima coeréncia das figuras artisticas com o sentimen- to que as anima e suscita. Desde entdo, as concepcdes de ar- 2 05 PROBLEMAS Da ESTETICA te como expressdo multiplicaram-se e se aprimoraram até as duas tltimas, de Croce e de Dewey, e, no fundo, permane- cem na base das teorias que concebem a arte como uma lin- ‘gtiagem, e até na base das teorias seménticas. Mas, em todo © decurso do pensamento ocidental, é também recorrente a segumida concepeao, que interpreta a arte como conhecimen- to, visio, contemplago, em que o aspecto executivo e exte~ riorizador é secundério, seno supérfluo, entendendo-a ora como a forma suprema, ora como a forma infima do conhe- cimento, mas, em todo caso, como visio da realidade: ou da realidade sensivel na sua plena evidéncia, ou de uma reali- dade metafisica superior e mais verdadeira, ou de uma realida- de espiritual mais intima, profunda e emblematica, Estas diversas concepgdes colhem caracteres essenciais _da arte, conquanto no sejam isoladas entre si e absolutizadas. Certamente, a arte é expressdo, Mas é necessério nfo esque- cer que hé um sentido em que todas as operacées humanas so expressivas. Toda operago humana contém a espiritua- lidade e personalidade de quem toma a iniciativa de fazé-la ea.ela se dedica com empenho; por isso, toda obra humana é ‘como o retrato da pessoa que a realizou. Neste sentido, fam ‘bém a arte tem um earater expressivo. Mas, certamente, no €o que a caracteriza na sua esséneia, de modo que se pode- ria, antes, dizer que a arte tem fanbém, entre outros, um ca- rater expressivo, E, quando muito, poder-se-ia acrescentar que, se nao 0 tivesse, nem ao menos seria arte, porque the faltaria aquele cardter de humanidade acabada, que € condi- do indispensavel para 0 éxito de qualquer obra humana) Se, pois, se toma a expressio num sentido especifico e determi- nado, entio € preciso ter cautela a0 instituir relagdes de igual- dade ou identidade entre arte e expressio. Dizer, por exem- plo, que a arte é “expressio de sentimentos” pode ter impor- tincia no plano da poética, mas é uma perigosa asser¢ao no plano da estética. Pode existir o programa de uma arte lirica, DEFINIGAO Da ARTE 23 que consista no exprimir afetos e emogdes, 0 que, no entan- to, ndo esgota a esséncia da arte, j4 que ndo se compreende qual sentimento um arabesco, ou uma miisica abstrata, ou uma obra arquiteténica possam exprimir, enquanto neles se exprimiu toda uma espirituatidade. Quando depois diz-se que a arte é expressiva enquanto é uma linguagem, é preciso recordar que, nesse caso, o termo “linguagem” esté sendo uusado num sentido apenas metaférico, j4 que se hé artes que, como a poesia, adotam a linguagem como matéria, po- de-se perguntar, todavia, qual linguagem, precisamente, uma estétua ou um edificio. Portantog’ expressio atribuida & arte tem um sentido muito especial, Tal como se pode en- contrar quando se diz, por exemplo, que a arte é “expresso conseguida’”’, onde a énfase que contém o caréter especifico da arte cai no sobre o substantivo, mas sobre o adjetivo. Nesse sentido, a obra de arte & expressiva enquanto é forma, isto , organismo que vive por conta propria e contém tudo quanto deve conter. Ela exprime, entdo, a personalidade do seu autor, no tanto no sentido de que a trai, ou a denuncia, ou a declara, mas, antes, no sentido de que a é, e nela até a minima particula é mais reveladora acerca da pessoa de seu autor do que qualquer confissio direta, e a espiritualidade {que nela se exprime est completamente identificada com 0 estilo. A forma é expressiva enquanto 0 seu ser é um dizer, € ela ndo tanto fem quanto, antes é um significado. De modo que se pode concluir que, em arte, o conceito de expressio deriva o seu especial significado daquele de forma Certamente, depois, hd um aspecto cognascitivo, con- templativo, visivo na arte. Mas € preciso evitar caracterizar a arte com esse aspecto cognoscitivo que, do mesmo modo, pode ser conferido a outras atividades humanas. Para certos artistas, a sta arte é 0 seu modo de conhecer, de interpretar 0 mundo e até de fazer ciéneia, como em Leonardo. Mas isto se inclui no caso geral da arte que, na concreta ¢ indivisivel 24 (OS PROBLEMAS Dé ESTETICA personalidade do artista, ocupa o lugar ou assume as fun- ‘gbes de outras atividades do espirito humano, isto é, de cién- cia, ou de filosofia, ou de religiao, ou de moralidade, sem, por isso, deixar de ser arte. Aquilo que alguns dizem da arte, que ela é reveladora da verdadeira realidade das coisas, do mundo supra-sensivel, da idéia, poder-se-ia dizer igualmen- te das outras atividades do homem, ja que cada uma delas, no seu concreto exercicio, abre frestas sobre a constituigao da realidade, enquanto exibe principios, leis, estruturas s0- bre as quais a filosofia, com oportuna interpretagéo, etige as suas construgdes conceituais( Mas a arte nao tem, de per si, uma fungao reveladora ou cognoscitiva, e menos ainda se reduz a conhecimento, sobretudo quando se atribui um caré- ter contemplativo ao conheciment6. O fato de se haver acen- tuado o cardter cognoscitivo e visivo, contemplative e teoré~ tico da arte contribuiu para colocar em segundo plano seu aspecto mais essencial e fundamental que € o executivo e realizador, com grave prejuizo para a teoria e pritica da arte. Segundo todo um filao da histéria do pensamento estético, a partir de um certo platonismo renascentista a Schopenhauer e até a Croce, a tarefa da arte é contemplar, isto é, ou colher a idéia eterna e supra-sensivel, ou resgatar-se da vontade sub- Jetiva para fazer-se puro olho contemplante, ou intuir 0 par- ticular e, com respeito a esta contemplacio, é irrelevante que a imagem interior seja executada ou “repetida” ou “ex- teriorizada”. A arte ignora qualquer outro fazer que nao seja aquele implicito no préprio conhecer. O quanto este “espiri- tualismo artistico” & inadequado, sabem-no bem os artistas, as voltas com a matéria e a técnica de sua arte, e com a obra que exige ser feita, executada, realizada, Antes, deve-se con- cluir que, se a arte é conhecimento, ela 0 é no modo proprio € inconfundivel que lhe deriva do seu ser arte, de modo que no € que a arte seja, ela propria, conhecimento, ou visio, ou contemplagao, porque, antes, ela qualifica de modo espe- DEFINICAO Da ARTE 25 cial caracteristico estas suas eventuais fungdes. Por exem- plo, ela revela, freqiientemente, um sentido das coisas e faz com que um particular fale de modo novo e inesperado, en- sina uma nova maneira de olhar e ver a realidade; e estes olha- res so reveladores sobretudo porque $40 construtivos, co- mo 0 olho do pintor, cujo ver ja é um pintar e para quem 2. A arte como formatividade. Muito oportunamente, portanto, a primeira concepgo chama a atencdo sobre o fazer, isto 6, sobre o fato de que o aspecto essencial da arte é ‘0 produtivo, realizativo, executivo. Mas também aqui é pre- ciso no esquecer que todas as atividades humanas t8m um lado executivo e realizativo. Isto diz respeito ndo somente ‘a0 mundo da técnica, da fabricagdo, dos oficios, onde o “fa zer” tem um aspecto no s6 evidente, mas vistoso, isto é, um aspecto manual e fabril, mas diz também respeito as ativida- des propriamente espirituais, onde este aspecto vistoso nao existe, como o pensar ¢ o agir. Também no pensamento e na ago nao € possivel “operar” sem “fazer”, isto é, sem cum- prir, executar, produzir, realizar: cumprir movimentos de pen- samento € atos praticos, executar raciocinios ¢ acdes, produ- zir obras especulativas e obras morais, realizar valores teori- cos ¢ valores éticos. Mas a arte é produgao e realizacdo em sentido intensivo, eminente, absoluto, a tal ponto que, com freqiiéncia, foi, na verdade, chamada criacdo, enquanto é nio 86 produgio de organismos que, como os da natureza, sio auténomos, independentes e vivem por conta prépria, mas também alcanga ser produgo de objetos radicalmente no- vos, verdadeiro e préprio incremento da realidade, inovagio ontoldgica QO fato é que a arte nao é somente executar, pro- duzir, realizar, e 0 simples “fazer” ndo basta para definir sua esséncia, A arte & também invengdo, Ela ndo € execugio de qualquer coisa ja ideada, realizagdo de um projeto. produ- 26 OS PROBLEMAS Da ESTETICA «do segundo regras dadas ou predispostas. Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa 0 por fazer eo modo de fazer. A arte é uma atividade na qual execugio e invengo procedem ‘pari passu, simulténeas e inseparaveis, na qual o incremen- to de realidade é constitui¢do de um valor original. Nela con cebe-se executando, projeta-se fazendo, encontra-se a regra operando, ja que a obra existe s6 quando é acabada, nem é pensével projeté-la antes de fazé-la e, s6 escrevendo, ou pin- tando, ou cantando é que ela é encontrada e & concebida e é inventad&jPensemos em Bergson, quando escreve que “a partir do momento em que o mtisico tem a idéia precisa € completa da sinfonia que fard, a sua sinfonia esta feita” e, quando interrogado sobre as caracteristicas do teatro do fu- turo, responde: “Se eu soubesse como serd a grande obra dra- matica de amanha, fi-la-ia.” A arte é, portanto, um fazer em que 0 aspecto realizativo é particularmente intensificado, tunido a um aspecto inventivo. Nela a realizacdo nao é so- mente um “facere”, mas propriamente um “perficere”, isto é, tum acabar; um levar a cumprimento e inteireza, de modo que é uma invencao tio radical que da lugar a uma obra absoluta~ mente original ¢ irrepetivel. Mas estas so as caracteristicas da forma, que &, precisamente, exemplar na sua perfeigdio singularissima na sua originalidade. De modo que, pode dizer-se que a atividade artistica consiste propramente no “formar”, isto , exatamente num executar, produzir e reali- ar, que é, ao mesmo tempo, inventar, figurar, descobrit..\ Os conceitos de forma e de formatividade parecem:por- tanto, 0s mais adequados para qualificar, respectivamente, a arte © a atividade artistica. Para a atualidade desta concep- Gio contribuiram alguns desenvolvimentos do pensamento moderno, que, provindo de pontos de partida diversos, mos- tram uma convergéncia significativa de conclusdes. Sobre 0 cariter formativo da atividade artistica, Goethe, atento teo- rizador das relagdes entre arte e natureza, esereveu paginas DEFINIGAO D4 ARTE a memordveis e atualissimas; sobre analogia entre obras de arte e organismos da natureza, Schelling chamou a atengio; Focillon falou da vida das formas e grande parte da estética francesa contempordnea insistiu sobre a contemporaneidade da invengdo e da execucdo; a psicologia da forma convidou ‘a meditar sobre conceitos de totalidade e de estrutura; White~ head renovou a problematica do conceito de organizagao e organicidade; Dewey insistiu sobre os conceitos de “acaba- mento” e de “éxito”’; na Itélia, Augusto Guzzo mostrou co- mo na atividade humana se nucleiam formas que, pelo seu exemplar sucesso,’ dio lugar a estilos; quem escreve estas paginas procurou teorizar uma estética da “formatividade”, ‘que concebe as obras de arte como organismos vivendo de vida prépria e dotados de legalidade interna, e que propée uma concepcao dindmica da beleza artistica 1 No original: rasta: (N. da T.) Capitulo Ut Autonomia e funcdes da arte 1. Extensio ¢ especificagao da arte. A dupla exigéncia de reconhecer a presenga da arte em todas as atividades humanas e especificar a arte, propriamente dita, como ativi- dade distinta das demais, d4 lugar a um importante problema €, por muito tempo, empenhou o campo da estética, dividin- do-o em duas fileiras opostas. De um lado esto os que, como Croce, preocupados sobretudo com a distingao da arte, aca- bam por negar qualquer beleza que nao seja artistica, nfo no sentido de estender a arte até compreender os produtos das demais atividades humanas, mas no sentido de restringir a beleza aos produtos da arte propriamente dita, Dai resulta que no somente se nega que uma obra moral ou uma obra de pensamento possa ter um cardter artistico, mas também se nega a possibilidade de um cardter estético em objetos titeis, produtos do artesanato ou da técnica, Do outro lado, hoje no faltam aqueles que, reparando, precisamente, em como hé um caréter artistico inerente a toda e qualquer atividade humana, intervindo em qualquer lugar onde se alcance um éxito, seja ‘em que campo for, preocupam-se pouco, depois, com distin- guir a arte, verdadeira e propriamente dita, desta artisticidade sgenérica. Disso resulta que ndo se garante suficientemente a especificagio da arte que nio se lhe oferece um reino pré- prio, ainda que estreitamente unido com todo o resto. Ora, indubitavelmente, a exigéncia da especificagao da arte é fundamental. Trata-se de distinguir a arte bela da arte 30 (OS PROBLEMAS D4 ESTETICA mecénica, como quando, na Antigilidade e na Idade Média, 2 arte era confundida com os oficios e as técnicas no coneei- to comum de um fazer; trata-se de encontrar um érgiio espe- cial para conhecer e reconhecer a beleza, como quando, no Setecentos, justamente com as outras faculdades do homem, buscou-se distinguir ¢ definir o sentido do belo, encontran- do-o na sensibilidade ou numa especial atitude da sensibili- dade; trata-se de distinguir a arte das outras grandes ativida- des do homem, como quando, na filosofia romantica, cons- truia-se de diversos modos a ordem dialética e a hierarquia entre arte, religido e filosofia, ou como quando, nos tiltimos desenvolvimentos da filosofia idealista na Italia, distinguia- se a arte das outras trés “formas” do espirito. Mas é funda- mental também a exigéncia da extensiio da arte a todos os campos da atividade humana, como atesta toda a hist6ria do homem, especialmente nas civilizagdes de alto sentido artis- tico, como a grega ¢ a humanistica, onde em cada atividade se persegue, juntamente com o valor especifico daquela ati- vidade determinada, também o valor artistico, e nao se con- segue conceber nenhuma atividade que nao tenha um éxito artistico; e como se vé particularmente numa idade como a nossa, em que a renovagio do gosto ocorre nfo apenas na arte propriamente dita, mas, sobretudo, nos mais diversos mbitos da vida, da decoragao a arte grdfica e do desenho industrial ds artes de massa. Assim, com as etiquetas, a vida social enobreceu-se € refinou-se sob a evidente influéncia de um ideal estético, as varias ceriménias da vida politica ou religiosa colorem-se de arte, num nexo concreto em que a beleza no é separivel do rito, do culto, da convengao, do costume, do simbolo. A oratéria adora realizar seu fim pare- nético através de uma deliberada busca de efeitos artisticos; sinais de arte notam-se no vestuério, na decoragio, nos pro- dutos de artesanato, nos produtos industriais, e assim por diante. Ora, estas duas exigéncias opostas sao satisfeitas e, AUTONOMIA E FUNGOES Da ARTE 31 para evitar que uma, prevalecendo sobre a outta, termine por desconhecer-the os direitos, trata-se de satisfazé-las juntas. Por um lado, é preciso reconhecer que ha arte em toda atividade humana. Sem “formatividade”, nenhuma ativida- de & bem-sucedida no seu intento, Em toda a obra humana esté presente um lado inventivo e inovador como primeira condigao de toda realizagao. Isso explica como pode haver arte em toda atividade humana, ou melhor, como hi a arte de toda atividade humana, no sentido de que, em qualquer cir- cunstincia, trata-se de fazer com arte; explica como nao ha obra que, ao mesmo tempo, néo seja forma, isto é como toda obra bem-sucedida é também sempre bela, como a rea- lizago de cada valor é impossivel sem a realizago de um valor artistico, como a avaliagio de cada obra niio pode nunca vir desacompanhada de uma avaliagdo estética. & necessirio arte para fazer qualquer coisa: sempre e em qual- quer circunstincia, trata-se de “fazer com arte”, isto & de urgir para o éxito aquele determinado “fazer” que esti pre- sente em toda a operosidade humana, Pode haver arte no mundo da técnica, onde o “fazer” se especifica subordinan- do-se a um valor econdmico, enquanto se trata de construir instrumentos, satisfazer necessidades, criar comodidades de vida: basta que @ atividade que persegue esses valores de utilidade exija um exercicio de formatividade, isto é, um fazer que seja, ao mesmo tempo, invengo do modo de fa- zer, Neste sentido, todas as técnicas que exigem e recomen- dam um exercicio de formatividade, mais ou menos intenso, so um apelo a arte: eis as varias artes € oficios, as artes da equitacdo, da navegacdo, da agricultura, as artes da guerra, do governo, da cirurgia, as artes de demonstrar, convencer, persuadir. Hé, depois, uma arte do pensar, que vai do sim- ples raciocinio quotidiano do bom senso até a mais ardua, construida e sistemitica filosofia; hd, até, extremamente ele- vada € nobre, a arte de viver, como atestam os costumes de 32, 05 PROBLEMAS DA ESTETICA todos os tempos, os tratados quinhentistas e seiscentistas so- bre a cortesia, 0s livros de perfeigo moral. Por isso, quando se diz, por exemplo, que é bela uma ago, uma virtude, um caréter, ou um raciocinio, uma de- monstrago, um sistema filoséfico, ou uma partida de fute- bol, uma faca, um automével, ndo se faz uma metéfora, mas se procede a uma verdadeira e propria avaliagao estética. Trata-se de obras bem-sucedidas no seu género, que exi ram um exercicio de formatividade e, por isso, revestem um cariter artistico, a ponto de que a avaliagdo estética coincide com a apreciagio espeeffica. No prdprio ato em que eu apre- cio a bondade de uma ago ou a verdade de um raciocinio ou as comodidades de um automével, cada uma destas obras me aparece bem-sucedida no seu género, isto é, feita como convinha, feita com arte: o valor pritico, ou te6rico, ou eco- némico daquelas obras no me aparece se nao me aparece também, ao mesmo tempo, 0 valor estético, ¢ isto me apare~ ce apenas no ato em que eu estou em condigdes de apreciar © primeiro. Eis um caso em que, por vezes, o belo coincide com o bom, com o verdadeiro, com o util, sem, por isso, anular-se neles, ¢ onde o bom, o verdadeiro e o titi apare- cem como beleza, sem, por isso, reduzirem-se a ela, Nao ha confusio alguma de valores, porque nem o belo se perde nos outros valores, nem estes se identificam com ele. E pode-se falar de beleza do bem, do verdadeiro, do util, ou melhor, de bondade, verdade e utilidade como beleza, isto é, pode es- tender-se a arte a toda atividade e a beleza a toda obra huma- nna, sem, por isso, cair no esteticismo. Mas, estendida assim a arte a toda a atividade humana, trata-se, por outro lado, de estabelecer 0 que significa a arte propriamente dita, isto é, a arte sic et simpliciter, sem geniti- ‘vo e sem locativo: nio a arte no agir ou no pensar, ndo a arte de viver ou de raciocinar, mas a arte de per si; em suma, 0 que significa néo “fazer com arte”, mas “fazer arte”. Pois AUTONOMIA E FUNGOES Dé ARTE 33 bem, a arte propriamente dita & a especificacdo da formati- vidade, exercitada, ndlo mais tendo em vista outros fins, mas por si mesma. O artista nao tem em mira uma obra que, para ser obra, deva ser também forma (isto é, um éxito especula- tivo, moral, técnico), mas uma obra que presume e aceita valer s6 como forma (isto & como mero éxito). A obra de arte consiste precisamente nisto: no ndo querer ter outra jus- tificago que a de ser um puro éxito, uma forma que vive de per si, uma inovagao radical e um incremento imprevisto da realidade, alguma coisa que primeiro mio era e que é tinica no seu género, uma realizaco primeira e absoluta. ‘Mas a especificagio da arte nao deve isolé-la do resto: la s6 tem sentido se considerada sobre o fundo da extenso da arte sobre toda a operosidade humana. Entre a arte assim especificada a arte que se estende a toda atividade do ho- mem nao ha um abismo qualitative ou uma solug&o de con- tinuidade: hd, antes, uma passagem gradual que, dos primei ros esbogos oferecidos por aquele tanto de inventividade que é exigido pela atividade mais regulada e uniforme, alcanca as mais altas e desinteressadas realizagGes da arte. A arte, verdadeira e propriamente dita, nao teria mais lugar se toda a operosidade humana nio tivesse j4 um carter “artistico”, que ela prolonga, aprimora ¢ exalta. Da execugao técnica de um projeto preestabelecido & invengo mais original da arte, do uso comum e quotidiano das matérias da arte, como a lin- ‘gua ou o desenho, aos fastigios da poesia e da pintura, esten- de-se todo um exercicio de formatividade, que das formas mais elementares das “sagacidades operativas” do oficio chega até a “criagd0” artistica. Assim, por exemplo, a inter- Jjeigdo se faz frase exortativa e esta se torna discurso persua- sivo: eis a oragio, eis a arte de fazer oragies, a elogiiéncia, ¢, finalmente, suprema possibilidade, a oragio como arte. Da amabilidade de uma conversa aos faustos do teatro tragi- co € cémico, da tentativa de dar relevo ao relato, na lingua- 34 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA ‘gem quotidiana, a complexidade do romance, da originali dade de um cartaz & suprema gratuidade de uma pintura, da elegancia insita na pura funcionalidade de uma maquina & pureza artistica de uma estétua, do mais modesto embeleza- mento do quarto de uma casa aos cumes da arquitetura, da ‘mais ingénua procura de efeito no canto popular até a mésica ‘mais abstrata, hé uma gama infinita de possibilidades “artis- ticas” que se matizam do “fazer com arte” ao “fazer arte”, ¢ que seria injusto tanto relegar para fora da arte quanto identi- ficar com a verdadeira arte, propriamente dita. 2. A arte e as outras atividades. Como em toda a ope- rosidade humana a arte esta presente, no sentido de que nenhuma atividade atinge seu proprio fim se ndo € exercita- da com arte, nao se deverd reconhecer que também as outras atividades esto presentes na arte, de modo que esta no pode alcangar o préprio fim sem a sua intervengo ¢ seu sustento? Eis 0 problema das relagdes da arte com as outras atividades, que é um dos mais importantes da estética, ¢ também dos mais complexos, dada a variedade dos liames que, mais ou menos estreita e inextricavelmente, instituem- se entre as atividades do homem. Quem, como Croce, acen- tua a distingdo da arte e, por isso, nega a presenca da arte nas outras atividades, acaba por negar também a intervengio das outras atividades na arte. Se, por exemplo, parece que, na formagiio da obra de arte, intervém o pensamento ajuiza- dor, a explicar as escolhas as corregdes do artista, Croce precisa que este pensamento ou é a prépria fantasia criadora no seu concreto exercicio, e, por isso, ndo é pensamento, ou, se é pensamento, exercita-se somente nas “pausas” da for- magi, e, por isso, é estranho 4 atividade artistica. Alem disso, Croce admite que na base da atividade artistica esta a moralidade, condigo necesséria para a realizagao de qual- quer valor, mas afirma que, em tal caso, a lei ética se resolve AUTONOMIA £ FUNGOES Dd ARTE 35 na lei estética, ndio prescrevendo sendo que o artista, para sé- lo, deve fazer arte e nao outra coisa. Estas explicagdes muito icidas, que entraram no patriménio da cultura italiana cor- rente, apresentam o defeito de esquecer que o artista é o pri- meiro critico de si mesmo, e, por isso, exercita, dentro da figuragdo, 0 pensamento judicante, 0 qual, por estar subor- dinado aos fins da arte, nem por isso cessa de ser pensamen- toe de trazeraprépria contribuigao insubstituivel para o su- cesso da figuracdo artistica; e que, no exercfcio conereto da arte, trata-se antes de leis poéticas que se tornam leis éticas, carregando-se de um significado moral, como acontece com tudo quanto tecnicamente exigido por um fim para o qual nos empenhamos com livre decisto. Com aquela teoria de nitida distingao, Croce justamen- te queria evitar os escolhos opostos das duas solugdes extre- ‘mas que, na histéria do pensamento, foram dadas ao proble- ma das relagdes entre a arte € as outras atividades: de um lado o esteticismo e, do outro, a concepgio moralista e didas céilica da arte. Por um lado, aproximaram-se as outras ativi- dades da arte, a ponto de fazer com que qualquer outro valor dependesse do artistico. Procurou-se tanto @ arte em todas, as coisas, a ponto de subordinar tudo a arte, no sentido de que se pretendeu exercitar € realizar toda atividade como arte: no tanto a arte de viver, quanto a vida como arte; no ‘arte de pensar, mas 0 pensamento como arte, Por outro lado, acentuou-se de tal forma a conexiio da arte com as outras atividades a ponto de fazer depender o valor artistico dos outros: assinalou-se & arte o fim de ensinar 0 verdadeiro e de exortar ao bem e ndo foi apreciada sendo ria medida em que realizava este fim: concebeu-se a arte como 0 “suave licor” que tomna aprazivel 0 acesso ao verdadeiro e ao bem e con- segue docere delectando. A primeira concepgao reaparece cada vez que se substitui 0 gosto ao dever moral, o belo ges- to & boa agdo, quando de um pensador se exige ndo tanto a 36 (OS PROBLEMAS Da ESTETICA verdade quanto a originalidade e a novidade e, na histéria do pensamento, vé-se uma sucesso de formas mais do que ‘uma busca do verdadeiro. A segunda concepedo, a da instru- mentalidade da arte relativamente aos outros valores, é anti- Qiiissima e, de varias maneiras, percorre toda a histéria do pensamento. Reaparece, com freqiléncia, na estética, até as poéticas hodiernas, que impde & arte tarefas propagandistas, 1no campo politico. Ora, estas concepgdes constituem uma confusto e, por isso, uma corrupeao dos valores. O esteticismo, certamente, ‘corrompe a aco € 0 pensamento, porque atribui a conduta da vida e & busca do verdadeiro, leis e fins que ndo so pré- prios de tais atividades; mas acaba também por corromper a arte, j4 que quem, com a idéia de fazer da vida apenas uma obra de arte, a subtrai da lei moral, que é a tinica em condi- des de guid-la, e subtrai os priprios raciocinios da exigén- cia da verdade, que € a tinica em condigdes de orienti-los, torna-se logo ignaro de outros critérios a ndo ser 0 mero interesse € 0 puro capricho; com isto, 0 valor artistico cede seu lugar a modos de ver puramente econdmicos. A concep- do moralista e didascélica & uma desvalorizagio da arte, porque a reduz a mero instrumento para outros fins e a pura “vestimenta” literéria. Mas & também uma desvalorizagao do bem ¢ do verdadeiro, quer porque convida o artista a no cumprir 0 seu dever para com a arte e a criar uma desordem de valores, quer porque retém o verdadero e o bem faltos do atrativo da arte para torné-los toleraveis ao homem. Contudo, as duas concepedes partem, no fundo, da jus- ta exigéncia de reconhecer possibilidades reais, tais como si, de um lado, 0 éxito artistico de operagées nao artisticas «, de out, a funedo ndo artistica da arte. Ha, por exemplo, civilizagSes to marcadas pelo sentido do belo, que nelas a realizago de qualquer valor assume um carter artistico, a ponto de que ciéneia e filosofia, politica ¢ religido, técnicas AUTONOMIA E FUNGOES DA ARTE 37 € oficios ndo podem exercitar-se sendo dando lugar a discur- 808 ¢ tratados, ceriménias € ritos, utensilios ¢ instrumentos que so verdadeiras ¢ préprias obras de arte. Bis ento 0 caso de atividades dirigidas a fins nao artisticos e que nfo podem atingir estes fins sem realizar um valor de arte, a ponto de que nao é possivel valorizé-los na sua especifica finalidade, sem ter em conta esta sua intima necessidade de ter um éxito attistico, Por exemplo, no humanismo, ciéneia e politica nio sfo aprecidveis como tais, a ndo ser que se tenha em conta 0 cardter artistico de sua realizacdo, isto é, a consciente inten- sao de realizé-las como arte. Por outro lado, hé civilizages em que a totalidade da vida espiritual & de tal forma unitéria € indivisa, e arte, filosofia, religiao, politica e moral estio ‘Go estreitamente conectadas, que cada obra é a realizacio de um valor filos6fico, politico, religioso e artistic, a0 ‘mesmo tempo, como a Biblia, ou os poemas homéricos ¢ as tragédias gregas, ou a Divina Comédia. Bis 0 caso de obras complexas, em que 0s valores se compenetram a ponto de que nenhum deles é apreciével sem os outros, e em que a arte adquire sentidos que transcendem o seu valor artistico ¢ reveste fungdes ulteriores, e que nao podem estar compreen- didas na sua natureza de arte sem esta sua significagio e funcionalidade nao artistica. Fazé-las objeto de uma consi- deragdo puramente artistica significa no entendé-las nem a0 menos como arte; indagar-lhes 0 significado politico, fi- los6fico e religioso sem ter em conta o seu valor de arte quer dizer deixar escapar também esta sua dimensdo ndo artisti- ca. Assim, em certos climas culturais, a arte assume fungio, por exemplo, de filosofia, ¢ a filosofia nfo se manifesta na sua expresso especifica, mas s6 encontra realizagdo na arte © é ali que ha que ser procurada: assim, os romances de Dos toievski so clara filosofia, as pinturas de Bosch, genuina teologia, na sua propria natureza de arte, e a verdadeira filo sofia espanhola hé que ser procurada no nos cansativos tra- 38 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA tados tradicionais, mas na poesia mistica, no drama e no romance, Nestes casos, a prdpria arte é um modo de fazer filosofia e nao é compreendida como arte, a nfo ser que seja considerada nesta sua fungdo ndo artistica. Isto sem levar em conta o fato, que examinaremos em seguida, de que 0 artista arrasta para a sua arte os seus ideais filos6ficos, mo- rais, politicos, religiosos, e, de tal forma deles impregna as suas obras, que estes assumem a funcio daqueles diversos valores, Estes casos estariam mal-entendidos e falsificados den- tro das categorias do esteticismo, moralismo ou didascalis- mo, jé que neles os valores nao esto confundidos: cada um deles é buscado no seu campo, ainda que nao consiga reali- zar-se sendo juntamente com os outros ou através deles, ¢ valores artisticos e no artisticos estao de tal modo estreita- mente ligados, que é impossivel a avaliagdo especifica e a compreensao de uns sem a apreciagdo prépria e a penetra- 40 dos outros. Nao esteticismo, ou subordinagio dos outros valores ao artistico, mas éxito artistico de atividades nao artisticas; no didascalismo ou moralismo, ou subordinagao do valor artistico aos outros, mas siniultaneidade da arte com outros valores, aderéncia da arte a outros fins, fungio nao artistica da arte. 3. Arte e vida, Intimamente ligado ao problema prece- dente esté 0 tao discutido problema das relagdes entre arte & vida. Por um lado, arte e vida foram, com freqiiéncia, inti- mamente ligadas e, as vezes, até identificadas. Tem-se dito que a arte acompanha toda a experiéncia do homem, insepa- rével das manifestagdes da vida moral, politica, religiosa; que reflete sempre a situacdo histérica em que se desenvol- ve, representagao fiel da vida humana num momento de seu desenvolvimento; que é ela prépria uma forma de vida, a primeira forma do viver humano, a inffncia da humanidade; AUTONOMIA E FUNGOES Da ARTE 39 ‘que tem uma missio a cumprir na vida humana, contribuin- do para a civilizacdo, para a edificagao do regnum hominis, para a difusdo dos valores especulativos e morais, para a vida politica e civil, porque, cénscia das préprias responsa- bilidades, canta as aspiragdes do homem, acompanha e decide suas lutas, promove seus ideais, educa seu espirito. Por outro lado, a arte e a vida foram freqiientemente separa- das e, as vezes, até contrapostas. A arte foi entendida como uma atividade que sobrevém quando o homem ja satisfez suas necessidades econdmicas-e cognoscitivas, resolveu os seus deveres morais e politicos, que se pode exercitar s6 de- pois que o homem construiu a sua civilizagao, num supremo desinteresse e numa pura inutilidade, como atividade abso- lutamente gratuita, um fim para si mesma, satisfeita de si e intolerante quanto a fungdes ulteriores, puro jogo © mero deleite, a0 abrigo do tumulto e das lutas da vida; pelo contré- rio, como evasdo da vida, mundo de sonhos, véo da imagina- Gao, luta contra o real, remédio para a inquieta operosidade humana, triunfo da inatividade, reftigio na pura contempla- Gio, voluntirio isolamento das preocupagdes que afligem a humanidade na realizagao de seus ideais e no cumprimento de seus deveres. Como € possivel que a uma mesma atividade se atri- buam caracteristicas tio diversas? Por um lado, a arte cola- bora na operosidade humana e, por outro lado, distancia-se dela na quietude contemplativa, por um lado, a adesio, o empenho, a responsabilidade, por outro lado, 0 jogo, a eva sio, o distanciamento. Com freqiiéncia nfo se trata sendo de uma diferenca de postica, isto &, de programas de arte. Ha uma arte que quer ser empenhada, militante, engagé, que quer enfientar os problemas vitais de seu tempo, que quer di fundir uma determinada concepcao religiosa, politica, so- cial; e hd uma arte que quer ser pura forma, decoragao, ara besco, que s6 visa & poesia pura e a arte pela arte, que, des- 40 (OS PROBLEMAS DA rETICA preocupada dos vastos piblicos e dos consensos difundidos, fecha-se na torre de marfim, reservando-se para a degusta- <0 de poucos e refinadissimos entendedores. Mas, freqiien- temente, trata-se mesmo-de dois modos de conceber a arte. Fé quem busque na arte um alimento espiritual completo e, por isso, the assinala um campo de ago vasto como a pr6- pria vida, complexos conteiidos espirituais e miiltiplas fun- ses na vida, e hd quem busque na arte o alivio de um ins- tante de pura contemplagao e o fascinante deleite do sonho, sendo, por isso, levado a consideré-la apenas como evasio da vida e voo da fantasia. Na realidade, nestes casos trata-se da altermada e exclu- siva acentuacdo de dois aspectos que, na arte, so inseparé- veis e indivisos. Por um lado, a arte esté realmente ligada com a vida. Esta esta presente em toda a operosidade do homem. Freqiientemente, assume fungdes ulteriores na vida humana, sem, por isso, perder a propria natureza. Acolhe em si toda a vida espiritual do seu autor, torna-se’realmente vida e razdo de vida para o artista, em cuja consciéncia con- io indivisos. Por outro lado, a arte é tam- bém uma atividade especificada, que emerge da vida; e dela emergindo, dela se distingue, afirmando-se numa ciosa es- pecificagao prépria, com uma natureza, finalidade e carac- teres proprios. Aquelas concepgdes absolutizam um s6 dos dois aspectos, descurando o outro. Para afirmar uma arte adetente & vida acaba-se por descurar a especificagao da arte, e para afirmar a pura gratuidade da arte, acaba-se por esquecer 0 quanto ela deve & vida e como pode e deve nela influir. Na realidade, quando se fala de arte empenhada, quer-se aludi ao fato de que como a arte esta presente em toda vida do homem, assim toda a vida do homem penetra nela, constituindo-Ihe o intimo contetido e, justamente por isso, ela pode tornar-se razo de vida para quem a faz e para quem a goza, ¢, pela sua intrinseca humanidade, pode exer- creta os valores AUTONOMIA E FUNGOES DA ARTE 41 citar na vida uma grande fungo: educadora, ou moral, ou cicntifica, ou religiosa, ou politica, ou social. E quando se diz que a arte é evasio, jogo, pura gratuidade, quer-se acen- tuar 0 proprio ato de especificacao da arte, isto &, 0 ato pelo qual aarte ¢ arte ¢ no outra coisa, suficiente no seu valor de arte, Mas 0 que importa nao esquecer ¢ que os dois aspectos sfio insepardveis: se a arte pode emergir da vida, afirmando- se na sua especificagio, é porque ela ja esta na vida inteira, que, contendo-a, prepara e prenuncia a sua especificagao. E, no ato de especificar-se, ela acolhe em si toda a vida, que a penetra e invade a ponto de ela poder reemergir na propria vida para nela exercitar as mais variadas fungdes: como a vida penetra na arte, assim a arte age na vida, — Neste sentido pode-se até dizer que, na arte, empenho e Jogo, adesio € distanciamento, responsabilidade € evasio, funcionalidade e gratuidade encontram-se colaboram en- tre si, e, se tal colaboracdo e compatibilidade pode parecer misteriosa, dever-se-4 dizer que nio é este o tinico aspecto paradoxal desta atividade que 6, certamente, a mais comple- xa e enigmatica das atividades humanas. Justamente na sua especificagdo, que a langa sobre si propria, a arte é alimen- tada, invadida, robustecida pela vida e pela consciéncia de nela poder exercitar ume miso, Nisto consiste aquilo que se costuma chamar a humanidade da arte, e que foi utilmen- te reivindicada contra as afirmagdes exclusivas da gratuida- de da arte, mas que, por sua vez, converte-se numa negago da arte se nio faz caso de sua especificacdo. Poesia de eva- sio e arte militante, de fato, s6 se incluem na arte se partici- pam desta sua natureza dupla, pela qual 0 puro jogo e 0 véo dda fantasia niio stio nunca tio destacados de forma a nfo ar- rastar consigo todo um mundo espiritual ¢ um posiciona- ‘mento concreto em face da vida, e o propésito militante no ébem-sucedido no seu intento a menos que seja seguido por ‘uma via puramente artistica. 42 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA 4. O problema da autonomia da arte. Contra as anti- Bas concepsdes didascélicas, ou moralistas, ou hedonistas da arte, que subordinavam o valor artistico a verdade, ou a0 bem, ou ao util, o pensamento moderno, cioso do valor da arte, tio energicamente reivindicado pelo romantismo e tio obstinadamente reafirmado pelas poéticas da poesia pura e da arte pela arte, elaborou o conceito da autonomia da arte, segundo 0 qual o valor artistico desaparece mal o artista se deixa guiar por intentos especulativos, morais ou utilitarios, a menos que 0 génio do poeta consiga vencer apesar de suas, intengdes. A arte exige ser praticada por si prépria, bastando © valor da forma para justificd-la, e recusa qualquer conta~ minagdo que subordine seu exercicio a fins nao artisticos. Muito freqiientemente esta autonomia foi entendida como uma verdadeira e propria independéncia da arte relativa- mente as outras atividades humanas, e até como um isola- mento delas. As vezes, o justo zelo da especificago da arte se acentuou suspeitando das outras atividades, temendo que alianga pudesse significar subordinacao, vizinhanga, servi- dio, contemporaneidade, dependéncia, né e vinculo. Assim, para manter a arte na sua pureza, acabou-se por relegé-la a uma atmosfera rarefeita, em que se extinguem e esterilizam 8 contetidos espirituais, os problemas de pensamento, as preocupagdes morais, os elementos utilitirios. A concepgio mais difundida desta independéncia da arte € aquela que, niio-negando a relagdo da arte com os outros valores e as outras atividades espirituais, concebe, todavia, estas tltimas como simples matéria do ato criativo e, por isso, como pré- historia da arte: dados pré-artisticos, materiais de combus- tio, ingredientes para se porem no cadinho, elementos que 6 com o anularem-se contribuem para a realizagéo de um valor de arte. Em suma, antecedentes destinados a resolver- se ¢ dissolver-se na obra, que hé que ser considerada unica- ‘mente na sua qualidade artistica. De modo que, qualquer AUTONOMIA E FUNGOES DA ARTE 43 outra consideragio — especulativa, moral, utilitéria ou outra — perturbaria ou comprometeria aquela apreciagao estética que ela reclama, exige, e de que, unicamente, est desejosa. (Ora, esta concepeio de independéncia da arte conduz a uma nova negacio do valor artistico, ainda mais dramética e definitiva do que a concepgao da sua heteronomia, Se de um lado a arte é negada quando se torna propaganda, ou prega- 0, ot lenovinio, de outro lado a arte € nao menos negada quando, privada de sentidos, ou referencias, ou finalidades éticas, tedricas, espirituais, reduz-se a um puro jogo técnico, ou € vista num valor artistico exclusivo e absoluto. Pecam contra a arte quer 0 estético que subordina o valor artistico 208 outros, concebendo a arte como instrumental ou utiliza vel, ou mesmo 0 isola completamente dos outros, confinan- do a arte num absoluto imaginario, quer o artista que se re~ duz a fazer propaganda, ou pregacao, ou lisonjas, ou mesmo se fecha num exercicio meramente formal, quer o leitor que trata um texto de arte da mesma forma que um discurso des- tinado exclusivamente a comunicar idéias, ou recomendar preceitos morais, ou fornecer divertimento, ou mesmo que no saiba discemnir, até nos lineamentos mais abstratos de uma obra, a presenga eficaz de um modo de viver, sentir, pensar, quer 0 critico que subordine o préprio juizo e a pré- pria interpretagdo a aprovacdo ou reprovacao de certos valo- res espirituais, filoséficos ou politicos ou religiosos, ou de certos fins priticos, éticos ou econdmicos que ele veja pre~ sentes ou ausentes nas obras que examina, ou mesmo exija das obras de arte enquanto tais uma completa neutralidade espiritual, prescindindo totalmente, na sua interpretagio e avaliagio, dos valores nio artisticos nelas presentes e ope- rantes e das fungdes ndo artisticas que delas se irradiam. Se, pelo contrério, autonomia da arte é entendida como a propria especificacdo da arte, isto &, 0 ato com o qual ela se afirma como atividade diversa das outras, dando-se a pré- 44 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA pria lei e recusando subordinar-se a fins diversos, satisfa- zem-se as exigencias opostas, isto é, entende-se como a arte se afirma na propria suficiéncia sem, por isso, reivindicar uma independéncia impossivel ou cair num absurdo isola- ‘mento, € como pode desenvolver a mais variada e multiplice funcionalidade sem, por isso, rebaixat-se & subordinagdo ou negar-se na heteronomia. Efetivamente, é em virtude daque- le ato que a arte, precisamente enquanto se garante no pr6- prio valor, acolhe em si a totalidade dos valores espirituais, de modo que esta plenitude de significados e de fungées se irradia de sua propria realidade de arte. Em suma, a arte se especifica com um ato que a insere no préprio coragio da realidade, num nivel em que a propria distingao das ativida- des espirituais cessa de prevalecer, para ceder seu lugar a uma cumplicidade originéria e fontal, onde os valores mais, diversos se aliam e, mutuamente, se potenciam. Por um lado, portanto, a prépria suficténcia da arte im- plica uma funcionalidade sua: na arte, precisamente através do ato que a especifica, derrama-se a vida inteira, com todos os seus valores ¢ todas as suas atividades, cada uma das quais mantém intacta a propria natureza, muito vivas as pré- prias pretensbes, ativos os proprios significados. Se a obra de arte ndo aceita valer sendo como forma, isto nio signiti- ca que ela se reduc a ser somente forma: ela &, ao mesmo temn- po, uma forma € um mundo; uma forma que néo exige valer sendo como pura forma e um mundo espiritual que & um modo pessoal de ver o universo. Como acertadamente diz Dewey, a arte é sempre mais que arte: pela multiplicidade dos atos, designios e fins do homem, ela é sempre ao mes- ‘mo tempo profissao de pensamento, ato de fé, aspiraco po- litica, ato pratico, oferta de utilidade, seja espiritual ou ma- terial. Ao fazer arte, 0 artista no s6 nao renuncia & propria concepeao do mundo, as préprias convicgdes morais, aos prdprios intentos utilitirios, mas ainda os introduz, implicita AUTONOMIA E FUNCOES DA ARTE 45 ou explicitamente na prépria obra, onde eles vém assumidos sein serem negados; se a obra é bem-sucedida, sua propria presenga se converte numa contribuigao ativa ¢ intencional ao seu valor artistico e a propria avaliagdo da obra exige que se 08 tenha em conta. Além disso, a arte nfo consegue ser tal sem a confluéncia dos outros valores nela, sem sua contribui- 90 e apoio, de modo que dela emana uma multiplicidade de significados espirituais e se anuncia uma variedade de fun- des humanas. A realizacao do valor artistico no ¢ possivel senio através de um ato humano, que nele condensa aquela plenitude de significados com que a obra age no mundo e suscita ressondncias nos mais diversos campos € nas mais, variadas atividades, e pelo qual o interesse despertado pela arte ndo é apenas uma questo de gosto, mas uma satisfacdo completa das mais diversas exigéncias humanas. Uma vez que 08 diversos valores contribuiram para a realizagio do valor artistico sem se dissolverem nele ou se anularem, ¢ ainda, alimentando-o e revigorando-o, faz parte da propria qualidade artistica da obra esta sua diversa funcionalidade humana, pela qual a fruigdo da obra nao s6 nfo é perturbada por apreciagdes de outra natureza ou pela propria utilizagao, ‘mas as inclui e incorpora. Desta forma, seria absurdo dizer que a Divina Comédia consegue ser poesia apesar da intengao explicita de Dante de exercer, através dela, uma missio moral. Seria muito menos absurdo dizer que ela é poesia justamente por isso, porque essa inteng4o moral nfo é fim extrinseco, mas sim imanente da obra, enquanto tendo sido ponto de partida, esteio impregnado de poesia, assim é também seu significa- do, sua funcao, seu éxito. E 0 Paraiso é poesia nfo apesar da filosofia ou da teologia, mas precisamente na medida em que a filosofia e a teologia, permanecendo tais na sua natu- reza especifica, sao estimulo e ocasitio de arte ou fazem-se, elas proprias, poesia. E a possibilidade de interpretar como 46 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA filosofia os romances de Dostoievski nao prejudica em nada © seu valor artistico, pois que, antes, ele depende disso. E quem se servisse de uma poesia de Sio Jodo da Cruz como prece s6 veria aumentada, potenciada ¢ prolongada a apre~ ciagao estética que dela faz. E quem vibrasse de amor pa- tridtico com a leitura dos vates nacionais, poderia precisa- mente encontrar neste seu sentimento a concretizagao da sua fruigao artistica Por outro lado, a fimncionalidade da arte irradia da sua propria suficiéncia. A arte pode ter fins e assumir fungdes nao artisticas somente através de sua inviolada realidade artistica Na arte a forma no é forma sendo é ao mesmo tempo um mundo, e um mundo nao é tal sem ser, 20 mesmo tempo, forma. Isto significa que, como 0 ato com o qual a arte se es- pecifica faz. convergir para cla toda a vida de onde jorra, todo ‘© mundo espiritual do artista, com todos os valores que ele contém e diversamente ordena e persegue, e, por isso, com todas as ressondncias que a arte de tal modo acaba por des- pertar e as fungdes que ela ver a exercitar, assim a vida, 0 pensamento, as conviegdes e os valores nio artisticos pene- trados na obra esto nela presentes s6 como termos de arte (mas nao por isso alterados na sua especifica natureza), ¢ as fungdes nao artisticas exercidas pela obra emanam unica- mente de sua mesma realidade de arte. Um anticrocianismo demasiado facil € 0 daqueles que, intolerantes com respeito a afirmacdo crociana da autonomia da arte, limitam-se a subverté-la, mostrando-se dispostos a sacrificar 0 valor artistico a outros valores, especialmente aos politicos e so- ciais. E necessério dar-se conta de que 0 conceito de autono- mia da arte, quando corretamente entendido, é totalmente compativel com o ideal e 0 programa de uma arte nutrida de humanidade e capaz de desempenhar outras fungoes, jé que as especificagdes da arte garantem, ao mesmo tempo, stia funcionalidade e suficiéncia, no sentido de que se a vida AUTONOMIA £ FUNGOES Da ARTE 41 penetra na arte, nela penetra precisamente sob a forma de arte, € se a arte tem de exercitar fungdes nao artisticas, nelas deve triunfar exatamente enquanto arte. E se o interesse des- pertado pela arte ndo & apenas uma questo de gosto, mas sobretudo questo de humanidade, o interesse total desper- tado pela arte est4, justamente, incluido na mesma aprova- go dada ao valor artistico, que assim adquire o sentido de uma satisfagdo espiritual completa, 5, Arte e filosofia, Ha muita desconfianga com relagao a filosofia na arte. Teme-se que a autonomia da arte seja por ela comprometida e a arte desapareca. Pensa-se que 0 fio rigor especulativo da filosofia esta em contraste com a co- movida vibragdo da poesia. Isto significa ignorar as caracte- risticas do pensamento filos6fico. Hé, na filosofia, aspectos que, convenientemente acentuados, fazem de uma medita- Gao filoséfica poesia pura e genuina, a ponto de ser impossi vel apreciar seu valor especulativo, prescindindo desta sua realidade de arte. A busca e a discussdo da verdade, o pensa- ‘mento como experiéncia pessoal, a vivacidade da fantasia que deve estar na base do pensamento filoséfico: eis tantos as- pectos da filosofia que, se levados a uma certa evidéncia, podem conferir-Ihe um éxito artistico € conseguir confiar a verdade mais & expresso insubstituivel da poesia do que & enunciagao precisa do raciocinio. Eis o movimento da busca a tommar-se realidade dramética nos didlogos de Plato Ansia de verdade nos apontamentos de Pascal; eis a existén- cia pessoal a tornar-se identidade absoluta entre arte e filo- sofia em Kierkegaard € Nietzsche; eis a propria fantasia filos6fica a desbridar-se nas exuberdncias estlisticas de Gior- dano Bruno e “fulgurar nas agudezas” de Vico. Além disso, hd uma arte de filosofar, uma formatividade intrinseca & propria filosofia; excité-la conscientemente significa olhar ara a essencialidade da expressao, para a funcionalidade do 48 (0S PROBLEMAS Dé ESTETICA raciocinio, para a coeréncia do sistema. De modo que o pré- prio rigor especulativo se torna obra literdria e, em certos casos, até realidade de poesia. Desconhecendo estas grandes possibilidades artisticas da filosofia, insiste-se em dizer que a filosofia s6 é compa- tivel com a arte quando se tora pura imagem e quando se resolve em canto que exprime o sentimento da verdade mais do que a verdade. E costuma-se dizer que assim como a filo- sofia destréi a poesia, também as idéias fazem falir um ro- ‘mance: seria preciso que a idéia se resolvesse em agiio e que esta se desenvolvesse sem ter o ar de significar alguma coi- sa, Tudo isto sera conforme a um determinado gosto e a deter- minadas poéticas, e tera sido muitas vezes realizado na his- toria da literatura, mas no pode pretender valer de modo absoluto. Se fosse assim, Dante nao teria composto nunca a Divina Comédia ¢ Dostoievski nunca teria escrito os seus romances. Nio se deve limitar a presenga da filosofia na poesia aquilo que se soube encarnar em imagem. A filoso- fia, mesmo na sua formula¢do mais técnica e precisa, nua na sua funcionalidade e essencialidade, pode, em determinadas cireunstancias, contribuir para a poesia, e até ser ela propria poesia. Além do mais, nem sempre a imagem resolve comple- tamente em si o conceito; com freqiiéncia, pretende justa- mente evocé-lo na sua realidade especulativa, como no sim- bolo. Néo entenderia nada da pintura de Bosch quem se limitasse a considerar seus quadros como superficies colori- das, ou exigisse que o sentido oculto resultasse do literal, no levando em conta o seu fundamental simbolismo. Por fim, no é pelo fato de que certos romances de tese sejam falidos que € preciso dizer que a tese mata a arte: nas maos de um grande artista, a tese torna-se arte, porque a sua pr pria arte é uma tese. As maiores obras de todos os tempos so, no fundo, obras de tese: inspiradas por uma espiritualidade completa e complexa, nutridas de pensamento, moralidade, AUTONOMIA E FUNCOES DA ARTE 49 experiéncia e ideal, querem “ensinar” alguma coisa, comu- nicar uma mensagem de vida, contribuir ao aprimoramento da humanidade. Assim como cai 0 velho preconceito de que bastava “versificar” um sistema filoséfico para traduzir 0 pensa- mento em poesia, deve cair a idéia de que a filosofia destréi aarte se nio é resolvida em imagem ou em ago. Este um reconceito tio tolo quanto o primeiro. A filosofia pode es- tar presente como tal na obra literdria e contribuir com esta sua explicita presenga para 0 valor artistico da mesma. Na- turalmente, hé depois uma presenca implicita, no menos eficaz e profunda, e é aquela pela qual tudo na obra, mesmo a minima inflexdo estilistica, é significante, revela a espiri- tualidade do autor e, por isso, também o seu modo de pen- sar, a sua Weltanschawung, a sua filosofia. 6. Arte e moralidade. A vexata quaestio das relagBes entre arte e moralidade costumam-se dar duas solugdes cor- rentes: ha quem diga que a arte, de per si, nfo é nem moral nem imoral, porque as duas esferas so completamente dis- tintas e p6-las em relago seria como perguntar-se se a geo- metria é moral ou imoral, coisa evidentemente absurda, Ha quem diga que nao é possivel uma divergéncia de valores e, por isso, a arte, se é verdadeiramente arte, no é nem pode ser imoral, e o proprio éxito artistico resgata qualquer even- tual deficiéneia moral. A primeira solugio é, evidentemen- te, abstrata, e acaba por conceber a distingdo das atividades como uma separacio entre elas. Na pratica do atuar humano as atividades conectam-se inseparavelmente umas as outras e, numa atividade to “pessoal” € também “total” como a arte, que exige um empenho de toda a espiritualidade da pes- soa, nao é pensavel uma neutralidade moral como na cién- cia, que quer ser pura objetividade impessoal. A segunda so- lugdo leva a0 perigo de considerar 0 valor moral como crité- 50 (OS PROBLEMAS DA ESTETICA rio do artistico, no sentido de que se a verdadeira arte ndo nem pode ser imoral, podemos ser tentados a dizer que onde houver imoralidade nao pode haver arte. Nao obstante as conseqiiéncias extremas, abstragdo de um lado e moralismo do outro, estas duas solugdes revelam duas exigéncias que, precisamente, reclamam satisfagdo. A primeira solugdo lem- bra, utilmente, que a arte no depende da moralidade. Longe de tirar dai a conseqiiéncia de que a arte no é nem moral nem imoral, trata-se de, coerentemente, deduzir que a arte pode ser moral ou imoral. Hé uma arte prenhe de sentidos morais, de preocupagies éticas, de ensinamentos priticos, ¢ hhé uma arte que, do ponto de vista de uma espiritualidade nutrida de moralidade, pode aparecer, justamente na sua consisténcia artistica, profundamente imoral, sem por isso deixar de ser arte. A segunda solugdo remete a um necessé- rio condicionamento moral da arte. E, de fato, hd uma mora- lidade intrinseca ¢ constitutiva do fato artistico, que € a res- ponsabilidade com a qual o artista escolhe a arte, para si, co- mo uma tarefa, o empenho e a dedicagdo com que a realiza e os deveres inerentes a esta mesma atividade. Todas estas so condigdes para o proprio éxito artistico. A justa idéia de que a arte fica comprometida por uma doutrinagao moral explicita muitas vezes degenera no temor de que a presenga de intencdes morais seja, de per si, preju- dicial a arte, No caso de intervengao de propésitos morais, ou aspiragées religiosas, ou preocupagdes politicas, se 0 ar- tista consegue fazer arte genuina, chega-se ao ponto de dizer que isto acontece “contra” ou “apesar” de seu designio. Quem raciocina (ou desatina) assim, esquece que, numa pessoa cuja espiritualidade esté marcada de sensos morais, de espi- rito religioso, de paix politica, a arte sd pode ser arte se é arte moral, religiosa, politica, porque nao é arte aquela que niio sabe transformar em energia formante, em conteiidos de arte, em valores estilisticos, a concreta espiritualidade do AUTONOMIA E FUNGOES DA ARTE 51 artista. Nao entendera nada daquela arte o critico que nao souber vé-la nutrida ¢ exaltada — nao esmagada ou oprimida — pelos sentidos ¢ designios morais, religiosos e politicos que ela contém e também nao encontrard o modo pelo qual a apreciagio de tais valores pode contribuir ao julgamento do valor artistico da obra, sem subordinar este Aqueles e sem anular aqueles neste Quem, pois, sob o pretexto de que a arte resgata qual- quer imoralidade, se sentisse autorizado a ridicularizar as ccensuras que, no campo ético, se dirigem a obras de inspira~ Jo completamente outra que moral, cairia na mesma par- cialidade unilateral de quem considerasse suficiente tal cen- surabilidade para minimizar o valor artistico da obra. Os campos no se confundem: ha obras de arte que, a parte 0 necessério condicionamento moral da arte, podem ser julga- das imorais, e no Ihes basta toda a sua arte para justificar, em campo ético, a sua imoralidade, nem a sua imoralidade para negar, em campo artistico, 0 seu valor de arte, 7. A arte sacra. Os rigidos guardides da autonomia da arte podem afirmar que a arte nfo tem adjetivos e que, por isso, a arte sacta, quando ¢ bem-sucedida, deve ser conside- rada do mesmo modo que qualquer outra forma de arte, se- niio com certeza a presenca de um designio religioso e de uma finalidade de culto compromete sua autonomia e a vota, seguramente, ao insucesso artistico. E certo que acontecem, ‘5 casos em que a assim chamada arte sacra é arte sem ser sacra ou é sacra sem ser arte, Por um lado, pode ocorrer que © assunto religioso e a finalidade de culto venham esmaga- dos por uma inspirago profana e, por outro lado, pode ocor- rer que a obra seja muito funcional do ponto de vista das exi- géncias do culto, sem, no entanto, elevar-se ao nivel da arte. Mas, destas dbvias constatagdes & conclusio de que a arte sa- cra é impossivel, hé muita distancia. O problema da arte 52. (OS PROBLEMAS DA ESTETICA sacra s6 pode ser resolvido to despachadamente por quem, insensivel a experiéncia religiosa, considera a religio como coisa de outros tempos e, por isso, incapaz, hoje, de ser ver- dadeiramente uma fonte de inspiracao. A arte pode ser sacra apenas sob duas condigdes: em primeiro lugar, deve ter uma inspiragdo religiosa e, em se- ‘gundo lugar, deve obedecer a prescrigdes eclesidsticas rela- tivas s exigéncias do culto, No que diz respeito primeira condigao, ¢ evidente que a religiosidade da arte ¢ dada mais pelo espirito que anima a representagdo e move o tratamento do que pelos assuntos representados ou tratados. A edifica- ‘do religiosa que daf deriva provém mais desta inspiraglo toda exteriorizada em realidade de arte que dos significados evocados pelos assuntos ¢ argumentos. A arte sacra é verda~ deiramente religiosa se a espiritualidade que nela se encarna est intimamente invadida de f€ e de experiéncia religiosa. E arte somente se é a arte propria de uma espiritualidade de tal género, a ponto de, justamente para apreciar seu valor de arte, ser necessério penetrar sua inspiragio religiosa. Pode parecer que s6 a primeira condigdo esteja em condigées de re- solver-se em arte, no sentido de que esté em condigdes de interiorizar-se até tornar-se, de fato, inspiragio e motivo. Mas, na realidade, também a segunda condigao, que parece introduzir uma fungdo nao artistica e uma finalidade pura- mente externa, pode ¢ deve interiorizar-se até tornar-se es- sencial & propria arte. Apenas nestas condigdes a arte sacra é verdadeiramente arte no proprio ato com que desempenha 08 seus fins de culto. Naturalmente, isto depende do artista e de seu génio. E facil ver que as exigéncias do culto eas limi- tages que ele impde nao limitam a liberdade do artista mais do que 0 arquiteto é limitado pelas proporgdes assinaladas a0 seu edificio e a destinacdo a que deverd servir. Ainda, a0 verdadeiro artista, este tipo de limitagao, em vez de obstécu- lo ou impedimento, tomna-se ocasido, estimulo, sugestio, AUTONOMIA & FUNGOES Da ARTE 53 possibilidade. Assim interiorizadas e tornadas partes inte- grantes da prépria inspiragao, as duas condigdes so muito mais vizinhas do que parece & primeira vista. A segunda condigio acaba por assimilar-se e identificar-se primeira, jd que, por um lado, a religiosidade inclui o senso de litur- gia, do culto, da igreja, da prece, e, por outro lado, todas es- tas coisas adquirem seu verdadeiro significado somente se inclufdas na intimidade da experiéncia religiosa. Pode acontecer que certas prescriges inerentes ao cul- to permanecam ancoradas 2 uma sensibilidade passada, ou que um gosto renovado fique limitado a pouquissimos estra- tos da populacao religiosa. Em tais casos, € dificil obter a unanimidade. No primeiro, impde-se uma renovagiio e a atua- lizagdo das prescrigdes, 0 que, longe de ser um dado extrin- seco 4 arte, pode justamente ser a condigdo de uma renova- ‘cdo da arte sacra, criando o ambiente propicio para a mani- festacdo de uma nova espiritualidade. No segundo caso, é ‘compreensivel que as prescrigdes sejam mais exigentes para ‘quem esta em condigdes de compreender mais e thes solici- ta mais do que 4 massa dos fiéis. Naturalmente, & impossivel chamar de arte um produto adocicado e industrial, e é tam- bém dificilimo chamé-lo de sacto, distante como esta de to- da intimidade quer religiosa, quer artistica, Somente o fer- vor religioso do fiel pode conferir-Ihe um cardter que ele, de per si, ndo tem; afora esta condigdo, puramente subjetiva, pode-se chegar a dizer que a arte sacra, se nao consegue ser arte, nem ao menos consegue ser verdadeiramente sacra. 8. Arte e utilidade, Sobre este problema discorrem as duas teses extremas da inconciliabilidade entre beleza e uti- lidade de um lado e beleza como pura funcionalidade do outro. Por um lado, hé quem negue qualquer relacdo entre utilidade e beleza, concebendo-as de modo a se excluirem mutuamente e a crescerem em medida inversamente propor- 54 OS PROBLEMAS DA ESTETICA cional. Por outro lado, hé quem s6 vé beleza na pura funcio- nalidade, reduzida & sua esséncia. Deixando de lado os exa- geros, éclaro que, de um lado, a mera utilizagdo — intoleran- te para com a pausa contemplativa e impaciente por atingir 0 objetivo —tende, de per si, a ultrapassar o momento estético; de outro lado, a pura funcionalidade & certamente beleza, porque a perfeita adequacdo de um objeto ao fim tem, indu- bitavelmente, o caréter de um triunfo exemplar. Mas o problema € complicado pelos rigoristas da auto- nomia da arte, aos quais a presenga de um designio econémi- co ou utilitério na obra parece comprometer irremediavel- mente o seu valor artistico. Ora, contra estas abstracdes é necessirio reivindicar a possibilidade de que uma obra se ‘mostre aderente a um objetivo ¢ adaptada a uma destinago sem, por isso, softer menoscabo na sua qualidade artistica, que esta se adequa aquela finalidade justamente na sua reali- dade de arte. Tal € 0 caso, por exemplo, de uma obra, ou de arquitetura, em que o objetivo parenético do discurso e a des- tinagao do edificio estio assumidos de tal forma dentro da operacao do artista, como seu estimulo, impulso, ocasizio e ‘como seu sustento, sugestdo e guia, que eles, longe de serem anulados ou esmagados pela exuberincia e gratuidade da arte, sao realizados no préprio ato que realiza a arte[De mo- do que arte e utilidade, beleza e funcionalidade nascem jun- ‘os, inseparaveis e coessenciais, e a mesma arte desempenha ‘uma fungao utilitria, e a prépria finalidade econémica trans- parece de uma pura forma. Entao o julgamento estético s6 é Possivel através do utilitirio, ea utilizagao nao é completa se no vem acompanhada da satisfagdo estética; em suma, a fruigdo alcanga a sua plenitude apenas na inseparavel dupli- Cidade dos aspectos estéticos e econdmico;y Capitulo 1V Contetido e forma 1. Diversos significados dos termos “forma” e “con- tetido”{intimamente ligada aos problemas precedentes esta a secular questio das relagdes entre forma e conteiido. Se a arte tem uma dimensdo significativa e espiritual, aliando-se com outros valores em coniibio insepardvel, e aleanca ter tam- bbém finalidade e fungdes nao artisticas mas sempre inscritas na vida espiritual do homem, isto é porque ela contém a vida de onde emerge. E aquilo por que a arte se distingue das outras atividades é a elaboracao destes contetidos; néo tanto 0 “qué” mas antes 0 “como”, isto &, precisamente, a forma, como quer que esta seja entendida: o estado final e conclusi- vo da arte, a elegincia da representago ou da expressio, a perfeigio da imagem, 0 éxito do processo artistico, a auto- suficiéneia da obT) Na historia da estética, o significado destes dois termos muito diverso. Por longo tempo 0 contetido foi visto no sim- ples assunto ou argumento tratado, que podia ser um objeto natural a ser representado, uma hist6ria a ser contada ou um sentimento a ser cantado. Paralelamente a esta concepgio, a forma era vista na perfeigiio exterior da obra, isto &, no es- ‘mero técnico e estilistico com que se tratava e se deveria tra- tar um determinado argumento, isto é, naqueles valores for- ‘mais nos quais reside qualidade artistica da obra e que @ distinguem das outras obras ndo artisticas que, porventura, tenhiam os mesmos contetidos. 56 (5 PROBLEMAS Da ESTETICA Esta era a teoria do “ornato”, que reduz a arte a uma ‘este exterior, a um exercicio técnico, a uma questio de pre~ ceituario e que concebe a unio de forma e contetido como uma jungdo: a forma se acrescenta ao conteiido, vindo-Ihe de fora ¢, por isso, permanecendo-Ihe exterior; o assunto poderia ser tratado de modo no artistico e a forma artistica um omamento que o embeleza. Quando se viu que 0 assunto poderia ser pouco mais que um pretexto, muito diferente da inspirago real da obra ¢, freqtientemente, em contraste com o seu intimo significado, assou-se a ver 0 contelido no tema ou motivo, entendido sobretudo como sentimento inspirador: a reagdo sentimental que acompanha um determinado argumento, ou o sentimen- to profundo que diverge do argumento tratado na superficie, ou a emogao cantada de per si e tornada, ela propria, argu- ‘mento, como um movimento de amor, ou de nostalgia, ou de desejo, ou de melancolia, ou de dor — em todo caso, uma inflexao particular daquele mundo de impressées, afetos, recordagdes, ilusdes, aspiragdes, esperangas, sonhos, que constituem a vida emotiva do homem. Paralelamente a esta concepeiio “mais profunda” do contetdo elaborou-se uma con- cepcdo “menos extrinseca” da forma, reconhecida agora na- quela inteireza da expresséo, pela qual a obra diz tudo quan- to tem de dizer, sem deixar nada de nao feito ou de inexpres- so, sem remeter a outro para ser compreendida e penetrada e sem que seja necesséria a intervengo do autor para expli- car-Ihe o sentido e 0 valor, de modo que, tendo tudo aquilo quanto deve ter~ nada de mais e nada de menos — pode, en- fim, viver por conta propria. ‘orma e contetido so vistos assim na sua inseparabili- dade: 0 conteitdo nasce como tal no préprio ato em que nas- cea forma, ¢ a forma no é mais que a expresso acabada do conteiidgJAnalisando bem, nesta concepgio a inseparabili- dade de forma e conteiido & afirmada do ponto de vista do CONTEUDO E FORMA 37 conteiido: fazer arte significa “formar” conteiidos espirituais, dar uma “configuracao” a espiritualidade, traduzir o senti- mento em imagem, exprimir sentimentos. Isto quer dizer su- blinhar, antes de tudo, 0 fato de que 0 contetido se dé a pré- ria forma, aquela forma que ndo pode ser sendo sua, insis- tir, sobretudo, no caréter formante dos valores espirituais, ver na arte, antes de mais nada, o resultado de uma vontade expressiva. Esta concepgdo encerra o perigo, explicitado em algumas teorias, particularmente na estética crociana, de desvalorizar o aspecto fisico e sensivel da arte: a forma pode ser uma imagem puramente interior, ndo realizada num objeto real, e quando um artista encontra seu proprio cami- tho, isto nao acontece porque ele enfrenta problemas técni- cos ou tenta resolver dificuldades formais, ou se exercita numa determinada linguagem artistica, mas s6 e sempre por ‘uma intima vontade expressiva. Quando se conseguiu iluminar 0 substrato material ¢ 0 aspecto sensivel da obra de arte, a forma foi entendida como o resultado da formago de uma matéria, da produgdo de um objeto fisico, como matéria formada, isto & , como uma con- figuragdo conseguida de palavras, sons, cores, pedras ou qualquer outra coisa. E, paralelamente, reparando no fato de que nem sempre as obras de arte representam objetos ou exprimem sentimentos, porque nenhum objeto real ou pos sivel e nenhum sentimento determinado esté contido num arabesco, numa miisica abstrata, numa obra arquiteténica que, ndo obstante, tém um significado humano e uma tesso- nancia espiritual, procurou-se 0 contetido a um nivel mais, profundo e num campo mais vasto e encontrou-se o “mundo” do artista: 0 seu modo de pensar, viver e sentir, a sua con- cepcao do mundo e seu posicionamento frente a vida, a sua Weltanschawmg € 0 seu ethos, as idéias, os pensamentos, os juizos que formula na sua mente, os sentimentos, os ideais, as aspiragdes que nutre no seu coragdo, as experiéncias, as 58 OS PROBLEMAS Da ESTETICA escolhas, as crengas de que informa a sua vida, em suma, a sua personalidade concreta, toda a sua espiritualidade. ‘Também aqui contetido e forma so vistos na sua inse- parabilidade. De fato, nesta perspectiva, a espiritualidade do artista coincide com a matéria por ele formada, no sentido de que sua operagao tem um insuprimivel cardter de perso- nalidade, que arrasta para a obra, como matéria formada, todo seu mundo interior. Mas aqui, analisando bem, a insepara- bilidade de forma e contondo é afirmada do panto de vista da forma: fazer arte quer dizer nao tanto dar forma aum con- teiido espiritual como, antes, formar uma matéria, dar uma configuragio a um complexo de palavras, sons, cores, pedras. Isto significa recordar fue a obra de arte é, antes de tudo, um objeto sensivel, fisico e material, e que fazer arte quer dizer, antes de qualquer outra coisa, produzir um objeto que exista como coi eee coisas, exteriorizado numa realida- de sonora e visiva, 2. Estética da forma ¢ estética do contetido. Delincia- se assim uma oposi¢ao entre a acentuago da forma e a acentuagio do conteiido, oposicdo que vai desde a rudimen- tar antitese entre um grosseiro conteudismo e um declarado formalismo até as mais complexas concepgdes que, pondo- se de acordo quanto a base da inseparabilidade de forma e contetido, divergem, no entanto, quanto 20 ponto de vista adotado, que é ora o do contetido, ora o da forma. A oposi¢io é, presentemente, mais que secular. Ao lado do conteudismo de Herder, que vé na poesia nfo o culto dou- to ¢ refinado dos valores estilisticos, mas a expresso ime- diata e fremente dos sentimentos e da concreta humanidade, encontramos o formalismo de Kant, que coneebe a beleza como uma finalidade sem fim, somente formal, indepen- dente de qualquer referencia aos outros valores, perturbada pela intervengao do conhecimento ou da existéncia, da mora CONTEUDO E FORMA 59 lidade ou da utilidade. Ao lado do conteudismo de Hegel, que concebe a arte como “espiritualidade formada” e como “tepresentacao sensivel da Idéia” e como “primeira forma do Espirito absoluto”, isto é, que confere & arte a fungio de representar em formas sensiveis a propria Idéia num supre- mo grau de seu desenvolvimento ideal e histérico, quando esta por possuir-se acabadamente na autoconsciéncia do Espirito absoluto, e do conteudismo de Schopenhauer, que assinala 4 arte a tarefa de conhecer, além das representagdes, subjetivas ligadas & vontade, as idéias universais, que sio objeto de pura contemplacao, e de representé-las de forma sensivel e individual, isto ¢, de objetivar a propria Vontade em que consiste a esséncia intima do real, est o formalismo de Herbart, que, cansado da dimensio metafisica assinalada a arte pelos mestres do romantismo, afirma que a beleza s6 significa e exprime a si mesma, e, longe de estar intimamen- te ligada a contetidos, consiste apenas em relagdes e, por isso, na arte o sentimento é irrelevante. ‘Ao lado do conteudismo dos positivistas que, como Taine, consideram a arte produto do ambiente, dos histori- cistas que, como Dilthey, a interpretam como manifestagao do espirito dos povos e das épocas, dos socialistas que, co- mo Proudhon ¢ Marx, assinalam-Ihe uma missio social ou consideram-na como representagao da realidade, ou daque- les que, como Guyau ¢ por outro lado Nietzsche, véem-na como suprema manifestacao e exaltagao de vida, ou dos psi- canalistas que nela véem um caso de sublimagao dos instin- tos, esté 0 formalismo evocado pelas varias poéticas da arte pela arte ¢ da poesia pura, de Poe e Flaubert ¢ a Wilde, os quais, ciosos da autonomia da arte, véem-na comprometida por toda preocupagao de conteiido e de finalidade nao artis- ticos, a ponto de recomendarem a indiferenga do conteitdo & a auséncia do assunto para firmarem-se sobre o puro estilo; € 0 dos tedricos da pura visibilidade nas artes figurativas, de 60 (08 PROBLEMAS DA ESTETICA Fiedler a Wéifflin, a Fry €a Berenson, que reconduzem a ar- te a objetividade essencial, tal qual se oferece a pura visio, isto é, aos puros valores pictéricos, independentemente de seus significados, as simples combinagdes de linhas e cores, edistinguem a pura visibilidade do sentimento, a objetivida- de da representacdo, o decorativo do ilustrativo; e o das ané logas consideragdes, feitas por Hanslick no campo musical Com o correr do tempo, as posigdes opostas foram se refinando cada vez mais, procurando levar em conta umas 4s outras, a ponto de hoje ser dificil estabelecer se, por exem- plo, Croce ou Dewey sto mais conteudistas ou mais forma- listas. Hoje a oposigdo entre as duas correntes poderia ser re- presentada, de um lado, pela escola semantica, que se preo- cupa com esclarecer 0 que a arte significa e quer dizer, ¢ atribui as obras de arte caracteristicas sendo referenciais, denotativas, representativas, pelo menos emotivas, conotati- vas, presentativas, e, de outro lado, por todas as correntes que insistem em afirmar que a arte nfo “quer dizer” nada, mas é, essencialmente, produgiio de objetos. 3. Intimismo e teenicismo: formagio do conteiido formagio da matéria. O problema representado por esta secular oposigao e pelos dilemas que dela derivam é apaixo- nante € é um dos mais sentidos pelo nosso tempo, que igualmente sensivel ao significado humano da arte e aos puros valores estilisticos. E evidente que nao se sai da anti- tese senfio afirmando a inseparabilidade de forma e contei- do; mas a antitese parece ressurgir, conforme esta insepara~ bilidade venha afirmada, como vimos, ou do ponto de vista do contetido ou do ponto de vista da forma. A menos que, examinando bem, esta ndo seja uma antitese: afirmar a inse- parabilidade de forma e contetido do ponto de vista da for- ma, de preferéncia ao do contetido, pode parecer uma sim- ples reviravolta da tese, que da lugar a uma concepgao igual- CONTEUDO E FORMA 61 mente unilateral, mas no fundo se trata de uma feliz integra- G40, porque o oposto que faz pendant Aquela doutrina é, an- tes, 0 “tecnicismo”, Para esclarecer os termos da questo é bom recordar que a operaciio artistica implica dois processos: um proces- so de formagao de conteitdo e um processo de formagao de matéria, uma relagao conteiido-forma e uma relag3o maté- ria-forma. Qual a relagdo entre os dois processos? Ha quem sacrifique um ao outro, Por exemplo, uma concepgdo roman- tica como a crociana considera irrelevante, extrinseco, se- cundatio o processo de formagao da matéria: a arte € expres- io, isto é, formagio de um contetido; a formagdo da mat ria & comunicagdo, que pode exercer-se ou nfl se exercer e, em todo caso, é ato pritico, nao artistico, Hé, pelo contrario, quem faga consistir a arte em meros valores formais, desva~ lorizando todo significado expressivo como secundario, pré-artistico, periférico: a arte é fazer, construir, compor, pro- duzir, isto &, formar uma matéria, Hé quem veja na obra de arte uma forma priméria e uma forma secundéria: a primei- ra & configurago de um material sensivel, enquanto a se- gunda é configuragdo de um contexto de significados. Quan- do esta linguagem nao for devida a simples excessos ver- bais, imputaveis & vivacidade de uma reacdo polémica, mas deva ser tomada ao pé da letra, podemos dizer que nos en- contramos diante de uma verdadeira e propria forma de tec- nicismo. Produz-se ento uma antitese entre intimismo e tecnicismo: naquele se reduz. 0 fazer ao exprimir € neste 0 exprimir ao fazer; naquele se afirma que nio hé outra pro- dutividade artistica sendo a figuragio interior do sentimen- to, neste se termina por sustentar que a expressividade da arte éa de toda producao, até a do mero oficio, Se, pelo contrario, se afirmar a inseparabilidade de for- mae contetido do ponto de vista da forma, vé-se como os dois processos sto simultneos, ou melhor, coessenciais, ou me-

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