Você está na página 1de 15
Robert Kurz A Substancia do Capital O trabalho abstracto como metafisica real social e o limite interno absoluto da valorizagao. Segunda parte: O fracasso das teorias da crise do marxismo da ontologia do trabalho e as barreiras ideolégicas contra a continuagao do desenvolvimento da critica radical do capitalismo. Resumo do texto no Editorial da EXIT! n° 2: Na segunda parte do estudo fundamental comegado na EXIT! n° 1, "A Substancia do Capital’, Robert Kurz ocupa-se com © problema da quantidade de trabalho abstracto como fundamento da teoria da crise. Inicialmente esta anélise, em continuagao do desenvolvimento das abordagens dispersas sobre a obra marxiana, deveria jé desenvolver a ssistematizagao de uma teoria positiva da crise, baseada nos conceitos de mais-valia absoluta e relativa, composi¢ao organica do capital e relacdo entre taxa de lucro e massa de mals-valla. Constatou-se todavia que os aspectos histérico- tedricos e ertico-ideolégicos do problema da quantidade © da crise, por si s6 ocupam um espaco tal, que a propria apresentacao da logica de crise imanente s6 pode continuar na EXIT! n® 3 (a necessaria quarta parte que esta situacao originou, abordaré o contexto sistema de crédito / capital fcticio/ virtualismo pés-moderno etc.). Neste ntimero so minuciosamente tratados os temas do debate marxista histérico sobre a teoria da crise, principalmente a controvérsia em tomo das teorias do colapso de Rosa Luxemburg e Henryk Grossmann. Fica demonstrado que 0 marxismo tradicional, devido @ sua ontologia do trabalho, no seu todo nao foi capaz de absorver elementos docisivos da teoria da crise de ‘Marx. Como a definicdo transhistérica da abstraceo do trabalho falhou a qualidade especifica deste como substancia do capital, teve forgosamente de falhar também a questao central da problematica da crise como “dessubstancializagao" ou desvalorizagao do valor. O resultado foi uma até hoje duradoura banal subjectivagao das categorias politico-econémicas, sobretudo pelo “marxismo ocidental’. Em geral, este fracasso tedrico na estrutura-sujeito-objecto da moderna relacao de fetiche constitui a histéria secreta dos debates marxistas sobre a crise e 0 colapso, que deste modo teve de desvanecer- se na ilusdo de um comands politico das inultrapassadas categorias do fetichismo. Completamente as escuras ideologicamente "abandonado" fica o problema da quantidade do trabalho abstracto nas mais recentes teorias, ligadas 1.1. Rubin, na medida em que elas querem desqualficar como “fisiolégico-naturalista” o proprio conceito de substancia de ‘Marx. A polémica controvérsia sobre isso, juntamente com as teorias de Moishe Postone e principalmente de Michael Heinrich, fecham esta segunda parte do estudo, ‘Subtitulos: jeoria do colapso” como palavra de toque e conceito de falsificagao da histéria da teoria marxista *** Teorias do colapso reduzidas como posico minoritéria marxista na época da guerra mundial |: Rosa Luxemburgo *** Teorias do colapso reduzidas como posigao minoritéria marxista na época da guerra mundial Il: Henryk Grossmann *** Da diabolizagao de Grossmann ao atrofiar do debate marxista da crise e do colapso “** Sujeito ¢ ‘objecto na teoria da crise. A solucdo aparente do problema em meras relacées de vontade e de forcas “* A crise @ a critica, a ilusao politica e a relagao de dissociacao sexual ** O conceito de quantidade de trabalho abstracto @ a acusagao de "naturalismo' “Teoria do colapso” como palavra de toque e conceito de falsificagao da histéria da teoria marxista Teorias do colapso reduzidas como posi¢ao minoritéria marxista na época da guerra mundial |: Rosa Luxemburg Teorias do colapso reduzidas como posigao minoritaria marxista na época da guerra mundial II: Henryk Grossmann Da diabolizacdo de Grossmann ao atrofiar do debate marxista da crise @ do colapso ‘Sujeito e objecto na teoria da crise. A solucdo aparente do problema em meras relacées de vontade e de forcas Se voltarmos a passar em revista todo o debate histérico, duas realidades chamam a nossa atengao, Por um lado, a fobia & ideia de um limite interno da valorizagao do valor ndo se encontra realmente associada as conjunturas socials da ‘economia e da politica, de crise e prosperidade. A chamada teoria do colapso foi desde o inicio um escndalo e um incémodo extremo, tanto durante os pachorrentos tempos das notabilidades marxistas do império Guilhermino, como na época de catdstrofes das guerras mundiais e da crise econémica mundial, e mais ainda na era de prosperidade do pés- guerra, @ por fim também hoje de novo na crise mundial da terceira revolugao industrial. O escdndalo manteve-se e mantém-se independentemente de experiéncias hist6ricas especificas, ¢ a ideia de um limite absoluto imanente nem ‘sequer no melo das maiores catastrofes da histéria mundial se tornou hegeménica no discurso marxista mainstream. Por outro lado, porém, é gritante a falta de profundidade da reflexdo teérica em tado este debate, a rapidez com que se Passa por cima da questéo do conceito da dindmica capitalista e 0 pouco que se tem em vista todo 0 instrumentério conceptual jé apresentado por Marx. A critica nao é tanto desenvolvida de um modo imanente e fundamentado na coisa ‘em si, nomeadamente nas contradicées internas da reproducao capitalista no 4mbito de um processo histérico dinamico, mas pretende-se sim passar autenticamente ao lado da coisa, para chegar quanto antes a outra coisa completamente diferente. O grande escandalo ainda nem sequer é a ruplura iminente com a ontologia do trabalho marxista, que afinal do se vé em lado nenhum, uma vez que mesmo as teorias do colapso de Luxemburgo e Grossmann nunca abandonam ‘esse terreno. Em todo 0 caso deverd ter havido um vago pressentimento deste problema, que transformou esse horror vacui do marxismo do trabalho face & perda de substancia em motivagao inconfessa, Outra coisa, porém, é desde logo plenamente evidente e ocupa um amplo espaco em todo o debate: nomeadamente © que é sentido como uma ameaga e um desaforo, que um colapso objective da valorizagao devido as suas proprias contradigées intermas poderia, por assim dizer, roubar 0 emprego ao proletariado, & maravilhosa classe operéria, langando-a no desemprego, nao s6 no sentido da reprodugao imediata, mas igualmente como sujito historco. & esta a causa mais profunda da fobia aidela de colapso. Aqui, no essencial, ném sequer se trata de uma questao da reflexao critica da economia, no contexto da teoria da crise marxista, mas de uma coeréncia ideolégica basica, que s6 pode ser apreendida com recurso a critica ideolégica e nao a teoria da crise. Com efeito, jé Otto Bauer, no debate em tomo da teoria da acumulagao de Luxemburgo, nomeara o sujeito proletario ‘como uma espécie de testemunha principal contra a ldgica do colapso: *O capitalismo nao fracassara perante a impossibilidade mecanica de realizar a mais-valia. Sucumbird antes a indignago que infunde As massas populares. O capitalismo desmoronar-se-a, ndo apenas quando o ultimo agricultor e o ultimo pequeno-burgués em todo o mundo orem transformados em trabalhadores assalariados e, assim, nao subsistir 4 disposigéo do capitalismo mais nenhum mercado a desbravar; serd abatido muito mais cedo pela crescente indignagao da classe operaria que se encontra em constant crescimento, e que é formada, unificada e organizada pelo mecanismo do proprio processo de produgao, capitalista’ (Bauer 1913, citado seg.: Rosa Luxemburgo 1923/1914, p. 481), © argumento do sujeito de vontade proletario como deus ex machina deve decidir o debate da teoria da crise, que, agudizada em teoria do colapso, 6 denunciada como "objectivista e determinista’. Ora, 0 facto de esta recriminagao ser dirigida precisamente contra Rosa Luxemburgo, que ao mesmo tempo se tinha destacado como tedrica da espontaneidade proletaria, da greve de massas e do activismo revolucionério contra a lei da inércia reformista da social- democracia, constitui na verdade uma piada de mau gosto. Pelo que Rosa Luxemburgo nao tarda om ripostar a Otto Bauer, atirando-lhe a cara o seu oportunismo, por altura da catastrofe da guerra mundial. Logo um semelhante teérico da mais infame afirmacao do dominio capitalista havia de pér em acco o "sujeito de classe revolucionario"! Ainda assim ‘aqui espreita 0 problema por resolver da relagao-sujeito-objecto na sociedade burguesa modema. Rosa Luxemburgo argumenta de modo antes de mais defensivo, quando na sua Anticritica se refere a este problema ‘esquema da acumulagao de Marx - se for bem entendido - precisamente na sua irresolubilidade, é o prognéstico exacto da ruina economicamente inevitével do capitalismo como resultado do proceso de expanséo imperialista... Poderé esse momento alguma vez fornar-se realidade? No entanto tudo isto nao passa de uma fiogao teorica, precisamente porque a acumulago do capital é um processo néo apenas econémico, mas antes politico... Aqui, como noutros momentos da Histéria, a teoria faz o seu servigo completo se nos apresentar a tendéncia do desenvolvimento, o ponto final légico para ‘© qual ela aponta objectivamente. Este tao-pouico pode ser alcangado como em qualquer periodo anterior da Histéria péde o desenvolvimento social desenvolver-se até as Uitimas consequéncias. Tanto menos precisa de ser alcangado ‘quanto mais a consciéncia colectiva, desta feita encamada no proletariado socialista, intervier como factor activo no cego Jogo das forgas. Ea concepedo correcta da teoria de Marx oferece a esta consciéncia, também neste caso, as propostas mais férteis @ 0 incentivo mais vigoroso” (Luxemburgo 1914, ibidem, p. 479, itélico de Luxemburgo). Evidentemente o problema no fica resolvide com estas observagées. A tendéncia para o colapso nao poderia antecipar- ‘se ao proletariado e substituir-se a ele, antes que o mesmo conseguisse levar a pratica a sua “intervengao activa"? Por ‘outro lado: sera que o proletariado apenas pode intervir porque tem pelas costas esta tendéncia objectiva? Nao poderia ‘ele alcangar a emancipacio social de um modo plenamente independente de semelhante tendéncia? A relagao entre sujeito e objecto permanece por esclarecer, apenas se torna evidente que tal relagao deve existir e que, exactamente na sua indefinigdo, pode ser instrumentalizada contra a teoria do colapso. Tal também tem algo a ver com a frequentemente apontada debilitacao da auto-consciéncia humana pelas grandes teorias cientificas e socials da modemidade. Se 0 iluminismo entronizara, por um lado, 0 sujeito auténomo como demiurgo de si mesmo, a reflexdo critica, por outro, infligiu-Ihe uma queda tanto mais dolorosa, Como é sabido, ja Copémico tinha banido o ser humano do centro do Universo; Freud negou-he a plena consciéncia psiquica de si mesmo; e em Marx o fetichismo do sistema produtor de mercadorias acaba também com a subjectividade politico-econémica como tiltimo fundamento do desenvolvimento socio- ‘econémico, Estas observagdes ja ha muito que se tomaram 0 topos dos discursos da teoria social, Como 6 do conhecimento geral, o estruturalismo e a teoria dos sistemas prosseguiram afirmativamente nesta senda, onde o sujeito J8 6 apenas uma sombra de si préprio, ou o mero “ambiente” de um contexto sistémico auto-referencial ‘Se descermos deste patamar, que ainda nao teve oportunidade de desempenhar nenhum papel de relevo nos debates marxistas da teoria do colapso, o problema parece desde logo diminuir um tanto de dimensao. Face & sua concep¢a0 ‘especial da "acgaio do sujeito", nao dava jeito nenhum a social-democracia um colapso, um cataclismo da sociedade, Pois a sua idela era que o grau cada vez maior de organizago social do capital apenas teria de ser transferido para a mao do Estado, e desta de novo para a mo do proletariado (como acontece, por exemplo, em Hilferding), para se ‘chegar ao Socialismo com toda a calma e pela via da acgao parlamentar. Nesta medida o desejo reformista espreitava 4 ‘esquina como pai do pensamento, por exemplo quando Gustav Eckstein, na sua polémica contra Rosa Luxemburgo, constatava quase com alivio: "Com os pressupostos teéricos caem por terra as consequéncias praticas, antes de mais a teoria da catdstrofe que a camarada Luxemburgo edificara sobre a sua doutrina da necessidade da existéncia de consumidores nao capitalistas" (Eckstein, ibidem, p. 493). Tanto mais acutilante acabou por ser a reacgo de Rosa Luxemburgo na sua Anticritica, redigida ja depois de irromper a verdadeira catastrofe da guerra mundial; agora ela referia-se & "catastrofe como forma de existéncia [Daseinsform]"(ibidem, p. 480) do capitalismo imperialista. Mas 0 debate de modo nenhum se resumia & oposigo entre as teorias "reformista” e "revolucionéria® do agir subjectivo. ‘Também as posigées comunistas e outras posigdes activistas revolucionérias, que no fundo nao precisavam de ter tanto medo de um cataclismo, atacaram a teoria do colapso com veeméncia redobrada, devido ao seu "objectivismo e determinismo". Bukharine, por exemplo, acusa Rosa Luxemburgo de "determinismo econémico" (Bukharine, ibidem, p. 284), quando ele proprio parece cair no mesmo logo duas paginas depois, onde acaba por dizer sobre as instabilidades © crises ciclicas e a sua "resolugdo condicionada”: "A sua amplitude e intensidade crescentes conduzem inevitavelmente a0 colapso da dominagdo capitalista" (ibidem, p. 286, itélico de Bukharine), A ideia da “inevitabilidade” é evidentemente ela propria determinista, mas paradoxalmente -0 de um modo afirmado em sentido puramente subjectivo, quando Bukharine finalmente desvenda como a entende por oposigao ao "determinism ‘econémico": "Hoje ja estamos em posigo de nao mais nos permitirmos ajuizar sobre o processo do colapso capitalsia ‘apenas com base em construgées abstractas e perspectivas tedricas. O colapso do capitalismo ja comecou. A revolugao de Outubro é a expresso mais viva e convincente disso mesmo. A revolucionarizagao do proletariado teve, sem duivida, que ver com a ruina econémica, esta com a guerra, a guerra com a luta por mercados para o escoamento da produgao, mercados de matérias primas, esferas de investimento de capitais, em resumo, com a politica imperialista no seu todo” (ibidem, p. 287, italico de Bukharine) E evidente que Bukharine aqui coloca o conjunto do problema de pernas para o ar. O limite interno objectivo da valorizagio do valor com base nas suas préprias contradigdes converte-se em outfo, puramente subjectvo ¢ politico, em limite de uma mera relagdo de vontades, A crise provém da esfera politica, de onde também provém a emancipagao ou a revolugao, a0 passo que a chamada economia, que na realidade constitui a légica basica da valorizagao do valor, abrangente de todas as esferas oficiais, se reduz a um ameno ruido de fundo, e na verdade bastante irelevante para 0 curso dos acontecimentos. O conceito do colapso é neste contexto uma embalagem enganadora. E que um colapso por esséncia algo de objectiva, sofrido de forma passiva, condicionado por leis naturais ou sistémicas, e no um acto de vontade ou uma relacao de vontade. Um colapso é quando uma pessoa sofre uma grave perturbacao circulatéria ou um enfarte, quando uma ponte se desmorona por excesso de peso, um motor gripa, uma estrela se contrai em um buraco negro, ou uma conexao sistémica (por exemplo um programa de computador) se toma instavel e "erasha" etc. O termo tora-se desadequado quando se trata de actos de vontade num confito consciente, Mas mais importante ainda 6 que Bukharine, na sua deturpagdo, acaba por dar mais uma cambalhola, fazendo no acto uma revelagéo involuntaria, E que, ‘embora subjective a objectividade do colapso, a reduza a politica, ao mesmo tempo e inversamente objectiva esse mesmo sujeito, ao deciarar a sua actuacao “inevitével” e por conseguinte determinada. Chegados a este ponto deparamos novamente com a ndo solucionada problematica-sujelto-objecto da modernidade. E este problema vai-se repetindo e val sendo arrastado através de todo o debate em toro da crise ou do colapso. Assim reaparece também nas tiradas de Eugen Varga contra Grossmann, alguns anos mais tarde. Também Varga retira do formol o sujeito (sujeito de classe) como deus ex machina. "Ele (Grossmann, R.K.) separa a economia da luta de classes; por isso, o seu ‘colapso’ nao é a derrocada da ordem social capitalista, mas sim uma fantasia puramente ‘econémica..." (Varga, ibidem, p. 68, itélico de Varga). E, como em Bukharine, a "vontade determinada" acaba por se condensar no poder soviético, que torna supérfiua qualquer teoria da crise no sentido de mecanismos sistémicos cegos. “Quem, no ano de 1928, tem a coragem de publicar um livro de seiscentas paginas sobre a ‘lei do colapso’ do capitalismo sem dizer uma palavra sobre 0 colapso do capitalismo ja ocorrido na Russia, por muitas citagdes de Marx que acumule, por muito doutas que sejam as suas consideragées sobre o método do marxismo - quem faz tudo isto nao ‘compreendeu 0 abc do método de investigagao marxistal... O motivo pelo qual se cala tao obstinadamente a queda do capitalismo na Russia é por ser perfeitamente evidente que essas causas, que segundo Grossmann haveriam de ser responséveis pela derrocada do capitalismo, no tiveram a minima importancia na derrocada do capitalismo realmente ocorrida na Russia, De facto seria ridiculo afirmar-se que o capitalismo na Russia - a qual, como é sabido, era um pais muito pobre em capital, que néo parava de importar grandes quantias de capital estrangeiro - tivesse sogobrado devido a uma acumulagao excessiva de capital... Para nés, comunistas combativos, é um grande alivio sabermos que a real derrocada do capitalismo ndo esta vinculada ao mecanismo causal com tanto alarido apregoado pelo senhor Grossmann..." (ibidem, p. 62 s., itélico de Varga). € assim Varga, aliviado, a escassos trés anos da tomada do poder pelos nacional-socialistas, regozija-se com a expectativa da “derrocada do capitalismo” a escala planetaria "... muito antes de ser possivel ocorrer em todo o mundo uma ‘acumulago excessiva’ de capital" (ibidem, p. 63) Da perspectiva da actualidade, é mais que dbvio 0 grandioso acto falhado desta argumentagao: o que Varga gostaria de ‘entender como "derrocada do capitalismo” na Russia, 4 semelhanca alias da maioria dos seus contemporaneos, era na realidade uma "modernizagao atrasada’, uma implementagdo socio-histérica do sistema do trabalho abstracto sob a baluta do comunismo de Estado, numa zona subdesenvolvida em termos capitalistas da periferia do mercado mundial ‘ou seja, um regime historicamente no simultaneo de acumulacao primitiva, que entrou ele préprio em colapso setenta anos mais tarde nas condig6es da 3* revolucao industrial. Mas a argumentagao de Varga ndo apenas é absolutamente inconsequente em termos histéricos e economico-pollticas, no sentido do limite da socializagao capitalista com base no trabalho abstracto e na respectiva forma do valor. Ao mesmo tempo, tal como no caso de Bukharine, ela langa involuntariamente uma luz crua sobre a estrutura-sujeito-objecto da modemidade, ligada ao problema da crise e do colapso, que apenas se consegue resolver sempre de forma paradoxal na subjectividade do politica - e que, por isso mesmo, provoca os acessos de raiva contra 0 "determinismo politico” das teorias do colapso, Nao admira que, tal como a argumentago do social-democrata Otto Bauer e a do comunista Nicolai Bukharine contra 0 “determinismo econémico" de Rosa Luxemburgo s40 quase idénticas, o mesmo também se aplique 4s argumentacoes correspondentes do comunista Eugen Varga e do social-democrata Alfred Braunthal contra Henryk Grossmann, ainda que Braunthal tente aqui também ajustar contas com os comunistas: "No entanto, os comunistas e os adeptos da teoria, do colapso ndo sé sao alheios ou mesmo avessos @ realidade, pelo facto de as suas teorias nao brotarem da realidade viva, mas também negligenciam os dados da realidade, na medida em que fecham os olhos perante as forcas transformadoras da sociedade, que ja hoje operam de facto. Se levarmos estas forcas em linha de conta e nos apercebermos da importancia das crescentes tendéncias organizalivas da economia, da crescente influéncia do operariado e da pressao crescente por este exercida no sentido da democratizagao da economia, com vista a transformagao da sociedade de capitalista em socialista, torna-se evidente que o operariado ndo tem de esperar em soturna resignago por um futuro longinquo, em que, apés um horrendo periodo de transigao repleto de peniiria e miséria, as tendéncias de colapso do capitalismo se imponham de forma automatica, mas este conhecimento incita 0 operariado a mobilizar todas as suas forgas para impor, nao o colapso do capitalismo, mas sim a sua transformagao em um sistema de sociedade socialista’ (Braunthal, ibidem, p. 304). Nao se consegue evitar um arrepio face a semelhante ingenuidade imediatamente nas vésperas da crise econémica mundial, da barbarie nacional-socialista e da subsequente segunda guerra mundial. No entanto, ao mesmo tempo também se toma claro como ¢ reduzida a diferenca entre a reforma e a revolugao na rejei¢ao da teoria do colapso quanto ao problema do sujeito, No fundo tudo se resume a nao simultaneidade histérica, a diferenca entre a mesma interrogacdo por resolver, uma vez nas condigdes de um capitalismo ocidental j4 desenvolvido, e outra nas de uma sociedade periférica de "modemnizacao atrasada’, ainda nao desenvolvida em termos capitalistas. Quer seja o operariado (ocidental) que deva exercer uma "pressdo crescente no sentido da democratizacao da economia”, ou se queira que a revolugdo proletéria produza o suposto "colapso do capitalismo” sob a forma de uma ditadura comunista estatal do trabalho abstracto: a estrutura-sujeito-objecto e a sua aparente resolugao no sentido da subjectividade politica e contra 0 “determinismo econémico" & a mesma. Talvez se torne mais nitido que aqui espreita um problema que esta por resolver, © que nao tem solugao no ambito da socializagao do valor, se também considerarmos a posigo dos comunistas de esquerda ou dos conselhos, que, face aos sociais-democratas 6 aos comunistas de partido, apenas agudiza e radicaliza essa aparente resolugao em relagées de vontade subjectiva. Na sua polémica contra Grossmann, Pannekoek exaspera-se: "Para ele, o capitalismo 6 um sistema mecanico, em que os seres humanos intervém como pessoas da economia, capitalistas, compradores, vendedores, assalariados etc., mas que de resto tém de softer de forma passiva 0 que o mecanismo thes impée por forga da sua estrutura interna... (0) mecanismo determina as dimensées econémicas, 20 passo que os seres humanos que agem lutam se encontram fora dessa conexao" (Pannekook, ibidem, p. 20). Els-nos perante uma cantiga que teve de se nos tornar familiar; pois tem sido periodicamente tocada até hoje, nos debates da esquerda radical. Pannekoek abstrai por completo da forma social da consciéncia e mesmo da vontade, Quer alribuir as "pessoas que lulam e agem", independentemente da tematizagdo critica desta forma (a forma do valor) ¢ da ‘sua substancia (0 trabalho), um potencial de vontade transcendent, ou seja, aribuir, num acesso de falsa imediatez, a0 ser-assim [Sosein] dos sujeitos constituidos de modo capitalista, tal e qual eles so ¢ agem, algo que estes apenas padem alcancar pela mediagao de uma critica radical desta forma, Todo o "lutar e agi” permanece sob a égide de uma falsa objectividade, enquanto nao tiver passado pela critica da forma e da substancia do trabalho abstracto. E, se isso no acontecer, as pessoas sofrerdo através do seu préprio “ular ¢ agir” exactamente "o que o mecanismo Ihes impoe por forca da sua estrutura intema® - precisamente porque nao se encontram "de fora dessa conexao” Essa conexdo permanece (néo s6) para Pannekoek um bicho-de-sete-cabegas, e assim ele vai dar exactamente a0, contrario do que pretende, nomeadamente, e tal como Bukharine, a objectividade do sujeito e determinagao da prépria vontade: "O colapso do capitalismo, em Marx, depende de facto da vontade da classe operaria; mas essa vontade nao arbitréria, nao 6 livre, mas 6 ela prépria totalmente determinada (!) pelo desenvolvimento econdmico. As contradicées da ‘economia capitalista... determinam a vontade do proletariado sempre de novo no sentido da revolugao. O socialismo nao ‘vem por 0 capitalismo entrar em colapso econémico e assim os humanos, operdrios e outros, obrigados pela necessidade, criarem uma organizagao nova. Pelo contrério, o capitalismo vem abaixo porque, tal como vive e viceja, se toma cada vez mais insuportavel para os operdrios, instigando-os a luta, sempre de novo, alé neles crescer a vontade e 1 forca para derrubar o dominio do capital e edificar uma organizacao nova" (ibidem, p. 21s.) Pannekoek nem sequer se apercebe que é indiferente se a vontade da classe operaria "totalmente determinada pelo desenvolvimento econémico" leva 0 capitalismo subjectivamente ao “colapso", ou se 0 capitalismo se desmorona por motivos a ele intrinsecos e assim “obriga” a classe operdria de forma objectiva a “criar uma organizagao nova". Sem querer, ele ilustra claramente a permutabilidade do sujeito e do objecto na estrutura fetichista da reprodugo, o que até acaba por ser elevado a honras de metafisica da histéria: "Para Marx, toda a necessidade social impée-se por intermédio dos seres humanos (!); tal significa que o pensar, o querer e 0 agir humanos, embora paregam discricionarios @ propria consciéncia - sao totalmente (!) determinados pelos efeitos do meio; e 6 apenas pela totalidade destas acgées humanas, determinadas no seu essencial por forcas sociais, que se impde uma regularidade no desenvolvimento social... A acumulago do capital, as crises, a miséria crescente, a revolugo proletaria, a apropriagéo do dominio por parte da classe operdria, constituem juntas uma unidade indissolivel que actua como lei natural (!), 0 colapso do capitalismo" (ibidem, p. 19). E deveras grotesco: a determinagao subjectiva apresenta-se imediatamente como objectiva, sem que seja reflectido 0 contexto de mediacao; assim, a vontade emancipatéria aparece, ela prépria, como parte integrante precisamente da mesma pseudo-"lei natural", que a bem dizer constitui o escandalo da falsa objectivagao. O que aqui se manifesta é uma conceptualidade demasiado rudimentar da prépria relagao de capital, a que faltam os momentos decisivos da critica da forma de fetiche e da substéncia de trabalho. J4 manda saudades o estruturalismo de um Althusser, para o qual até a revolugao serd um "processo sem sujeito” - embora Pannekoek aparentemente se situe no outro exiremo da escala- ‘sujeito-objecto do radicalismo de esquerda marxista, O prego por a classe operdria se manter como sujelto histérico e do deixar os seus louros pelas maos do "determinismo econémico" do colapso objectivo consiste em "a classe", ela mesma, apenas poder actuar como executora de supostas “leis naturais" da sociedade - o que constitui um sinal inequivoco de que esta construc, na realidade, se mantém presa no circulo sob a égide das calegorias capitalistas, ¢ de que esta ideia de uma "revolugao proletaria" mais nao 6 que uma ideologia de desenvolvimento do trabalho abstracto, ¢ representa um prolongamento do sistema da valorizagao, em que o “trabalho sem capital” poderia voltar a ser uma simples relago de capital, Como ¢ evidente, o préprio Grossmann néo ficou alheio & metacritica ideolégica da sua obra, fundamentada no problema do sujeito, para la das definigdes imanentes da teoria da crise. Ainda no exilio nos U S América, mais de uma década apés a interrupgao do debate, ele tentava indirectamente defender-se da acusagao do "determinismo econémico” asseverando, a semelhanga de Rosa Luxemburgo, que a tendéncia objectiva para o colapso de modo nenhum tornava supérfiuo 0 agir subjectivo emancipatério, Segundo Grossmann, um "momento da teoria geral de Marx" essencial consistiria "na doutrina de que nenhum sistema econémico, por muito acossado que seja, entra em colapso por sua iniciativa prépria; tem de ser ‘derrubado’ A andlise tedrica das tendéncias objectivas de desenvolvimento que levam ao colapso do sistema serve para descortinar os ‘elos fracos', a serem utlizados como uma espécie de barémetro, que indica quando o sistema se torna maduro para uma mudanca fundamental. E mesmo quando esse ponto é alcangado, a Tevolugao 6 levada a cabo tao-s6 pelo agir activo dos factores subjectivos... E gracas a tal agir que as tendéncias objectivas podem ser realizadas" (Grossmann 1971/1943, p. 210 ss). ‘Assim sendo, Grossmann agora ja chegou ao mesmo ponto que Pannekoek; a objectividade (negativa, falsa) & ‘subjectivada, ao passo que inversamente o agir subjectivo é abjectivado ("realizacao das tendéncias objectivas"), o Préprio sujeito ja 86 é um "factor", a confusao é total. € ébvio que Grossmann nunca se tinha debrugado sobre este meta-nivel, onde agora a posteriori ainda se espalha ao comprido, depois de ha muito se ter tornado claro que o seu ‘esforgo de andlise no plano das categorias do valor e da teoria da crise a elas ligada nao podia chegar a lado nenhum. Ja 86 faltava um pequeno passo para reduzir este dilema por completo & pura subjectividade das relagées de vontade deciarar as categorias da critica da economia politica de Marx na pratica completamente irrelevantes. A relagao de capital, como relagao de vontades exterior, ja néo é entao mais que “vontade contra vontade" (ainda assim novamente ‘expressa de forma objectivada como "classe contra classe", visto que, como 6 sabido, a categoria classe é por sua vez sistericamente constituida, e assim desde logo faz parte da objectvidade). Para ser mais exacto: a objectivagao incompreendida da categoria classe 6 reduzida a uma simples questao de vontade, de modo que a objectividade do fetiche capitalsta aparentemente se resolva numa simples "relagdo de forgas” de determinagées de vontades contraditérias Foi Karl Korsch quem, na discussao da meta-problematica da relagao-sujeito-objecto no ambito do debate sobre a crise € © colapso, ajudou a preparar esta viragem. Para ele, qualquer teoria do colapso representa uma "deformagao objectivista’: "Semelhante teoria nao me parece apropriada para produzir essa plena seriedade do agir auto-responsavel da classe operéria que luta pelos seus objectivos préprios, necesséria tanto guerra de classe dos operdrios como a qualquer outra guerra comum' (Korsch, citado segundo: Marramao 1977, p. 18). Como constata Marramao, Korsch vai até ao ponto de encarar “a representagao dialéctica do Marx maduro como uma mera alegoria destinada a excitar a vontade de uta e o espirito revoluciondrio do proletariado" (Marramao 1977, p. 21, itélico de Marramao). Giacomo Marramao, que no contexto do marxismo da nova esquerda dos anos setenta se ocupou do problema, designa ‘com razio esse pensamento de Korsch como "redugdio pragmatica do momento dialectico-morfolégico da critica da ‘economia politica” (ibidem, p. 42). Como consequéncia tiltima deste pensamento, as categorias do trabalho abstracto, valor, mercadoria, prego, mais-valia, composigao organica, queda tendencial da taxa de lucro etc., ou seja, as balizas tedricas da reprodugao capitalista assim como da sua crise, tém de se reduzir a meras “alegorias" de determinagoes de vontade das "classes", pensadas como sujeitos de vontade sem pressupostos. O plano da constituigao do fetiche e do “sujeito automético”, que de qualquer modo nunca tinha sido entendido, agora abolido de vez, as objectivagées reais convertem-se em meras vestes de relagdes de vontade puramente subjectivas, E verdade que Korsch também se pronuncia contra um mero subjectivismo da acgao directa nao mediada etc., mas isso refere-se unicamente aos planos da mediagao no Ambito das supostas puras relagdes de vontade, e nao a objectividade negativa da relacao de fetiche e da crise como limite objectivo: "Esta postura declara toda a questo da necessidade ou evitabilidade objectivas das crises capitalistas uma questdo que nessa generalidade néo faz sentido no Ambito de uma teoria da revolugao pratica do proletariado... Antes ela cré que, através de uma investigagao empirica cada vez mais ‘exacta e pormenorizada do presente modo de producao capitalista e das suas nitidas tendéncias de desenvolvimento futuro, também podem ser fellos certos prognésticos que, embora sempre muito limitados, sempre chegam para as necessidades da acco pratica” (Korsch, ibidem, p. 18 s..itélico de Korsch). Aqui se mostra a consequéncia desse "reducionismo pragmitico" das categorias capitalistas forma e substancia: 0 movimento histérico jé nao se apresenta como movimento dessas mesmas categorias, que s6 seria possivel entender ‘com base na teria correspondente, mas ja apenas se manifesta na redugao a relagdes de vontade, ou seja, reduzido ao “plano empitico" e a sua "investigago", sendo que esta empiria é concebida de modo imediato como sendo referente a relagdes de forca entre determinagdes de vontades antagénicas. Tinha nascido a famigerada andlise das classes: acabou-se qualquer investigacio ¢ debate sabre o movimento categorial e o seu nexo interno, findou o debate sobre as teorias da crise e do colapso, sobre a queda tendencial da taxa de lucro, o problema da realizagao e outros que tais - todos eles despromovidos a "quest6es que nesta generalidade nao fazem sentido”. Em vez disso j4 s6 permanece a analise empirica no sentido das estruturas das classes e das suas alteragées, que assim sendo também incluem as alteragdes nas relagdes de vontade. Ou seja, precisamente aquilo que o operaismo, com os seus teoremas da recomposigdo da classe operdria, havia inscrever na sua agenda como um reducionista programa de invesligago permanente, Como ¢ dbvio, com este tipo de expedientes néo se consegue escapar relago-sujeito-objecto da constituigao do fetiche modemno. Apenas se prolonga o dilema que ja surge em Pannekoek e que radica no curto entendimento do marxismo do movimento operdrio em geral: quanto mais subjectivo, mais abjectivo; quanto mais a relacao de feliche € ‘concebida como uma pura relagao de vontade de sujeitos de vontade pensados sem pressupostos ("classes"), cujos reals pressupostos permanecem na sombra, tanto mals a objectividade falsa, negativa, acaba por se reintroduzir pela porta das trazeiras, e os tedricos da imediatez, que j4 nem sequer reflectem os seus préprios pressupostos, véem-se ‘onstrangidos a coisificar por completo a estrutura e a consciéncia do seu espléndido "sujeito de vontade proletario" e investigé-lo" como um objecto natural objectivo, com o que evidentemente desmentem da forma mais embaragosa a sua @nfase no "agir auto-responsavel da classe proletdria em luta pelos seus proprios objectivos Tal como a historia secreta do debate do marxismo tradicional sobre a crise e colapso consistiu, para I do plano reduzido da economia politica, na desagradavel tematizagao dessa pouco esclarecida estrutura-sujeito-objecto da socializagao do valor moderna, assim o programa secreto da sua resolugao consistiu na redugdo das categorias objectivadas do capital a puras relagdes de vontade, que de seguida podiam ser observadas e investigadas sob aspectos diversos. A histéria do pés-guerra da nova esquerda foi, toda ela, permeada por este paradigma. Foi simplesmente adoptado este resultado do debate do colapso, nao sujelto @ minima andlise critica e de todo irreflectido; e foi precisamente por isso que nao s6 0 conceito de colapso, como palavra nao grata, se transformou em um mero fantasma, mas também 0 caminho para um desenvolvimento ulterior da critica da ontologia do trabalho permaneceu obstruido, os bastante tematizados conceitos de coisificagao ou de alienacao nao passaram de uma superficial formulagao socio- fllosética, 0 plano da constituigao social, o problema da constituigao de fetiche e do *sujeito automatico", teve de continuar assim 1ndo elaborado e foi mesmo expressamente rejeitado. Apesar das aparéncias exteriores, tal tendéncia ndo é contrariada nem mesmo pela corrente do debate do estruturalismo de Althusser. Althusser deixou sobrar o "sujeito proletario" num estado perfeltamente irreflectido, mas despido da sua énfase e reduzido a um "executor" de processos estruturais. Porém, como fol assinalado, jé Pannekoek tinha chegado a esse ponto, que no fundo também foi o pressuposto implicito ‘0u explicito de todo o "materialismo histérico". O pdlo oposto operaista apenas constituiu o reverso da mesma medalha. Nao & por acaso que tanto Luis Althusser como Toni Negri rejeitaram expressamente tanto 0 conceito de fetiche como toda a argumentagao de Marx sobre ele edificada. Deste modo, juntamente com o problema do limite interno objectivo da valorizagao, também a forma social do sujeito e a sua substancia (do trabalho) foram definitivamente apagadas como possiveis objectos da reflexo e da critica radical Actise e a critica, a ilusao politica e a relagao de dissociagao sexual A subjectivacao reducionista das categorias foi poltico-economicamente justificada com 0 desenvolvimento do proprio capitalismo, até um capitalismo “organizado" (Hilferding). Os problemas da valorizagao, na realidade resultantes de um processo secular de dessubstancializagao do proprio valor, que tinham potenciado as intervengdes do Estado desde 0 fim do século XIX (com os posteriores impulsos da economia de guerra da época das guerras mundiais e mals tarde da regulagéo fordista na segunda metade do século XX), apareciam a bem dizer como "temogao da lei do valor’, através do pretenso comando directo da politica e da gestéo dos conglomerados empresariais sobre a reprodugao capitalista. Esta epresentago assombra todos os dominios dos padrées interpretativos entretanto clasificados com o rétulo de jarxismo ocidental” e que arvoram a pretensao de ir além do "economismo" do marxismo tradicional - quando na realidade representam apenas o reverso subjectivo-ideolégico da mesma medalha, Com isto se prolonga e potencia a ilusao politica, tal e qual ela tinha caracterizado 0 marxismo do antigo movimento operario desde 0 inicio. A "luta pelo reconhecimento", no terreno do trabalho abstracto e portanto da socializagao do valor, na realidade sé podia ser conduzida de forma politica precisamente devido a sua limitacao, pois a politica nao é sendo a "esfera de tratamento" secundaria dos problemas sociais continua mente causados pela relagao de capital. Esta esfera, de acordo com o seu conceito, pressupée a valorizacao do valor como positiva, sendo considerada uma ‘componente imanente do valor como forma social. Qualquer contraposi¢ao de economia e politica que se fique por esta diferenga e suponha as duas esferas como mutuamente exteriores, sem conseguir compreender a sua conexao abrangente [ibergreifenden Zusammenhang] na relacao de valor ¢ na substancia de trabalho, permanece decisivamente reduzida e desemboca em alguma variante da ilusao politica, A politica, de acordo com 0 seu conceito, esta relacionada ‘com 0 Estado, mas o Estado como categoria e como aparelho concrete representa o mecanismo de tratamento politico do capitalismo, que per se néo pode conduzir para além do fim em si da valorizagao do valor, nao passando, polo contrario, de uma simples fungao desta coacgao (as fricgdes no decurso do processo de tratamento politico podem involuntariamente libertar potenciais da critica, mas isto nada muda no estado das coisas estrutural) (O entendimento do caracter comprometido com o sistema do Estado e da politica pressupée no entanto o entendimento da falsa objectivago das categorias capitalistas em geral e do cardcter de fim em si do "sujeito automatico". Daqui resulta uma critica do Estado completamente diferente da do marxismo tradicional. O modo de falar do Estado como “comité de gestéo de negécios da burguesia’, tal como é usado ocasionalmente também por Marx e como se consolidou finalmente no conceito de "Estado de classe", é de muito pouco alcance e é a expresso de uma subjectivago sociologistica, As classes nao determinadas nos seus pressupostos, mas na realidade categorias derivadas da relago de fetiche que sto tomadas por sujeitos sem pressupostos, parecem ento subsumir todas as categorias da reprodugao do capital sob esta subjectividade sociolégica, como sua titima base. Precisamente por isso, porém, as categoria, trabalho, valor, Estado, politica etc., sdo ontologizadas, pois s6 so definidas como abjectos da critica pelos seus atributos, como “trabalho (transhistérico) explorado pelo capital’, "valor apropriado pelos dominantes (mais valia)" “Estado da burguesia’ etc., de modo que se gostaria de imaginar um “trabalho livre", um "valor apropriado com autodeterminagao, isto é, justamente repartido", um "Estado proletério" e, nota bene, uma "politica emancipatoria’ A falsa subjectivacdo j estava na hipéstase do conceito de classe sociologicamente reduzido, como pretense ponto de Partida de toda a reflexao (enquanto Marx comega com a forma da célula capitalista valor, com a determinagao da eprodugao pela forma fetichista, e no com a classe sociolégica). No marxismo tradicional, ainda assim, as categorias da critica da economia politica desenvolvidas por Marx, que nada mais exprimem que a objectivagao negativa da cconstituigao de fetiche, do "sujeito automatico”, levaram por algum tempo uma vida prépria fantasmatica e produziram aqueles debates sobre desenvolvimento capitalista, tendéncias de crise e colapso, que permaneciam sistematicamente nao mediados com a supostamente "auténtica” problematica das “classes” e da sua “politica”; dai também o desembocar ‘em € 0 fracassar na ndo resolvida questao abstracta da estrutura-sujelto-objecto, Na medida em que 0 movimento operario, na sua "luta pelo reconhecimento” como sujeito do trabalho, do direito e da cidadania estatal, que necessariamente assumia a forma politica, foi bem sucedido, transformou-se ele préprio em sujeito burgués, na “jaula de ferro" (Max Weber) da socializagao do valor, O seu éxito foi simultaneamente um auto- acorrentamento e uma auto-condenagao a forma fetiche, e a politica permaneceu o veiculo desse encantamento. A ‘ascensdo do movimento operdrio, o seu sucesso na "luta pelo reconhecimento" (um sucesso escrito a sangue, pois encontrou a sua realizagao na primeira guerra mundial - 0 pleno reconhecimento veio junto com o sacrificio de sangue no altar da nago burguesa) e a ascensdo da intervencao do Estado caminharam de maos dadas. O que seria mais dbvio do que concluir agora a subjectivagao das categorias, entender definitivamente mal a politica como forma de ‘emancipagao e justificar isto com o proprio desenvolvimento do capital? ‘A teoria do “capitalismo organizado", da pretensa “suplantagao da lei do valor” e do "comando politico" sobre as ‘categorias reais do trabalho abstracto e do valor prosseguiu apenas, por um lado, a classica tendéncia da social- democracia a "i-se chegando paulatinamente" e sem quebra ao "socialismo" de uma auto-trituragao autodeterminada numa sociedade fabril organizada ou “fébrica social total; por outro lado, levou até ao fim a subjectivagao e tornou-se assim susceptivel de também dar lugar a interpretagbes de esquerda radical, que no entanto permaneciam enraizadas na mesma logica. Isto aplica-se tanto a teoria de Horkheimer e Adorno do "Estado autoritério", que supostamente actuaria para além da lei do valor, como as posteriores posigées operaistas. Em cada caso, quer o pretenso regime de ‘comando politico sobre o trabalho abstractolforma do valor se tenha apresentado como positivo (social-democracia), ‘quer (ndo em iltimo lugar sob a impressao do nacional-socialismo) tenha sido entendido como “fatalidade" (Horkheimer/Adoro), ou tenha figurado como pura “determinagao da vontade" do inimigo de classe, que devia desaffar e mobiizar sempre de novo a “contra-vontade" do proletariado (Negr-Operaismo) - perante este pano de fund, quando tudo se dissolveu na “poliica’, ja no & pensvel um limite interno objective. Com isto, no entanto, a aparente “suplantagao" das teorias do colapso tomou-se idéntica a llusdo politica acabada, com a inflexao do pensamento da ‘emancipagao para a esfera da fungdo poltica da modemnidade capitaista. E com razo que Giacomo Marramao chama a atengao nos anos 70 para que "sao precisamente os teéricos do austromarxismo que abrem no marxismo europeu aquela ‘saison da subjectividade’ que consiste numa leitura renovada, activista, das obras de Marx, através do filtro de determinados temas do neo-kantismo" (Marramao, ob. cit, 26). De modo nenhum por acaso, os activistas radicais de esquerda do operaismo e correntes semelhantes dos anos 70 (e em parte até hoje) invocam nas suas andlises tedricas precisamente do teorema de Hilferding do "capitalismo organizado. Esta orientagao geral tinha por consequéncia, porém, como Marramao constata de seguida, "tanto junto dos austromarxistas neo-kantistas, como também junto da ala maioritéria do comunismo de esquerda, uma restrieo gnoseolégica daquele dominio que em Marx é determinado polas relagdes sociais de produgao. Ao postulado do momento subjectivo (etico- Universalista) corresponde a analise sociol6gico-empirica do “milltiplo ou do real", Em vez de tomar reconheciveis as leis, que determinam as tendéncias do modo de produgdo, a andlise econémica perde-se assim num exercicio de micro= sociologia’ (ob. cit. 26, itélico de Marramao). Este entendimento critico ficou porém por desenvolver, um simples elemento de pista, @ nao pode impedir que o ‘mainstream da nova esquerda se tivesse movido nas variantes da falsa subjectivagdo de Negri, O que se encontrava também na prépria argumentagio de Marramao, uma vez que esta no chegou ao problema da constituigao-fetiche, nem 4 solugao do dilema-sujeito-objecto, mas ela prOpria ja partia a priori da reducao desconceptualizada a politica; 0 ‘objective do seu ensalo, esclarece ele logo no comeso, estava “na perspectiva de uma complexa nova definicéo de uma Politica adequada a situagao dos paises tardo-capitalistas" (0b. cit., 13, itélico de Marramao). Isto lembra fatalmente Christoph Deutschmann, no qual a aproximagao ao problema do limite objective enquanto dessubstancializacdo também se transforma imediatamente no paradigma do tratamento politico; o que em Deutschmann aparace no plano das categorias do capital, como "politica econémica’, transforma-se em Marramao na abstraccao vazia “da politica’ em geral, no metaplano do problema-sujeito-objecto. Por aqui se ficou até hoje. Tanto o pés-operaismo de Negri, que de ha algum tempo a esta parte tem feito furor de novo (pelo menos nos suplementos culturais), como em termos gerais a esquerda pés-moderna, mas também posig6es antes de mais do marxismo tradicional da "Iuta de classes”, continuam apegados a um conceito tao difuso quanto inflacionario degradado a frase vazia, Nem sequer saber de que histéria so o resultado. A polltica é equiparada de ‘qualquer maneira com intervencao em geral, passando ao largo das categorias, que mais do que nunca estao degradadas a um mero ruldo de fundo. O que em Pannekoek ainda fol pré-pensado com pouca clareza, conclulu-se até & estupidificagao categorial da esquerda, Invocam-se os sujeitos ou "o sujeito" puro e simples, a forma nao é nada e a vontade, tudo. Indiferente ao trabalho abstracto, a substancia do valor e a forma do valor, ao desenvolvimento e a crise, pretende-se mobilizar nos seres humanos em falsa imediatez tudo aquilo que de algum mado “ndo se encaixa" na valorizagao do valor, como se isso fosse possivel sem a mediagao da critica da forma do sujeito e da sua substancia social. “A capacidade de intervengao” é tudo, e precisamente por isso nunca da nada. Nos meios de esquerda, que so determinados por este conceito politico inflacionério, vazio e desvanecido, a ideia de um limite interno objectivo ja st provoca uma espécie de grunhidos e, més sim, més nao, celebra-se a despedida definitiva dos "tedricos do colaps ‘esses grunhidos tanto mais so rasnados e escarrados quanto mais penosa e regularmente a "intervengdo politica” se ridiculariza até ao tutano, um esforgo inglério querer apresentar a estes meios de cena, que no so sendo 0s itimos moicanos da histéria marxista, uma reformulagao da reflexao categorial, enquanto eles proprios nao consigam dar passos nessa direc¢ao, tencarando de frente desde logo o seu préprio comportamento de lemmings do intervencionismo politico. No entanto, a reflexdo categorial também pode e deve ser desenvolvida independentemente da capacidade de recepgao destes iusionistas politicos do social em estado terminal. Retomemos a discussao no ponto em que o debate histérico colapsou na subjectivagao das categorias. Em que sentido é que o problema se coloca de novo, se a ontologia do trabalho marxista for cticada e superada, 0 que por Seu lado também conduziré a uma nova definigdo do sistema categorial do trabalho abstracto? ‘Apesar da sua reducdo a sociologia das classes e a politica, o marxismo tradicional pdde viver com a objectivagao das ccategorias por as ter positivado e transformado em objectos ontolégicos de um tratamento politico reduzido aos atributos, cujo resultado acabaria por ser a subjectivagao categorial total; o movens desta subjectivacao era constituido pela discussdo em torno da teoria do colapso, que conduziu a paralisia na insolivel aporia-sujeito-objecto. O regresso as categorias apés a passagem pela critica radical da ontologia do trabalho ja nao pode conceber positivamente a conexao calegorial do trabalho abstracto, mas apenas negalivamente (como se explicitou na primeira parte deste estudo), Mas ‘com isso também se coloca de modo diferente o problema-sujeito-objecto no contexto da questao da crise e do colapso. (O sujeito e 0 objecto ja nao podem ser relacionados de um modo simplista como unidade positiva, mas tm que ser percebidos primeiro no seu rompimento [Zerrissenheil]. Logicamente a questdo da crise e do colapso esta entdo sediada puramente no plano da objectivagao falsa, negativa, e do movimento categorial autonomizado da dindmica capitalista, A questao da crise e do colapso deve ser portanto estritamente separada da questao da emancipagao, Ambas se separam em primeiro lugar conceptual e realmente, tal ‘como a sociedade-feliche moderna se constitui em geral em polaridades autonomizadas opostas. A emancipagao s6 pode ser consciente; crise @ colapso, pelo contrario, de acordo com o seu conceito, s6 podem acontecer num proceso inconsciente de desenvolvimentos objectivados e nada tém a ver imediatamente com o agir consciente. Dai que o capitalismo pode colapsar sem que os seres humanos se emancipem. O resultado seria o auto-aniquilamento da humanidade, ou a "queda na barbarie", como Marx assinalou metaforicamente esta altemativa. O conceito 6 problematico e de proveniéncia eurocéntrica, mas € o mais atreito a assinalar uma possibilidade, ultima, de objectivagao negativa. Assim, de facto, pode-se ver na televisdo as "catastrofes de natureza social’, até elas atingirem o proprio, mas do a propria emancipacao do contexto que provoca essas catastrofes. Inversamente, os seres humanos podem em principio emancipar-se sem que o capitalismo colapse. Este colapso nao é nenhuma pré-condigao social indispensavel da emancipagao, mas pode, na sua cega objectividade, tomar-se na condi¢ao de ambiente social do pensar e do agit ‘emancipalérios, se a transformagao emancipatéria se fizer esperar por muito tempo e for dada ao capitalismo a oportunidade de desenvolver completamente as suas contradigdes internas. Critica @ crise sao assim botas de dois pares, e quem calcar uma bota de cada par e quiser correr nesta falsa unidade tem que cair sobre os proprios pés. Nesta perspectiva toma-se completamente impossivel uma afimmacao como a de Paul Mattick, que junta de modo simplista ambos 08 polos e abstrai do seu rompimento [Zerrissenheil] a favor de um monismo nao mediado de sujeito ¢ objecto: °O conhecimento tedrico de que o sistema capitalista, por causa das contradigSes que o impulsionam, s6 pode desembocar no colapso ndo obriga por isso a opiniao de que o colapso real seja um processo automatico, independente dos seres humanos” (Mattick, cit. em Marramao, ob. cit, pag 25, itaico de Mattick). A formula desamparada do colapso “real’, como se houvesse um auténtico e outro ndo auténtico, remete apenas para o facto de que nao se chegou ao fundo do problema, Tanto a tendéncia secular para 0 colapso, enquanto dessubstancializagao ou desvalorizagao do valor, como também um processo real de colapso, no fim da capacidade de desenvolvimento capitalista, s40 de facto ‘com legalidade sistémica um "processo automatico", enquanto os seres humanos agirem conforme a determinagao da forma capitalista; mas dal nao resulta jamais “automaticamente” uma outra sociedade, emancipada. ‘Até este ponto ja 0 problema foi discutido noutro lugar (vide Kurz 2003, 226 sg.) Mas com isto nao se esgotou ainda a colocagao da questdo, mesmo se tal contribuiu ao menos para desfazer a distorgao do problema-sujeito-objecto no contexto da problematica da crise e do colapso. Poder-se-ia contudo objectar que, com a ténica na estrita objectividade da tendéncia de crise e colapso, por contraposi¢ao a critica e a emancipagao, o problema acabou por ser de novo objectivado, uma vez que 0 que aqui esi em questo ndo é a objectividade de processos da "primeira nalureza” ‘efectiva, mas a objectividade de uma pseudo-natureza social, que em tilima instancia tem de ser mediada por acces humanas. Uma vez que nem pode ser de outra maneira, a questo a colocar de seguida evidentemente a da mediacao "subjectiva’ da objectividade social, em vez de subjectivar esta objectividade de modo néo mediado (como fazem, em grande medida, o marxismo da sociologia das classes e particularmente o comunismo de esquerdaloperaismo), ou ‘entendé-la mal como uma objectividade no sentido das ciéncias naturais (como a doultrina da economia politica). No fundo trata-se do mesmo problema que nas ciéncias sociais burguesas desde sempre se constituiu como a oposi¢ao entre a teoria da estrutura e a teoria da acco. Uma vez que em titima instancia todas as manifestagdes, categorias e processos sociais nao sao produzidos nem conduzidos por nenhuma "coisa do exterior", mas remontam a acgdes e decisbes humanas, enlao nao ha realmente nenhum determinismo em geral, pelo menos absoluto, Tudo o que aconteceu e acontece, incluindo a objectivagao da “segunda natureza’, é determinado por acgdes e decisdes. A pura objectividade de um proceso histérico e a filosofia da histéria positiva a construir sobre ela & sempre uma interpretago ex post, que glorifica como “necessidade" um percurso ‘simplesmente real (em Hegel elevado a sistema e simplesmente "virado do avesso” no chamado materialismo histérico). Na realidade todos os processos histéricos s4o sempre até um certo ponto abertos e indelerminados, enquanto nao forem tomadas decisdes nem executadas acgdes. A semelhanca das explicagdes populares da fisica quantica, poder-se- ia apresentar a histéria como uma nuvem de probabilidade de possibilidades indeterminadas, que apenas no momento do agir se consolidam em realidade histérica Mas, primeiro, ha acgdes e decisdes de alcances diversos; em segundo lugar, as acgdes e decisées constituem uma ‘conexao em cadeia, de modo que uma vez executadas j4 nao podem ser revertidas. E nesta medida todas as acces ‘encontram-se sempre ligadas aos resultados de acgdes anteriores e por estas condicionadas. Enquanto a sociedade humana no chegar a uma consciéncia propria como "associago de individuos livres", que sempre jé correflecte as condigdes e as consequéncias da sua acco social e que, em decisao livre e consciente, decide sobre a realizagao das suas possibilidades, também as conexées em cadeia sempre voltam a adensar-se em padrées de acgéo cegos, na ‘matrix de uma "segunda natureza" que se autonomiza face aos individuos @ se apresenta como uma “coisa exterior". Em termos gerais, isto poderia ser designado por constituigao de fetiche, sendo que toda a Histéria até a data foi a historia das relagdes de fetiche, Uma semelhante matrix é 0 que Marx designa por modo de produgao histérico e que poderia alargar-se no conceito de um modo de vida e de produgao; na ciéncia histérica burguesa fala-se muitas vezes de culturas, no marxismo por vezes também de formagoes sociais. Para recorrer uma vez mais 4 comparacao com a fisica, poder-se-ia também falar de um campo histdrico. Trata-se aqui precisamente daquilo que no inicio deste estudo foi criticado como défice de percepgao sistematico do pensamento pés-moderno, que vé a contingéncia em accio de modo quase indiferente, sem desenvolver um conceito desses campos histéricos e das diferencas da respectiva matrix. 0 pensamento pés-modemo é n&o histérico, precisamente neste sentido de um entendimento da contingéncia meramente difuso. Porém, uma vez constituido um tal campo, este limita a contingéncia, que fica reduzida as possibilidades no interior da ‘sua mattix, Portanto na contingéncia historico-social temos que nos defrontar com duas distintas nuvens de probabilidade; 4 uma, com a nuvem de probabilidade de ordem superior da histéria, a partir da qual tals campos histéricos ou formagées se condensam, e, por outra, com uma nuvem de probabilidade secundaria, a partir da qual a hist6ria interna de tal campo se desenvolve de acordo com o padrao da sua matrix especifica. Evidentemente, ha que dizer desde ja que esta conceptualidade, mesmo representando uma generalizagao, deve-se por inteiro a experiéncia criticamente elaborada da constituigao social capitalista modema. Para a investigagao de estados anteriores e da histéria anterior no seu conjunto como "historia de relagSes de fetiche", ha que acrescentar apenas uma prudente pretensao heuristica, mas nenhuma nova “flosofia da histéria" ideolégica, Portanto, ha que evitar os erros da filosofia do iluminismo e do materialismo histérico, os quais ambos - num caso afirmativamente, noutro com propésito critico - ontologizaram transhistoricamente as categorias capitalistas modemas, com que o materialismo histérico revestiu a hist6ria duma légica de desenvolvimento dinamico, como "dialéctica de forgas produtivas e relagées de produgao", que na realidade caracteriza apenas o capitalismo, a modema socializagao do valor. De entre todos os campos histéricos, 0 capitalista da modernidade é o tinico cuja matrix produziu a dinamica interna de um cego processo de contradigao na realizagao do padrao da acgao e, com isso, uma objectividade de segunda nalureza que pode provocar um colapso objectivo; e assim acontece ao contrério de todas as constituigSes pré- modernas, por exemplo dos campos histéricos das sociedades agrarias, nos quais a objectividade fetichista ndo se ‘configurou em nenhuma dinamica interna deste tipo. Por isso também a sociedade capitalista é a unica a ter conduzido, por forga desta dindmica destrutiva, aos limites de uma “histéria de relagdes de fetiche" e a ter sequer tornado possivel 0 conhecimento do caracter de fetiche em geral; no entanto, de modo algum positivamente, como coroagao de uma istéria de progresso" necessaria, mas sim de modo puramente negativo, como problema de uma dindmica interna de colapso especificamente pertencente a este campo histérico. Neste contexto, ha que questionar agora (de novo generalizavel historicamente apenas de modo limitado) o caracter diferente da nuvem de probabilidade das possibilidades de acco e de decisao. A contingéncia apresenta-se de modo diferente, dependendo de se nos colocamos no plano da constituigaio do campo histérico como tal, ou no plano da sua histéria interna, Nao ha nenhum processo de necessidade histérica, a partir do qual o capitalismo como formagao histérica “tivesse de" surgir, mas uma espécie de alteracao climatica para a nuvem de probabilidade das possibilidades de acgo, quando a contingéncia atingiu um estado em que um determinado campo histérico da sociedade agraria ‘comegou a decompor-se. Nesta decomposieao a peste desempenhou um papel, mas mais ainda a revolucéo militar das armas de fogo, na chamada idade modema primordial; a explicagao detalhada destes desenvolvimentos constitui um tema préprio e nao vem ao caso aqui. Mas é importante a constatagao de que com isto se verificou na nuvem de probabilidade da histéria a possibilidade de um salto qualitativo nas condensagdes da acgao e da decisfo, da passagem para a constituigao de um novo campo histérico, cuja natureza inicialmente permaneceu ainda indeterminada. Nesta fase de transformagao também teria sido possivel a constituigdio de um novo campo completamene diferente do do capitalismo. Ou que a condensagao da nuvem de probabilidade no campo capitalista tivesse parado em determinados niveis de desenvolvimento, transformando-se noutra configuracdo, Isto torna-se particularmente claro em trés pontos histéricos. As guerras camponesas dos séculos XV e XVI representaram um levantamento contra a constituigao inicial da matrix capitalista, quando esta estava apenas em formagao embrionaria; se tivessem saido vitoriosas (a sua derrota ndo ‘era de modo nenhum "necessaria") entao ter-se-ia constituido uma outra matrix a partir da nuvem de probabilidade; ainda que presumivelmente nao uma suplantacao da histéria das relagdes fetichistas, mas sempre um outro novo campo histérico, com outro padrao de acgéio que nao o capitalista. Os movimentos sociais e revoltas do século XVIII @ inicio do ‘século XIX ja estavam mais impregnados da matrix capitalista em formagao, mas continham ainda assim a negagao do trabalho abstracto; se tivessem saido vitoriosos (e a sua derrota ndo era absolutamente "necesséria"), ento a constituigao capitalista teria sido parada nesse ponto @ a nuvem de probabilidade teria assumido uma outra qualidade na ‘sua condensagao. O movimento operdrio moderno classico do fim do século XIX, finalmente, ja tinha interiorizado amplamente na pratica o padrao de disciplinamento do trabalho abstracto, mas ao mesmo tempo, através da recepgo da teoria de Marx, que pela primeira vez tematizou em critica radical o conceito nao s6 do trabalho abstracto e da forma do valor, mas também da relagdo de feliche em geral, ficou cheio da possibilidade de uma ruptura consciente; bem cintilante, alias, nos primeiros programas e inten¢des marxistas, que na realidade nao tardaram a ser abandonados - mas também isso nao era absolutamente "necessario". Também neste ponto, tivesse a constituigdo capitalista ainda sido parada e poderia ter comegado uma transformaco, que seria certamente acompanhada de violentas fricgSes, mas nem Por isso teria sido "impossivel" (ter-se-ia vencido 0 problema do trabalho abstracto, isto 6, o movimento de transformagao deveria ter-se emancipado desta matrix através do desenvolvimento da critica, e com isso dos préprios momentos de interiorizagao). ‘Apenas porque neste ponto de ruptura a nuvem de probabilidade se condensou em decisdes fécticas, de modo nenhum assentes a prior, que de cada vez resultavam a favor duma mais ampla consolidagao e desenvolvimento do campo capitalista, pode a dindmica de contradigéo capitalista continuar a desenvolver a sua légica de um movimento objectivo das categorias auténamas, com base na matrix consttuida. A contingéncia que ainda restava cada vez. numa nuvem de probabildade de segunda ordem, numa historia intema do campo capitalista, era entao por sua vez determinada do onto de vista da lagica de desenvolvimento geral no interior deste determinismo do campo do conjunto, contudo, eram © s’o abertas ¢ indeterminadas cada uma das decisdes © acgdes realizadas. Assim, por exemplo, a constituicao atrasada do Estado nacional alemao no século XIX ndo teria necessariamente que ser bem sucedida, cada uma das partes do posterior império alemao teria podido integrar outra estrutura de Estado, e a humanidade teria sido poupada a muita coisa (do mesmo modo também podia pelo contrario ter ocorido jé no sécuio XIX a constituigdo dessa nagao, com inclusdo da Austria). Nem a vitéria do nacional-socialismo, nem a consequente histéria de catéstrofes eram forgosas ou istoricamente necessérias"; mesmo com um desenvolvimento mais aprotundado do campo capitaista, a humanidade nao tinha que ter suportado incondicionalmente estes agravamentos extremos da poténcia para a barbérie no interior do capitalism, Aqui, porém, néo se trata da contingéncia da histéria no interior do capitalismo, mas da questdo da légica de colapso que ‘se refere inequivocamente ao campo capitalista como tal. Se a dindmica de contradi¢ao do capitalismo contém em si uma tend&ncia de colapso, entdo ela é 0 resultado dessa objectivagao do campo com tais qualidades. Também a Cconstituigao desta objectivagao das categorias e da sua cega dinamica de colapso, como processo logicamente determinado, é de facto determinada pelas acgdes humanas e levada a cabo pelas acgdes humanas; mas nao pelas ‘acces e sua intencianalidade imediatamente, mas pelo facto de estas mesmas acces, num proceso incantrolado, terem feito primeiro uma matrix, um padrao de acgao, que se objectivou nas categorias sociais © deu lugar a uma dinamica de contradigao autonomizada; e na medida em que o posterior agir se realiza nestas categorias e de acordo com esta matrix, os seres humanos, sem disso estarem conscientes @ sem sobre isso terem controle, poem eles préprios ‘em movimento o motor categorial da autocontradi¢ao e do programa de colapso, até serem alingidos pelos respectivos resultados. O "sujeito automatico” nao é outra coisa sendo o auto-movimento das categorias reais capitalistas, que foram criadas pelos seres humanos inconscientemente e que se movimentam de modo autonomizado precisamente porque os individuos realizam a sua vida nessas categorias, ja ndo querem imaginar outra coisa para si e buscam a todo o custo a sua felicidade em corresponderem as exigéncias produzidas por esta matrix. A tendéncia de colapso esta portanto objectivamente determinada pelo facto de os seres humanos organizarem subjectivamente o seu agir de acordo com a matrix capitalista instituida, ou seja, executarem e executarem cada vez

Você também pode gostar