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MICHEL FOUCAULT A VERDADE E AS FORMAS JURIDICAS 3 edigito Copy by paranita de Letas da PUC Rio A etitra ulin a radu ea sepa al re coordenada pele Departamento de Laas dx PUC-Ruo para publican nox Cares a PLC Rin n016, 1974 A eri foi ealirada po Kober Cabal de Meo ‘Machado Edaandy and Monti siperisao final do eso faba Abe Léa Ports de Adon Novae, Choice Braden, Ror Belli. Vrs ‘Marit Pemena de Pal, Kite Chale Mawar, Maria Teme Horts © Spa Fermende ips Daigo: Lopes CIP-BRASIL, Cacloggto-m-fone ies Foucaul, Mich, 1926-1984 ’sedade a ors ies ¢ Michel Foseaul,(uadugso Roberto Cabal de Melo Machado « Eduardo andi Moris, sapesiie final do teen La Poe 1s de janeiro: NAU Editor, 2002, Tot le Abrou Nosas. a J Teale de La weit es fares jrdiques Confeensas de Michel Foucault PUC Rio de 21 25 de aio de 1973, ISBN 85 593648 1. Dirt — Filosofia. 1. Thu 96.0291 cpu 3401 TH aligio 1996} reimpraso +1998 2eeiga0 1999 1 cimprerio 2000 2eeimpresso 2001 5+ digo» 2002 PEASY 5 tains Treg Ld Av Nos Sora de Fin, 195 — Centro ontin —-R] — CEP 26650.000 Telefn: 24 2552 4272 — em nanlernex come Eye Palo de io encontando ee iva Fortin pedi ws fx ow eal ;pon pla Editor Taepa Lada em Agamond «impres mio de 2002 cn papel lf 90 gh paral pel 50 yl! para 1. Conferénca 1 IL, Confrénca 2 1, Conferncia 3 IV. Confeénci 4 V. Conferenia VL. Mesa redonda Sumdrio 103 7 © que gostaria de dizer-thes nestas conferéncias sie «coisas possvelmenteinexatas, alas, erréneas, que apresentarei «titulo de bipstese de trabalho; hipétese de trabalho para umn trabalho futuro, Pedira, para tanto, suaindulgeacia 6, mas do questo sua maldade. Isto ¢, gostaria muito que, ao fim de cada conferéncia, me fizessem perguntas, eticas ¢ objegdes para que, na medida do possvel e na medida em que meu espirito rio € ainda rigido demas, possa pouco a pouco adaptar-me a elas; e que possamas assim, a final desas cinco eonferéncias, ter feito, em conjunto, um trabalho ou eventualmente alga progress ‘Apresentarei hoje una reflexio metodolégica para introduzir ese problema, que sob o tvulo de A Verdade eas Formas Juridica, pode-lhes patecer um tanto nigiitico, ‘Tenrare apresentar-thes © que no fundo éo ponte de conver- aeincia de trés ou quatro séries de pesquisas existents, jé cexploradas,jéinventariadas, para confronté-le ¢reuni-las em unaspce de prs oo dg nga mas pelo menos, Em primeiro lugar uma pesquisa propriamente hists- rica, ou sea: como se puderam formar dominios de saber a parti de pritcas sociais? A questio é a seguinte existe uma tendéncia que poderiamos chamar, um tanto itonicament, de ‘marxismoacadémico, queconsisteem procurardeque maneira «as condig6es econdmicas de existéncia podem encontrar na conscidncia dos homens 0 seu reflexo e expresso. Parece-me ‘que esa forma de andlise, radicional no marxismo université- fio da Franca eda Europa, apresenta um defeito muito grave © de supor, no Fundo, que o sujeito lnumano, 0 sujeto de conhecimento, as proprias formas do conhecimento sa0 de certo modo dados prévaedefinitivamente, e queascondigdes econdmicas, sociais e politica da existéncia no fazem mais do que depositar-se ou imprimie-se neste sueitodefinivivamente dade Meu objetivo seré mostrar-thes comoas priticas socais podem chegar a engendrar dominios de saber que no somente fazem aparecer novos objeros,novosconceitos, novas técnicas, ‘mas também fazem nascer formas totalmente novas de sueitos de sujeitos de conhecimento, O proprio sujeito de conheci mento tem uma histria,arelag do sujeito com o objeto, ou, ‘mais claramente, a propria verdade tem uma histéra, ‘Assim, gostaria paricularmente de mostrar como se péde formar, no séeulo XIX, um certo saber do homem, da individualidade, do individuo normal ou anormal, dentro ou fora da regra, saber este que, na verdade, nasceu das pritcas socais, das prticas sociis do controle eda vigjlancia. Ecomo,, de cera maneira, ese saber no se impés a um sujeito de ‘onhecimento, éo se propdsa ele, nem se imprimi nee, mas fez nascer um tipo absoluramente novo de sujeito de conheci- ‘mento, Podemos dizer que histériados dominiosdosaberem relagSo com as prticas socias,excuida a preeminéncia de um sujeico de conbeciment dado definitivamente, € um dos primeicos exos de pesquisa que agora lhes propo. segundo eixo de pesquisa é um eixo metodoldgico, «que poderfamos chamar de andlise dos discursos. Ainda aqui existe, parece-me, em wma tradigio recente mas jé accita nas universidades européias, uma tendéncia a cata 0 discurso ‘como um conjunto de fos lingustcos ligados entre si por reggas sintéticas de construc. Ha alguns anos foi original ¢ importante dizer mostrar que 0 que era feito cont a linguagem — pocsia, literatura, filosofi, iscurso em geral —obedecia a um certo ruimero de leis ou regularidades intenas —as les e regulari- dades da linguagem. O carter linguistico dos atos de lingua- ‘gem foi uma descobertaque teveimportaneiaem deteeminad epoca Teria entdo chegado 0 momento de considerar esses fatos de discurso, nto mais simplesmente sob seu aspecto linguisico, mas, de cera forma — e aqui me inspieo nas pesquisa realizadas pelos anglo-americanos — como jogos (Games, jogos estearégicos, de agio e de reasio, de pergunta ¢ deresposta,dedominacioe decsquiva, como ambémde uta O dlscurso ¢ esse conjunto regular de fatos lingustieos em determinado nivel, e polémicase estratégicos em outro, Essa andlise do discurso como jogo esratégio e polémico & a meu ver, um segundo eixo de pesquisa Enfim,oterceiro exode pesquisa que hes proponho, « que vai definir, por seu encontro com 0s dois primeitos, 0 onto de convergéncia em que me situo, consstiria em uma, reelaboragio da teoriado sujeto, Essateora foi profundamen- temodifcada erenovade, 20 longo das iltimos anos, por um certo nimero de rerias ou, ainda mais seriamente, por um ‘certo niimero de préticas, entre as quais, é claro, a psicandlise se situa em primero plano. A psicandlise foi certamente a priticaea teoriaque reavaliou da maneira mais fundamental 2 prioridade um tanto sagrada conferida 20 sujeto, que se ‘stabelocera no pensamento ocidental desde Descartes, Hadoisou trésséculos, afilosofia ocidental postulava, cxplicta ou impliciamente, © sujeito como fundamento, como niicleo central de todo conhecimento, como aquilo em ‘que ea pair de que liberdade se evelava ea verdade podia explodit. Ora, parece-me que a psicandlise pds em questi, de rancira enfitica, essa posigho absoluta do sujeito. Mas se @ psicandiseo fez, em compensasio, no dominio do que pode- sfamnos chamatteoriado conhecimento, ox no da epstemalo- ga, ow no da histdria das cifncia ou ainda no da historia das, idéias, parece-me que a teoria do sujeito permaneceu ainda ‘muito filoséica, muito cartesianae kantiana, pois 0 nivel de sgeneralidadeem quemesituo, nao ago, por enquantodiferen- «a entre as concepgdes catesiana e kantiana ‘Avualmente, quando se faz histéria — historia das ‘dias, do conhecimento ou simplesmente historia — atemo- nos a ese sujeito de conhecimento, a este sujeito da represen- tagio, como ponte deorigem a partir do qual oconhecimento € possivel e a verdade aparece. Seria interessante tentar ver comosedi atravésdahistria,aconsiruigao deum sujetoque rio € dado definitivamente, que nao €aquiloa partir do que a verdadese dé nahistéria, mas de um sujeito que se consttui no interior mesmo da histéra, ¢ que é a cada instante fundado e refundado pela histétia, Ena diregio desta ertica radical do sujeito humano pela histéria que devemos nos digi. Para setomar meu ponco de parida, podemos ver como, em uma cert tradigdo universiiria ou académica do :macxismo,esta concepeio filosoficamente tradicional dosuje- tonfofoiindasustads, Ora,a meu verisso éque deve ser feito: aconstituigiohistéricade um sujeito deconhecimento através deum discurso comado como um conjunto de estratégias que fazem parte das priticas socials Esse € 0 fundo te6rico dos problemas que gostaria de levamar. Pareceueme que entre as prticas sociais em que aandlise histrica pecmite localiza a emergéncia de novas formas de subjeividade, as prétcasjurdicas, ou mais precisamente, as priticasjudicivias, esto entre as mais importantes. Ahipdtese que gostaria de propor é que, no Fundo, hi dduashistrias da verdade. A primeira €uma espécie de historia interna da verdade, a histria de uma verdade que se corrige a partic de scus préprios prinelpios de epulagio: 6 ahistéria da veedade tl como se fizna ou a partir da histéria das cigncias. Por outro lado, parece-me que existem, na sociedade, ou peo menos, em nossts sociedades, virios ourros lugares onde a verdade se forma, onde um certo niimero de regras de jogo sio definidas—regeasdejogoa partic dasquais vemos nascercertas formas de subjedvidade, certos dominios de objeto, cettos tipos desaber—e por conseguinte podemos, a partic da, fzer ‘uma histéria externa, excetior, da verdade ‘As prticasjudicirias — a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos eas responsabilidades, 0 modo pelo qual, na historia do Ocidente, se concebeu ese definiu a ‘maneira como os homens podiam ser jlgadas em Fungi dos cerros que haviam cometido, a maneira como se impos 4 decerminados individuos a reparagio dealgumas de suas agdes 4 punigiode outras, todas essas repras ou, se quiserem, todas sss prtica regulres, é claro, mas também modificadas sem cessaraavés da histéria —me parecer uma das formas pelas uals nossa sociedade defini tipos de subjeividade, formas de saber e, por conseguinte, relagdes entre o homem ea verdade «que merecem ser estudadas jsafa visto geral do tema que pretend descnvolver as formas juridicase, por eonseguinte, sua evolugio no campo do direico penal como lugar de origem de um determinado nidmero de formas de verdade. Tenearei mostrar-lhes como certas formas de verdade podem ser definidasa partirda pritica penal, Poiso quechamamos de inguerito(engutte)—inquerivo talcomo é¢ come foi praticado pelos fildsofosde século XV 20 séeulo XVIIL também por cientistas, fossem eles gesigrafos, boténicos,z0élogos, economistas— éuma forma bemcaracte- ristica da verdade em nosss sociedades (Ora, onde encontramos a origem do inquétito? Nés a encontramos em uma pritica politica e administ ireifalar-thes, masa enconcramos também em ria. E foi no meio da Idade Média que 0 inquétito aparece como forma de pesquisa da vetdade no interior da ordem juridica, Foi para saber exatamente quem fez.0 qué, em que condigées ¢ em que momento, que o Ocidence elaborou as ‘complexastécnicas do inquérito que puderam, em seguida, ser uwilizadas na ordem cienificaenaordem da eflexiofilossfica Da mesma forma, no séculoXIX também seinventaram, «partir de problemas jurdicos judicirios, penis, formas de andlise bem curiosas que chamaria de exams (examen) © no mais de inquérto. Tais formas de andlise deram origem & Sociologia, 3 Psicologia, & Psicopatologia, 4 Criminologie, 2 Psicandlise. Tentarei mostrar-lhes como, 20 procurermos & origem destas formas, vemos que elas nasceram em ligagio deta com a formagio de um certo niimero de controles politicos e sociais no momento da formacao da sociedade capitalista,no final do século XIX. “Temosassim, em linhas gerais, a formulagdo do que ser tratado nas conferéncias seguintes. Na proxim flat sobre 0 nascimento do inquérito no pensamento grego, em algo que 2 ‘nem étotalmente um mito, nem intetamente uma zragédia — a histéria de Edipo. Falarei da hiseéria de Edipo 0 como ponto de origem, de formulagio do desejo ou das formas do desejo do homem, mas. a0 contriio, como episédio bastante curioso da histéra do saber e ponto de emergéncia do inqué- rico. Na conferéncia subsequence, tatarei da telagéo que se estabeleceu na Idade Média, do conflito, da oposigio entre 0 regime da prova (dpreuve)e o sistemado inguérieo Finalmente, ‘as duas dlkimas flare do nascimento do que chamo 0 exame ‘owas cigneias de exame que esto em relagio com formasio cestabilzagio da sociedade capitals ‘No momento, gostara de retomar, de forma diferente, as reflexdes metodolégicas puramente abstratas de que falava hd pouco, Teria sido possvel,e ealvez mais honesto, citar apenas um nome, o de Nietsche, pois o que digo aqui s6 tem sentido se relacionado & obra de Nierasche que me parece se, entre os modelos de que pademoslancar slo para as pesquisas que proponii, © melhor, o mais eficez € 0 mais atual. Em Nieezsche, parece-me, encontramos eferivamente um tipo de discurso em que se fx 2 andlisehistrica da propria formacio do sujeito, a andlisehistérica do nascimento de um cero tipo de saber, sem nunca admitira preexisténcia de um sujeito de conhecimenco. © que me proponho agora é sepuir na obra de Nieascheoslineamentos quefios podem servirde modelo para as anilisesem questo. ‘Tomarci,como pontode partida, um texto de Nietsche datado de 1873, es6 publicado postumamente. Diz 0 texto: “Em algum ponto perdido deste univers, cujo elario se ‘stende a insimeros sistemas slaes, houve, uma vez tm astro sobre o qual animais inigentes invenearant 0 conhecimenso. Foi instante da maior mentira © da suprema arrogincia da histiia universal.” B esse texto, extremamente rico e dificil, deixare de lado viriascoiss, até mesmo, e sobrerudo, a célebre e dificil frase: “Foi instante da maior mentra”. Considerareiinicialmente, ede bom grado, a insoléncia, a desenvoleura de Nietsche 20 dlzer que 0 conhecimento foi inventado sobre um astro € em tum determinado momento. Falo de insoléncia, nesse texto de Nietsche, porque mio devemos esquecer que em 1873 esta- ‘mos, senfo em pleno kantismo, pelo menos, em pleno neo- kantismo. Ea idéa de que o empo eo spago podem preexstir 20 conhecimento, a ida de que o tempo ¢ 0 espago nko so formas do conhecimento, mas, pelo contriri, especie de rochas primitivas sobre as quais 0 conhecimento vem se fixar, € para a época absolutamenteinadmissve ‘Ea isso que gostaria de me ater, fxando-me primeira- :mente no préprio termo invengio, Nietsche afima que, em uum determinado pontodo tempo ¢em um determinado lugar cdo universo,aninmas intligentesinventaramo conhecimento; aapalava queemprega, invengio, —otermoalemioé Erfndung —€ frequentemente retomada em seus textos, e sempre com sentido e intengéo polémicos. Quando fala de invengio, Niewsche tem sempre em mente uma palava. que poe a invendo, a palavra origem. Quando diz. invengao € para nfo dizer origem: quando diz Erfindungé para no dizer Uryprung Tem-se um certo mimero de provas disto, Apresentarei dduas ou és Por exemplo, em um rexto queé, segundo creo, dda Gaia Ciénca, em que fala de Schopenhauer reprovando-lhe sua anise da religito, Niewsche diz que Schopenhauer come- teu oerrode procurara origem — Unprung— da religiio em ‘um senrimento metafsico, que estaria presente em todos os homens econteria, por antecipagio, o micleo de toda regio, seu modeloao mesmo tempo verdadeiro eesencial. Niewsche afta: eis uma andlise da histria da rligito que € totalmente “4 fals, poisadmiti quea eligiio rem origem emu sentimento imerafsico significa, pura © simplesmence, que a religito ja estava dada, ao menos em estado implicito, envolta nese sentimento metafsico, Ora, diz Nietsche,ahist6ria nfo sso, io € dessa maneira que se faz hist6ra, no € dessa maneira que as coisas se passaram, Poisa teligiio nfo tem origem, nio tern Unprung; ela foi inventad, houve uma Erfindungdla eligi Em um dado momento, algo aconteceu que fez aparecer & religio, A relgio foi fabricada. Ela nfocxistia anteriormente. Entre a grande continuidade da Unprung deserita por Schopenhauer ¢ a ruptura que caractetiza a Frfindung de Nieesche hi uma oposigio fundamental. Falando a respeito da poesia, sempre na Gaia Ciencia, Niewsche afirma haver quem procure a origem, Unprung, da possia, quando na verdade no hi Ursprung da poesia, hi somente uma invengio da poesia. Um dia alguém teve aidéia bastante curiosa de utilizar um certo nimero de propriedades ritmicas.ou musicas da linguagem para falar, para impor suas palavras, para estabelecer através de suas palavras uma certa relagio de poder sobre os outros. Também a poesia foi inven: rads ou fabricada Exist ainda a famosa passagem no final do primeiro discurso de A Genealogia da Moral.em que Niewsche se refete a essa espécie de grande fibrica, de grande usina, em que se produz 0 ideal. © ideal nfo tem origem. Ele também foi inventado, fabricado, produzido por uma série de mecanismos, de pequenos mecanismos. ‘A imvencio — Erfindung — para Nietsche &, por um lado, uma rupcura, por outro, algo que possui um pequeno comeso, baixo, mesquinko, inconfesivel, Este € o ponco ‘crucial da Eifindung, Foi por obscura relagbes de poder quea poesia foi inventada, Foi igualmente por puras obscuras rela 15 Ges de poder que religio foi inventada, Vilanis portanto de todosestes comeyos quando séo opostossolenidade daorigem «al como é vista pelos fildsofos. O historiador nfo deve temet as mesquinharia, pos foi de mesquinharia em mesquinhari, dde pequena em pequena coisa, que finalmenteas grandescoias se formaram. A solenidade de origem, & necessiio opor, mm bom metodo histérico, a pequenes meticulosscinconfessivel dessus fabricagbes, dessa invengées. ‘Oconhecimento fe, portanto,inventado, Dizer que cle foi inventado € dizer que ele nio tem origem. E dizer, de rmancira mais precisa, por mais paradoxal que seja, que © conliccimento néocstéemabsoluto inscrto nanaturezahuma- 1a, © conhecimento nio constitui © mais antigo instinto do hhomem, ou, inversamente, nio hi no comporamento huma- 1, no apette humano, no instinto humano, algo como um etme do conhecimento, De fato, diz Niewsche, o conheci- mento tem relagio com os instintos, mas no pode estar presente neles, nem mesmo por ser wmrinstinto entre os outros 2 conhecimento € simplesmente 0 eesulado do jogo, do afrontamento, da jungio, ca luta ¢ do compromisso entre os {instintos. E porque os instntos se encontram, se batem © " chegam, finalmente, ao témino dle suas batalhas, a um com promisso, que algo se proxi Este algo é 0 conhecimento, Portanto, para Niewsche, © conhecimento nio & da mesma natureza que osinstintos, nao €como queosefinamen- todos propriosinstntos. Oconhecimento rem por fundamen- to, por base e por ponto de partda os instintos, mas instintos em conftonto entre si de que cle € apenas o resultado, em sua superficie. O conhecimento € como um lari, como uma iz que se irradia mas que ¢ produzido por mecanismos ou reali- dadesquesio de naturezatotalmentediversa, Oconhecimento € 0 efeto dos instintos, & como um lance de sorte, ou como 0 16 resultadodeum longo compromisso Eleéainds, diz, Netsche, como “uma centelha entte duas espadas”, mas que mio & do _mesmo ferro que as duas espadas. Efeito de superficie, ni delineado de antemo na natu era humana, 0 conhecimento vem atuardiante dos instincos, acima deles, no meio dels; ele os comprime, traduz um certo estado de tensio ou de apariguamento entre os instintos. Mas rio se pode deduzit o conhecimento, de maneira analitca segundo uma espécie de derivacio natural. Néo se pode, de modo necessitio, deduzi-lo dos prépris instintos. O conheci- ‘mento, no fundo, ndo faz parte da naturees humana. Ea luca, ‘combate, o resultado do combate econsequentementeo risco «0 acaso que vio dar lgar ao conhecimento, O conhecimento rio € instintivo, & contra-instintivo, assim como ele nio é natural, € contra-natural. Esteoprimeiro sentido que pode ser dado ideia de que ‘oconhecimento éumainvengio eno temorigem. Masooutro sentido que pode ser dado a esta afirmagio seria 0 de que 0 conhecimento,além de no estar ligado 3 natureza humans, de rio derivar da natureza humana, nem mesmo é aparentado, por um dirito de origem, com o mundo a conhecer. Néo ha, ro fundo, segundo Nietzsche, nenhuma semelhanga, nenbu- ‘maafinidade préviaentre conheciment cesses coisas que seria, necessitio conhecer. Em termos mais rigorosamente kantia- nos, seria necesito dizer que as condicdes de experiencia eas ‘condigbes do objeto de experiéncia so totalmente heterogene- Bisa grande ruptura com © que havia sido tradigio da filosofa ocidental, quando aré mesmo Kant foi 0 primeiro a dizer expliciamente que as condigbes de experiéncia ¢ do ‘objeto de experigncia eram idénticas. Nietsche pensa 20 contritio, que entre conhecimento e mundo a conhecer hé v7 tanta diferenga quanto eneee conhecimento e narureza huma- na, Temos, encio, uma nacuteza humana, um mundo, e algo entre os dois quesechama oconhecimenro, niohavendo entee cles nenhuma afinidade, semelhanga ou mesmo elos de natu- ‘© conbecimento nio tem relagdes de afinidade com 0 mundo 2 conhecet, diz Nievsche frequentemente, Citar apenas um texto da Gata Ciéncia (parigrafo 109): “O eariver ddo mundo & 0 de um caos eterno: nio devide & auséncia de necessdade, mas devido Rauséncia de ordem, de encadeamen- to, de formas, debeleza ede sabedoria”. O mundo nao procura absolutamente imitar 0 homem, ele ignora coda lei Abstenhamo-nos de dizer que existem leis na natureza. £, contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem for mas, em beleza, sem sabesori, sem harmania, sem leis que © conhecimento tem de lure. Ecom ele que o conhecimento se relaciona, Néo ha nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer. a conhecer esse mundo nnatureza ser conhecida E assim como entre instinto ¢ conhecimento encontra- mos niéo uma continuidade, mas uma relagio de hua, de dominacio, de subservigncia, de compensagio etc, da mesma forma, entre o conhecimento e as cosas que o conhecimento «em a conhecer nao pode haver nenhuma relagio de continus- dade natural. Sé pode haver uma relacio de violencia, de ddaminagio, de poder ede fora de violagio. O conhecimento sé pode seruma volagio da coisasa conhecerenio percepsio, reconhecimento,identificagio delas ou com elas, arece-me haver, ness andlise de Niesche, uma dupla ruptura muito importante com tradi dafilosofiaocidental caja ligfo devemos conservar. A primeira €a ruptura entre 0 conhecimento ¢ as coisas. O que, efetivamente, na filosofia 6 oatural 8 18 cocidenal assegurava que a8 coisas 2 conhecer ¢ 0 proprio conhecimento estavam em relagio de continuidade? O que assegutavaao conhecimento o poder de conhecer bem ascoisas ddo mundo ede no ser indefinidamente erro, isto, arbiter cdade? O que garanta isto na filosofia ocidental,seno Deus? Deus, cenamente, desde Descartes, para nio ir mais am € ainds mesmo emn Kant, este principio que assegura haver uma harmonia entre o conhecimento ¢ as coisas a conhecer, Para demonstear que o conhecimento.era um conhecimento funda do, em verdade, nas coisas do mundo, Descartes precisou afirmar aexisténcia de Deus. Se ndo existe mais relagdo entre © conhecimento ¢ as coisas. conhecer, sa relagio entre o conheciment eas coisas conhecidas €arbitrria, de poder ede viokéncia, a existéncia de Deus nao é mais indispensével no centro do sistema de conhe- ‘imento, Na mesma passagem da Gaia Cincizem que evocaa auséncia de ordem, de encadeamento, de formas, de beleza do mundo, Nietzsche pergunta precisamente: “quando cessaremos de ser obscuecidos por todas esas sombrasdedeus, quando conseguitemosdedivinizarcom- pletamente a nacurena? ‘A ruptura da teoria do conhecimento com a veologia ‘comega de maneiraestritacom umaanilse comoade Nietzsche Em segundo luger, ditia que, se é verdade que entre 0

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