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Jorge Coli COMO ESTUDAR A ARTE BRASILEIRA DO SECULO KIX? Bitiogabia Apresentacdo AUTORITARISMO MODERNO E RENOVACAO CRITICA As questbes vinculadas aos estudos das artes brasilei- rase, dentro delas, mais especificamente, as do século passa- do, surgem num tecido histérico internacional, do qual, em -onsciéncia, primeiro lugar, é preciso ter Vivemo: , como todo o Ocidente, 0 triunfe da mode: nidade que se imps no correr dos Gltimos cem anos. no somente trouxe uma profunda modificagio nos produ tos artisticos, no papel des criadores ¢ na postura dos criti cos, Acarretou também a eliminagao de tudo aquilo que nao parecia estar dentro dos parametros que esses modernos s- tabeleciam, intransigentes em seus critérios, para impor algo semelhan- te: um autoritarismo eliminando tudo aquilo que parecia diverso dela propria. A historia das artes, tal como foi entio A histéria das artes, tal como foi enti concebida, promovia a exclusio dz alteridade. Num manual, Lionello Venturi ensinava como um Bouguereau estava fora odlernidade venceu os chamados “académicos”, 30 do campo das artes, se comparado com a verdadeira boa pintura, clevada, indiscutivelmente ‘artistica”, Num ontro scompéndio, Francastel demonstrava que mesmo Delacroix ‘ou Courbet eram imperfeitos porque insuficientemente“mo- dernos". Tornava-se, entio, impossivel amar casas artes con- denadas que, na maioria dos museus, ia, com vergonha, para as reservas, quando néo dessparecia fisicamente, aponto de, hoje, se ter perdido o rastro de muitas dels, Don um exemple pessoal destas tiranias das gostos eritérios: no final da década de 1960, apreadiamos, na uni- versidade, nos livros, a distinguir a “boa arte da “ruim” Morando nfo longe da Pinacoteca do Estado, em Sao Paulo, eu nao resistia em subi aquelas escadas, fascinado por um quadvo de Oscar Pereira da Silva, de Almeida Minior ou de Weingartner, dispostos ainda nas nostélgicas salas, de corti- nas pesadas, que'Tlio Mugnaini havia concebido. Ora, era impossivel entrar nesses recintos sem um profundo senti- mento de culpa, como diante de um prazer proibida. O ado- escente muito ingénuo encontrava entio uma escusa diante da tentagdo sedutora: ele estava ali para aprender o que “era pintura ruim”. © alibi, esté bem caro, no explicava 0 es- tranho deleite que aquelas telas magnificas provocayam Porém, a0 desdém com que, hd alpuns anos, os quadros ditos académicos cram ighorados, seguiu-se uma atengio ca- Finhosa cinteresiada, Varios extudorse sucedarsm nar ancede 1970 a 1980, até que Jacques Thuillier — significstivamente um historiador do século XVII, portanto livre dos preconcei: tos que os especialistas do campo especifice nutriam — publi- couums espécie de admirivel manifesto intitulado Pex a pailer jada aca. démica era disposta com agudeza e novidades, abrindo 0 cam- po efetivo para uma séria reflexio sobre 0 sssunto, June peinsize “pompicr’?,' onde aquestiio da arte cha Tal mudanca de posiedies ¢ fato consumada: o Musée d'Orsay, em Paris, surgiu como a brilhante afirmagao dessa revirayolta, ¢ 0 cuidadoso trabalho de restaurayio das sober bas hatalhas de Vitor Mefreles e Pedra América, realizado na ‘Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, hd alguns anos, se inscreveu naturalmente nesse empenho renovedo, PUR, 1984), ‘ud Fssas obras, nao perechidas © desprezadas duwante um longo periods de olvido, nose entregam, porém, tio f mente, Como os critérios formals e seletivos que educaram geragSes mostram-se suficientes para uma compreensio larga dos fenémenos artisticos e culturais do século XIX, & indispenadvel proceder a uma ampliagSo ne inteligénela do olhar contemporneo. Trata-se de um desafio e de uma liso: decifra-me ou tens tudo a perder. O conerrro #0 onan Importa nao atribuir &s pelavras mais poderes do que elas realmente poste, nem carregi-las de uma afetividade cexcessiva, sobretudo no que concerne aps conceitos classifi catérios. Eles seriam muito titeis se apenas agrupassem abje- tos por meio de algumas afinidades, mas tornam-se perigosos porque rapidamente tendem a exprimir umasuposta esstneia daquilo que recabrem ¢ substituir-se ao que nomeiam, como falsos semblantes escondendo os verdadeiros, Essa atitude no ¢ “ing&nt”, ou culturalmente desar- mada, Ao contrério, ela pressupde uma revisio no saber. Sao — caso se quaira ~ precaugSes metodoldgicas em um momento de mudangas de posigSes. Sejacomo for, diante de, qualquer obra, o olhar que interroga é sempre mais fe doqueo conceito que Vale mais, portanto, colocar de lado terrogar as obras, E evidentemente mais d “Vitor Meireles éromantico” ou “Pedro Amtrico é académi- co", projeto sobre eles conhecimentos, eritérios ¢ precon- nde esitos que dio seguranga ao meu espirito. Se me dirij diretamente &s telas, de modo henesto e euidadoso, percebo {que elas escapam continuamente Aquilo que cu supunha ser'a propria natureza delas ¢, 0 que é pior, fogem para regides ignotes, nfo submetidas ao controle do meu sober. Assim, a0 invés de discutir se Meircles ou América so ou nls so clissicos, s8o ou nie aio roménticos, 20 ow no sao pré modemos — 0 que me coloca em pardmetros seguros e con- fortaveis, mas profundamente limitados —, épreferivel tomar esses quadros como projetos complexos, com exigéncias es- pecificas muitas yezes inesperadas “Quem é maior: Gongalves Dias ou Castro Alves? Nunca soube responder & cbmoda pergunts. Mas entre Pedro Américo © Vitor Meireles nfo hesito.”? Manuel Ban- deira toma claro partido pelo pintor de Santa Catarina, num texto despretensioso, mas notavél pelaacuidade inteligente do olhar. & compreensfvel: o poeta possuiaafinidade frater- nacom tudo que forse contido, que expressarse uma sinceri dade intima, uma certa ingenuidade luminosa, sem grande habilidade aparente, ou asticias, ou efeitos. Bandeira gosta do fazer dificultoso que descobre nas telas de Meireles:*[...] © pincel resistin, mas © artista duvidaya, refletia, teimava, € 6 pincel acabava obedecendo damesma mani mitindo tela 0 calor da luta, Em quase todos os quadros do pintor se notao mesmo cuidado que ele punha nos pequeninos estudos de trajos’,? A crénica de Bandeira, tio solta ¢ sem pretenses, sobressai dentre os textos que foram: escrites sobre nossa prépria pintura, Porque, justamente, seu instrumento & oda observac: evitando as categorias, as classificagdes que, em Ultima anilise, sempre sio determinadas pelas escolhas do momento — estéticas, culturais, ideolégicas, Ao debrugar-se sobre as obras, 0 poeta oferece uma excelente ligio a9 historiador, Ele olla e interroga as ima- gens. Ble busca e percebe as caracter{sticas exsenciais. ‘As coisas mudaram tanto que, felizmente, a nio ser num meio muito desinformado e provincimo, a expressio * Manuel Bandein, “Pedio América « Victor Mekellet, em Fou de papal, Obras CComplatar (Rode rer: Agar, 19673, pp. S59 <= > bs “arte académics” deixou de ser empregads. Nao é mais util, pois surgiu, em verdade, com um sentido pejorative, fruto da luta teavada entre “modernos” e “tradicionsis”. Era, antes, um insulto, e como os objetos que denominaya deixaram de ser insultados, ela perdeu seus poderes. ‘Vale a pena voltar aos exemplos augeriitos por Bandelra, Fle partiu das dus enormes batalhas, Avaf © Guararapes, que ee encontram expartas na grande galeria do Museu N: nal de Belas Artes do Rio de Janeiro, Duas telas comparsveis pelas dimensdes pelo tema, mas absolutamente diversas do ponto de vista do estilo, da execugio, das escolhas artisticas, enfim, Provocaram, em 1879, no momento em que foram exposta: pela primeira vez, um profundo debate: o piblico 0s criticos as sentiam como nitidamente distintss, melhor, como excludentes, Porém, imensas ¢ opostas, elas eram co- locadas sob amesma rubrica pelo historiador moderno: “aca- démicas” claro, como jf fol dito, que se tratava de um insul- f {, refletirmos: que valor possui um to. Mat vinha disfargado em categoria snalitics © catéria, Basta, port conceito classificatério ou analitico que pde, sob o mesmo r6tulo, duas obras.tio absoluuta e completamente distintas? Qs modernos simplesmente no as viam. Eles ndo pousa- fronteira, uma muralha, Dagui para ci, moderno, Daqui para 1k, “académico”, B basta, para uma atitude que favia uma étima economia do olhar, da andlise suténtica e da reflexdo fecunda, O ottiaR pEscomre Afastando o vév das tiranias classificatérias, as telas se Fevelam ricas, sutis, fascinantes — 0 oposta do dever esco- Jar sem inspiragio ao qual a idéia de “académico” esti com freqiiéncia ligada, E em pinturas que se espraiam sobre tio enormes superficies, achados solugdes sedutores multipli- camsie, permitinde que © percuro do olhar se torne ume extraordinéria aventura, Tomemosum pequeno detalhe de batalha do Aval: no limite esquerdo da tela, portrés do oficial que, sabre na mio, empina seu eavalo, héum grupo de so dados envolvidos pela fumaga, baionetas ern riste, As que cate proximas so definidas por seu volume e pela sua cor cinza; atrds, clas sobressaem na fumarada, adquirindo um reflexo Iongilinco, de tom creme. Ainda mais longe, o que era palpavel desaparece e resta apenas o brilho, através de Jonge trage claro; do mais s6lido a0 mais imaterial, o objeto persiste como visualidade A atengao & bastante para observagses deste género. Mas cla nao é suficiente se tentarmos aprofundar as inter relagéies culturais intrincadas que es acesso 305 quais perdemos porque as obras nio nos interes- savam mais. As razies delas se foram, esquecidas'durante 0 quadros possuern, longo periode de desafeigSo, PENSAR POR IMAGENS Assim, desaprendemos que 08 pressupostes culturais sobre 03 quais repousam as telas de Meircles ¢ Américo— ou de qualquer outro pintor da época— s3o tio constitutiyes da imagem quanto as cores ¢ as pinceladas. Um _dos pontos antes ¢ que a pintura do século pasado — ¢ nio ape- — mantinha um didiogo denso com a hi: is antiga ou mais recente. (Os pintores jovens se inspiravam, citavam os mes- tres que os precederatn, Mesme squeles que parecem rom. per de modo radical, como Manet, se no forem percebidos ‘aa perspectiva da historia das imagens, recorrente nas telas por eles criadas, perdem, em muito, seu sentide, Foi a par- tir do impressionimo que a idéia de originalidade se modi. ficoa, © que realizar uma grende obra ndo significou mais orquestrar umamultiplicidade de imagensharmoniosamente orgmnizadasnuma grande superficie, fazando apelo a um pas- cado visual que nelas se insere, atualizado. O publico de hoje, acostumado com a genislidade mais imediata, formalmente originalissimac com referéncias cul- tureis estritamente focadas numa subjetividade, como no caso de Monet, Van Gogh ou Piessio, nfo sabe que até Manct as dimensdes do quadro,eram algo de essencial — s6 numa tele vasta podia eclodir a grande obya. E certamente tam- bém ignora.as ambigées da “pintura de historia”, enero en- tao considerado como hierarquicamente superior aos outros yetrato, natureza morts, palsagem — porque os engloba codos, numa articulagio compleaa, imposta pelo principio de narragio, ¢ arduamente obtide. Assim, sinovacio ea especificidade do fazer no eram tides, naqueles tempos, como valeres to fundamentals como para o piblico de hoje. O que importava era dar conta de um programa ambieloso: menos contava a novidade indivi- dual do que a felicidade em vencer os escolhos inerentes a0 projeto, Nesse contexto, a citagao e a referncia ao pasado no so, de modo algum, pastichos originados pela falta de imaginago, mas um modo de mostrar como aquele cle- mento preexistente resuurge numa outra inter-relagio. Em Mocidade morta, Gonzaga Duque far uma critics “moderna” ao pintor Telésforo — muito moldado em Pedro Américo —, ¢ 0 quadio aque se refere slude ad beralho do Avai, E interessante transcrever alguns excertos aqui: [oa diga o senbor que originalidade ele desenvelves ¢ apresentox na tia abra, qual a escola que ele cheliai Tudo que vemos neswe quadio, tudo, sem exeogSo de wan pon 19, |A foi feite, ja foi produxide, & comporto de regrat tstias © cedigar. (..J Pedianies, no entanto, wina mancira nova de pintar, o modelado seguro, palpitinte, dos anes tres contemporinees, um anvaje de eor ou de pince, al es essa res asa eee sore reas sere pavdatinmente, fasciaade, ¢ mos cbrigase 9 nm emacierado ‘ aqui estd um ardstal[,..] 0 que exigianios dlese vencedor era a sun vitdris... Onde eth cli? Ele cerfou algnma coisa’... Modificans at Viahas dls orabeeeo acad2mizo?,.. Alaugot alguma perleicSona expressivismo fdas sae gw Descabriu processor de pintara que nos desstm efeitos novos?.. Fundos a sete nacional? [ [© grupo douinante] nZo passa de fagrante reproduc da Dowell de drovers, de Gérard oF demats grupos so cdpioe Magrantes das composigées de Horécia Vernet, deYvon, de Philipporcaus!* No que concerne as “cépias flagrantes", as obser es so injustas, ¢ as verdadeiras referéncias vio bem mals Jonge do que os quatro pintores citados, Interessa-nos, ago- ya, essa exigtncia de originalidade, de novidade: Gonzaga Dune, precocemente no que diz respeito as luzes brasilei- ras, se posta num excelente ponto de vista: o da pintura do futuro, aquela que vingard. Tem, portanto,a mesma posicio. mantida ao longo do século XX pelo gosto ¢ pela erftica esclarecidos. Mas ¢ ela, justamente, que oimpede de ver na, Butatha do Avai um quadro admirdvel, brilhantemente inse- rido num procedimento pictural caracter'stica do século XIX, procedimento que, em 1900, quando livro foi publicado, realmente se extinguia, dando lugar a uma nova arte, As grandes batalhas de Meireles ¢ Américo nio ao, entretanto, apenas res{ duos eaducosde umatradigao morta: nomomento em que foram feitas, correspondiam a correntes culturais ainda vigorosas, Infelizmente, a inteligéncia de Gonzaga Duque e sua cultura visual atualizada s80 qualidades que terminaram por se perder bastante. Com freqiiéncia repetem-se de modo mecinico, na critica ¢ na historiografia posterior, sem uma correta compreensfo do que ocorre, asatitudes que os deba- tes do passado faziam suscitar. Ainda hoje ~ mas, por sorte, Lids Gena Duque Guradn, Mrs mory (SB Paulo TH, 1973), ype 1782129, num nivel jornalistico nfo muito clevado—, retoma-se, por exemplo, avelha histéria de 0 grito do Ipiranga, do Museu ido uma cépia de A betalha de Friedland, de somier, do Metropolitan Museum de NovaYork, qua- se ref rem muito mais a um modo protot{pico de tratar a que: = pars oF quals, em todo caso, a nogao de cépia ou imitanio servil ¢ inteiramente descabid: Gonzaga Duque tem radio, do ponte de vista moder- no, em seu ataque violento ~ ele toma partido por uma cer- ta concepgio artistica nova, que vinha se afirmando. Durante tempo vivemos dentro dessa mesina polémica, mas, depois de a arte “académica” ter sido vencida, podemos nos interrogar sobre ela e nos surpreender com a riqueza das respostas, Basta colocar as questdes adequadas. E bobagem acusar uma bananeira de nao produzir mangas. Como vencer os escolhos de uma anilise que exige os préprios meios me ais la culeura na qual o’artista encon= trava-se banhado? Buscando alimentar-se dessa cultura, Por onde Meireles, Pedro Amético, Alexandrine ow Almeida Janior passaram em sua formagao? Que tipo de leitura po- diam ter? Que contatos intelectuais? Dentre os estudos bra- sileiros — som querer esgotar a lista ¢ citando apenas dois nomes muito elevados e muito caros—, Alexandre Euldlio ¢ Gilda de Mello ¢ Souza ofereceram alguns dos estudos mais exemplares para compreendermos 9 maneira como a arte do século XIX pode ser estudada com amplidao, pertinéncia = profundidade. Finatismo Atentar, porém, para um outro tipo de reeuperagio insidiosa que esta pintura pode sofrer é muito necessario: o de ser considerada como “precursora”, Podemos ter, por exem- plo, ums alta estima pele “moderismo”, ¢ julger baixos os eritérios estéticos do que chamamos “academisme”. A isto se associa uma conoapgio teleolégicn da histéria da arte, mito presente ainda, na qual se inse: dia de progresso Buscamos, entio, em Pedro Américo ou Vitor Meireles, para recuperé-los, os sinals do futuro, as solugies snanciadoras de uma pintura que vird, As obras encontram- c, dean modo, valorizadas partir de aritérios que thes so exteriores, aplicados de frente para trés, Esta é uma forma ainda mais traigoeira, pois nos faz, crer que estamos nos aproximando desses artistas, quando, em verdade, estamos percebendo e nosreferindo 2 elemen- tos projetados neles, isto &, nao aos critérios que presidiram A criagio de suas ol , Masa um construto, um fantasma, que os substitai. © antelixo gré, porexemplo, encerra arma. dilhas por veres definitivas. Porque raramente designe aps- nas uma anterioricade: ele faz'com que um conjunto de obras € de acontecimentos deixem de adquirir sentido em si pro- prios para definirem-se através do futuro, ele f que 03 critérios culturais presentes & criagio existi eoerénciaespecifica, numa complexidade ondleo pensamen- toe osensivel se misturaram de maneira singular, E legitimo buscar nas obras © nos momentos artisticos © seu pasado: os eriadores dos quais eles derivaram Ihes ser- vem de ratzes, E, a0 contrétio, engaioso construir para cles um fururo, adivinhar neles aquilo que no podiam prever, GERAL E PARTICULAR Hi outro ponto que se insere no elenco das atitudes mais fecundas para 0 estude de nose patriménio artistica do século XIX, Desde o inicio deste texto insistimos sobre a importéncia do olhar. Ele ¢ essencial para aarte de qualquer perlodo ede qualquer pats, em particular para o séeulo XTX, diante do qual os velhos preconceites ainda nfo desaparece- ram dé.tode.No caso do Brasil, entretanto, adquire um pa: pelainda mais pertinente e, no atual estado das coisas, eu diria mesmo, subversivo, Aqui, devo arricear uma generalizagio que me pare- ce, no entanto, importante. O saber brasileiro, n Snica predominantemente “intelectus}” amente ealtural, E 0 clando-se mengse menos ciéncias, menos e menos hhumanas. Mas esse formago, trazida em grande parte pela universidade modems, acreditava-se mais que rigorosa: ela se tomava por verdadeira Avene eaeet eset ea escey US a Kao com a cultura, vais pessoal, qi Atéhoje, no Brasil, fals-se, por exemaplo, numa criti- ca “tedrica” ¢ numa outra “impressionista” — divisSes que 56 se justificam pela separagio teita que evoguei acima, clima de preconceitos em relagSo & cultura valorizou a‘teo- via’; na verdade, a leitura de alguns poucos livros nos quais se scredita encontrar as chaves para a compreensio do mun- do.Tenho a impressio, por exemplo, que as teorias sobre as artes acalsaram Fleando, nos meios académicos, mais impor- tantes do que as prdprias obras. © trabalho longo, paciente, | por yezes desordenado, mas prazeroto, deer romances, ver quadros, ouvir misica, torna-se secundério em relaglo a es- quemas interpretativos, necessariamente muito pobres ciolégis ‘gbes entre os seres humanos c os objetos artisticos, Hi uina evidence scduyao em métodos aparentemen- te objetivas, em estatist em levantamentos numéricos. ‘Qu nas conviegdes do que imaginamos serem os determi- nismos de classe, ou de ideologias — “gosto burgués”, “erité- rics oficisis”, Eles oferecem uma agradavel impressio de segurangae de certeza, © hic est no fato de ela mente [alacioss, © impacto de uma obra, sua forga intern a capac dade de agir sobre outros criadores, que multiplicarao, de mancira muitas vezes indiveta ¢ nfo explicita, a forgs dos prototipos, éimpossivel de medir por nimeros ou pelas for- mas simplificadas daquilo que se imagina ser uma compre ensio ideolégica, Quando muito, alguns desses estudos “cientificamente” sociolégicos podem servir como apoio, secundério, para a compreensio das obras. No entanto, eles nao funcionam de maneira primordial para o que de mais importante a histéria das artes pode trazer © quehé de mais dificil é fazer a jungiio entre © par: ticular eo geral. Nossa histéria mental tem uma tradigao de ensaios com resultados falgurantes — basta pensar em Os ser~ tes ou em Casa grande ¢ senzala ~, mas que é pobre na busca sistematica € paciente do particular, Essas intuigdes, iluminadoras, nio podem sera regra. Urge um trabalho motédico, indutivo, que saiba organizar os detalhes para deles extrair, pouco a pouco, o geral, Isto viria enriquece: nds — como acontece nas culturas de grande tradigio analiti- ca—as percepges, controlaria os insights dos ensaios, intro- duziria um debate seguro. entre Atendéncia de muitos des nossos estudes scbrea arte —e particularmente os que s¢ referem ao século XIX ~ a da generalizagao, Nao é fdcil, 2 no ser em certas publica- ges universitérias brasileiras mais especificas (felizmente clas vém aumentando em mimero), encontrar um lagar onde publicar o resultado de pesquisa especifica sobre uma obra, sobre uma questio. Falando por experitncia pessoal: 08 con- vites para conferéncias, para artiges, para cursos solicitam, na esmagadora maioria, “visSes panordmicas", como se 0 geral no pudesse ser pensado partindo do particular, como se, por exemplo, o estudo de uma obra trouxesse uma visio estreita das coises. Ora, entender de verdade as artes & saber vé-las na ¢” sua complexidade concreta, Isto, parao stoulo XIX, surge como definitivamente essencial. Tentei mostrar como estamos num proceso internacional de revisao dese perfodo, carre- _gido de preconceitos, Para desenvolvermos os estudos que pusquem dar a esse universo artistico sua plena significagio, nio hi divvida, & preciso partir da obra. Resta um ponto a considerar © que deriva de nossa trajetria ideolégice. © século XIX inventou uma histéria brasileira. Bla ergueu-se dentro de um clima cultural nacio- nalista, que teve configuragSes diferentes, mes que perma- neceu até o sbculo XX, reforgade pelo Estado Novo, So mitologias que se pretendem, otttra vez, verdades. uulo XX sobre a cultura do perfedo que o antecedeu, seja ele “académico” ou “moderne”, atravessava, quase sempre, éculos nacionalistas. Trata-se de O olhar projetado pelo s uma espécie de curto-circuito, ja que muito de arte de séeu- lo XIX contribuiu para a formagio dessa mitalogia histGviea Por exemplo, 0s histiriadores publicam,em 1817, brasileir acarta de Caminha, Nesse momento, ela adquire existéncia —€s invenglo do verdadeiro, Viria legitimar, do ponto de vista da histéria, o romantismo indianista, Fsse romantis. mo, 2 skrio ou pela caricatura, pelo avecso ou pelo direito, projetar-se-ia como esséncia de uma brasilidade no nosso steulo, indo da moda marajoara—art déco a Mecund Se eu me volto para uma obra do século passado, di gemos, a Prinicira missa no Brasil, de Meireles, para me per- guntar se ela é “brasileira” ou no, eu estarei dentro desse campo nacionalista, seja qual for a resposta, Isto , eu esto interrogando a obra por mei de uma fies3o que « propria obra ajudon 2 forjar ‘© recuo diante das identidades, ou “vatzes”, iluséries que nossa histérie criou torna-se, desse modo, fundamental para acompreensio da arte desse perfado que nos interesss Porque, a0 invés dle sermos moidos pelos proprios mecanis- que cosa arte contribuiu para montor, mos interpretati podemos, ne contrario, nos perguntar quals sao esses meca- rnismos, quals as pegas que os compdem, de que modo agi- am er noss0 meio cultural, inventando tradigSes, fazendo palpitar um sentimento de péeria, escondendo por al as dife- rengas sociais ¢ humanas, tecendo os teiar de um imagindrio to lindo ¢ canfortivel, E mais érduo, mas muito melhor, sein divide, ao se deixar devorar pela aranke, r A invengéo, da descoberta ‘A descoberta do Brasil foi uma invengio do stculo XIX. Ela resultou das solicitagées feitas pelo romantismo nascente ¢ pelo projeto de construgio nacional que se com inavam ent. Como ato findador, instaurow uma conti nuidade necessdria, inscrita no yetor dos acontecimentos. (Os responsdveis essenciais encontravam-se, de-um lado, no trabalho dos historiadores, que fundamentava cientificamnente uma “verdade” desejada; e, de outro, na atividade dos artis tas, criadora de crengas que se encarnavara num corpo de conviegies coletivas, A ciéncia ca arte, dentro de um procesto intrincado, fabricavam “realidades” mitol6gicas que tiveram, e ainda tém, vida prolongada e persistente. © quadro de Vitor Meireles, retratando a primeira ‘missa no Brasil tal como foi descrita na carta de Pero Vaz de ‘Caminha, 6 um episédio muito expressive dentro desses pro- cesios. Fle fez, em grande parte, com que o Descobrimento tomasse corpo e se instalasse cle modo definitivo no interior de nossa cultura. Assim, rerela.se um excelente objeto de analise para a compreensio de procedimentos artisticos que dependem, em sua propria génese, das contribuigdes origi nadas no projeto mental mais genés .0, fa propria natureza de uma Histéria capar de engendrar o passado que se deseja, © na relagio cdmplice entre as duas disciplinas no sentido de

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