Você está na página 1de 10
Na Oficina do r Mancuso Um pouco acima de sua cabeca, lava no vidro da clarabdia. Sobre a estreita superficie das gelo Sias, © granizo ia se acumulando, formando linguas irregulares e longas; linguas esbranqui¢adas como a morte, engrossando sem- pre, deformando-se, até que um véu de gelo nado mais filtrava a ténue luminosidade da luz solar, separando em duas partes incon- Gilliaveis o mundo exterior e a Pequena oficina do Sr. Mancuso. Como se procurasse encontrar uma determinada ferramen- fa, 0 artesao movia assimetricamente as pontas dos dedos da mao esquerda, revolvendo uma caixa de buris, sem aparente sucesso Enquanto isso, o indicador e 0 polegar da mio direita sustenta- yam um rubi de talhe “briolette”, que chegara as suas maos na- quela manha, acompanhado de um croqui. Entre a exploracao do brilho, cor e formato da pedra e sua caixa de buris, os dedos € 0 espirito do velho artesao oscilavam, inconciliaveis. Por fim, 0 Sr. Mancuso depusera seus instrumentos, fechara a aixa, depondo igualmente o rubi em forma de gota sobre a mesa ito patecia agora ter se acalmado, e 0 artesio, segurando queixo como se buscasse imobilizar 0 maxilar, exa- 0 desenho que certo cliente Ihe entregara no dia anterior e construfa mentalmente especulacoes varias. Tais especulacdes eram decerto semelhantes aquelas que es- tivera formulando quando alternara ha Pouco sua atencao entre as ferramentas e a pedra; no entanto, pareciam ser neste momento MG Norte Re Grane do a chuva de pedra tambori 4H pl Ricardo Daunt 8 outra ordem de profundidade 2 grandeza, tal a concentracs de figura do velho sugeria; talvez representassem ny agdes do espirito, mas quer m tal que 2 baa Sais adiantado das indag: leria saber 20 certo? - ali ficara, estudando o dese r tesenho en De qualquer modo, ele comendado, a principio sem muito Animo, depois pai ss » como se fosse uma questo de ho te, torturantemente, come 1 le nr. AO cabo de algumas horas, c¢ ceitavel ¢ mediocre. yncluiu que a proposta de seu cliente era ir a ina enumerou os defeitos do d ese. Mentalmen ae ce’ + ewauecer ale 7 nho, depois, com pa de ¢ que Igum deles, redigiy apontamentos, produzindo um arrazoado que considerou con Iicido, embora drastico e radical vincente e Em seguida, e a de: sagradar seu comprador, fez um croqui que Ihe pareceu mais ad, quado a pedra, ao mesmo tempo valorizando-a como tal « intensificando sutilmer O cliente muito provavelmente sentir-se-ia ofendido com 0 evidente desprezo com que 0 Sr. Mancuso tratara seu esboco, tg davia o artesio preferia sempre ser honesto e franco, a trait su consciéncia, mesmo vindo a perder para sempre um comprador Leveza e equilibrio eram, no seu modo de pen. i M pensar, 0 objetivo m4 ximo aser alcancado pelo artesao, em qualquer circunstancia a despeito de qualquer pretexto. ‘ - Estava satisfeito com seu croqui. Essa satisfacao era percebi pela ligeira comisssura que se formava nos cantos da boca que i Poucas pessoas, dentre as raras que se aproximavam do mes tre, conseguiam reconhecer. Volveu, agora i ; com menos avidez, a caix: = Rh ‘a de ferramentas deixando seus inchados e escuros nas pontas, sobre as f famentas, como se pertencessem a cai a maint pen th 4 caixa, e nao a seu corpo & a oe gesto todo seu, impregnado de esti sabedoria, e que denotava a intens henna a € aO Mesmo temp ee ies ista mantinha com seu oficio. dedos, novamente, o rubi en peal : " sna jan fapidado em forma de gota. Sua 8° ae - eek emulassem com as doentias¢" ainda despencavam sob gtanizo, que naquele ome Sobre a vidraca, sairiam vitori sat ; vitoriosas, pe? speito de estar correndo sério risco de q nte a expressao artistica da futura joia Poses 9 | eeaposto que do rubi jorrava um vermelho sangiiineo e sen- sual, uma Secreta promessa de um mais além imperscrutavel; uma msolidada emogao ©o! ada em uma forma pura; enquanto das bagas de chuva, do granizo intimidante, emergiam somente a desespe- ranga, 0 descompasso e a platitude absoluta. Esta era talvez a grande e discreta vitria do artesio sobre a desarmonia da vida: que independentemente de sua sorte, no que se referia a vida social e afetiva; independentemente da precariedade de sua existéncia, podia habitar um mundo diverso, construido com vi- e perfeicao, plenamente dotado de significagio e ao mesmo mpo eterno. Tal sentimento, semelhante, decerto, ao que mui- colaborava em muito para que o Sr. Mancuso sobrevives- se ao cotidiano. Esse, nao obstante, lhe parecia cada vez mais insatisfatério, ‘sobretudo quando avaliava o retrospecto de seus uiltimos anos € se dava conta, dentre outras coisas, de que jamais havia amado Alice € de que a despeito de haver erguido ao redor de si algu- inexpugnaveis que lhe permitiam viver, nao se sabia Seu modo peculiar de buscar reduzir a esséncia de sua vida es do oficio nao lhe trouxera os doces frutos que espe- ido porque tinha consciéncia de que nao seria ecer indefinidamente trancafiado na oficina, ig- ‘ completo o que se passava do lado de fora. consciente de tais evidéncias, 0 Sr. Mancuso por as- nuava jogando com suas fantasias, como um me- em um quarto de brinquedos. Seria plausivel tura o que restaria a esse velho desiludido se mundo paralelo. Muito pouco, por certo, € essa questao intimeras vezes, para i de que nao poderia ja- poderia nem mesmo o, ainda que ooo Ricardo Daunt to a rabalhadas, cada uma de tualidade das gemas tral el pee delas uma ip dividualidade de ser tinico, um temperamentc Nconfundive un carater especifico em realce, uma vibracao sempre diversa 4 e sempre resguardado e -e Para © artesao, quase sempre resguardado em seu edificig de solitude, a pedra preciosa bem talhada instigava-o quase tal vez como a um jovem instigaria uma aventura amorosa Promig sora. O talhe “briolette”, por exemplo, era uma femea Liste insistente, que desfiava suas lamtirias ao ou ido do Parceirg in cauto. O Sr. Mancuso a escutava atentamente Sentia sey Puls, merencorio; ao trabalhar com a gema, sentia como « a eStivean vestindo. Ao toci-la, ds vezes consternado, ela Parecia grade cer-lhe as maos habeis. Sua teoria da particularidade das gemas agradava-o Despen dia horas elaborando correspondéncias entre o Mundo paral. lo, mineral, e sua sensibilidade de homem. Assim, por exemplo $e a gema trabalhada com o talhe “briolette” fosse POF ventur, tum rubi, como aquele que tinha sobre a banca, essa femea de Sastrada teria uma indole apaixonada e voltivel. Ao fabricar a jOia, teria que obedecer a indole e temperamento da Bema, casy Sontrario a harmonia ficaria seriamente comprometida Se, outro exemplo, a gema submetida ao talhe “briolette fosse um diamante, em vez de um tubi, tudo se Modificaria Mancuso estaria diante de uma mulher Provocadora, mas de. Sorientada e perigosa. Era Preciso realcar essa desorientacao ¢ essa periculosidade. Cada gema, uma gema; cada gema, uma atitude Unica. Se soubesse tratar das mulheres da vida real como tratava daquelas pedras lapidadas a sua frente, seria um gala, talvez um libertino, um conquistador, talyez apenas um homem cortés e amoroso. De qualquer modo, cada talhe no mineral produzia um age: gado tinico; seria impensavel cogitar em duas jOias iguais, por que cada pedra € tinica, e cada tipo de talhe a resposta a belezi Potencial daquela pedra especifica, B havia muitos tipos de t lhe, como havia muitos vestuarios a espera do corpo perfeito pa usa-los; sendo também certo que cada vestuario é adequado pa Fee eis ilittala thors dondid selera tld nanwera existem FY dras afeitas a luz da manha e outras que alcancam sua a aluz do meio-dia, ha gem S para 0 entardecer de ca n de lareiras de ped dos candelabros e outras para lareiras ra. “rosa”, mais outro €xemplo, lembrava-the os atribu: na mulher delicada, € certo Portadora de segredos 7 oe fragil e insegura, contudo sempre bela a luz trap", semelhante a uma teia, recordava uma como tal ardilosa, calculista, paciente e perver Seu coracdo o inverno de lareiras fumegantes; 0 , €m que a “mesa” da pedra (superficie maior, Por 24 facetas retangulares, sugeria uma fé te e doce; macia, de pele aveludada e perfumada; ’ mas ainda assim intelectualmente mediocre ita, a sorrir inebriada em pores-de-sol outonicos o talhe “esmeralda’, era mister que © artesio i uma joia que de alguma forma salientasse era mister também que a jdia planejada fos- iGo de luz a que estaria sujeita nos momen- Mais necessaria. Mas, antes de mais nada, era a gema em que o mineral, mao da natureza, e em, dessem origem a uma peca perfeita, © seu carater. ncusiana era extensa, parecendo a um e gemas, com quem ele travava relacoes co- : mpreensivel e gratuita, as vezes genial e abugice de velho. De qualquer modo, sua contada de raro em raro, compreendi- artesao dera-se ao trabalho de apre- seu “sistema”, que delineava uma elhor, pensava ele, por vezes dando a entender, como era seu habito, que uma fémea com- j 4 mentalmente refinada, empreendedora e persis- ee tesoura’ as uma variacao, mas i a modo que esse pro- ll 12 Ricardo Daunt traduzem fielmente, de acordo com o Sr. Manauso, uma nalidade feminina sinuosa ¢ cativante: manipuladora, me lista, sistematica, mas ciimplice; fria, mas aceradamente at feita para saldes aristocriticos, tetos com generosas absbadae onde pendem formidaveis lustres com centenas de lamp, ado, ® deixar-se penetrar por seu brilho e forma, o admirador Ora . Vibrarem dolorosamente as cordas de SeU Coracio, por ing. ny dio da agio integrada e dinamica das 24 facetas do leque de tas de estrela, distribuidas em torno do eixo da gema atta n € disposicao conhecidos pelo nome de Pavilhio —, or, a fart © a imradiacdo quase espiritual da Bema, emanados dag 33 f, tas da parte superior, acima da cintura (linha de Maior ampli de da gema trabalhada), reconfortam seu espirito, de forma ? 4 presenca dessa fémea causa simultaneamente Tepulsa e atracg, © prazer, convulsio e melancolia, * O Sr. Mancuso retira os olhos do rubi §ota avermelhada sobre a mesa de trabalh lente, com a simplicidade e a destreza que | Para deixar para tras Alice, a mulher cujo t Para que alimentasse seu desen, Por alguns instantes se enternece ao Sangue nas maos, no Pescoco, nas témpora: “briolette”, lar 0 & poe de lado ; he faltaram um dig emperamento tanto canto pela vida consumida pela doencae esto brilho, confessava ele n Procurou e conseguiu, sem grande di 8 vestigios que Alice deixara, Ois seu passado com Alice o que o atormenta- €m sua oficina o Sr. Mancuso, Poses 13 » que O Sr. Manauso estaria acometido de uma conta a vacuidade existencial. Talvez Jacob ando o coragao do lo trabalho, que o dando lugar a uma ) fato é que o enternecimento pel sO Hutrira por toda sua vida, estava ocante € inarredavel, que se apoderava dele e de seu do-o a inagao. cansara-se, e isto era um fato indiscutivel; ja lo de seu mundo real ha tempos, é certo, mas se n de manter a realidade do outro lado da porta, movia também contrafeito, como se tudo nao pas- que se sujeitara por defesa ou autopiedade mava mais sua atencdo 0 novo croqui que fize- ado com palavras e gestos o desenho que viara. Tudo parecia, efetivamente, maquinal e perar a antiga determinacao profissional. n desafio que ao mesmo tempo procura evi- nte sempre seduzido. Diz ele respeito a uma com os preceitos de Roselaar', e que che- \termédio de um antigo cliente, que gos- lo Sr. Mancuso a servico daquela peca obstinadamente da cadeira e vai até 0 co- | estojo de aco, no interior do qual se en- ento de comecar a trabalhar com ela? ao cliente, quando este Ihe entregou , para transforma-la em joia, que se missdo, mas que estava muito ocupado i ou um talhe conhecido pelo seu ee a : pa a “multifacetado”. Roselaar, tabathand ea da gema, antes fosca e sem expressao, fez surgir ( oui aan que, acrescidas as 57, j4 existentes, ae peie ridade, sob 0 ponto de vista 14 Ricardo Daunt © cansado; que talvez dela pudesse se ocupar apenas dentro dae algumas semanas, talvez meses. : O diente respondeu que esperaria ¢ 0 artesio no teve ou. tra altemnativa sendo aceitar o trabalho. Dias depois, em compa. nhia de Jacob, e apés alguns calices de vinho, nao se con demonstrou todo o seu entusiasmo. A magia daquela pedra ele enfaticamente em certo instante, podia ser sentid. do dia e da noite, em qualquer estacio do quer latitude do globo. At6nito, Jacob nada respondera; apen: leve e » disse 4a qualquer ano, em qual as testemunhara, Pela a em sey ira € Unica vez, uma verve até entio insuspeitad amigo Mancuso. Agora, ali estava a gema multifacetada No centro d. : " a b: Sobre uma camurca. Ao tocar ap ae ele do mineral, ¢ 0 fe cutrvar aos designios de ninguém. extinta de todo, a tinica lu- a Pedra era aquela que se projetava de mesa do attesao. Quando o vento Ma, Como agora acon- ©, por habito, aprovei- Poses 1S SE hecinie, 3 ) a lente ea luz Assim, ao tocar aquela pedra 1 a) Pedra e talhe: ra; AO VET OS raios de luz xplodirem sobre | jogo Sempre renovado de cores, M se, Seu infimo coracio b alhad, s de rara Sua superficie em ancuso sentia como se ela Apressadamente, buse ao ritmo do dele; era ainda talvez como se | desenhados a partir de dtomos mine $ amenas, Mas sem sonorid, s planos e vontades; palavr, ritos. De seu nticleo de forca e energi © examinava, sim. Seu olhar atendo ando bios ar Tais, saboreassem pa- ade; mensagens Secretas, com ‘aS feitas de luz, expressando ar- ‘a, a gema também a seu profundo e hipndtico talvez as formas do artesio, dirigindo sua curiosidade mine- © primeiro plano, em que a lente de aumento, encravada e ocular da face dele, como a culatra de uma arma, a pedra uma espécie de via de acesso para o mundo anico do homem que a tinha agora entre os dedos. estudasse as rotas de suas veias, as células de seu do mundo exterior e mais aquela lampada de 0 teto, 0 que permitiria também 4 pedra extrair as cicatrizes antigas de seu coracao. E se consi- ‘Satisfatorio, se o homem mostrasse qualidades r valeria a pena; ela o escolheria, vestindo-o de- latina, como ele projetara fazer com aquele o, um bater grave e cavo, que fazia estre- o, Prazer e dor entrelacados em um oe ' ‘a parecia indiferente ao que acabara ie - coracao do Sr. Mancuso. Tal io © quis nem mesmo quando ele ue ficaria a qualquer custo com ela, que The daria tudo o que dese- assado, a gema sentenclara sela oportunidade. Entao, Ricardo Daunt », sobre a purissima epiderme da pedra, a lente do p manchas escuras, quase negras; sinal de uma era dele e era dela.

Você também pode gostar