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1 DA DOGMATIZACAO A DESDOGMATIZACAO DA CIENCIA MODERNA Os mortais devem ter pensamentos mortais ¢ ndo pensamentos imortais EPICARMO A epistemologia, diz, Piaget (1967: 7), tende a ganhar importan- cia nas épocas de crise da ciéncia, Esta asseredo tem 0 seu qué de paradoxal se nos lembrarmos que a reflexio epistemol6gica moderna temas suas origens na filosofia do século XVII c atinge um dos seus pontos altos em finais do século XIX, ou seja, no periodo que acom- panha a emergencia ea consolidacdo da sociedade industrial eassiste ao desenvolvimento espectacular da ciéncia ¢ da téenica. A cons- cigncia epistemolégica foi durante esse longo perfodo uma cons- ciéncia arrogante eo seu primeiro acto imperialista foi, precisamente, 0 de apear a prima philosophia do lugar central que esta ocupara desde Aristételes na filosofia ocidental, substituindo-a pela filosofia da .. Durante muito tempo, pois, a reflexao epistemolégica parece ter sido menos 0 reflexo da crise do que a tentativa de a negar ou, quando muito, de a superar a favor do statu quo cientifico. A esta luz, a relacio entre reflexio epistemoldgica ¢ crise da cigncia é mais complexa do que aafirmagao de Piaget pode fazer crer. Julgo ser necessério distinguir entre dois tipos de crise: as crises de crescimento e as crises de degenerescéncia. As crises de crescimento, para usar uma expressio de Kuhn (1970: 182), tém lugar ao nivel da 0 ‘matriz disciplinar de um dado ramo da ciéneia, isto €, revelam-se na insatisfagao perante métodos ou conceitos bésicos até entdo usados sem qualquer contestagaona disciplina, insatisfagio que, aliés, decorre dacexisténcia, ainda que por vezes apenas pressentida, de alternativas viveis. Nos perfodos de crise deste tipo, a reflexio epistemolégica é a consciéncia teérica da pujanga da disciplina em mutaco e, porisso, & enviesada no sentido de afirmar e dramatizar a autonomia do conhecimento cientifico em relagao as demais formas e préticas do conhecimento. £aeste tipo de crises que se refere Piaget, e iio € por ‘acaso que ele diz. crise entre aspas. As crises de degenerescéncia sio crises do paradigma, crises que atravessam todas as disciplinas, ainda que de modo desigual, e que as atravessam a um nivel mais profundo, ‘Significam 0 por em causa a prépria forma de inteligibilidade do real {que um dado paradigma proporciona e niio apenas os instrumentos metodoldgicos e conceptuais que the dio acesso. Nestas crises, que sio de ocorréncia rara, a reflexiio epistemol6gica € a consciéncia te6rica da precaridade das construgdes assentes no paradigma em cetise e, por isso, tende a ser enviesada no sentido de considerar 0 conhecimento cientifico como uma pritica de saber entre outras, € no necessariamente a melhor. Nestes termos, a critica epistemol6- gica elaborada nos periodos de crise de degenerescéncia nao pode deixar de ser também uma critica da epistemologia elaborada nos periodos de crise de crescimento. ‘Ao contrério do que & primeira vista pode parecer, nao é fécil determinar se um dado periodo hist6rico é dominado por uma crise de crescimento ou por uma crise de degenerescéncia. Como no possivel definir com seguranca 0 ciclo vital de um determinado paradigma cientifico, to-pouco se sabe quantas crises de cresci- ‘mento siio necessérias para que ocorra uma crise de degenerescéncia. ‘Alias, 0 debate epistemolégico sobre esta questo tende a ser inde- cidivel nos seus préprios termos (ou seja, enquanto debate a ser decidido com base em razies epistemolégicas), pois, tal como sucede nas discussdes cientificas paradigméticas, as premissas de que resul- tam as varias posigdes so incomensurdveis (umas partem da ciéncia 18 que existe, outras da ciéncia que h4-de vir). A maneira funcionalista, isto é, explicando os fenémenos pelas suas consequéncias, pode aventar-se que a predominancia de um ou outro tipo de reflexao epistemol6gica pode ser 0 sinal da ocorréncia de um ou outro tipo de crise. Mas também aqui os critérios de predominancia podem ser relativamente incomensuraveis (0 problema da regressio ao infinito) ea decisio ter de ser igualmente exteriorizada (por exemplo, com 0 recurso a argumentos da sociologia da ciéncia). sta discussfo sobre a natureza das crises da citncia tem toda a acuidade no perfodo que vivemos e cujo inicio, para este efeito, se situa no imediato pés-guerra. Estamos numa crise de crescimento ‘ou de degenerescéncia da ciéncia moderna? Como é sabido, as po: Ges dividem-se, para além de que alguns nio aceitam sequer a distingdo entre os dois tipos de crise e outros recusam mesmo falar de crise para caracterizar o tempo cientifico presente. Como se deixou antever nos pardgrafos anteriores, a haver uma decisio para esta questdo ela $6 pode residir num discurso argumentativo, num dis- curso racional t6pico-ret6rico. Noutros trabalhos invoquei argumen- tosepistemolégicos (Santos: 1987) e sociol6gicos (Santos: 1978) que me levam a concluir que nos encontramos numa fase de crise de degenerescéncia e que ela determina o tipo de reflexao epistemo- logica a ser privilegiado. A crise da ciéncia ¢, assim, também a crise da epistemologia. Ba partir desta opgao que se compreenderd a reflexfo sobre 0 conhecimento cientifico aqui proposta. Antes de a expor, porém, € «em face do uso frequente de expressdes como «reflexdo epistemol6- ica» ou «critica epistemol6gica», nao seré despropositado pergun- tar: 0 que é afinal a epistemologia? O respigar, sem qualquer critério, entre as respostas que tém sido dadas a esta pergunta pode ajudar a compreender 0 sentido da posigao aqui defendida. Segundo Runes, epistemologia é «o ramo da filosofia que investiga a origem, a estru- tura, os métodos e a validade do conhecimento> (1968: 94). No Voca- bulaire de Philosophie de Lalande define-se epistemologia como «<0 estudo critico dos principios, hipsteses e resultados de diversas, 19 ci€ncias» (1972: 293). Blanché mostra as dificuldades em distinguir a epistemologia da filosofia da ciéncia e da teoria do conhecimento, mas acaba por considerar a epistemologia como uma reflexéo de segundo grau sobre a ciéncia, uma metaciéncia que, embora sujeita io filos6fica; se integra cada vez, mais na ciéncia pela 5 da objectividade cientifica (1972: 119 e ss). ‘Segundo Piaget, a epistemologia é «o estudo da constituigao dos conhecimentos validos, em que o termo ‘constituigao” abrange tanto 1s condigées de acesso como as condigées propriamente constituti- ‘vas» (1967: 6), acrescentando a seguir, numa segunda aproximagio genética, que € «0 estudo da passagem dos estados de menos conheci- ‘mento para os estados de mais conhecimento» (1967: 7). Bachelard pretende fundar uma filosofia cientifica, uma epistemologia que, por assim dizer, é uma filosofia nao filoséfica, «a filosofia que a ciéncia nterece». A ciéncia cria, ela propria, a sua filosofia, uma filosofia que se aplica e que por isso no € especulativa (1971: 7). Para Richard Rorty, a epistemologia € a filosofia das representagdes privilegia- das (1980: 165), a teoria do conhecimento saturada pelo «desejo de encontrar “os fundamentos” a que nos possamos agarrar, quadros de referéncia para além dos quais no podemos ir, objectos que se impdem por si, representagbes que néo podem ser negadas» (1980: 315) ©, Entre nés Sedas Nunes reconheceu que «o problema dos fundamentos, origem, natureza, valor ¢ limites do conhecimento tem sido tradicionalmente incluido na filosofia», mas acha que € possivel tratar esse problema sem entrar em especulagdes filoséfi- cas «mediante uma tomada de consciéncia ¢ reflex acerca do que écaracteristico do trabalho cientifico e que precisamente se revela nas pr6prias produgdes intelectuais resultantes desse trabalho» (1973: 7). ‘Armando Castro distingue a epistemologia da filosofia da ciéncia. (1) Noutro passo, diz Rorty no mesmo tom: «Este projectode saber mais acerca doquen6s conhecemos edomode como podemosconhtecer methor através doestudo “decom funcionaanossa mente veioa ser baptizado com onomede epistemologia'» (1980: 137), 20 Enquanto esta «diz respeito ao conhecimento filos6fico (..) voltado para um objecto delimitado que € 0 sistema das ciéncias», a episte- motogia é uma «meta-ciéncia», aciéncia «que estuda os conhecimen- tos cientificos, formulando as leis da produgao e transformagao dos conceitos de cada disciplina» (1975: 41; 1976: 42). Para Ferreira de Almeida e Madureira Pinto, a epistemologia «tem por objecto as condigdes ¢ os critérios de cientificidade dos discursos cientificos» (1976: 18), uma diseiplina que nao funda doexterioro sabercientifico © que, por isso, € parcialmente parasitéria, «uma vez que a sua intervengao se verifica sempre apés se ter alimentado dos quadros conceptuais, disciplinares» (1976: 22). Te Femandes, depois de negar a possibilidade de uma «ciéncia da ciéncia» e de considerar inttil a pretensdo de «querer definir em termos absolutos e definiti- ‘vos 0 que € a cientificidade> (1985: 157), atribui 3 epistemologia a tarefa de tomar consciente «a normatividade cientifica, produzida na prdpria prética da ciéncia» (1985: 146). Este reposit6rio de definigdes & revelador de que a epistemologia 6 uma disciplina, ou tema, ou perspectiva de reflexio cujo estatuto & duvidoso, quer em funeodo seu objecto, quer em fungodo seu lugar especifico nos saberes. No que respeita ao objecto, a discrepancia ¢ entre 0s que pretendem estudar na epistemologia a normatividade pura € 0s critérios formais da cientificidade e os que, ao invés, pretendem estudar nela a facticidade da pritica cientifica & luz das condigdes em que ela tem lugar. A titulo de ilustragao, Armando Castro defende a autonomia dos critérios epistemolégicos de cien- tificidade e, por isso, as condigdes sociais em que se produz o conhe- ccimento sio, em seu entender,

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