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odoTtN snduwe> pyar . Loc 8 TA 5} 440 | 0 novo esptrito do eapitatismo L BLTANS Ki EVE CHATELLO Essa vista-d’olhos sobre diferentes formas de incorporagao das reivin- dicagSes de ibertagdo no espitito do capitalismo, de acordo com as épocas, trazendo & tona alguns dos mecanismos por meio dos quais 0 capitalismo, enquanto oferece certa libertacéo, pode desenvolver novas formas de opresséo, dé pistas para a retomada da critica estética do ponto de vista da reivindicaggo de autonomia, pistas &s quais voltaremos na concluséo deste capitulo. Estas deveriam, sobretudo, levar a sério a vocasio do capitalismo para mercantilizar o desejo, especialmente-o de libertagao, e assim coopté- Jove enquadréIo. Por outro lado, uma reformulacao da critica estética de= ‘era levar em conta a interdependéncia entre as diferentes dimensdes da exigéncia de libertacéo, a fim de se armar melhor para esquivar-se &s arma- dilhas da cooptagdo que Ihe foram armadas até agora, Braminaremos agora uma segunda dimensio da critica estética que denuncia a inautenticidade* do mundo sob o regime do capital. 3. QUE AUTENTICIDADE? Para compreender os problemas enfrentados hoje em dia pela critica & inautenticidade e o modo como ela pode ser recolocada, precisamos fazer um retomo e lembrar a diregao para a qual ela se orientou, quando dominava 0 segundo espitito, ou seja, para uma critica & padronizagio e A massificag. ‘Ao contrétio " ig.n30 voltaremos as expresses ‘sua preocupacao com as boas maneiras, com “aquilo que se faz”, em detrimento da “verdade” dos sentimentos e da “sin- ceridade” nas relagbes. De fato, dferentemente do que se observa no caso da reivindicacao de libertagao, 0 capitalismo histérico nunca pretendeu res onder & critica & inautenticidade, que ele realmente s6 levou em conta com a formacéo daquilo que chamamos de “terceiro espitito”. Segue-se que as mudangas pertinentes nesse aspecto ocorrem no fim dos anos 60. Para essa ctica, a perda de aut a uniformizagao ou, digamos, ‘ou seres humanos. idade designa entdo essencialmente - objetos Ela deriva, primeiramente, da condenagio ao maquinismo ¢ a seu co- rolétio, a produgao em massa. O déficit em diferencas afeta prioritariamente 98 objetos, cuja proliferagdo enche o mundo: tecidos, mé 108, utlidades domésticas ete. Objetos técnicos ov prod uum deles possui uma existéncia distinta e é alvo de o pessoal Mas, sob outro aspecto, cada um deles & perfeitamente idéntico a todos os | outros da mesma série. No 56 ndo existe entre eles nenhuma diferenca, | como também cada um deles, para funcionar, exige ser usado exatamente do mesmo modo. | Cuja prética acaba sendo por isso massificada, seo dag recmemareni ds 9 dcen oy pecan SS GORBRISIRERRS) a qualidade de usuésios porinteméci do consumo, “tomo desenvolvimento do marketing e da publicdade no fim do periodo entre as guerras e principalmenteapés a Segunda Guerra Mundial 6b ea das dimensdes das pessoas que parece estar entre as mais sin- fe intas, ancora em sua interiordade massificacZo é, por sua vez, denunciada. Entre meu desejo por um objeto | qualquer e 0 desejo de outza pessoa por um objeto idéntico pertencente 9 || mesma série, jf no existe nenfiuma distinc pertinent falhas, ele pode imediatamente ser substitufdo, tal como na guer- ramodema, aguerra de massa, o soldado de infantaria que tomba é imedia~ tamente substitufdo por outro no posto de combate que ele ocupave’ (O mesmo ocorre nas esferas em que o liberalismo do Iluminismo en- xergara.a prépria sede da autonomia: aagdo politica eas tepresentagbcs que as pessoas adotaini Sobre si mesmias e sobre o mundo, stias ideias, suas ideo- logias. A tese de que os seres humanos se uniformizam e perdem a singu- laridade e as diferengas quando reunidos em multidao, tese que culmina, dos anos 30 aos 60, na ideia de que se assistria 20 advento de uma era das ‘massas e da massficasio de pensamento, constitul decerto uma das temti- ‘cas mais frequentes, a partir de horizontes bem diversos, desde o tiltimo tergo do século XIX até a década de 60 do século seguinte. Inicialmente as- sociada a critica aos regimes democraticof#) acusados de dar poder & mul- 0 nv espirito do capitalismo e as novas formas da critica 441 ~ _ Pode-se encontrar nos textos tardios dos membros (@@Bpinde vivos apés a guerra —_comoT. Adomo, M. Horkheimere O fato de inserir essa temética num contexto e numa linguagem de inspi- ragio mandsta, o que contribuird para favorecer sua adogao pelo movimento de maio de 68. “Esses autores pretendiem distinguir-se do uso do termo “autenticidade” feito por Heidegger, ao qual T. Adomo (1989) dedica um violento panfleto, © novo esprit do capitatiom eas nooas formas da etica “83 Jargao da autenticidade, publicado em alemao em 19642 Mas néo podemos rnos abster de pensar, a0 ler esse ataque, que ele & sobretudo inspirado pela preocupacio de afastar qualquer proximidade entre dois modos bastante guagem que tem ressonancias manistas, mas de um modo totalmente compativel com a temética heideggeriana da inautenticidade (ou pelo me- atingem’ todas as dimensdes da existéncid’% ‘mando as palavras e mesmo os nomes préprios em “r6 nipuléveis cuja efcdcia pode ser calculada’, destinados: x08 condicionados”, como no caso das “marcas tore, em S xdstem nas mesmas prateleires com romances policais ou agucarados assim reduzidos & pura fungao de divertimento (Mi sucesso, completamente inesperado, do Hlomem unid (publiado de inicio com tizager reduzida) nos meses qu acontecimentos de maio, antes de dar ensejo a varias edigbes para ted demande, marca o pice dessa critica & jnautenticidade, seguido, ot xépido decinio. Encontra-se em Marcuse a oposigio entre a conscién- cia lve, capaz de conhecer seus proprios desejos, e o homem da “cilizagSo industrial avangada”, “cretinizado” e “uniformizado” pela produgio em ‘massa e pelo “conforto”, homem que se tomo incapaz de ter acess0 4 ex- petiéncia imediata do mundo, etando inteiramente submetido a necessi- dades manipuladas por outros. our ler ee a “A By 2 a o iS cA z a a 5 5 3 b 2 Ee B STTOdOTTN sndurep cuat (O novo esptrito do capitalism (© novo esprit do captalismo e as novas formas da ertica ‘Mercantlizapio da diferenga como resposta do eapitlismo q ve presentes de maneira esponténea, citada ou, ao contrdto, ser resultado de selegio ou de formagio modo que fica sempre suspensa e frequentemente sern da verdadeira natureza da relagao (puramente “comer- sociada a sentimentos “reais”). Dentro de uma coletivi- dade de trabalho, chega a ser recoméndada hoje em dia a posse dessas “gualidades interacionais” que antes néo entravamn na definigio daquilo ue podia ser trocado pelo salério no cantexto do contrato portancia atribuida ao papel dé mediador, as relagdes p € confianga na realizago do luero num mundo conexionist vamente, o enfraquecimento da distingio entre vida privada e vida dos ne- | gécios tendem assim a introduzir ial relag6és que antes se “2 definiam precisamente como “desinteressadas”. = A oferta de bens e de relacGes humanas auténticas na forma de merca- 3 &b demanda de autenticidade & Propor bens mais diversifioudos, destinados a terem vida em mudangas mais répidas (pequena produglo em 5€- das opgbes oferecidas ao consumidor..), em i evidentemente, nessa nova idade de lutar contra a saturacio dos i dos consumidores pel 1e ainda impregnava a ido ao mesmo tempo 8 sociedade de consumo nas décadas seguintes a maio de 68. conforme tentaremos mostrar. Isto 1ga0 de bens e servigos auténtico se comparada a produgao em série de objetos padronizados. consumo de massa. de “fldes de autenticidade” -omo as telagbes de trabalho. G08 pes: soais costumam ter como contexto a proximidade e a presenga, de modo 446 0 nooo esprite do capitatismo corte pelomenos tates SEROTEC TD ou entao que o valor de uso, naquilo lar, € superior ao valor de troca naquilo que ele tem de genérico. A mercantilizagio do auténtico no regime do capital consiste na exploragio de seres, bens, valores e meios que, apesar de serem reconheci- dos como riquezas ou mesmo “tesouros” ~ segundo formulago de Hideya Kawakita® (1996) -, nem por isso deixavam de estar excluidos até entio da esfera do capital e da circulagao comercial. De fato, a cada momento, ape- ‘nas uma parte limitada dos seres ~ materiais ou imateriais, reais ou virtuais assim, enfrentar a ameaga de crise do consumo de massa nos anos 70. outro lado, para que a circulagio dos beris extrafdos da reserva de autenticidade dos bens nao comerciais possa dar lucro, esses bens pre- cisam fazer parte da esfera do controle e do célculo, ser objeto de transagi 0 caso das pessoas, de “contratos de objetivos”, sancb nos, paisagens, bares onde as pessoas se sintam bem, gost ras de ser e agir ete. Desenvolvida inicialmente no cam ‘marginal durante muito tempo) das empresas cult de discos, orquestras, galerias de arte... ~nas qu ico se baseia fundamentalmente na capacidade do empreendedor de pres- sentir, na relacdo pessoal, as possibilidades de um criador e de se antecipar 0s gostos e desejos de um piiblico, essa légica ganhou dimensées consi- deraveis, durante os itimos trinta anos, com a importancia crescente dos investimentos culturais e tecnol6gicos e com o desenvolvimento dos servi- novo espirito do capitalismo e as nooas formas da critica 447 608, especialmente do turismo, da hotelaria, dos restaurantes, da moda, do prét-d-porter, da decoracao de interiores e do design. B a légica dos “mana- gers”, cujas competéncias ultaneamente, competéncias de artista, organizador e homem de negécios. Procurando explorar files ainda néo identificados, esses “farejadores” nao podem basear-se em padrdes existen- stZo empresarial - precisam demonstrat nq proprio desejo deles, o que suf em gostos, interes ses e atividades com o publics potencial, cuja demanda preveer,.oume- (oF, provocam. “Uinta Segunda série de operagdes consiste em analisar o bem a fim de controlar sua circulagao e transformé-lo em fonte de lucro. De fato, com ex- cegio do caso-limite de objetos antigos ou de obras de arte que circulam em certo mercado sem perder sua singularidade substancial®, os seres, ob- jetos ou pessoas, para se inserirem no processo de acumulasao, precisa ppassar por um tratamento capaz de transformé-los em “reprodugdes", como i sm da arte para falar de litografias ou fotografias. ragos secundarios, que ejam caros demais para reproduzit), ou seja, de “codificagao”, também necessaria para avaliar financeiamente 0 custo da istia em conceber jé de saida um produto e em re- ntica num ntimero de exemplares que 0 merca- me pilita jo- fEntico, pois possibilita conservar algo da singularidade que consti- sufa o valor do original. Vejamos o exemplo do barzinho montado de qual- jeito, na base da intuigao, no fato, que funciona. Que funciona muito ‘bem. std sempre cheio. Vem a tentacéo.de amplié-lo. casa ao lado, mas nao vai levar muito longe. Para ampli duzi-lo em outro lugar. Em outro bairro, em outra cid PCO, eed IFRJ Campus Nilopolis STTOOTIN Sndurey Putt 448 O novo esprito do capitalismo porté-lo, Mas nio se sabe o que deve ser transportado, pois nio se sabe o que é respi lo seu sucesso. As mesas desemparelhadas? Os pra- tos caseiros? O servigo familiar? O piblico simpético que o frequenta? Os pregos médicos (mas outros consumidores, em outro lugar, talvez estives- sem dispostos a gastar mais)? Para saber, € preciso analisar o bar, ver 0 que Ihe dé o caréter realmente autEntico que constitui todo o seu valor, esco- Iher algumas de suas qualidades, as mais importantes ou as mais transpor- taveis (0 piblico, por exemplo, é dificilmente transportavel) e ignorar ou- ‘ras, julgadas secundérias. Esse é um processo de codificasao. A endogeneizacio da demanda de autenticidade por parte do capita- lismo através da mercantilizacdo, cujo cardter altamente contradit6rio aca- bbamos de ver, teve como efeito a introducao de ciclos rdpidos de entusiasmo « decepeao na relagao com os bens e com as pessoas (modelizados sob out- ‘ros aspectos por A. Hirschman, 1983). O desejo de autenticidade recai Prioritariamente sobre bens considerados originais, ou seja, sobre bens que supostamente tenham ficado fora da esfera comercial e cujo acesso exigia um sacrificio no redutivel ao gasto monetério (de tempo, esforso fisico continuo, investimento pessoal no estabelecimento de uma relagdo de con- fianca etc.). A mercantilizacdo de bens buscados fora da esfera comercial teve como resultado tomé-los muito mais facilmente acessiveis em termos monetérios e para aqueles que tivessem meios apreciado como auténtico ndo decorre apenas de sua capacidade de reali- 2ax coretamente ¢ pelo menor custo as fungoesexpectcas as le se lest ‘Propriedade que, como viu N. Heinich no caso da obra de arte, o aproxima da pessoa. De fato,no caso do bem auténtico, 0 prazer no depen de apenas do uso que dele se faz, mas também do desvendamento de sig- nificados e de qualic a /A partir dai, depois de reconhecidos ‘introduzidos por intermédio da codifica- 0s significados intencione 0, 0 bem tende a deixar de despertar interesse e a desencantar, mesmo ( que seu uso continue desempenhando corretamente determinada fungio. Fode-se ver um exemplo tipico desse fendmeno na passagem do turismo de massa para o chamado turismo “de aventura”, que exige a renovacdo O novo esptrit do eapitalismo e as novas formas da critica 449 permanente dos locais de destinagdo, uma vez que 0s locais, & medida que se tomam turisticos, perdem a autenticidade (cujo sinal era exatamente au- séncia de turistas), que Ihes dava todo o valor. Os bens comerciais chama~ dos de “naturais” ou “auténticos” apresentam caréter paradoxal porque, 20 mesmo tempo que cizculam de maneira estritamente comercial, para ga- harem destaque e justificarem seu prego (muitas vezes até em circuitos de grande distribuigao), precisam apresentar-se com aspectos que fagam refe- rencia a um estado anterior das relagGes comerciais, em que o comprador estava diretamente diante de um artesdo, que era ao mesmo tempo fabrican- te e comerciante, numa praca de mercado. Esses objetos so um suporte pri- vilegiado da suspeita, pois é dificil saber se eles se distinguem dos produtos padronizados unicamente na apresentasao (acondicionamento) e nos argu- | mentos de venda (publicidade), ou se também se distinguem deles por pro- priedades substanciais que derivariam de modos diferentes de fabricacao”. ‘A possibilidade de mercantiizar diferengas d4, assim, infcio a uma nova era da suspeita. Pois, embora fosse relativamente fécil fazer a distingao en- tre um objeto artesanal e um produto fabricado em massa, entre um traba~ Ihador “massificado” e um artista “livre”, como saber se uma coisa, um acontecimento ou um sentimento é manifestagéo da espontaneidade da vida ou resultado de um proceso premeditado que tenha em vista trans- formar um bem “auténtico” em mercadoria? Do mesmo modo, como s2~ ber se um autor é um “auténtico” revoltado ou um produto “editorial”; se ‘um sorriso, um gesto de amizade ou um comwvite para jantar é expressao de ‘uma simpatia esponténea t sincera ou produto de um aprendizado, de um estégio de treinamento, por exemplo, destinado a tomar um servigo mais atraente ou - 0 que é pior — de uma estratégia que tenha em vista despertar confianga ou seduzir com o fim de atingir com mais seguranca um objeti- vo puramente comercial? Tal como ocorreu com a questio da justica ou da libertacio, é posstvel evidenciar uma alga de cooptagao no que se refere & autenticidade. {timo caso, assistimos num primeiro momento & critica aos bens e as re- ages humanas padronizadas, convencionais e impessoais. Os dispositivos do capitalismo sao corrigidos para responder as crticas por meio da instau- ragdo de uma mercadizacio da diferenca e pela oferta de novos bens, cujo ncia da esfera comercial smo cooptou a demanda dessa demanda. valor reside precisamente em sua primitiva Pode-se dizer aqui que em certo sentido 0 caf de autenticidade no sentido de ter extrafdo I ‘Em contrapartida, essa forma de cooptacao distingue-se na forma uti- lizada nas questées da justiga e da libertacao. Nestes dois exemplos, o mo- ‘mento da cooptado nao se caracterizava pela satisfagao da reivindicasao 450 O novo espirito do capitalism cxtica, como ocorre no caso presente, e sim pelo fato de retomar de outro modo aquilo que acabava de ser concedido. ferentemente daquilo que @ libertagao, ndo se pode dizer que 0 processo de acumulacao, neste caso, esteja livre dos entraves que pesavam sobre ele. Quando é retomado, por outro meio, aquilo que fora concedido algum tempo antes em termos de autonomia ou de controle das provas, o processo de acumulasdo recupera liberdade e capacidade de controlar os “recursos humanos” que ele enga- ja. No entanto, depara com limites a seu desenvolvimento quando malo- gra em oferecer bens realmente “auténticos” (coisa de que ele é necessa- riamente incapaz, uma vez que a qualificagao de auténtico remete 20 ndo calculado, nao intencional, néo mercantilizado).. ‘Suspeita sobre os objetas: 0 exemplo dos produtos ecoldgicos Um bom exemplo do modo como a cooptagéo da demanda de auten- ticidade pelo capitalismo provoca ciclos répidos de entusiasmo e decepgao encontra-se no caso dos produtos ecol6gicos. Esse exemplo mostra como 0 desejo dos consumidores pelos chamados produtos “naturais”, conside- rados menos poluentes ou menos nocivos para a saide, pode ser frustrado quando a resposta do capitalismo a tal demanda passa pelo marketing ¢ se apoia Ti ” lidas, valoriza a natureza como espago do auténtico, ou ‘mais gerais e seja: por um lado, espaco do “original” que deve ser preservado como tal eesté sempre mais ou menos ameacado de ser “desnaturado” por cépias avalia- das de acordo com sua fidelidade ao modelo; por outro lado, reservat6rio de diferencas estéticas (paisagem) e orgdnicas (diversidade biol6gica) cuja proliferagdo é uma riqueza em si mestna. Desse ponto de vista, os produ- tos industriais podem ser questionados por sua contribuisio para a degra dagio do meio ambiente. O novo esprito do capitalism e as novas formas da ortca O desenvolvimento do consumismo verde no fim da década de 80 (a “revolugio verde”, de que falam os especialistas em marketing) teve como resultado pér em risco certo ntimero de empresas, provocando grande que- da do consumo de produtos denunciados pelos movimentos ambientalis- tas como poluentes ou nocivos & satide (tais como as aguas sanitérias com fosfatos, os aeross6is com CFC, nos Estados Unidos, as batatas tratadas quimicamente, certas embalagens em pléstico). Inicialmente, as preocupa- s6es ambientais dos consumidores se manifestaram de um modo que Hirs- chman chama de defecgéo (em oposigao ao protesto). De 1988" a 1990, a parcela de consumidores verdes (individuos que declaram preferir um pro- to a outro por razdes ecol6gicas) passa na Inglaterra de 19% a 50% (Cairn- cross, 1993, p. 173). Quem primeiro tomou consciéncia do fenémeno foram os distribuido- res que transmitiram o desenvolvimento do consumismo verde para os produtores, dando preferéncia aos fornecedores que oferecessem produtos considerados menos poluentes. Os pr6prios produtores passaram a inte- ressar-se mais pelas técnicas utilizadas por seus terceiristas, o que contri- buiu para desenvolver as préticas de rastreamento e de normatizaco con- tratual. Para reagir 8 ameaca representada pelo consumismo verde, desen- volveram-se estudos, também ho fim da década de 80 e no inicio da de 90 (Gobretudo nos paises anglo-saxdes), destinados a conhecer melhor as ati- tudes dos consumidores nesse aspecto, bem como reflexdes destinadas a integrar & gesto empresarial a preocupacéo com a protegao ambiental (ge- renciamento ecol6gico). A partir de 1989, a fabricacio de novos produtos, ecologicamente menos teprovaveis, 08 produtos ecol6gicos, e o desenwvol- vimento de um marketing que enfatizava a protegéo do ambiente foram estimulados pelos estudos que mostravam que os consumidores verdes dispunham de um poder aquisitivo'e de um nivel de instrugéo acima da média, e que eles estavam dispostos a gastar 25% a mais em produtos me- nos poluentes ou; no caso dos alimentos, em produtos “organicos” (Ben- nahmias, Roche, 1992, pp. 118,-125). Depois das preocupagées do fim da década de 80, numerosas empresas descobriam com esperangas a virtuali- dade de um novo mercado para as classes mais abastadas* O marketing ecolégico desenvolveu-se em varias diregdes. A primeira diregao consistiu! em patrocinar campanhas para a protegdo do meio am- biente e em divulgé-las por meio de um emblema (mecenato ecol6gico). Mas era tentador também recorrer & publicidade ecolégica que enfat 0s esforgos feitos para tornar os produtos menos poluentes e nocivos, me- Thorar sua producio no sentido de maior respeito ao meio ambiente ou fa- cilitar sua eliminagao no fim do seu ciclo de vida. Os argumentos eram do 1 IFRJ Campus Nilopolis me) Paar TOdoTin sn SS SE “452 © nove espirito do capitalismo seguinte tipo: a produgdo da carne bovina utilizada por tal cadeia de res- ‘taurantes ndo incentivou o desflor peso cados os atuns enlatados nao pr 3°; tais pilhas nao uti- lizam meretirio; os caminhées de tal empresa trafegam com gasolina ser chumbo; uma outra empresa utiliza papel reciclado em suas embalagens (Caimeross, 1993, p. 178). Mas, rapidamente, os consumidores se tomaram cada vez mais céticos em relagdo a argumentos desse tipo. A reagao dos especialistas em marke- ting ecoldgico consistiu em tentar desmercantilizar suas campanhas, recor- tendo a especialistas externos, autoridades piblicas, comissdes pluralistas, associagdes de ambientalistas" ou institutos de etiquetager, solicitando auditorias ecol6gicas a escritérios que dispusessem de instrumentos para tanto (Vigneron, Burstein, 1993), a fim de “construir ctedibilidade” peran- te os “cdes de guarda ambientais” (Bennett, Frierman, George, 1993). Pa no s6 do uso de argumentos bem pouco que um produto promovido pela publicidade como menos poluente sob de 90, uma dlmimulglo da parca de compradores dispostos a deslocarce ‘ou pagar mais por produtos verdes (Cairncross, 1993, p. 182). Por exemplo, na Franga, a Monoprix, um dos primeiros grandes distribuidores que lanca- ram “produtos verdes” (em 1990), optando assim pelo marketing ecoldgico em vez do mecenato ambiental, foi tachada “de écolo-marketing” (Vigneron, Burstein, 1993). Ao mesmo tempo, movimentos ecol6gicos mais radicais (como 0s Amis de la Terre [Amigos da Terral) criticavam 0 consumismo ver~ de, considerando que, ao favorecer a mercantilizagéo de novos bens, ele contribuita para fortalecer o capitalismo no momento em que os mercados atingiam a satura¢ao, retardando assim a possibilidade do desaparecimento da sociedade de consumo (Yiannis; Lang, 1995, p. 165). Uma nova demanda de autenticidade: a ertica ao fabricado & qual podia ser oposta a autenticidade do singular como principio de re- novo espirito do capitalismo e as novas formas da critica orecebemos: é entio auténtico aquilo que foi feito sem segundas intengdes estratégicas, ou seja, sem outra intengao além da intengao de fazé-lo (em oposigdo a intengao de vendé-lo, como no exemplo dos produtos ecolégi- 0s), de fazé-lo (ou fazer-se) amar, de faz8-lo (ou fazer-se) admirar*. Do mesmo modo, no que se refere as relagdes entre pessoas, o fato de enfati- zarno mundo conexionista 6 lucro que pode ser extraido das conexes, seja qual for 0 modo como elas foram estabelecidas, tende a provocar uma ge- neralizacdo da suspeita em toro das intengdes que orientaram o estabele- cimento da relagdo. A qualificagio de inauténtico tende entao a vincular-se a todas as formas de agéo que despertem a suspeita de serem inspiradas por uma intengéo “de segundo nivel”, ou seja, por um objetivo estratégico ou “manipulador” Em vez de girar em tomo da problemética da massificagao, que domi- nara a primeira metade do século XX, fem oposigao 20 “Wivo, do sincero em Oposicao a0 estrategico e, consequentemente, da emo- fo verdadeira, que surgé de modo nao intencional, em oposigao & sua imi- tagéo simulada: to_do “espeticulo’. Essa tradigéo, que ~ como mostrara J. Barish (1981), em Sua monumental hist6ria dos “precon- ceitos” contza 0 teatro ~ caminha desde a antiguidade grega para culminar no século XVII (especialmente em Rousseau), hoje assume de novo gran- de amplitude. A arte do “simulacro” mostra-se como escandalosa toda vez que = conformné ocorreu no século XVIII ~a critica as instituigdes existentes transfere para as pessoas (por serem capazes de emogies e sentimentos) todo o peso da dimensio ética que, desvinculada do respeito a uma norma exterior, a uma moral imposta, revela-se como pura expressividade espon- tanea®. O teatro é entdo acusado de basear-se na capacidade dos atores de produzir sinais exteriores de emogio. De fato, 0 que se valoriza no teatro a diferenga ~ 0 que é peculiar de cada personagem, os sentimentos que s6 co rosto humano € capaz de expressar, com tiso ou légrimas, a singularidade dos gestos como manifestago de uma heris corpérea particular etc. Mas tudo ¢ simulado, premeditado; a realizagdo da diferenga est submetida a ‘uma finalidade exterior — 0 prazer do espectador; tudo € falso™. 454 O novo espirito do capitalismo ‘Assim, a mercadizacio de tudo, tal como a cooptacéo capitalista da di- ferenca para extrairlucro, também pode ser denunciada ~ por exemplo, em Debord ou, sob outro aspecto, em Baudrillard — como espetacularizagao de ‘tudo, como anulagéo de todo e qualquer eld vital 0 que, t20 logo esbocado, é imediatamente codificado para ganhar lugar na circulago co- mercial dos signos que entio substitui a experiéncia da verdadeira “vida” em contato. com o mundo. A suspeita de um simulacro generalizado, da mercantilizacdo de tudo (inclusive dos sentimentos aparentemente mais nobres e desinteressados) faz parte de nossa condigéo contempordnea, conforme ilustrou, por exemplo, no inicio da década de 90, 0 virulento ques- tionamento da acao humanitéria como espetéculo televisivo. cd Essa suspeita em toro da autenticidade das pessoas e das coisas pode © ‘mostrar-se hoje de maneira bastante explicita por terse dissociado da cr- ~f> inautentiidade no po lizada por outro conjt completamente oe 2 é next lata da década de 60. Alids/€i880 4, NEUTRALIZAGAO DA CRITICA A INAUTENTICIDADE E SEUS EFEITOS PERTURBADORES vgutes ‘anos que a critica & inautenticidade do mundo sob o regime do capital teve uma espécie de sucesso piblico, 0 que rovocou sua cooptacio pelo capitalismo. Mas, por outro lado, durante 0 ‘mesmo periodo e também a partir das posig6es associadas ao movimento de maio de 68, elaborou-se uma desconstrugio radical da exigéncia de autenti- O nove espirito do capitalismo e as novas formas da critica cidade, na forma como ela fora expressa na primeira metade para si mesmo de um sujeito “auténtico”; Weomo crenca ingénua nia existéncia de um “original” cujas representacées poderiam ser mais ou menos fiéis, portanto, mais ou menos auténticas no sentido em que Se opde verdade a mentira (a simulacto). Formilada inicialmenté em circulos telativamente restritos; essa criti- ca (da quial daremos adiante alguns’ exémplos) nos vinte nos seguintes terd ampla difusdo, 6 que nao deixa de tet telagdo Com a ascensto da figura da antiga nogao de autenticidade ~ como fideli- dade a si mesmo; tesistéticid de tin sujeito & pressio dos outros, exigencia de verdade no sentido de confotthidade a um ideal - esté de fato aliada & con- cepgio do mundo em rede: depois da tentativa de cooptagao pelo capitalismo da critica a padroniza- «40, que supe também a possibilidade de um juizo que baseasse suas ava- liagdes numa referencia a uma origem, (Ora esse é um dos argumentos principais desta obra -, a reestrutu- zacio do capitalismo associou-se & cooptagao da figura da rede, ainda que ‘a emergéncia desse paradigma seja resultado de uma hist6ria autonoma da filosofia e que, em nenhum momento, ele tenha sido direta e intencional- mente elaborado para fazer face aos problemas com os quais 0 capitalismo se confrontava a partir da década de 60. Pode-se entdo dizer, sem exagero nem paradoxo que, ao tentar coop- tar (mercantilizando, como se viu) a demanda de autenticidade que estava subjacente & critica & sociedade de consumo, o capitalismo também (sob ‘outro aspecto e de modo relativamente independente) incorporou, com metéfora da rede, a critica a essa exigéncia de autenticidade, cuja formula- so abrir caminho para'o desenvolvimento de paradigmas reticolares ou Aticos. IFRJ Campus Nilopolis StTOdoTIN sndwey fear § ——=— ee — | 456 Onovo espirito do capitaismo Essa dupla incorporagéo contraditéria tende ao mesmo tempo a reco- nhecer como valida a reivindicacao de autenticidade e a criar um mundo ‘no qual essa questo nao deveria mais ser colocada, o que, em grande par- te, constituiw o p. = como veremos — de tenses existenciais (indis- sodiavelmente psicolégicas e éticas) que pesam sobre as pessoas engajadas no processo de acumulago. Mas, embora essa situacao, pelas tenses que exerce, possa ser perturbadota para aqueles que nela esto mergulhados, cumpre reconhecer que ela possibilita ao capitalismo evitar o fracasso a0 qual ele p do em suas tent Mt | Sersimul “verdad dade estd ex mn | lacto, de que a “verdadeira” autenticidade estd exclufda do mun- ] do, ou que @ aspiragao ao “auténtico” nao passava de iluséo. Flas aceitarao com mais facilidade as satisfagdes propiciadas pelos bens oferecidos, apre- sentem-se eles ou ndo como “auténticos”, sem sonharem com um mundo \_ que nao fosse o do artificio e da mercadoria. Paralelamente & sua incomporacio ao.capit Segue-se que as tenses existenciais derivadas da contradigdo intema do capitalismo, quando este se gaba de ser mais “auténtico”, mesmo se re- conhecendo num paradigma para 0 qual a exigéncia de autenticidade é desprovida de sentido, séo acompanhadas pela falta dé salda posstvel por cament a inaw- es de examinarmos essas tensdes, precisamos rever com mais por- meniores o modo como a antiga exigéncia de autenticidade foi teoricamen- te desfeita, antes de ser desqualificada em suas manifestagdes cotidianas a onto de parecer anacrénica e até ridicula. Desqualificagto da busca de autentcidade Na segunda metade da década de 60 e na de 70, a tematica da auten- ‘cidade passa por um trabalho sistemético de desconstrusdo, por parte de 'e. Src ujeito res novo espirito do capitalism e as nooas formas da erftica autores cujo nome é frequentemente associado, com ou sem razo, 20 “pen samento 68°; esse trabalho decerto deve muito a resolugao de acabar com as diferentes formas de existencialismo (sobretudo 0 existencialismo cris- to, sem falar do personalismo) que haviam dominado a filosofia académi- ca dos anos 50. Essa critica radical 6 feita de pontos de vista que, mesmo partindo de orientagées filoséticas diferentes, tém em comum a vontade de i vel, a quem a alternativa entre autenticidade e le se apresentaria como uma escolha existencial, denunciada inautentici ‘como pura ilusdo ou como expresso do éthos burgués. Com mero intuito de ilustragao, daremos trés exemplos dessa critica, em P. Bourdieu, J. Der- rida e G. Deleuze. ‘De uma posicio semelhante a que chamamos de “critica social", P ‘mente: @ soctologia dos meios de comunicaceo, acusada de ignorar as di- fetentes interpretagdes que os membros das diferentes classes sociais fa- zem'de uma mesma mensagem da midia e os diferentes usos que lhe dio (Bourdieu, Passeron, 1963); 0 subjetivismo sartriano e o esquecimento das “condigSes sociais de acesso” a formas de vida “auténticas”™; a oposicao heideggeriana entre autenticidade e inautenticidade, entre fala auténtica e falat6rio cotidiano, por ele equiparada a uma ideologia, ou seja, neste caso exatamente, a uma expresso entre outras da averséo inspirada pelas mas- sas industriais aos profetas da “revolugio conservadora” dos anos 20-30 na Alemanha (e, assim, a uma antecipacéo do nazismo) (Bourdieu, 1975"); enfim, o “ponto de vista propriamente estético”, da “estética pura” e do “gosto natural” desvendados como expressao de uma “ideologia carismé- tca” destinada a dissimular “as condigdes ocultas do milagre da distribui- ‘Go desigual entre as classes da aptido ao encontro inspirado com a obra de arte” e a forecer aos privilegiados da cultura vantagens de distingao Gourdieu, 1979, pp. 29 ss). Assim, a relagdo do homem de bom gosto com a bra de arte, apresentada como “auténtica” no sentido de sublime — pre- sentificago inspirada de um olhar e de uma obra ~, nada mais é que a de- cifragio de um cédigo inculcado, mas que se ignora como tal”. O segundo exemplo, contemporéneo do primeiro, 6. Derrida. Este no recrimina diretamente a oposigao entre a existéncia auténtica do ser para si mesmo € a evasio na banalidade cotidiana do “impessoal”. Mas em Da sgramatologia, publicado em 1967, ao assumir a tarefa de desconstruir a opo- sigdo na qual, segundo ele, se baseia a metafisica ocidental em sua totali- dade, ou seja, a oposigao entre “voz” e “esata”, Derrida distancia e, de certo modo, relativiza a primazia ao mesmo tempo ontolégica e ética dada & “pre~ 487 458 O novo espirito do capitalismo senga” ¢, assim, & visio de presenga para si jonando o privilégio dado a voz, & palavza viva tomada como express i sm distancia nem in- termediério da verdade do ser, cuja presenca se assim naquilo que ela tem de auténtico — por oposigao & escrita|eomno presenca diferida e como operador da distancia, como suplemento io contingente que poe a verdade em risco—, J. Derrida desmonta que, desde Rous seat, constituira um dos mais poderosos mecanismos capazes de respaldar a exigéncia de autenticidade®. Por fim, 0 terceiro exemplo é aquilo que Deleuze desenvolveu em Di- ferenca e repetigao, publicad ficamente a a tempo que Da gramatologia. - ‘tal mundo, “todas as identidades so simuladas, produzidas ‘como um’efeito’ dptico, por um jogo mais profundo que € 0 jogo entre a di- ferenga e a repetigao”. Pois — acrescenta Deleuze ~ “nossa vida é tal que, encontrando-nos diante das repetigGes mais mecainicas, mais estereotipa~ das, fora de nés e em nés, no paramos de delas extrait pequenas diferen- «25, variantes ou modificacdes. Inversamente, repetigSes secretas, disfarca~ das e ocultas, animadas pelo deslocamento perpétuo de uma diferenca, restituem em nés e fora de nés repetigdes nuas, mecénicas, estereotipa- das”, O mundo modemo é 0 mundo'dos “simulacros”. Ora, nao préprio “do simulacro ser uma c6pia, e sim inverter todas as-c6j também os modelos” (p. 24). No mundo do “simulacro”, nhuma possibilidade de opor uma “c6pia”.a um “model voltada para a autenticidade, como identidade do ex téncia submetida por forcas externas & repetico mecénica; uma diferenca ontol6gica (que seria a do sujeito responsével) & sua perda no indiferencia- do. O “plano de imanéncia” 36 conhece diferenciais de forca cujos deslo- camentos produzem ao mesmo tempo (pequenas) diferencas, variagdes continuas - entre aS quais no existe nenhuma hierarquia = e formas “com- plexas” de repeticao": Os diferentes questionamentos da temética da autenticidade, cujas li- has mestras acabamos de lembrar, tiveram por efeito desobstruir 0 cami- nho aberto pela Escola de Frankfurt ou mesmo por Barthes em Mitologias®, que, partindo de uma critica manxista &s ideologias, levava a atribuir como tarefa principal da critica sociale, alids também, da critica literéria a decifra- so, 0 desvendamento das operagées de codificago que sustentam clan- destinamente (tal como as méquinas do teatro que operam nos bastidores) a pretensio de todo ser & presenca auténtica. Essa afirmasao da primazia s, invertendo absoluta do cédigo e o desvendamento da ilusio da presenga como tal po- dem muito bem servir de supozte & ertice & inautenticidade do mundo, ‘mas jé ndo possibilitam opor uma expresso auténtica a uma representa- sio iluséria -~ ‘Aliés, decerto por no conseguir se libertar dessa desconstruséo da no- | cdo de autenticidade, realizada na transigio da década de 60 para a de 70, nova critica & inautenticidade do mundo entregue ao império da merce- doria como simulacro generalizado naufraga facilmente na aporia que con- siste em denunciar com grande radicalismo a perda de qualquer realidade “auténtica”, 20 mesmo tempo que solapa a posicio normativa e mesmo cognitiva a parti da qual tal deniincia pode ser feita. Se tudo, sem exceséo, nada mais é que construto, cédigo, espetéculo ou simulacro,a partir de que posigdo de exterioridade o citico pode denunciar uma ilusdo que constitua lima unidade com a totalidade do existente? A antiga critica & padroniza- ao e A massificagio pelo menos tinha um ponto de apoio normativo no {deal do indivicuo auténtico, singular, que assumia sua responsabilidade e fa surdo 20 falatério do “diz-se”. 0 radical da nova critica, portanto, ameaga incessant posigao de enunciagdo, pois ndo se pode deixar de perguntar de onde a 6p- ca critica pode ser adotada, se tudo nao passa de simulacro e espeticulo; | doravante, se for abolida-toda e qualquer referéncia a um mundo exterior je por conseguinte, a uma definigdo classica da verdade (‘A ilusdo jé ndo | posstvel, pois 0 real jé nao é possivel”, Baudrillard, 1981, p. ma’ no qual estamos mergulhados, inteiramente “codificado”, “no passa | de gigantesco simulacro” que nao “se intercambia nunca mais com o real, ‘mas se intercambia em si mesino; num circuito ininterrupto cuja referéncia circunferéncia nio estio em parte alguma” (Baudrillard, 1981, p. 16), en- mntrando-se, por conseguinte, além ou aquém do verdadeito ¢ do falso. primero resultado da tensio entre a dupla incorporagao da critica & L a producdo de um efeito insidioso sobie a confianca q depasitar umas aS oulras. A inquietagio sobre as relagbes: entre a amizade ¢ os negécios Se é verdade que a incerteza que afeta a relacdo com os outros desem- penha papel importante ao lado de fatores mais facilmente observaveis, (O nove espirito do capitalism eas novas formas da critica 459 IFRJ Campus Nilopolis —SSS__ZZSTTOdOTIN snduey Cwar 460. O novo espiito do captalismo como a inseguransa econémica, na formagéo dos comportamentos tradi- cionalmente utilizados como indicadores de anomia, deve-se dar atenco especial & inquietagao engendrada num mundo conexionista pelo desapa- recimento da distingao entre relagdes desinteressadas (consideradas até ento como do dominio da vida afetiva pessoal) e relagdes profissionais que podiam ser situadas sob o signo do interesse. Oestabelecimento de conexdes; tal como & concebido no émbito da ci- dade por projetos, nfo pode ocorrer de acordo com procedimentos padro- nizados que atuem a distancia. £ s6 no contato frente a frente que a incer- teza radical da telagio pode ser reduzida e que as expectativas mituas po- dem ser descobertas, negociadas e coordenades. Nesse processo iritervém necessariamente fatores de aproximasao cuja descricéo é da alcada da lin- guagem das relagdes amistosas ou afetivas, tais como simpatia, descoberta de gostos, interesses ou éreas comuns, capazes de provocar o tipo de con- fianga frequentemente qualificada de “espontanea”. As modalidades se- gundo as quais se estabelecem esses elos e o papel neles desempenhado Pela simpatia estéo muito préximos do modo como se formam os elos de amizade, especialmente quando a conexao é distante, nova (inovadora) e nio finalizada; sua fungio, ainda completamente virtual, 6 pode revelar-se na dinémica da propria relagdo que, de algum modo, gera uma utilidade cujo teor ninguém conhecia exatamente antes que a conexio se estabele- cesse. Ora, se a busca do lucro continua como horizonte fundamental para «a formacdo dessas relacées, segue-se uma confuséo bastante perturbadora da distingao entre relacéo de amizade e relacdo de negécios, entre comu- nao desinteressada de interesses comuns e perseguicao de int fissionais ou econémicos. Como saber se um conwvite para jantar, apre- sentagio de um amigo querido, se a participagao numa discusséo é gratuita 0u interesseira, contingente ou planejada?® E como distinguir os momen- tos do dia ou do ano dedicados ao trabalho dos momentos de lazer, a vida privada da vida profissional? Uma nogéo como a de “atividade”, que esté no ceme da construgdo da-cidade por projetos, por acaso nao teré em vis- ‘a, precisamente, atenuar as fronteiras entre esses diferentes estados pes- soais, até entio nitidamente separados? Autilizagao estratégica de relacGes, apresentando certos tragos atribui- veis & amizade em outros contextos, tem o dom de criar perturbagées quan- do é possivel tirar vantagens financeiras das atividades de conexdo. Os lu- ros associados a elas, pouco visfveis quando o empresério tira vantagem de suas relagdes para desenvolver seus prOprios negécios, aparecem com clareza quando a mediagao é mercantilizada, ou seja, quando alguém rece- bbe um salétio, honorérios ou comissao por ter servido de intermediario en- | “ulna Semielhanca perturbadora com o delito de mereantilizar 2 pessoa O nove espirito do capitalismo e as nooas formas da critica tre pessoas que entram numa relagéo de negécio (por exemplo, por ter con- tribuido para a realizagao de um novo produto ao pér em contato, num jantar, um cientista inventivo e um empresario aberto a inovacio). Es atividades constituem um problema por poderem ser acusadas de tran: gRedir o interdito que pesa sobre a metcantilizacao dos seres humanos. ceber uma gratficacSo financeira por ter contribuido ‘Glando uma conexdo nova entre pessoas e grupos entre os quail Tao €xis- tia até entdo nenhum elo direto, ser or ido.com uma terceira pessoa que deseje esse contato sao coisas que espera um beneficio dessa aproximacao. Essa perturbagdo sobre a natureza das relagdes que podem ser manti- das com 0s outros num mundo conexionista provém de uma contradi¢ao essencial entre, por um lado, a exigéncia de adaptabilidade e mobilidade e, por outro, a exigéncia de autenticidade (que pressupde conectar-se pes- soalmente, inspurar € iG), contradigéo que permeia o novo mundo e se duplica na cidade por projetos. (Forum lado, esté a exigéncia de deslocar-se, adaptar-se 8s diversas situa- ‘ses para tirar partido de oportunidades de conexées que se apresentem. Do ponto de vista de um mundo “rizomético”, tornou-se perfeitamente obsoleta a autenticidade no sentido do velho existencialismo, o sentido do ijeito que resiste sozinho & massificago das mentes. Numa ontologia ba- seada na rede, a busca da existéncia auténtica por meio do afastamento da multidio, a solidao voluntéria e a introspeccao perdem todo valor e até todo sentido, pois as relagdes precedem os elementos entre os quais elas se instauram, e as propriedades substanciais das proprias pessoas dependem 4 das relagbes nas quais estas se encontram. Conhecendo apemias mediagdes, ignora a oposicéo entre seres qualificados pela difererigaague os de- naquilo que eles tém de mais profundo, de mais intimo is es- pedifco e, por outro lado, ignora também a indiferenciaco da m¥@8sa ou da série & qual eles deveriam se subtrair para ter acesso aquilo que eles real- mente sao. Em tal mundo, certo sentimento de liberdade ‘outro lado, estd a exigéncia de ser alguém seguro, alguém em quem se possa ter confianca. O questioriamento das instituicdes e da autoridade institucional (denunciada como burocratica), a critica as convengdes no sentido de “conveniéncias", &s relacdes “convencionadas”, &s prescrigSes e as regras que sustentam “a moral convencional” (denunciada como “formal” ‘mana: o intermediério intervém como se possuisse um direito de proprie- | “dade'sobre a pessoa daquele que ele pe em contato com um terceizo que | 461 462 0 novo esprito do capitalismo por oposicao & espontaneidade da “ética”) e, de modo mais geral, as con- vengGes nas quais se baseavam as ordens domésticas e as relagdes hierér- ‘quicas, tudo isso, impondo todo o peso da relagao sobre as pessoas, teve como efeito reativar uma referéncia “8 autenticidade” formulada em ter- mos de “sinceridade”, “empenho,” “confianca’’. Assim, para s6 citar os exem- plos mais evidentes, as relagdes de casal-passaram a ser consideradas dig. nas de serem vivenciadas somente se baseadas num “relacionamento in- tenso” comparével aquele que domingu no inicio da relasao; as relagbes de amizade, em “afinidades” espontaneas e, de modo totalmente paradoxal, as relacées familiares (apesar de serem’as mais estatutérias possiveis), em escolhas “eletivas” (Chalvon-Demersay, 1996). No mundo dos negécios, a ‘mesma desconvencionalizacao levou a salientar a importancia das relagdes no que elas podiam ter de “pessoal”, na necessidade de assenté-las na “confianga”, ou seja, na crenga interiorizada na sinceridade do elo estabe- lecido por um certo tempo, ao mesmo tempo que se apresentava 0 estabe- lecimento de conexdes sempre novas como exigéncia da obtencéo de lucro, ‘A antiga concepgao de autenticidade como “interioridade” assumida pe- rante a banalidade do mundo exterior manifesta assim sua remanéncia no proprio émago do novo mundo em rede, que no entanto fora construido de certo modo contra ela‘. Em tal mundo, no qual todo o peso das relagdes repousa na autentici- dade das pessoas, é muito perturbador ver essas relacdes utlizadas em es- ‘ratégias destinadas a gerar lucros em rede, conforme recomenda a nova gestdo empresarial. A nova gestio empresarial e as denincias de manipulagio A tensio entre a valorizacio da autenticidade nas relagies pessoais e a ‘exigncia de adaptabilidade e mobilidade esta no amago da nova gestdo em- presarial, quer porque os dois imperativos figuram nos preceitos apresenta- dos por um mesmo autor, sem que a contradigao seja explictamente assumi- da, quer—o que mais raro ~ porque o esforgo de redefinigdo das formas 6ti- mas de organizacio do trabalho seja otientado para a busca de dispositivos destinados a tediizir a oposigao entre esses diferentes tipos de prescricéo. Encontram-se exemplos do primeiro tipo nos escritos de Bob Aubrey que, numa espécie de apdlogo, relata a histéria de um “cliente” que se tornou “amigo” durante uma discussao qualificada de “franca” e “eficaz": “A par- ‘i do momento em que nossa relagdo se transformou em entendimento miituo, tive a impressio de que eu estava no Amago daquilo que ha de mais, O nove espirito do capitalism e as novas formas da critica verdadeiro e nobre nos negécios, a deciséo de’caminhar juntos’, depositar confianga e preocupar-se com o outro |... partir de entao [..] privilegio intuitivamente em minha tomada de deciséo a possibilidade de criar uma relagéo de acompanhamento com meu cliente” (Aubrey, 1990 ©). Mas 0 mesmo autor também é um dos defensores mais entusidsticos da exigen- cia de mobilidade, que ele designa com a expresso “autoempresa”. Do mesmo modo; R. Moss Kanter preconiza ao mesmo tempo “a empatia” ("a | conclusio de acordos satisfat6rios depende da empatia, ou seja, da capaci- dade de se pér no lugar de outrem e de apreciar seus objetivos") e a adoao de um “sistema fledvel de atribuicio de tarefas” com base em “projetos 20 mesmo tempo sucessivos e paralelos, de duragao e importancia variaveis, entre 0s quais circulargo equipes cuja importancia seré varidvel segundo as, tarefas, 08 desafios e as oportunidades” (Moss Kanter, 1992 ©). Por fim, como tiltimo exemplo, H. Landier enfatiza, com algumas paginas de dis- tancia, anecessidade de “adaptar-se rapidamente” e desenvolver “relagoes informais” numa “cooperacio livremente consentida e baseada na con- fianca” (Landier, 1991 ©). ‘A preocupacao em absorver essa tensio, em contrapartida, esté pre~ sente CoS. quando ela opde duas formas diferentes de comu- nicagdo as antigas formas hierdiquicas, por ela condenadas: na primeira, ideal (e inspirada, segundo ela, em J. Habermas e na “ética da discusséo”), na qual “a univerzalizacio dos interesses nao desce de cima, mas emerge da discussio livre ¢ honesta entre os interesses partculares num processo de construgdo progressiva"; a segunda, “perverse”, “com aspectos moder- nos”, consis em manipularos etores da empresa por meio de uma "co- propor modos de dens ou informagées” transmitidas de cima para baixo nem por incitagées pessoais ou mesmo afetivas que visem a obter de modo indireto e dissimu- lado 0 resultado desejado. As situagGes de trabalho nas empresas hoje so de fato bastante pas~ siveis de acusagdes de manipulagio. Realmente, se a gesto empresarial con- siste sempre em mandar alguém fazer alguma coisa, a manipulagdo ¢ a sus- peita de manipulagdo ocormem quando se toma dificil recorzer as formas dlassicas de comando, que.consistem em dar ordens, pressupdem 0 reco- IFRJ Campus Nilopolis i =sT Todor in snduey Paar (0 novo espirite do capitalismo nhecimento de uma subordinagdo e a legitimidade do poder hierarquico. (Ora, 0s ltimos vinte anos foram marcados sobretudo pelo enfraqueciimen- to das ordens convencionais e das telagdes hierérquicas (denunciadas como autoritérias), quer estas pertengam ao mundo industrial, quer ao mundo doméstico, e pela multiplicacao das reivindicacées referentes & autonomia, Em tal contexto, o comando hierarquico acaba sendo substituido, no maior niimero de casos possiveis, por préticas destinadas a levar as pessoas a fa- er por si mesmas e como que s0b 0 efeito de uma decisao voluntéria e aut6- roma aquilo que se quer que clas fagam. Assim, como vimos no capitulo I, 0s “executivos” dever transformar-se em “inspiradores”, em “coaches” ou em “Iideres”, cuja marca é formular “visées” entusiasmantes que fagam as pessoas agirem por si mesmas pois jé néo é legitimo coagi-las Foi, portanto, muito estimulado o desenvolvimento de técnicas aptas a treinar as pessoas para que elas fagam, aparentemente de modo volunté- ro, aquilo que se deseja que elas facam. Pensemos, por exemplo, no desen- volvimento das técnicas de comunicacao (intema e externa), na corrente do desenvolvimento organizacional (OD) que visa especialmente levar as pes- soas a “tomar consciéncia” da existéncia de “problemas” previamente iden- tificados pela direséo, para que depois seja mais facil introduzir uma mu- danga no modo de organizacao; também podemos lembrar a administragio participative, que se baseia na tomada de decis6es pelo superioz hierérquico com base em pareceres de seus colaboradores, o que leva estes tltimos a aderir depois & decisio. Ora, esses dispositivos, que assentam no consentimento e na adesio, 56 podem atingir seu objetivo se moldados segundo figuras tfpices de uma ‘gramética da autenticidade: a gramética das relacdes esponténeas e amisto- 2s, da confiange, do pedido de ajuda ou de conselho, da atengio 20 mal- estar ou ao softimento, da simpatia e até do amor. Aqueles que se encontram envolvidos nesses dispositivos n&o podem recusar-se categoricamente a patticipar dessas trocas (0 que os levaria diretamente ao esquecimento ou demissao) nem ignorar (nem mesmo nos momentos nos quais participa dessas trocas sem segundas intengGes ou até com prazer) que essas rela- ‘Ges mais “auténticas” estio associadas a técnicas de “mobilizasio” (como dizem Crozier e Sérieyx [19940], para se distinguirem bem das antigas for- mas “infantilizadoras” de “motivacao”, que jé ndo exercem “nenhum fas- cinio sobre pessoas altamente escolarizadas”). Mas também néo podem patticipar delas, pelo menos durante muito tempo, de modo cinico, do tipo faz-de-conta, sem risco para sua autoestima e para a confianga que tém no mundo, porque essas novas técnicas — uma vez. que se baseiam menos em procedimentos ou em dispositivos de objetos (como ocortia com a cadeia) O novo espirito do capitalismo e as nowas formas da critica do que em pessoas e no uso que essas pessoas fazem dos recursos que de- pendem de sua presenca fisica, de suas moses, de sua gesticulasdo, de sua vor etc. — esto incorporadas naqueles que as praticam, naqueles cujas qualidades inerentes, enquanto seres singulares, parasitam 0 uso estratégi- co que eles fazem de si mesmos e podem o tempo todo excedé-lo, sem que eles saibam, como quando se passa, sem solucao de continuidade, de uma emogéo inicialmente obrigatoria, que se acreditava fingida, para uma emo- so real que nos domina e submerge para além de todas as expectativas. Em tais situag6es, é preciso quase nada para nos deixarmos prender e nos concentrar no que a pessoa incumbida de mandar fazer, de convencer, de levara desejar oferece efetivamente de si mesma ou, a0 contrério, para nos afastarmos e nos desligarmos ao vermos em seus esforgos nada mais do que a aplicacdo cinica de técnicas de manipulagdo. [ _ Essas tenses entre o envolvimento nas relagdes interpretadas numa gramética de autenticidade e a dentincia de manobres manipuladoras sZ0 méximas quando (como ocorre hoje) pesa sobre as pessoas a forte exigén- cia de'siny I Tss0 vale para as profissoes (afialmente em ascensao) intelectuais e artisticas marcadas pela necessi- dade de granjear valor reputacional, mas também, cada vez mais, para todas as profiss6es marcadas pela precarizacéo nas quais esse valor é a condigdo para encontrar outro projeto, Nessas situagbes, o que importa é ser aquele ue fez, aguele que teve a ideia, e ser reconhecido; por isso, o Tato de ter |, soliido'a agao alheia forna-se insuportavel, pois aque estd entSo em jogo Spuia.capacidade de sobreviver num mund i | Bescobrir 0 jogo alheio em nosso proprio compor- | o a crenca na realidadé de nosso préprio eu. Com aumento da exigencia de singularidade, pode-se’prever o aumento dos comportamentos paranoicos em que as pessoas temerio o tempo todo es- tar sendo manipuladas, plagiadas ou cooptadas. As ordens que podem ser instauradas em referéncia & cidade por projetos em formasio estdo assim sempre fragilizadas pela possibilidade (tomando-se por base outros mun- dos —doméstico ou inspirado, por exemplo) de ser denunciadas como 0 re- sultado de manipulagées, ow seja, de um uso referéncia & autenti- cidade para Tevar alguéit Tazer, aparentemente por vontade propria, aquilo qe jf nao se pode impor de modo hierdrquico e, portant, como um ins- frumento para desenvolver a “servido voluntéria” Essa contradigdo entre a exigéncia de adaptacdo e a exigencia de “auten- ticidade” em conexdes realizadas se insinua no préprio coragio da pessoa, pois os seres humanos, cuja identidade é apresentada como dependente do ambiente, apesar de mudarem conforme os lugares pelos quais sao distri- 165 466 O novo esptrito do capitalismo buidos (em oposigéo & figura rejeitada do suit quecer ao longo dos novos contatos. Ser alguém e ser flexfoel do entre exigéncia de fleribilidade e necessidade de ser alguém, ossuir um eu dotado ao mesmo tempo de especifcidade (“per- Sonaldade’)e pamanénca no ‘tempo é fonte constante de inquietagéo num mundo conexionista, Constitui expresso tipica dessa tensdo o slogan que exprime 0 ideal de vida bem-sucedida,o fato de alguém se revelar, ou seja, mudar para vira ser e descobrir 0 que era potencialmente, deixando de ser o mesmo e desvendando sua conformidade com um eu original Para ajustar-se a ur mundo conexionista, é preciso mostrar-se suficien- temente maledvel para passar para universos diferentes mudando de proprie~ dades. A l6gica da locagao ou do empréstimo temporério das propriedades ‘materiais pode ser transportada para as propriedades pessoais, para os atx- butos da pessoa, ou seja, para as qualidades que, despojadas de seu cardter Ga par ale exigitae b acapectidade ou sciet dapat ide de tratar sua ‘propria pessoa como um texto que poderia ser traduzido para diferentes in- ‘guas, constitui uma exigéncia fundamental para circular nas redes garantindo a passagem através do heterogeneidade de um ser definido minimamente de vista desse novo modelo de exceléncia, a perm: ‘manéncia de si mesmo ou o apego duradouro a ncia, impolider, intolerancia, incapacidade para comunice ‘Mas, por outro lado, 0 sucesso do homem conexionista no d apenas de sua plasticidade. Isto porque, se ele se limitar a ajustar-se ‘tuagdes novas que se lhe apresentam, correré o risco de passar desper do ou ~0 que é pior — ser julgado sem grandeza e comparado aos pequi ‘os, 20s novos, aos ignorantes, aos “estagidrios”. Ora, para tir proveito dos ccontatos estabelecidos, ele precisa despertar o interesse e, para tanto, adqui- ir uma notabilidade que s6 pode lhe advir de sua exterioridade em relacao ‘ao mundo que ele aborda. O ideal de adaptabilidade entra ai em tenso com O novo espirito do capitalismo e as novas formas da erttica a outra exigéncia,transacional, da atividade em rede. Isto porque o redei- 10, para ligar-se aos outros (principalmente quando os outros pertencem a universos distantes do seu), precisa dar-Ihes algo. E quando possui em sua ‘pessoa, em sua personalidade, esse “algo” capaz de interessé-los e seduzi- sao e obter deles informacée: ele nada mais por que ligar-se a ele? O encontro entre exigéncia de adaptabilidade e exi- ‘géncia transacional pode provocar, portanto, tensdes insuperdveis. Essas tensbes peculiares ao mundo conexionista nao sao eliminadas pela cidade por projetos, na qual elas esto simplesmente duplicadas. grande dessa cidade deve ser polivalente e nao se fechar numa especialida- de ao dispor de uma competéncia especiica para oferecer, sem 0 itado por ninguémy poder ter acesso a recursos, mas o risco de nao ser para enga} Por fim, precisa inspirar onions, © que pressupie respeto aos compro- de compromisso € 0 projetos um dos principais problemas da nova gestao empresarial. A felici- dade prometida para o grande é a autorealizasio no sentido da descober- des que ele encerrava em si mesmo. A sucesso dos pro- 0 oportunidade de the revelar a cada etapa um pou- cia, da identidade mais profunda que o constitu e singulariza (mais ou menos como se considerava que a sucesso das van- guardas em arte tinha a misséo de ir revelando progressivamente a essén- a da arte). Mas essa busca de si mesmo passa por uma sucesséo de pro- ‘vas que pressupde ao mesmo tempo a vatiagio das identidades adotadas segundo os projetos e a manutengdo de uma personalidade permanente que possibilite a capitalizacZo das conquistas ao longo do deslocamento nas redes. Em tal mundo, é no minimo problemética a possiblidade de encontrar equilibrio entre a permanéncia de si mesmo, sempre ameasada de rigidez, IFRJ Campus Nilopolis “=sTTOdOTIN sndued Pyar 468 0 novo sprite do capitalismo @.4 adaptacdo constante as exigéncias da situacao, com o risco de dissolu- Go completa no tecido dos elos transitérios. A cidade por projetos, ordem. de justiga caleada na representacao de um mundo em rede, ao incorporar | 80 mesmo tempo a exigéncia de autenticidade (como garantia da validade { das relagdes pessoais nas quais se baseiam os dispositivos de trabalho) e a desqualificacéo da autenticidade em proveito da exigencia de adaptabilida- | de®, incorpora assim uma das principais tenses que habitam um mundo conexionista. Em certos aspectos, a cidade por projetos mostra-se como tentativa de superar essas dificuldades, nao fazendo que a tensio deixe de existi, pois ela Ihe esta incorporada, mas tentando suprimir seu cardter problemético, Essa cidade, de fato, supostamente deve eliminar a questo da autenticida- de, reduzindo-a a simples exigéncias interacionais que nao devem, obri toriamente, enraizar-se num eu profundo por elas revelado. Mas, com © que esta em jogo na instauragdo da cidade por projetos é conside: Vimos que, sobre a questao da justica, essa cidade se apresentava a0 mes mo tempo como regulamentaco do mundo conexionista e legitimacao da maioria de suas caractertsticas. Sobre a questo da autenticidade, esté em jogo a legitimasao de uma nova separagao entre as esferas governadas pelo interesse e as reguladas pelo desinteresse, ou seja, um deslocamento das fronteiras entre aquilo que pode ser mercantilizado e aquilo que nao pode. A cidade por projetos ea redefinigto do que é mercantiliztvel ‘As novas praticas empresariais e a nova moral em rede que as acom- panha tendem a questionar a diviséo entre as atividades e as qualidades que sao da ordem do pessoal e as que sao da ordem do profissional, divi- sao que desempenhara papel considerével na formacéo do capitalismo, Entre outras coisas, foi precisamente por nao admitirem essa diviséo que as. atividades literdrias’e artisticas tinham ficado & margem do capitalismo ou. entrado-em oposicao com ele, visto que a obra de arte, por definicao e prin- cfpio, ndo tinha preco, ainda que as necessidades materiais obrigassem a vendé-la num mercado (Chiapello, 1998). No cosmos capitalista, essa divisao é essencial por pelo menos duas ra 26es. A primeira decorre do modo como se constituiu um mercado do tra~ | balho livre no qual péde desenvolver-se a condicao salarial. Sabe-se que nas categorias do liberalismo a possibilidade de um mercado de trabalho livre | reside na ficgdo juridica (cuja formago pode ser tracada desde o direito ro- | mano), dain la entre a pessoa do trabalhador, que r = 8 pessoa Co tabalhador quees 1 O novo espirito do capitaismo e as novas formas da critica sua forga de trabalho, que pode seralienada contratualmente. f nessa dis- Hngdo que se baFeia, ainda no século XIX, a oposigdo entre a condicéo do- éstica ~ que estabelece um vinculo pessoal entre senhores e empregados, supondo nao s6 subordinagio, mas também a fidelidade e a ajuda mitua Q | (por exemplo, da parte dos senhores, 0 sustento e a manutengo na familia ‘} ) dos domésticos idosos) ~e, por outro lado, a condico operétia que s6 conhe- / ce atelacao coritratual, incidente unicamente sobre o trabalho, entre o em- |), pregador e 0 empregado*. E também essa distingao que fundamenta ainda ] 4 | hoje a proibigao da locacao de pessoas, que enquadra e freia 0 desenvolvi-* mento das sociedades de trabalhadores temporarios e da subcontratagao. Essa distingdo, enfim, estimulou a formalizacio das qualificagSes em certifi cados e diplomas, que sancionam conhecimentos adquiridos na prética ou nna escola, em oposicao as disposigGes que, incorporadas nas pessoas, per- manecem ineognociveis enquanto nao forem reveladas por provas. \ _ Asegunda razao decorre do modo como é feita a divisao entre interes- se e desinteresse. Essa divisdo desempenha papel muito importante no campo das relagdes pessoais. Ela possibilita estabelecer uma distingdo niti- da — pelo menos formalmente — entre duas categorias de relacdes. Por um lado, as relagdes de negécios, em que os parceiros; por mais cordiais que sejam os elos que os unem, podein legitimamente ter como motivagao a consecugao de seus proptios interesses (sejam eles convergentes ou con- correntes) e, por outro lado, as relagdes de amizade, que s6 merecem ser qualificadas como tais desde que perfeitamente desvinculadas de qualquer motivacio interesseira e desde que fundamentadas numa inclinagéo miéi- tua e em gostos comuns. Conforme mostrou A. Silver (1988), essa concep- sao relativamente recente de amizade instaurou-se precis com a formagao da filosofia politica da economia, foi poss campo proprio, inteiramente regido pelo concurso dos ints tonomizacao do interesse e das relagdes interessadas que, pro vocou a redefinigao da amizade em termos de desinteresse. Essa distingo, a partir de entio, desempenha papel muito importante nos juizos morais, frequentemente formulados em termos de “autenticidade” ou “inautenti- cidade”, que as pessoas fazem umas sobre as outras. Uma relacio de ami- zade € considerada auitentica quando vista comio realmente gratuita, 20 passo que é denunciada como inauténtica quando é possivel revelar moti- Vos interesseiros subjacentes em pelo. menos um dos parceiros. Perceber que a aparente afeigdo de um amigo querido, ao qual se é devotado, dissi- mula na verdaide motivos interesseiros e objetivos estratégicos constitui em nossa sociedade o paradigma da desilusdo que abre caminho para odesen- canto, 0 que serve frequentemente de argumento em literatura. ——————___—. 470 O novo espirite do capitalismo Essas duas distingSes ~ entre a pessoa e sua forca de trabalho e entre as relagdes gratuitas e as interesseitas — desempenha papel fundamental no capitalismo por serem mobilizadas no sentido de estabelecerem a diviso entre aquilo que é mercantilizével e o que nao €,¢, assim, constituirem a oposigao entre capital e néo capital. Desse modo, tanto a s quanto as relagSes pessoais sio moral mente (e, em grande medida, juridicamente) consideradas néo mefcantlizé jueles que so considerados como transgressores ostensivos 1sd0 desse tipo, atenuadora das tenses provocadas pelos novos dispositivos empresariais e pelo deslocamento do lucro para novos setores de atividade, que acompanha a formago de uma cidade por proje- tos. Essas mudangas tém em comum engajar as pessoas na dinémica do lu- alguns exemplos ~ como meios de aplacar as angintes existen das pela tensao entre as exigéncias contraditrias de adaptabilidade e auten- ticidade no mundo conexionista, mas esse aplacamento se baseia em gran- de parte no fato de validar, portanto legitimar, o deslocamento das fronteiras controladas pelas duas divisdes ainda pertinentes na época do segundo es- pitito do capitalismo. Ad fazer isso, eles conségram um deslocamento das fronteiras entre o mercantilizével e o néo mercantilizével e, assim, possibili- tam e legitimam uma mercantilizagio maior dos seres humanos. O argumento utilizado por A. Gorz. (1988, pp. 252-5) contra o Rendi- mento Minimo de Insercio, que pode ser estendido para o Rendimento ‘uma vez que o trabalho “so- ‘me confere a realidade impessoal do individuo social abstrato”, me d4 “uma fungao essencialmente impes- soal, que eu exergo como um qualquer entre outros” sem precisar nela comprometer “toda a minha pessoa, toda a minha vida”. Nessa medidaele novo espirito do eapitalismo e as novas formas da crftica 6 a condigio de possibilidade da outra esfera, que é a “esfera privada”, como espago de “soberania e reciprocidade voluntéria”. Ora, o desaparecimento da separacéo entre trabalho e atividade e dispositivos de tipo Rendimento Universal, 20 eliminarem o cardter obrigat6rio e abstrato do trabalho social, tendem a "despojar-me de minha vida privada”. “inalmente, os novos dispositives (enriquecimento das tarefas, melho- ria das condigdes de trabalho) justificados pela intencao de romper com as formas taylorizadas do trabalho (consideradas com razo como desumanas) também ocupam posigdo ambigua no aspecto aqui considerado. A taylori- zagao tradicional do trabalho consistia certamente em tratar 0s seres hu- ‘manos como méquinas,mas nao possibilitava por diretamente a servigo da busca do lucro as propriedades mais especificas dos seres humanos: afetos, senso motal, honra. Inversamente, os novos dispositivos empresariais, que exigern engajamento mais completo e se apoiam numa ergonomia mais sofisticada, que integra as contribuigSes da psicologia pés-behaviorista e das ciéncias cognitivas, precisamente por serem mais humanos, também penetram mais profundamente na interioridade das pessoas esperando-se que elas “se doem” ao trabalho, como se diz e possibilitam a instrumenta~ lizagéo e a mercadizagao dos homens naquilo que eles tém de propriamen- te humano. ‘A endogeneizacao pelo capitalismo (depois de muitos desvios) de um paradigma ~ 0 da rede ~ oriundo de uma histéria aut6noma da filosofia construido em parte contra a nogo de auts necer argumentos e até por legitimar um aumé didas no fim das década de 70 e, sobretudo, na primeira metade da década de 80, contribuiram assim para desacreditar a rejeigdo estética aos bens de consumo, a0 conforto e a “mediocridade cotidiana” — associada a uma pos- an. IFRJ Campus Nilopolis 1 —_—_—_—_—_————$— EEE Sstiodotin snduwey paar 472 O novo esptrito do capitalismo fura fora de moda ~ e, de modo mais geral, para libertar grande niimero de intelectuais daquilo que, nos anos pOs-guerta, era ao mesmo tempo uma coergdo ascética e um ponto de honra: 0 desprezo ao dinheiro e a0 conforto que ele propicia®. Mas é no estd na moda acreditar na possibilidade de uma Vida mais “auténtica” longe do capitalismo, nem crer que seja de bom tom zombar daqueles que continuam presos a ele; se todos duvidarem da possi- bilidade de exsténcia de'bens fora das esferas comerciais, bens dotados de um valorirredutfvel & equiparagéo com a mercadoria, valor que seria destrui- do pela introduso no circuito comercial, 0 que poderé deter 0 processo de ‘mercantilizacéo? O capitalismo conquistou assim uma liberdade de jogo e de mercantilizago que ele nunca tinha atingido no mesmo grau, pois num mundo onde todas as diferencas sao admissfveis, mas onde todas as diferen- ss se equivalem precisamente como tais, nada mezece, s6 por existir, set protegico do mercado, e tudo poderé entao ser objeto de comércio. E decerto por essas razées que no se pode considerar como soluggo suficiente para os problemas sociais engendrados pelas novas formas de capitalismo a implantacao dos valores da cidade por projetos em dispositi- vos de prova, o que, no entanto, teria o mérito de reduzir os fendmenos de explorasao e o desenvolvimento das desigualdades. A critica estética man- tém-se totalmente pertinente para indagar as legitimacées que a cidade Pot projetos efetua 20 mesmo tempo que realiza uma regulamentacao do novo mundo. Em especial, parece urgente reconsiderar a questao dos limi- tes que se deve impor & mercantilizacéo. Do mesmo modo, é preciso poder teformular a questdo da validade do tipo de liberdade que pode ter livre curso num mundo conexionista, mesmo estando este enquadrado pelas convengées da cidade por projetos. CONCLUSAO: RESGATE DA CRITICA ESTETICA? Attica estética atualmente esté paralisada por aquilo que, dependendo do ponto de vista, poderia ser chamado de seu sucesso ou de seu fracasso. Sucesso porque, reservada até os anos 50 a minorias e a vanguardas, a partir do fim da década de 60 ela coincidiu com as aspiragées de um gran- de piiblico. Esse tipo de critica hoje possui uma base, porta-vozes, e ocupa posigéo importante na midia, Fracasso porque a liberago do desejo nao significou a morte do capi- talismo; anunciada pelo marxismo-freudiano dos anos 30 aos 70. Aliés, para acteditar nisso, era preciso ignorar a implicacao da liberdade no regime do nove espirito do capitalismo e as novas formas da critica 473 | capital e sua profunda conivéncia com o desejo, sobre o ‘A cciitica estética, por isso, esté hoje presa a uma altemnativa cujos dois ramos manifesta igualmente sua impoténcia. Por um lado, tem-se o prosseguimento da critica no caminho pelo qi enveredou no século XIX (deniincia da moral burguesa, da censura, do minio da familia e da religio, dos obstéculos & liberacao dos costumes e| senualidade, do conservadorismo das instituigdes, culturais dominant sem levar em conta deslocamentos do capitalismo e, sobretudo, 0 fato que ele jé ndo esté aiado & familia ou & religido, sem falat da moral. Ou en- #80 acuisar (mas nas colunas dos grandes jornais ou na televisio) a conspi- ragio da midia destinada a calaro livre pensamento, dentincias que, aliés, a midia esté totalmente disposta a acolher como uma mercadoria entre ou- tras, metcadoria capaz de dar o que falar, ou séja, dar o que vender. Essa li- nha de conduta, que tende perpetuamente a desmoronar por falta de ad= versérios para manter a crenga em si mesina, precisa inventar inimigos ou atribuir aos inimigos que Ihe restam uum poder que eles perderam faz tem- po ~ visto’que as afirmacoes mais devastadoras so quase imediatamente ‘transportadas para um debate piblico bem organizado e depois integradas 8 oferta cultural por um duplo movimento de mercantilizacao de produtos derivados e de celebracao oficial de seus autores. Por outro lado, numa demhonstragao de “Iucidéz” conferida pela tinica ppostuta ainda'digna de ser adotada diante do apocalipse que se anuncia (num tom que frequentemente lembra as'profécias catastréficas das van- guardas de Weimar qué precedetam ¢ artunciaram a Revolucéo Conserva- dora), tem-se a constatagao da capacidade do capitalismo de “cooptar” toda |e qualquer coisa, antunciando-se o fir de qualquer valor'e até de qualquer realidade (dominagao do virtual), a entrada na era do nihilismo é, a0 mes: mo tempo (mas de modo paradoxal), vestindo de novo a roupagem aristo= cxatica, thas pulda do panfletério, “consciéncia” solitéria diante das massas ‘gretinizadas (Angenot, 1983), encijecendo-se na saudade reacionania de um ppassado idealizado, com suas comunidades acolhedoras (contra o isola~ mento individualista), sua disciplina livemente consentida, frequentemen- chamada hoje de “republicana” (contra a anarquia escolar e a desordem dos subiirbios), seus amores verdadeitos honestos (contra a sexualidade desbragada), sua pintura de cavalete (contra a instalacao de qualquer coisa), ‘suas paisagens de antanho, seus sabios alimentos, seus produtos regionais.

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