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A medida do prazer na série Aline

Felipe Raphael Lopes Ivanicska

1 – Introdução

O objetivo do presente trabalho é a análise da mini-série Aline, veiculada pela Rede Globo de
Outubro a Novembro de 2009, com a exibição do episódio piloto dentro da programação de fim
de ano de 2008. O programa é uma adaptação das tirinhas homônimas de Adão Iturrusgarai,
publicadas na Folha, que retratam uma garota de vinte e poucos anos, hedonista, posessiva,
autoritária, ninfomaníaca e desinibida, que vive com dois namorados da sua faixa etária.

A pesquisa para este artigo foi conduzida segundo os métodos dos Estudos Culturais. Tal
campo de estudos lida com a noção de que podemos chamar de “cultura” uma estrutura
sociologicamente construida (e portanto compartilhada e relacionada à uma sociedade específica)
de formas de compreender o mundo e, portanto, de agir. Os Estudos Culturais foram sendo
elaborados dessa forma, então, para dar conta tanto daquilo que é tradicionalmente chamado de
cultura: as artes e “costumes típicos” de um povo, onde transparecem maiores especificidades
deste, tanto quanto da cultura quase no sentido de cultivo, de uma construção de hábitos e modos
de pensar em geral, como na política e economia em geral. Ao unir esses aspectos diversos, os
Estudos Culturais percebem que tanto as artes como a política de um povo, por exemplo, são
facetas ou parcelas diferentes de um mesmo continuum cultural, de uma mesma cultura e,
portanto, podem ser estudadas como construídas historicamente, como formações discursivas
que fazem parte de todo um modo de agir de um povo. O mais importante é a idéia de que os
elementos da cultura não são isolados, mas estão relacionados discursiva, historica e
estruturalmente nesse modo de agir.

Tal perspectiva permite entender e fazer não só uma análise do objeto em si, mas sim uma
análise relacional, que o possui como referência, mas lida com a idéia de que ele não encerra-se
em si, não é um dado isolado no mundo, porém é permeado, entrecortado e ligado a outros
discursos, construções, fatos e fatores que compõem uma experiência múltipla dele. Além disso,
as especificidades do gênero televisivo também serão utilizadas como chave de compreensão do
objeto, aproveitando-se também dos estudos de Raymond Williams (um dos principais
precursores desse campo de estudos) sobre essa mídia.

Sendo esta a perspectiva teórica e instrumental geral, trabalharei também com a noção de
Modos de Endereçamento que, dentro da multiplicidade que um objeto de pesquisa revela diante
dos Estudos Culturais, permite a identificação de certos referentes mais cruciais para
determinado recorte sobre ele. A palavra “endereçamento” remete a uma idéia de um emissor
que direciona a seu público algo. Obviamente, nos estudos da comunicação não trabalha-se mais
com essa idéia unilateral, porém os Modos de Endereçamento são só um ponto de partida, pois
são elementos que identificamos no objeto (e portanto materializados) direcionados a uma
parcela de público mais ou menos definido, e a partir destas referências podemos, aí sim,
trabalhar com elas numa perspectiva relacional, mais aproximada dos estudos modernos da
comunicação. A palavra “modos” por sua vez, indicam que não são só esses elementos no objeto
em si, mas também a forma como eles constroem-se em relação ao público. Obviamente, tais
“flechas culturais” não atingem seus alvos, mas o lugar para onde miram são elementos de
referência práticos, pois já estão ali materializados e construídos no objeto, e a forma e a razão
de como erram seu alvo acabam por revelar tanto quanto os alvos em si, pois esse erro só pode
ser pensado de acordo com tal referência, pois é justamente ela que definirá o que é certo, errado,
deturpado, coerente, incoerente, ou seja: cria relações a partir deste ponto. Os sentidos, portanto,
não estão no objeto em si, mas são construidos em relação com o público. Como trabalha tanto
com esse lado da criação dos sentidos quanto da recepção (cuja separação é didática), o Modo de
Endereçamento também é a melhor perspectiva a ser tomada para analisar os “bastidores”, pois
já procuramos aí aqueles elementos que constroem os sentidos do objeto.

Antes de apresentar o recorte, há mais um elemento trabalhado em todo o artigo, que é o já


citado foco na mídia televisiva, especificamente a brasileira, já que cada país possui sua própria
rede de canais abertos e sua própria cultura televisiva. A explicação para tanto é que esse
formato/mídia conforma tantas especificidades que elas pesam muito no estudo de um produto
dentro dele. A base teórica e metodológica até agora apresentada é toda relacional, o que não é
coincidência já que a televisão é uma mídia tipicamente caracterizada por uma grande
intertextualidade, por mistura de linguagens até, o que essa base nos permitirá, então,
compreender melhor.

No presente estudo, o recorte feito nesse objeto é quanto às suas representações da juventude, e
como os temas do prazer e do afeto funcionam como resistência dessa juventude diante de vários
discursos relacionados à ela. A partir, então, da base teórica apresentada, pode pressumir-se que
em “Aline” há Modos de Endereçamento relacionados a esses temas, porém como já dito, eles
são relativos, mais uma área sem limites definidos que algo isolado, portanto não podem ser
capturados em sua inteireza. Dessa forma, precisamos utilizar alguns operadores metodológicos
para definirmos que pontos dessa complexidade queremos:

1 – Gênero televisivo: Como já dito, essa mídia conforma elementos muito específicos e, além
disso, o formato do programa também é muito específico, o que torna esse operador crucial.
Cotidianamente, utilizamos o termo “gênero” para fazer uma categorização de produtos
comunicativos, o que significa principalmente que haverá uma série de expectativas pré-
definidas sobre ele. Isso, no fim das contas, é uma conclusão correta, mas essa classificação pode
ser problematizada e aprofundada ainda mais, pois essas expectativas são elaboradas e
desenvolvidas culturalmente e, portanto, indicam certas formações discursivas sobre elas, além
dos textos em si.

Tal concepção baseia-se no entendimento de gênero como categoria cultural, de Jason Mittel.
Segundo tal perspectiva, o gênero é onde se plasmam uma série de elementos culturais, que por
sua vez podem ser identificados através daquelas expectativas, que são basicamente o efeito da
classificação em gêneros. Portanto, a partir dessa categorização podemos entender um grande
número de fatores culturais que perpassam aquele objeto.

2 – Ambiente de cena: Em uma concepção primária, significa a descrição metódica, a


“decupagem” dos elementos trabalhados na realização da mini-série, como a descrição dos
cenários, do figurino e de outros elementos da cena. Essa descrição, porém, é uma ferramenta
para uma compreensão maior, que é a do papel, no discurso do programa, dos cenários,
pensados como lócus de interação, que conformam modos de agir e pressuposições próprios.
No caso de “Aline” isso é ainda mais relevante pois a cidade de São Paulo é uma vedete
importante, e várias locações carregam significados muito fortes, possuem um peso muito grande
na forma como as personagens interagem.

3 – Sexualidade, afetividade e prazer como forma de resistência: em “Aline”, o tema principal é


o relacionamento de Aline com dois namorados, todos “jovens de 20 e poucos anos”. Portanto,
há um questionamento do padrão monogâmico e da sexualidade já no assunto principal, e os
outros personagens acabam também sendo sempre representados principalmente de acordo com
seus relacionamentos e sexualidade. Como explicitado no episódio piloto, Aline sempre busca
uma forma de se sentir feliz apesar de todos os problemas, e na mini-série, em geral, sempre há
personagens que convertem todos seus problemas para aspectos afetivos. Portanto, isso acaba
tornando-se uma válvula de escape e também uma forma de questionamento, de resistência
contra os discursos padronizantes e também contra os problemas do cotidiano de uma cidade
grande. Além disso, o fato de eles serem jovens também relaciona-se fortemente à essa questão
da sexualidade, pois a série trabalha com vários discursos sociais da relação entre esses dois
fatores.

2 – Descrição do objeto

As séries tipicamente são lançadas com uma descrição de seus personagens e seu assunto. A
Divisão de Planejamento e Marketing da Globo lançou o seguinte release:

“Inspirado nos quadrinhos do cartunista Adão Iturrusgarai, Aline é uma comédia romântica
passada em São Paulo, com muita ousadia, audácia e deboche. A adaptação do texto é de Mauro
Wilson.

Os três protagonistas, Aline, Pedro e Otto, dividem um apartamento em São Paulo e vivem uma
paixão a três. Com poucas personagens, jovens na faixa dos 20, diálogos rápidos e uma visão
irreverente de nossas relações mais próximas,como pais, amores, amigos e colegas de trabalho,

Aline é acima de tudo uma história de amor. Aline é descolada, esperta, independente, bonita,
engraçada e acredita no amor. Ela lança moda, arrisca tudo sempre e acredita que a felicidade é
algo simples e fácil de se encontrar.
Ama pintar as unhas de vermelho, usar camisas com estampas de caveira, dar risadas, passear
na chuva, dormir, comer doces, ver filmes, namorar. Aline é uma pessoa que ama.

Otto:é um rapaz inseguro, imaturo que vive da mesada dos pais. Não sabe o que quer da vida e
ama Aline.

Pedro: faz bicos de entregador de pizza, lavador de pratos, salva-vidas, encanador... Faz um
monte de coisas e não faz nenhuma delas bem, mas ama Aline.”

O episódio piloto foi exibido no dia 30 de Dezembro, dentro da programação de fim de ano da
Rede Globo. Sete episódios semanais foram exibidos às quintas-feiras (exceto “Aline TPM”,
exibido na terça-feira), entre 01/10/2009 e 12/11/2009, das 22h08 às 23h57.

Os dois membros da equipe que devem ser ressaltados para a análise são: o diretor Maurício
Farias, que também assina A Grande Família, o produtor musical Branco Mello e o roteirista
Mauro Wilson.

Wilson foi quem deu a partida para a adaptação. Segundo entrevista1, ele andava à procura de
uma comédia romântica para escrever, e pensou em Adão Iturrusgarai pois era seu amigo, que
cedeu os direitos da personagem por três anos. O tema principal foi convertido em algo
romântico e humorístico, transformando o trio em uma “família desequilibrada”,
tradicionalmente tema de séries e seriados. Os personagens que foram adicionados na versão
para a TV também cumprem função semelhante, o que é confirmado por Wilson, que disse ter
retirado das HQs a característica deles serem “ ‘underdog’, perdedores, terem um parafuso a
menos e se preocuparem apenas em arranjar dinheiro para pagar o aluguel e a noitada”2, o que
combina também, contudo, com certos padrões do que ele chama de “comédia romântica social”.
Essas dificuldades e defeitos são colocadas como uma paródia de problemas sociais urbanos da
classe-média, o que equilibra preocupações sociais com humor. Os pais de Aline, por exemplo,
muito presentes na trama, são um casal em crise, ex-hippies, filhos de uma geração que foi
jovem nos anos 60 e 70, frustrada por não terem mudado o mundo como pensavam. Há até um
1
http://www.anttenados.com.br/ver_noticia.php?id=536
2
http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/menos-sexo-quadrinhos-aline-estreia-globo?
print=1
episódio dedicado principalmente ao pai desequilibrado de Pedro, porém quando o pai de Otto
aparece, ele o faz rapidamente e distoa um pouco do resto do conjunto por ser mais normal, pois
é um mecânico trabalhador cujo único conflito é com o filho, que não quer seguir os passos do
pai e busca ser mais intelectual.

Já as personagens Wallace (Fernando Caruso) e sua mãe, Dona Rosa (Camila Amado) são
casos típicos que representam a tentativa de direcionamento da série para algo próximo à
comédia familiar. Eles são personagens estereótipos, com outro tipo de “desajuste” mais próximo
daquele que seria tradicionalmente explorado pela Globo. Fernando Caruso é alto, com olhos
saltados como um xeroftalmico, e seu personagem usa roupas de criança, como bermudas curtas,
moletom, blusa como aquelas usadas na prática de esportes, e nos sete episódios ele não usa
barba, o que o coloca como um adulto que ainda vive como criança, o que também revela-se em
seu quarto, com bonecos, troféus de esporte, fotos de times de futebol e um telescópio, como um
típico quarto de garoto. Ele é sempre reprimido por sua mãe, Dona Rosa, também uma
personagem típica, uma senhora conservadora e purista, que usa roupas sóbrias e “chiques” em
um estilo antigo e também pode ser analisada por um cenário que aparece rapidamente: a sala de
sua casa, que tem móveis antigos, com cadeiras de armação de palha.

Ainda em relação aos quadrinhos, ele manteve falas e cenas rápidas, com alguns chistes que se
encerram rapidamente, afirmando que a média de cenas chega a ser o dobro de A Grande
Família. Isso inclusive já é algo típico da TV e mais coerente com essa mídia, que baseia-se em
trechos fragmentados (como demonstrarei mais adiante), em blocos de atenção, o que seria
difícil fazer no cinema, por exemplo, pela dificuldade de manter-se um ritmo tão rápido e
interessante em uma obra de maior duração e contínua. No episódio piloto muitas falas e
situações foram transcritas quase que literalmente, e até mesmo a Aline nele é mais sexualizada
que nos outros. A possível explicação disso é uma tentativa de aproximação maior com as
tirinhas, para manter os fãs dela, ao mesmo tempo que é um elemento mais chocante e atraente
de público. Porém nos outros episódios suavizou a sexualidade da Aline dos quadrinhos, que
neles transava também com outros homens e tinha o sexo explicitamente como sua principal
questão na vida. A vinheta de retorno das propagandas do programa-piloto mostrava o triângulo
amoroso na cama, brincando de entrar e sair do cobertor, com cortes que misturavam pedaços de
seus corpos.
Outros componentes da equipe, relevantes para a análise são os produtores musicais Branco
Mello e Emerson Villani, o primeiro um integrante original dos Titãs e o outro o guitarrista da
mesma banda após a morte de Marcelo Fromer. Ambos possuem uma carreira musical que
trabalha com os dois aspectos musicais primordiais em Aline: os anos 70 e as músicas urbanas
mais modernas e “cults”. Mello viveu os anos 70 e ainda é muito ativo na cena musical, e Villani
é componente do Funk Como le Gusta, banda de som muito eclético e que produz músicas com
um estilo muito típico e moderno, porém com influências do soul, funk e rock clássicos.

No episódio piloto, no primeiro e no último são utilizados músicas da banda Cansei de Ser
Sexy, extremamente moderna e típica de uma juventude de classe-média paulista. Uma das
músicas (Ah-la-la) inclusive toca enquanto o triângulo amoroso faz uma paródia do clipe
original, e a outra, no primeiro episódio, também é um pequeno clipe dentro do episódio: uma
fantasia de Aline onde se ouve “Alcohol”, finalmente a terceira é a música que acompanha uma
montagem retrospectiva no fim do último episódioa. Amy Winehouse também é utilizada, como
a última música, e sua figura representa contestação, abuso de drogas, rebeldia, e sua música tem
elementos eletrônicos e letras sobre romances modernos. Por outro lado, na primeira cena há a
demonstração de como os anos 60 são reapropriados modernamente: com a trilha sonora tocando
“My Generation”, do The Who, Aline diz que seus pais estavam assistindo um documentário
sobre os anos 60 (e o cenário e as roupas tem o estilo dessa década ou de 70), que no momento
falava que Yuri Gagarin, no espaço, “ao olhar pela janela, totalmente chapado, disse a mais bela
frase da raça humana: ‘a terra é azul’. E hoje, quando acontece algo de muito ruim ou muito bom
comigo, as vezes eu digo essa frase”. Isso é muito representativo de como seus pais são
relacionados à essa época e também de como ela reapropria o “desbunde”, ao dizer do fascínio
de Gagarin como “chapação”. Além disso, seu carro é um cadillac conversível (o que é até
incoerente com sua constante falta de dinheiro), porém pintado com um padrão pixelado, como
aqueles blocos que formam a imagem eletrônica, visíveis principalmente em monitores antigos
como aqueles quadrados verdes.

Por fim, o diretor Maurício Farias também é importante elemento de análise para a
caracterização da série. Amigo de Branco Mello, disse em entrevista que a música, e a forma
como os jovens a utilizam atualmente, também o inspirou a imprimir um ritmo rápido à série e a
valorizá-la. Além disso, já trabalhou com Wilson Faria n’A Grande Família (que era exibido na
grade antes de “Aline”), o que também contribuiu para o tom de comédia familiar, talvez até
mesmo por preferirem manter uma fórmula de sucesso. A escolha de São Paulo é justificada por
ele por ser uma cidade moderna, em sintonia com a busca dos personagens principais por
melhorarem sua vida e também por uma questão prática, de ter cenários praticamente prontos e
muito organizados.

3 – Como fala a televisão?

Segundo Williams, a televisão é um meio que pode ser entendida em um contexto histórico de
crescente intertextualidade e formas de expressão que misturam vários gêneros, técnicas e
linguagens. Na história da arte e da comunicação, por muito tempo as obras foram veiculadas
para serem compreendidas ou lidas como singulares, fechadas, isoladas, com uma única forma,
ou seja, como uma experiência única. Posteriormente, porém, elas passaram a incluir ou dialogar
com sub-gêneros e sub-linguagens dentro de si. Ele cita por exemplo as “magazines” (que pode
ser traduzido como revistas, mas considerarei aqui um tipo de revista de variedades de acordo
com a descrição que ele faz delas) e também os jornais. Em uma primeira apreensão visual, já
percebe-se que elas são diagramadas misturando-se, por exemplo, publicidade e jornalismo, até
mesmo por questões comerciais e corporativas. Na análise de seus conteúdos, também vê-se uma
“miscellany, not only of news items that were often essentially unrelated, but of features,
anecdotes, drawings, photographs and advertisements.”.

Ainda segundo esse autor, essas mudanças estão relacionados a fatos sócio-econômicos, em um
contexto de maior mobilidade física e social, ou seja, de um maior contato com experiências
diferentes. Obviamente, o cinema também influenciou a TV, seja por seu histórico de ser
utilizado (por Thomas Edison principalmente) como um palco em película, ou por seu lado
documental, em Lumiére e Einseinstein. Em ambos os casos, o cinema incorporou outras
linguagens, outras artes, funcionando muitas vezes principalmente como um meio, não uma arte
em si, em Edison do teatro e em Lumiére da representação de fatos sociais, da realidade. Essa
característica também é ressaltada por Williams ao dizer que a TV, ao fazer a transmissão
(broadcasting), faz um recorte de outros textos, obras ou discursos.

Essa montagem de diferentes obras foi resolvida pelos primeiros produtores de TV na divisão
deles em “programas”. Porém, com a intensificação das transmissões, perceberam que deviam
também costurar a relação entre esses programas no todo de cada canal, de cada país (já que cada
país possui sua própria cadeia fechada de emissoras), principalmente ao lidarem com a questão
do “ao vivo” e da TV 24 horas por dia, que definiriam o noema principal da TV: o “aqui e
agora”, o “ao vivo”, devido à simultaneidade da produção da imagem com sua exibição, e a
expectativa de que isso pudesse ser feito à qualquer hora da programação, representado também
nos programas de auditório pelos cortes sem perda de continuidade cronológica, ao contrário do
cinema. Isso também define uma expectativa de que essa mídia estaria em constante expectativa,
não só nos programas de caráter mais jornalísticos e documentais, mas também nas ficções, pois
há a segurança da periodicidade dos programas, sua continuidade e principalmente do fluxo
televisivo em si.

Essa é o principal ponto da discussão de Williams. A experiência televisiva não pode mais ser
entendida em programas discretos, em linguagens que podem ser definida a cada momento, mas
em um fluxo (flow), no qual o sentido não provém de cada obra, mas do conjunto delas em
relação. Além desse movimento geral, identificado por ele, de mistura de linguagens, na TV
especificamente os produtores perceberam que essa mudança de contexto era muito forte nessa
mídia, pois facilmente uma imagem poderia ser transmitida com um sentido diferente daquilo
que ela representaria para aqueles que estivessem co-presentes, sem a intermediação da câmera,
como mesmo algo filmado poderia ser editado. Esse conceito mesmo de edição é diferente no
cinema e na televisão, pois nesta significa algo aberto, no qual os sentidos devem ser construidos
não pensando que o público assistiria algo do início ao fim, mas que eles podem mudar de canal,
começar a ver no meio do programa, e talvez não conhecerem muito outros programas. Portanto,
a “edição” é feita de acordo com esse fluxo, o que significa uma reiteração de certos elementos
para compensar a desfragmentação inerente à mídia, também uma mistura deles até mesmo por
questões comerciais, pois as propagandas não poderiam interromper o fluxo, o que seria
desinteressante tanto para a companhia divulgada quanto para a empresa televisiva, pois ambos
perderiam público. Há também essa mistura como forma de fixar os espectadores em um canal,
pois podem construir um mosaico direcionado a diferentes públicos, há a inserção de trailers de
outros progamas tão interessantes como o que está sendo exibido naquele momento.

Além disso, algo típico de vários tipos modernos de linguagem, principalmente os de massa, é
o uso de uma lógica de recompensa, pequena porém garantida, que acaba sendo colocada como
melhor que não ter recompensa alguma. Na TV isso significa que esse fluxo também tem a
função de desorientar o espectador, que sempre espera a recompensa do final, da resolução, o
que é adiado ao máximo, mas enfim chega, e outro programa já começou com outras tensões que
também prometem uma conclusão. Isso também é uma técnica para facilitar a massificação, não
querendo aqui afirmar ingenuamente que é intenção maligna dos media de querer dominar as
massas, mas que essa recompensa apresenta-se com um único custo: aceitar a padronização, pois
é parando de criticar os programas, de ver o quanto eles são poucos criativos e importantes, que é
possível extrair prazer e recompensa das pequenas novidades, aquelas pequenas variações no
fluxo que tomam proporções satisfatoriamente grandes para aqueles que conseguiram entender,
mergulhar na linguagem massificada, que passam a ter prazer tanto na compreensão e na
aceitação do grupo daqueles que entendem e participam da TV, quanto na descoberta dessas
pequenas novidades, que tornam-se grandes comparando-as a outras dentro da mesma mídia,
mas que em outras atividades humanas e linguagens seriam irrelevantes. Omar Rincón, ao dizer
sobre esse retardamento que a TV promove, essa espera, também acaba sintetizando esse fluxo
em direção à lugar nenhum, quando diz que nessa mídia “tudo sempre está a ponto de passar”.
Ainda segundo esse autor, a TV tornou-se uma forma de integração social, de conhecimento, até
mesmo de refúgio à solidão, o que não deixa de ser uma forma de recompensa, relacionada á
cumplicidade (que será analisada mais a diante) entre público e emissora, pois esta parece
promover uma comunhão do povo através da mídia, além da sensação de que sempre há alguém
vendo TV no mesmo momento que você, imerso no mesmo fluxo.

Além desse espírito básico e importante da estrutura cultural da TV, utilizarei o autor John Ellis
para explicar como se dá o uso dessa mídia. Ele ressalta o fato de que esse “ao vivo”,
característico dela, não estabelece porém uma relação documental com o público, mas ao
contrário faz com que ela estabeleça uma cumplicidade com este, como se ambos fossem os
olhos da sociedade sobre os “outros” e nunca é colocado em questão de que para alguém “nós”
também somos “outros”. O fluxo também ajuda a explicar isso, pois as imagens jornalísticas e
documentais acabam misturando-se às ficcionais e todas transitam na dúvida de sua veracidade.

Ellis também faz uma análise material da televisão. Segundo ele, a estética da programação é
baseada em imagens simples, com elementos destacados e muitos closes, porque a tela é pequena
e também os objetos nela representados devem ser rapidamente lidos, ou o espectador pode
mudar de canal. Isso inicialmente até foi uma restrição tecnológica, mas atualmente isso é
utilizado mais como uma convenção linguística costumeira do que uma necessidade por uma
limitação. Obviamente isso afeta também outros fatores não visuais e plásticos, como a relativa
baixa complexidade das personagens, já que a coerência entre suas atitudes e imagem são
facilitadas se ambas forem simples ao mesmo tempo.

A TV também é essencialmente um produto doméstico, portanto pode-se dizer que seu


principal público é a família. Como eu disse na questão de como as mídias de massa oferecem
uma recompensa, também oferece-se isso àqueles que aceitam sentirem-se como família,
principalmente aquela padronizada na televisão, que é de um casal, com pai trabalhador e mãe
dona-de-casa, com dois filhos em idade escolar, de preferência um de cada sexo, mesmo que
estatísticamente essa formação não prevaleça na sociedade. Por isso o grande número de
programas televisivos centrados na família, desde o drama de uma que não adequa-se à essa
padrão, até o humor da paródia da família convencional, com as novelas e soap-operas que
encenam dramas familiares, todas em sintonia com seu público pois de alguma forma ele
apropria-se daquelas histórias e as enxergam em suas vidas. Isso também realiza uma função
psicológica, quando os espectadores vivem através das personagens representadas, de alguma
forma substituindo suas preocupações por aquelas encenadas, e satisfazendo-se com a resolução
delas na ficção, o que só funciona se os temas ali trabalhados tiverem alguma proximidade com a
vida cotidiana, com a família portanto. Outra marca desse direcionamento é a grade de
programação, que regula-se em relação ao cotidiano familiar genérico, com os programas
infantis pela manhã, por exemplo, e as novelas, no caso das soap operas, a tarde pois presume-se
que o horário que as donas-de-casa já terminaram seu serviço ou então estão descansando até o
marido chegar do trabalho, ou a noite, no caso das novelas brasileiras, dirigidas a um público
mais geral, de baixa exigência, que chega do trabalho à essa hora e costuma assistir TV.

A cumplicidade, a família e a imediaticidade (“ao vivo”) da TV relacionam-se aqui. Pois se ela


fala para o grupo familiar e ela sempre parece falar daquele momento filmado como simultâneo
ao vivido pelo espectador, então as personagens de alguma forma são parte da família. Não estão
ligadas fisicamente a não ser pela representação no aparelho, mas a imediaticidade tradicional da
TV faz com aquilo pareça estar sendo vivido no momento de sua exibição.
Outra característica ressaltada por Ellis é o predomínio do sonoro sobre o visual, já que
geralmente a TV fica ligada sem que as pessoas olhem para ela, o que explica, por exemplo, o
fato do som aumentar nos comerciais, pois devem chamar atenção e muitas vezes o som do
aparelho é diminuido, além disso, como baseia-se em imagens simples, muitas vezes o som deve
legendá-las.

4 – Como fala a televisão brasileira em Aline?

Alguns pontos gerais da televisão realizam-se no Brasil de uma forma diferente. Ao dizer do
fluxo, Williams estava pensando sobre as TVs americana (que eu pessoalmente já tive uma
experiência e concordo com Williams) e inglesa que utilizam-se muito fortemente disso. Na TV
brasileira, porém, ainda há uma marcação mais clara dos intervalos, uma menor homogeneidade
visual e sonora e maior diferenciação também dos trailers e propagandas de produtos da própria
TV, que costumam ser mais breves, com um tempo maior para as propagandas. Isso deve-se à
menor competitividade dentro do sistema televisivo brasileiro, os poucos canais, e ao predomínio
da Globo, que definiu padrões que foram bem aceitos e seguidos pelas outras, o que inclui essa
demarcação do intervalo, por exemplo, além de definir um cenário pouco competitivo pois o
primeiro lugar em preferência do público mantinha essa posição muito afastado dos outros
concorrentes, o que os faziam seguir uma “lógica do segundo lugar”, que é a de reapropriação de
certas regras da Globo para manterem uma relação na qual já trabalham com aquilo que o
público gosta, mas não são tão bons quanto os originais.

Outro fator colaborativo disso é o grande poder da indústria publicitária brasileira. As agências
podem, por isso, estabelecer um controle maior e terem mais liberdade e diferenciação no horário
comercial, em detrimento de uma agenda própria do canal, que privilegiaria uma maior coesão
linguística (visual e sonora até) entre propagandas e programas. No caso da TV americana, por
exemplo, a fotografia, as inserções gráficas, os tipos físicos e o som (principalmente as vozes) se
parecem muito em todo o fluxo.

Com relação a todos aqueles fatores que conformam uma imediaticidade do fluxo televisivo, no
caso de Aline, isso está muito relacionado aos temas tratados, pois são muito modernos,
acontecem em São Paulo, que é uma cidade que representa de alguma maneira todo o Brasil ou
que pelo menos define padrões para o país, o que aproxima temporal e culturalmente o público
presumido, e aumenta a sensação de que aquilo representado na série poderia acontecer na vida
de alguém, ou que algo semelhante ocorre.

Outro elemento está em tensão com isso, porém, que é o fato do programa ser diferenciado dos
outros do fluxo da Globo, tanto por seu horário como por sua definição no formato série. O
efeito disso é que há certa segmentação do público e, portanto, a relação do programa com ele
fica fora daquela sessão em que o efeito de simultaneidade é maior: no horário nobre, quando
pressupõe-se que a família está reunida em casa, justamente quando a Globo transmite as
novelas, tipicamente familiares. Isso sugere que, em Aline, aquelas personagens são excêntricas
demais para ocuparem mais espaço na programação e que os espectadores podem ficar
tranquilos, pois a Globo não fará um programa tão fora dos padrões sociais assim sempre, pois
aquilo é um momento de “expressão artística”, quen não interrompe o “momento da família”, o
que, além disso, socialmente também é visto como excêntrico e, portanto, fora dos padrões (até
televisivos).

Quanto ao predomínio do sonoro sobre o visual, em “Aline” isso não é tão típico. Isso porque
“Aline” pois é uma obra de episódios e serialização curta, além de ser um especial, transmitido
em um horário que geralmente atrai um público mais interessado, portanto não há tanta
necessidade de uma linguagem sonora tão simplificada, o que é importante marcar, até mesmo
para fazer um certo retrato em negativo, em oposição ao resto da programação. A valorização do
som é típica da história da TV, porém, e alguns ecos disso podem ser encontrados. As falas são
curtas e cômicas, há também uma trilha muito marcante na vinheta, que é repetida em todo
retorno dos comerciais, provavelmente para atrair de volta aqueles espectadores que saem de
frente da TV nesse momento.

5 – Gêneros televisivos

Segundo Daniel Chandler, “um gênero é um código semiótico dentro do qual nós somos
posicionados como ‘leitores ideais’ através do uso de modos de endereçamento particulares”.
Sua definição é extremamente sistemática, à qual devemos, portanto, adicionar uma discussão
sobre como os gêneros são construídos culturalmente.

Gêneros também podem ser chamados de “formatos”, palavra que nos permite ver que esses
códigos semióticos de posicionamento realizam-se através de formas mais ou menos específicas.
O estudo de gêneros vem da literatura, de uma longa tradição definidora de certas características
classificadora dos textos em certos grupos. Dessa forma, por exemplo, Aristóteles divide a poesia
em epopéia, tragédia, comédia, ditirambo, aulética e citarística, de acordo com o ritmo,
linguagem e melodia, e também divide as obras dramáticas em trágicas ou épicas, de acordo com
a forma como os personagens são representados. Essa categorização, então, foi sendo alterada
mas sempre tentava-se encaixar uma obra dentro de algum grupo existente, e quem produzia a
obra também poderia apropriar-se de um gênero já conhecido, facilitando seu reconhecimento.
Isso permitia que os leitores, escritores e estudiosos já lidassem com certos pressupostos do que
ali poderia haver, do que ou como aquela história seria trabalhada. Portanto, o gênero define
principalmente expectativas mas, ao mesmo tempo, cada obra insere novos elementos, o que
permite definir o uso dos gêneros como essa dinâmica entre repetição e variação, permitindo que
as definições de gêneros alterem-se com o passar do tempo ou, por outro lado, que eles
continuem sendo usados como chaves facilitadoras da leitura.

Importante para o estudo deles é a consciência de que há dois momentos em que se realizam
mas que devem ser trabalhados de forma diferente. Um é no ato da produção, no qual o autor
decide consciente ou inconscientemente a utilizar regras de um gênero, o que liga a obra àquele
formato, e outro momento é na análise da obra já pronta, nas denominações dadas por aqueles
que dominam culturalmente, ou que possuem o poder, socialmente instituido, de definirem esses
gêneros. Essas categorizações, portanto, constroem-se não somente através do que as obras são,
mas também através daquilo que se diz delas.

Ao definir como narra a televisão, Omar Rincón cita certos padrões, e um deles é que “o
formato é a unidade de criação televisiva”, o que pode ser entendido a partir das características
gerais dessa mídia, explicadas no capítulo anterior.

Primeiramente, por dirigir-se a um público genérico a televisão deve trabalhar com elementos
de fácil identificação, ao mesmo tempo que deve atender uma demanda por novidades. Através
de formatos padronizados ela fornece chaves de leitura para os espectadores, e mesmo as
inovações são feitas dentro de certos parâmetros de gênero, variando pouco de um padrão mais
ou menos definido. Segundo Anna Maria Balogh, a formatação também atende a uma função
prática, de produção. Além do uso que o autor pode fazer de gêneros já definidos para ser
compreendido mais facilmente e ingressar em um grupo, na televisão os programas são feitos
não por um, mas por uma grande equipe, que deve estar em sintonia, e o gênero, assim como o
roteiro muitas vezes, atende a uma função prática de coesão dessas pessoas envolvidas na criação
da obra.

Além disso, como visto anteriormente, a TV trabalha com um fluxo constante, que
inevitavelmente resulta em uma edição confusa, e os produtores devem tomar atitudes para criar
certos padrões, repetições, que mantenham certas constâncias para que o público encontre mais
facilmente aquilo que deseja. O gênero também atende essa demanda, justamente pela função já
citada de cortar algumas etapas na interpretação das obras televisivas, ao trabalhar com formas
mais ou menos padronizadas.

Para encerrar esse preâmbulo sobre gêneros, é importante ressaltar como eles são construidos
culturalmente e não são categorias rígidas. Jason Mittel lembra que “uma das grandes lições do
pós-estruturalismo é o questionamento de categorias que parecem naturais e assumidas”. Ele cita
um famoso julgamento na Suprema Corte dos EUA, no qual o juiz disse que, apesar de “não
poder definir pornografia, ‘eu sei que é quando eu vejo’ ”, o que, segundo Mittel, revela duas
coisas: que os gêneros tem impacto no “mundo real” e ao mesmo tempo estão subordinados a
discursos, como as decisões legais e judiciais, por exemplo, que é o que eu disse sobre os
gêneros serem construidos também sobre aquilo que se fala sobre eles. Dessa afirmação do juiz,
além disso, pode-se concluir também que os gêneros constroem-se mais na prática que na teoria,
seja quando os estudiosos definem certas obras, seja quando essas materializam certas
convenções. Isso nos remete também a Foucault e sua discussão sobre discursos e poder, na qual
afirma que eles se articulam na prática, em constante dinâmica. Portanto, a concepção mínima de
gênero é que cada obra reapropria-se dele, alterando-o de alguma forma.

Isso nos permite retornar a Rincón para ampliar e aprofundar a discussão. Ele diz que o
“formato” é a unidade de criação televisiva, e não o gênero, porque, segundo ele, “a televisão se
produz na perspectiva dos gêneros, mas se comunica através dos formatos”, ou seja, a
comunicação se dá na realização dos gêneros em formatos, já que em um mesmo programa
existem estruturas mais primordiais que aquela classificação genérica que pode ser feita dele.
Um exemplo disso é o estudo de Simone Maria Rocha sobre as representações dos sujeitos das
favelas na TV. Segundo a autora, em um mesmo programa, o Linha Direta, podem ser
identificados elementos jornalísticos e melodramáticos, em relação também com um formato que
já pode ser chamado de “docudrama”.

Em “Aline”, há um certo gênero embutido que pode ser chamado de “jovem” ou “adolescente”,
que apresenta-se através das músicas, das roupas sexualmente provocantes das personagens
principais (principalmente de Aline), do cenário colorido, bagunçado e personalizado da casa
dela, até dos temas tratados, como sexualidade e inserção no mercado de trabalho. Todos esses
pressupostos sobre a juventude serão tratados em um capítulo posterior. Isso tudo realiza-se,
porém, em um formato que pode ser chamado de série, mais especificamente de “série brasileira
de humor” que, assim como os gêneros, também carrega uma série de expectativas consigo e
deve ser analisada aprofundadamente em seguida.

6 – Programas serializados

A diferenciação entre séries e seriados é quanto a relação de continuidade de cada episódio. No


seriado, há uma única história contada através de vários episódios, ou seja, eles contam somente
uma história que terá seu fim no encerramento da temporada ou da série. Já na série, há uma
repetição somente de uma estrutura básica, dos mesmos personagens, cenários e ambientes, mas
cada episódio é construido para ter um sentido completo em si, talvez até mesmo com a
referência a outros, no qual há sempre o retorno a uma situação básica inicial. Essa serialidade é
típica da TV americana, “não por acaso a pátria do fordismo” e também da industrialização da
cultura, ou seja: a formatação em série atende uma função de produção, e vários fatores podem
ser identificados para isso e a lista pode estender-se ao infinito de acordo com as necessidades
dos produtores. Pensando principalmente no série, que é o formato típico da TV, ao contrário do
seriado, que possui ecos das obras literárias e filmes lançadas em partes periodicamente no
cinema, é possível identificar alguns possíveis constrangimentos que conformam esse formato:

- Elementos genéricos já estão predispostos, o que facilita toda a criação e predispoem


antecipadamente a situação inicial e final de cada episódio

- Cada episódio ou temporada pode ser escrito por um roteirista, já que as estruturas básicas já
estão definidas
- O público consegue compreender rapidamente qual a estrutura básica e não precisa
acompanhar todos os episódios

- Os produtores podem realizar alterações mais facilmente, de acordo com pesquisas de opinião
e retorno do público

John Ellis já observara que, na TV britânica, as séries e seriados gozam de certo privilégio
cultural, pois elas destacam-se no fluxo e dão “respeitabilidade cultural” às emissoras, já que são
produzidas com maior investimento financeiro, estrutural e criativo. Essa liberdade é relevante
justamente porque no restante do fluxo ela não é tão grande, o que nos remete à discussão
anterior sobre como a TV geralmente oferece produtos diferenciados que parecem nobres se
comparados àqueles produzidos rotineiramente, geralmente com baixa inovação. Essa produção
deve, então, ter essa tônica diferenciada, pois é mais cara de produzir, poderia aumentar os
padrões de exigência do público e, portanto, segue uma lógica semelhante à econômica mais
próxima de vender poucos mas por um alto preço, ao contrário da lógica massiva de vender
vários por um preço baixo, com a diferença de que aqui “vender” significa simplesmente a
audiência, a aceitação do público.

Em “Aline” identificamos essas características de formatos serializados, mas podemos ainda


classificá-lo especificamente como uma série. No site da emissora ele está classificado como um
“Especial”, mas essa definição é muito genérica e serve principalmente para destacar o programa
na grade tradicional, e algumas características o aproximam mais da série brasileira e da “series”,
formato identificado em outros países.

Os Especiais da Globo, geralmente, tem de só um episódio a aproximadamente 6 episódios por


temporada. Há uma lógica comercial e produtiva na inserção desses especiais no fluxo. Incluidos
na programação de fim de ano, que pode extender-se até o fim de Janeiro, são oferecidos como
um pacote de programas de melhor qualidade, o que faz com que o nível geral de expectativa do
público seja maior do que se eles fossem exibidos dispersamente. O que exibido aí é só um
piloto, portanto algo em certa parte experimental e não obrigatoriamente será parte da
programação geral, mas que ganham esse reforço de visibilidade um do outro através da
colocação nesse bloco. Através disso, também pode-se eliminar mais facilmente os programas
considerados insatisfatórios, sem que isso afete nem a parcela do público que o aceitou nem a
que não aceitou, pois ambos conformam-se com o fato de que aquilo era só um teste sem
compromisso. A consciência que a emissora tem da realização desse processo revela-se no
especial de 1° de Janeiro de 2010, chamado justamente “Programa Piloto”, e que fez uma
paródia dos bastidores da televisão e da Globo.

No caso de “Aline”, o primeiro episódio manteve a média de audiência do horário, o que com
certeza foi um dos motivos para a decisão de sua continuidade, além do fato da personagem já ter
sido comprada por 3 anos e da dupla Farias e Wilson já terem conseguido sucesso em A Grande
Família. No piloto, há uma redundância de cenas que definem a personagem principal,
principalmente o fato dela ter dois namorados e ser ninfomaníaca, o que provavelmente foi um
recurso para atrair atenção do público através do escândalo, mas que nos outros programas
deveria ser amenizado, o que foi feito afinando-o ao estilo da comédia familiar brasileira.

Retornando ainda à forma como trabalhamos aqui com gêneros, relembrando como eles
constroem-se na prática e alteram-se com cada produto, identificamos em “Aline” essas
diferenças em relação às séries da Globo como reapropriações desse gênero. Os próprios temas
da juventude, a cultura indie e a sexualidade como são ali tratadas são novos para os padrões da
emissora, assim como o material inspirador ser uma tirinha. Arrisco aqui dizer genericamente
que o possível elemento que aquilo que a série introduz nos programas da Globo é a cultura pop,
aquela urbana em constante mudança cada vez mais constante, principalmente com as
possibilidades abertas pela internet de se criar uma cultura alternativa. Isso reflete-se, portanto,
em toda estrutura do programa.

7 – Ambiente de cena

O ambiente de cena, na concepção utilizada, é a análise de como os cenários da série


conformam certas relações, trazem certas suposições sobre as relações sociais, pois agregam
marcas um pouco mais claras e fixas disso. Em seu conjunto, os cenários de “Aline” contribuem
para conformar discursos principalmente sobre a juventude relacionado à sexualidade, além da
busca por inserção no mercado de trabalho.

O principal fator nessa questão, em “Aline”, é o fato da história passar-se em São Paulo, ao
invés do Rio de Janeiro, o que é mais comum nos programas da Rede Globo. De acordo com os
próprios realizadores, a escolha foi feita por ela representar a juventude e modernidade que
queriam trabalhar na série, mas ao mesmo tempo podemos também identificar nela a questão da
corrida no mercado de trabalho, por uma busca de uma vida melhor, que é algo pertinente e
constante na vida das personagens. A cena inicial do primeiro episódio é representativa disso: o
trio amoroso está na Avenida Paulista e desejam um frango assado que está atrás da vitrine. Ou
seja: no coração da cidade, onde tudo passa e pode acontecer, eles estão em busca de um mínimo
de condições de sobrevivência.

O episódio no qual eles vão ao Rio de Janeiro é basicamente uma brincadeira com isso, pois até
na locução Aline compara as imagens que se tem dessas duas maiores e mais importantes
historicamente cidades brasileiras. A imersão deles na cidade, portanto, é bem marcada,
principalmente no bairro da Lapa, que é bem destacado e que de certa forma remete-se também à
boemia, hedonismo e “curtição” característicos das personagens.

Partindo-se primeiramente dos cenários externos e portanto secundários, percebe-se que quase
sempre que estão fora de suas casas ou do trabalho as personagens estão em um bar ou
restaurante, na maioria das vezes conversando. Isso representa tanto essa boa vida a qual todos
os personagens buscam quanto uma relação social no ritmo urbano, que estabelece esses lugares
como espaços onde é permitido falar sobre certos assuntos mais livremente, espaço de discussão.

A casa de Aline, o cenário principal, é um pequeno apartamento de classe média totalmente


personalizado, com grafites, inscrições e enfeites, além de muito bagunçado, com móveis
simples em um estilo retrô, dispostos de forma a deixar um grande espaço de circulação. Tais
características demarcam a constante reiteração da juventude como uma atitude individual,
criativa, intensa, ao mesmo que desorganizada, desleixada. Relacionado a isso, o espaço vazio no
meio da sala denota grande fluidez e inconstância da vida das personagens. Em alguns episódios
Otto e Pedro quase são obrigados a dormirem no sofá da sala, que é onde o pai de Aline vai
dormir quando muda pra lá, o que mostra o quão improvisada é incerta é a vida do trio amoroso.
Além disso, esse espaço permite uma grande movimentação constante, o que também é
perceptível na atuação dos atores como característica dos jovens, de estarem sempre em
movimento, serem ativos, “elétricos”.

A casa dos pais de Aline, por sua vez, possui um estilo mais antiquado marcante, além de
organizado, com o predomínio de tons bege. Essas características indicam o conflito que os pais
dela possuem com a sua juventude, pois a casa possui o mesmo estilo dessa época onde eles
localizam a sua felicidade conjugal. Os tons bege também contribuem para isso, pois remetem a
uma sobriedade e monotonia iguais à que predominam em seu casamento.

A Pipo e Rico Records também carrega em si muitos significados sobre a juventude. Esse caso
é interessante para ser analisado de acordo com ambiente de cena pois o local em si não traz
tantas características singulares: é uma loja cheia de vinis e pósteres de bandas, o que não é
muito diferente de lojas da Galeria do Rock, que é onde é ambientada. O fato de serem vinis,
porém, remetem à questão presente em toda série de uma nostalgia pelos anos 60 e 70,
localizados como exponentes de uma certa concepção de juventudade idealizada, da qual Pipo e
Rico talvez tiveram mais contatos por serem mais velhos que o restante das personagens. Além
disso, esse casal defende esse espaço contra insinuações homofóbicas e quaisquer outros
insultos, o que o caracteriza ainda mais como lócus de resistência.

Já os outros locais, em geral, trazem marcas muito fortes da juventude, assim como da
sexualidade relacionada a ela. A casa de Lola, a vocalista da banda de Otto, por exemplo, tem
uma iluminação baixa como de um bar, um ambiente “lounge”, com uma cama logo na entrada e
uma decoração que denota sexualidade, totalmente de acordo com essa personagem. A casa de
Kelly possui um estilo límpido, jovial, colorido e moderno, também relacionado à ela mesma. O
quarto de Wallace é uma antítese dessa juventude sexualizada, pois é todo decorado como um
quarto de um menino que acabou de entrar na puberdade, com um telescópio, objetos de time de
futebol e bonecos todos organizados em um estilo infantil.

8 – Sexualidade e resistência

Essa capítulo dedica-se aos discursos mais profundos e típicos da série “Aline”. A hipótese
inicial é a de que as questões do prazer e da afetividade funcionam na série como forma de
resistência. Isso se dá de várias formas, mas todas podem ser agregadas como aquela da
resistência da juventude diante dos adultos.

Primeiramente, devemos definir o que é essa juventude. Essa fase da vida não foi algo
diferenciado até aproximadamente o início do século XX. Discursos jurídicos começaram a
discutir a questão da maioridade penal, dizendo que algo deveria ser feito a respeito do grande
número de jovens cometendo crimes. A demonstração clara de que isso estava relacionado à
urbanização, migração e uma certa falta de discursos disciplinantes é que a cidade de Chicago foi
uma das que mais discutiu o que fazer com os jovens, e foi manchete nacional ao criar um
Juizado de Menores, que passou a tentar articular melhor essa fase de transição da infância para a
cidade adulta, já que anteriormente os “delinquentes” eram postos na cadeia com os adultos ou
liberados por serem crianças, não havia um meio terma. Chicago estava em expansão e
concentrou grande número de imigrantes, que nem sempre conseguiam se inserir no mercado e
viviam às margens, mas ao mesmo tempo por ser um ambiente urbanizado, os jovens
encontravam outras oportunidades, o que verifica-se no fato de que “setenta por cento dos jovens
que passaram pelo juizado [de menores] eram filhos de imigrantes”. As medidas desse órgão
levavam em conta três considerações: “ ‘o bem-estar e os interesses das crianças’, ‘o bem-estar
da comunidade’ e ‘a inteligência e os sentimentos de pais e parentes’ ”.

Em 1904, o psicólogo Stanley Hall lançou um livro que foi o marco dos discursos sobre o
adolescente, e que chamava-se justamente “Adolescence”. Sua pesquisa foi muito intensa e
dedicada, marcada por vários traumas de infância e sua acidental asfixia de sua mulher e filha, o
que resultou em uma obra profunda (literalmente, pelos seus dois volumes de mais de 1500
páginas cada um), sentimental e vitalista, abrindo as discussões sobre esse período da vida entre
os 12 ou 14 anos e 21 ou 25 anos. Além de propor a criação dessa nova categorização dessa fase
da vida, propôs uma série de medidas que responderam aos anseios da sociedade sobre o que
fazer com esses jovens. Suas idéias são um pouco difíceis de serem analisadas atualmente, pois
as divisões e pressupostos com os quais trabalhou foram reapropriadas e distorcidas por
discursos subsequentes, e não são tão maniqueístas como as atuais. Ao mesmo tempo que
defendia a adolescência como um período de grande disposição, beleza, energia e transformação,
também eram instáveis e fáticos, pregava medidas disciplinatórias austeras, principalmente para
controle dos impulsos sexuais, como os banhos frios, também era muito machista e, por outro
aspecto ainda, dizia que os adolescentes devem ter oportunidades e tempo para sonharem, que “o
estudante deve ter liberdade para ser preguiçoso”.

Além da análise psicológica, não deixou de discutir as questões sociais. Sobre a urbanização,
disse que ela tendia “a amadurecer tudo antes do tempo”, por isso os jovens já agiam como
adultos, ao menos na criminalidade. Outro fato importantíssimo lembrado por ele é de que a
adolescência também é algo relativo ao próprio EUA, um país de jovens, como se a
efervescência cultural do país fosse análoga àquela dos adolescentes e que o país ainda havia de
crescer e serem “os maiores homens e mulheres que o mundo já conheceu”.

Recordo aqui a citação de John Lennon, que não é algo científico e está longe temporalmente
de Hall, mas não deixa de ser um índice cultural, de uma figura relacionada a um ápice da
juventude que foi os anos 60 e 70. Ele disse que “Somente nos Estados Unidos existem jovens,
no resto do mundo só há pessoas”. Sua afirmação é correta, pois o que era considerado como
adolescência e juventude em outros países não tornou-se difundido pelo mundo. Nas ditaduras
fascistas européias, por exemplo, foram adotados discursos disciplinadores e moralistas,
direcionadas aos jovens e seus pais, alertando para o perigo que os adolescentes corriam de
tornarem-se delinquentes caso não atendessem ao chamado da pátria e, obviamente, após as
guerras ainda haviam resquícios dessa categorização. Isso foi muito típico na Alemanha e possui
raízes em movimentos e grupos dedicados aos jovens, existentes desde o fim do século XIX,
como os Wandervogel.

Por fim, outra característica típica dessa fase nos EUA é sua sexualidade. O sociólogo Talcott
Parsons também foi importante nos estudos desses indivíduos, sendo o criador da expressão
“cultura juvenil”, e afirmou que ela, nesse país, tem como nota dominante “divertir-se, em
relação à qual existe uma ênfase muito forte nas atividades sociais com o sexo oposto”. Como
posteriormente a cultura dos EUA tornou-se predominante no resto mundo, tal concepção de
juventude também foi difundida.

Como a tendência da economia, desde a primeira revolução industrial, é a busca de novas


fronteiras mas todas elas já foram atingidas fisicamente, a juventude foi vista como um novo
mercado, o que resolveria um pouco a questão da criminalidade, já que os adolescentes
receberiam mais atenção da mídia além de passarem a preocupar-se com os padrões definidos
pelo mercado para poderem recebre a recompensa de poderem comprar e inserir-se na sociedade
como consumidores, como também aumentariam seus lucros.

A revista “Seventeen”, lançada em 1944, apesar de totalmente dirigida ao público feminino,


revela um pouco sobre esse movimento, já que as mulheres em geral sofriam tanta discriminação
quanto os jovens e também precisavam de uma válvula de escape, de alguma representação na
cultura e na mídia (que justamente nesse período fazia a transição para o que chamamos de
“indústria cultural”, não por coincidência um fenômeno americano principalmente). Os EUA
estavam em guerra, mais de 7 milhões de homens haviam sido recrutados, as mulheres recebiam
sua valorização através de sua necessária inserção no mercado de trabalho, o jazz e outros ritmos
“sensuais” para a época arrebatavam multidões delas, as “teen cantens”, espécies de bares de
matinê para menores, proliferavam como um espaço ao mesmo tempo de equilíbrio entre
liberdade para os jovens pois tudo ali era para eles (haviam mesas pingue-pongue, pista de
dança, máquinas de jukebox e de Coca-Cola), com o controle dos pais, pois sabiam onde os
filhos estavam e que esses estabelecimentos fechavam cedo. Além disso, outro fenômeno
anterior já havia conformado certas relações para essas mulheres: as lojas de departamento,
datadas da segunda metade do século XIX verdadeiros templos do consumo muito superiores,
relativamente, aos shopping-centers atuais, onde as mulheres poderiam também sentir-se livres,
fazerem compras, conversarem umas com as outras, ao mesmo tempo que seus maridos ficavam
tranquilos pois sabiam onde elas estavam, e apesar da maior liberdade de que gozavam, os
paradigmas básicos patriarcalistas permaneciam inalterados. A revista “Seventeen” também
exercia a mesma função, voltada porém para um público mais jovem, ou seja: aquelas que serão
futuras compradoras de lojas de departamento. A estrutura básica era a mesma das revistas
“teen” de hoje, com uma mistura de moda, auto-ajuda e publicidade, que apoiavam-se em uma
impulsividade e vitimização adolescente mais do que suposta, mas sim concluida de uma vasta
pesquisa dirigida pela revista, que definiu um verdadeiro perfil de sua consumidora típica: uma
jovem que tem dinheiro ou que influencia os pais no uso dele, que é jovem, influenciável e que
precisava de um garoto. Esse perfil foi seguido não só pelos produtores da revista mas também
divulgados como um kit para os publicitários, o que consolidou essa relação entre identidades
nas propagandas e nas revistas teen, que permanecem até hoje.

O que percebe-se claramente disso é que, nessa fase, o que foi apropriado (direta ou indireta,
consciente ou inconscientemente) de Stanley Hall é seu discurso sobre controle, sendo seu lado
sobre a fantasia juvenil totalmente restringido à moda e ao consumismo. Talvez agora fique mais
claro o que eu disse anteriormente sobre a obra desse psicólogo parecer tão misturada de
discursos contraditórios: é porque nos acostumamos a uma simplificação. João Freire Filho, um
intenso estudioso das culturas juvenis, afirma que uma infinidade de discursos surgiram para
justificar e produzir esse controle, baseados principalmente em “justificativas” biológicas, que
viam os jovens como descontrolados e impulsivos, articulado a isso também haviam discursos
jurídico-políticos, tanto sobre criminalidade sobre quanto a inserção desses jovens no mercado
de trabalho.

Freire Filho opõe esse estereótipo de juventude como problema àquele que a vê os jovens como
“caçadores de emoção”, bon-vivants, consumidores saudáveis de entretenimento, modernos e
criativos. Isso é importante como classificação, mas nos discursos acabam misturando-se sem
uma fronteira definida, como n’alguma revista que diz que os jovens devem se divertir,
aproveitar a vida, mas sem perder-se nas drogas e na promiscuidade sexual.

Em “Aline”, todos os personagens podem ser identificados, descritos e relacionados por sua
sexualidade e vida afetiva, além também da “juventude” de todos ser conflituosa:

- Aline, Pedro e Otto: neles isso fica mais claro, pois é a tônica principal o fato deles serem um
triângulo amoroso que vive junto, além de todos eles passarem por problemas considerados
típicos da juventude tardia e sua transição para a vida adulta. Pedro e Otto não tem uma carreira
definida, Aline sofre com a TPM e com a compulsão por estar magra, sua festa de aniversário é
famosa em toda São Paulo por ser a mais louca

- Dolores e Zé: os pais de Aline são ex-hippies frustrados, tanto com seu casamento quanto com
os ideais dos anos 60. Querem romper o casamento para voltarem a curtir a vida de solteiros. Zé
sempre sai para beber sozinho quando sente-se triste e Dolores tem saudades de sua vitalidade e
forma física

- Pipo e Rico: casal dono da loja que Aline trabalha. Apesar de sua homossexualidade ser quase
anulada na série, ela ainda aparece através do filtro da comédia romântica familiar, com os dois
sempre juntos apesar de todas as adversidades. Sempre recorrente também são as afirmações de
suas identidades como adultos modernos, conhecedores de música, principalmente rock’n roll e
também com um passado de muita loucura e “desbunde”, como os pais de Aline.

- Yuri Ferrari: analista de Aline, personagem que tinha uma relação mais sexual com ela na
tirinha, mas que na série aparece como um admirador dela, sempre interessado em sua paciente
enquanto a analisa e a ouve falar sobre sua própria sexualidade e afetividade. Também um
quarentão frustrado com o casamento e a falta de sexo nele, assim como Zé, semelhança essa
comprovada por um episódio onde o pai de Aline vai fazer uma sessão com ele e eles acabam
bebendo whisky e conversando sobre as mulheres.

- Dona Rosa: a síndica do prédio onde o triângulo amoroso vive. Representa a senhora purista
controladora dos impulsos adolescentes, principalmente de seu filho Wallace, um adulto que
ainda não abandonou a infância completamente e tem um amor platônico por Aline.

Esses são somente os principais, sendo que até as personagens que aparecem mais brevemente
mantém essa tônica sexual. A vocalista da banda de Pedro, Lola, tem como “esporte favorito”
roubar os namorados de Aline, além de transar com os membros da banda e usar sua sexualidade
para compensar sua inaptidão artística. O pai de Pedro, Jorge, também diz que perdeu tudo na
vida por causa de uma mulher, e no fim do episódio que participa termina com Lola. Zito, uma
ex-paquera de Dolores, com quem ela sai após separar-se de Zé, é um homem refinado, rico,
inteligente e adepto do sado-masoquismo.

A sexualidade e afetividade, portanto, acabam sendo os elementos motores da vida de todas as


personagens. Todas elas lutam contra o envelhecimento, contra a “caretice”, e a sexualidade é o
melhor terreno para se realizar essa disputa, para mostrar e realizar sua juventude. Vale ressaltar
que essa lógica está relacionada àqueles discursos citados anteriormente, que dizem sobre como
os jovens devem procurar o prazer, e que eles são extremamente sexualizados. Em geral,
portanto, essa atitude é tomada como afirmativa de uma identidade individual, e a própria
“ousadia sexual” é característica de pessoas de personalidade mais forte, ligada a uma
identidade adolescente, pois quando estão com a vida sexual e afetiva satisfeitas, as personagens
passam a sentirem-se mais seguras de si.

Wallace também busca realizar-se através de sua tentativa de iniciar uma vida sexual com
Aline. Através disso ele poderia afirmar-se como adulto perante sua mãe controladora e
castradora, o que também é uma concepção de que a criança (o que Wallace parece) não possui
sexualidade, remetendo-se ainda a todo o ritual da perda da virgindade como passagem para a
maioridade. Sua resistência a sua mãe expresa-se também em sua relação obsessiva com Aline,
através da boneca dela construida por ele e de um pequeno altar dedicado a ela que possui em
seu quarto.
Por fim, a própria Aline, que concentra o maior número de resistências através da sexualidade e
afetividade. Logo no primeiro episódio já fica claro que a opção por ter dois namorados é dela,
que é a dominadora na relação, o que ela afirma reiteradamente diante de todos. No piloto isso é
justificado tanto por sua ninfomania quanto pela necessidade dela e Otto dividirem as contas do
apartamento, mas depois não se toca nessas razões, mostrando o trio com uma paixão romântica
típica de um casal comum. Diante de seus pais, porém, Aline não encontra resistência, pois eles
já foram hippies e não se surpreendem com essa liberdade sexual. Diante de Dona Rosa, a briga
dela com a jovem sobre contas atrasadas no apartamento transforma-se em uma discussão moral
sobre o triângulo amoroso, em que ambas não cedem suas posições, sendo a síndica muitas vezes
abertamente criticada por seu pensamento retrógrado e purista.

Outro tipo de resistência com a qual ela lida é com a própria sociedade, com o público, não no
âmbito da história em si, da diegese. Ao agir tão escandalosamente e com tanta segurança, Aline
está desafiando os padrões sexualistas e adolescentes que existem na cultura. Como já dito, a
série é dedicada a um público que possui maior senso crítico e conhecimento que a média da
emissora e que, portanto, talvez possa lidar melhor com essas inovações, ter menos preconceito
ou pelo menos incorporar melhor esse texto. Também por essa questão do horário e de sua forma
de inserção na grade de programação seu impacto é mais discreto, pois sabe-se que a série terá
curta duração (de cada episódio e de cada temporada), o que deixa aliviados aqueles que não
gostaram do programa e também os produtores, que sabem que segmentarão mais facilmente o
público, já que estão inseridos na grade de programação fora de um bloco padronizado. Como já
demonstrado, a identidade de Aline possui muitos elementos pouco representados na TV, o que
sempre gera certa resistência do público, ou pelo menos certo estranhamento inicial, com o qual
esse discurso do programa deve trabalhar e acaba inserindo esses elementos no universo de
muitos espectadores, que provavelmente não os conheciam.

9 - Considerações finais

A série “Aline” foi aqui analisada segundo conceitos, teorias e ferramentas apropriadas a ela
mesma, ou seja, orientados por aquilo mesmo que foi visto em sua exibição. Sua classificação
nesse gênero foi identificada como extremamente relevante, pois ele conforma linguagens e
estruturas muito típicas. Toda a análise utilizou-se também do conceito de ambiente de cena em
sua concepção mais abrangente, que é da decupagem dos elementos utilizados na obra para sua
melhor análise e também exemplificação, o que foi feito de acordo com a necessidade de se
demonstrar como algumas idéias materializavam-se, eram colocadas na prática. Por fim, a
temática da sexualidade e da afetividade foi identificada como a principal da série, de acordo
com a estrutura narrativa, as personagens e a história, e também como sua principal inovação
cultural em certos âmbitos e perspectivas, como da TV ou da Globo, por exemplo, o que
colocam esses temas como os mais relevantes (ou pelo menos os mais exóticos) para o público
de “Aline”.

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