Você está na página 1de 12
Revita Crea de Cléncias Sociale Outubro 1991 SERGIO ADORNO (’) Depariemanto de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de Sao Paulo (Nucleo de Estudos da Violéncia) Violéncia Urbana, Justica Criminal e Organizagao Social do Crime (”) Nas duas ditimas décadas, as grandes dele democrdtico de exercicio do poder metrépoles brasileiras, mais particular _constituihoje desafio aimaginacaopolli- monie Séo Pauloe Ri deJaneiro, vem ca. A questéo fundamental reside em assistindo a uma mudanga signiicativa fazerprosperar uma politica derespeito no movimento de sua criminalidae. — dos direitos minimos docidado conde- Prossionado pela *opinido publica’, 0 nado encarcerado sem abrir méo das Poder Executivo tem suscitado e pro- fungbes repressivas dos aparelhos movidendo poucas iniciativas, entre as encarregados de conwole da ordem quais mudangas na legislagéo, mo- publica. Neste texto, procuro responder dernizacao co aparelho repressive de a esta questo com fundamento nos Estado, ampliacao da oferta de vagas _resullados de pesquisa sobre praiicas nas prises. Nesse horizonte, arelagéo judicidnas. entre pollticas publicas penais @.0 mo- AS duas Ultimas décadas, as grandes metrépoles brasi-_ Introdugaéo leiras, mais particularmente S&o Paulo e Rio de Janeiro, vem assistindo a uma mudanga significativa no movimento de sua criminalidade. A despeito das reconhecidas limitagSes das estatisticas oficiais, elas estao ai a espelhar o crescimento vertiginoso das ocorréncias criminais, como também a substan- cial transformagao dos padrées de comportamento delinquen- cial. Os assaltos abancos, trafico de drogas, sequestros, homici- dios, estupros indicam a consolidagao de um padrao coletivo organizado que contrasta com a aco do delinquente nocturno e solitério, o “meliante”, figura nostalgica cada vez mais conde- nada ao desaparecimento. Pesquisas e analises que vém sendo tealizadas porcientistas sociais nao desautorizam as percepgdes coletivas do aumento inusitado da criminalidade urbana nesta 1) Panicharam dainvestigagao as pesqulsadoras Ana Lia Pastore Schitz- meyer, Maria Angela Pinheiro Machado e Anamaria Cristina Schindler. (} Texto apresentado para a reuniéo “Human Rights, the Law and the Judiciary in Lain America’, promovida pela JCLAS, ISSRC, em Washington, Abri, 7-8, 1991. Em sua versdo orginal, mais extensa, este texto foi preparace para, apresentacao no ICongresso Luso-Afro- Brasileiro de CiénciasSocais @parao GT Sociologia do Desvio,do"Intemaional Congressot Socoogy (Madrid, +15 Jun, 1990), 146 Sérgio Adorno década. Com base em estatisticas oficiais de criminalidade ('), tem-se demonstrado o crescimento da chamada criminalidade urbana violenta (?) desde 1981. Nesse ano, a participagdo dos crimes violentos no total de ocorréncias criminais, no municipio de Sao Paulo (Brasil), era da ordem de 21,5%. Alguns anos mais tarde, mais precisamente em 1987, esse mesmo indice cresceu para 27,3%. Comparando-se com o crescimentodesua populagao, observa-se que os indices de criminalidade violenta, por cem mil habitantes, tenderam a elevagao, no periodo de 1982 a 1984, decrescendo a partir desse ano (*). Nos dltimos cinco anos, o poder executivo, pressionado pelos reclamos da “opinido publica”, vem promovendo investi- mentos na area de seguranca publica, representados pelo aumento do contingente policial e pela expansao de equipamen- tos. E mesmo possivel observar uma correlaco entre esses investimentos e a diminuig&o dos crimes contra o patriménio, verificadaa partir de 1984, No entanto, nao se observou compor- tamento idéntico no caso dos crimes contra a pessoa, que se elevam signiticativamente a partir desse periodo. Conquanto se reconhega sejam diferentes os motives que orientam o cometimento de crimes contra o patrimdnio, relativamente aos crimes contra a pessoa, a suspeita de maior protegéo dispensada a propriedade do que a vida suscita como pro- blema o proprio significado da Justiga numa ordem social domocratica. Caso se entenda que subjaz ao modelo demo- cratico de exercicio do poder politico o principio da prevaléncia do interesse comum sobre o particular, é de se esperar que a protecdo juridica da vida nao seja preterida face a protegao de outros bens. (°) Nao 880 poucas as limitacées dessas estatisticas. Ha uma defasagem, cuja magnitude na soc edade brasileira ¢ desconhecida, entre a criminalidade real © aquela deteciada pelos drgaos de coniengao. Nao poucas vitimas deixam de comuniaar o evento em virtude de razbes as mois diversas. Os registros primérios S80 organizados de acordo com critérios burocraticos ¢ administrativos, revelando muito mais o desempenho das agSncias de repressao e as poliicas de seguranca implementacas em determinacos periodos do que a massa de crimes praiicacos, Ademais, negociagdes envolvendo vitimas, agressores e agentes publicos, bem como pressdes no sentido de se elevar a produtividade dos drgaos poiiciais, ‘contribuem seguramente para perturbar a fidedignidade dos registros. V. Coelho (1978), Paix (1969), Wright (1987), Brant ofa (1960:162). () Compoem a chamada criminalidade urbana ocorrencias registradas de homicidios e tentativas de homicidio, roubo, latrocinio, \es6es corporais colosas, estupro @ tentativas de estupro. Exciui-se desso olenco 0 fur, que ¢o diforoncia do roubo (ou assalto, como é conhecido no senso comum), pois este refere-se & apropriagao de bem mével, alheio, meciante ameaca ou emprego de violencia. O latrocinio & a figura utlizada para nomear ocorréncias de roubo seguidas de homicidio. V. Cédigo Penal, artigos 155 @ 157. (}) Uma andlise pormenorizada do movimento da criminalidade urbana vio- lenta, nos municipios @ respeciivas regies metrorolitanas de Belo Horizonte, Rade Jengroe Sto Pau, eneonre-e om: Palxdo(1863),Coeho (1987) Brat at al, (1983). Essa relacdo entre politicas piblicas penais e o modelo democratico de exercicio do poder constitui hoje desafio & imaginagao politica brasileira. A questo fundamental reside om fazer prosperar uma politica de respeito aos direitos minimos do cidadao condenado e encarcerado sem abdicar das fungées tepressivas dos aparelhos de controle da ordem publica e sem abrir mao do papel desses aparelhos na preservacao da segu- ranga dos cidadaos. Entim, qual a policia, a prisdo e os tribunais adequados para fazer frente ao crime organizado, sem compro- meter os principios democraticos que devem dispensar protegao & vida e aos bens, materiais @ simbélicos dos cidadaos? Neste texto, procuro responder a essa questao com funda- mento nos resultados de uma pesquisa cujo objeto residiu na andlise de praticas de produgao da verdade juridica (*) (Fou- cault, 1980) tendentes a promover a condenagao ou absolvigao de sujeitos sobre os quais recai a imputagao de crimes contra a vida, que configuram matéria dos tribunais de jari (°). Acbservacao de praticas judiciarias configura campo privile- giado de estudo na medida em que possibilita apreender o (*) Segundo Foucault, “cada sociedade tem o seu regime de verdade, sua “polltica gefal” de verdade;isto 6,08 tipos de discurso que ela acolhee faz funcionar como verdadeiros: os mecanismos e as insiéncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, as maneiras como se sanciona uns e outros; as tecnicas © os procedimentos que 40 valorizados para obtongao da verdade; Qesialulo dacveles que 1ém 0 encargo de dizer o que funciona como verdadeira* (Foucault, 1979: 12). V. também Foucault (1980: 17). () Pesquisa realizada no Centro de Estudos de Cultura Contemporanoa — CEDEC. Excluiram-se do escopo da pesquisa todas as outras mocalidades de acgao delituosa contempladas também pelos tribunais judiciérios, que envolvem a Protecoao do patiménio, da liberdade sexual, da saide, dos costumes, da ingplumidade pabica, bem como crimes tivficados em outras legislaghes que'nao © Cédigo Penal, além de figuras tipficadas como contravengao penal. A pesquisa ‘eve como universo empirico ce investigagao 297 processos penais, instaurados Bara apuragao de esponsablidade nos ames doldsos contra a va, jlgados por um Tribunal de Jari da capital, no periodo de Janeiro de 1984 a Junho de 1868. Foram colectados dados a respeito do perfil social do vitimas, de agrossores, de testemunhas e do corpo de jurados bem como dados a propdsito da dinamica dos acontecimentos, desde a deteczao co facto passivel de confisco punitive alé a prociamacdo de'decisao pelo tribunal, perflanco-se um percurso que se inidia na policia com a instauragao do inquérito, prossegue no Ministério Publica com a apresentagao de deniincia, culmina em accéo penal na fase judiciéria — onde ganha relevoo embateentre, porum ado, manipuladores técnicos (investigadores, delegados, promotores, advogados ce defesa, peritos, julzes com suas estraté- gias) €, por outro, os protagonistas da acéo (acisadorese acusados) —, e encerra ‘com 0’ desfecho processual (cue pode rasultar om dociso condenatéria ou ~absoluiéria). A pesquisa privilegiou a comparagao entre o perfil social dos conda- nados € 0 dos absolvidos, com vistas a verficar os moveis extra-legais que intervmnas decis6es ucicidrias, o contrasie entre a formalidade dos cécigos e da organizagao burocrética e as préticas orientadas pela cultura institucional, 0 envecruzamento entre os pequenos acontecimentos que regem a vida cotidiana e 9 grandes acontecrmentas que regem a concentracao de podores no sistoma de Jusilca criminal, a intersecqao entre 0 funconamento dos apareinos de contencao da sriminalidade, a consiudo de rajetéiasbiogrfcas ¢ as operagbes de coniole fodial, Uma doserigao pormenorzada dos procadimentos, metodol6gicos ¢ das \écnicas aplicadas a invesiigacao encontra-se em Adomo (1989b). Violéncia Urbana As praticas judiciarias e@ 0 abuso de poder 147 148 Sérgio Adorno entrecruzamento, nos tribunais criminais, das “pequenas” historias de alguns homens que constroem trajet6rias particulares de trabalho, de comportamento, de desejo, de infortinio, de éxito, de fracasso e de destemor e a historia da punicao enquanto experiéncia, vale dizer enquanto “correlagao, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade” (Foucault, 1984: 10). No cenario dos tribunais, essa correlacéo manifesta os paradoxos de uma ordem juridica liberal, que supde um concepgao limitada e estreita de protego & vida, hoje incompativel com os padrées emergentes de cri- minalidade urbana violenta. As praticas judicidrias que deixam entrever abuso de poder manifestam-se no curso do processo penal, cujo desfecho é resultado de uma complexa operag&o, para a qual concorrem fundamentos objetivos e subjetivos. Por um lado, nao se podem ignorar os fundamentos de ordem institucional e burocratica, as caracteristicas de organizagao e {uncionamento do tribunal do juri, os determinantes legais e processuais consagrados nos cédigos e estatutos, 0 jogo de papéis entre os diferentes mani- puladores técnicos e protagonistas, demarcados por suas posigdes de acusadores ou defensores, de vitimas ou agresso- res. Subjaz aos autos uma certa ldgica que percorre um caminho que se inicia no Boletim de Ocorréncia Criminal (B.O.) e culmina na promulgagao da sentenga. Entre um extremo e outro, atraves- sam-se etapas e procedimentos formais: instaura-seo inquérito policial, para apuragao dos factos e da responsabilidade crimi- nal, oportunidade em que os investigadores partem em busca de suas verdades, testemunhas sao identificadas e localizadas @ instadas a falar sobre 0 que viram, sabem ou ouviram falar, provas sao coletadas e juntas aos autos, exames periciais e técnicos 40 requisitados para compor um primeiro esbogo definitivo, que sofrera retoques nas fases subsequentes, confir- mando-se em geral aquilo que jd est dito de antemao. Aremessa do inquérito policial a justiga configura sua trans- formagao em processo penal, momento nobre porque nele se consubstancia a verdade dos autos, solenemente proclamada nos tribunais. E justamente nesse momento que os determi- nantes formais se tornam mais salientes, talvez porque queiram dizer algo substancial. De facto, ha um verdadeiro monocérdio nos procedimentos processuais do promotor, do magistrado, do advogado de defesa. O promotor busca extraira maxima punigéo que 0 caso possa comportar. Apoiando-se nas provas coligidas no inquérito policial, promove a acusa¢ao, relatando os factos, referindo-se a materialidade do delito, ao indicio incontestavel de autoria, a existéncia de elementos qualificadores do crime. Ele costuma esmerar-se na argumentagao sobretudo quando se trata de contestar recurso impetrado pela defensoria. Os magis- trados, a despeito da posigao central que ocupam no curso do processo penal, acabam frequentemente servindo de caugao legal aos procedimentos da promotoria. Reportam-se quase sempre ao teor da denincia oferecida pela promotoria, aco- Ihendo inclusivé os argumentos apresentados por ocasiao das alegagées finais. A defensoria, por sua vez, cuida de rebater 0 ponto de vista da promotoria, extraindo das pegas processuais uma versao prépriados acontecimentos que possa sertraduzida segundo as regras legais que contestem ou atenuem a res- ponsabilidade penal. Nessa leitura, testemunhas, vitimas @ réu comparecem para referendar a verdade tecida nos autos, cunhada pelo corpo de jurados, consolidada na sentenca profe- rida pelo Juiz. Essa leitura sugere, por conseguinte, que amatéria cuidada 6 por essénciao crime; que os manipuladores técnicos agem no sentido de fazer reinar a justica, todos cientes de que concorrem para o exacto cumprimento da lei penal. Falhas podem existir e abusos de poder podem ocorrer. Porém decorrem da omissa0 de informagdes, da imprecisao dos depoimentos, da inadequada manipulagdo de procedimentos técnicos, de divergéncias na interpretacao dos textos legais. Nessa dtica, a justiga decorre de sua progressiva racionalizagéo e de seu aperfeigoamento técnico, Seus argumentos radicam em uma policia tecnica- mente eficiente, em cédigos modemos e coerentes, em justica célere. Outra, todavia, é a leitura que se pode obter quando estaoem jogo méveis subjetivos. Nesse Ambito, parece-se julgar coisa bem diversa do que o crime praticado. Cuida-se do mundo dos homens, de seus comportamentos, de seus desejos, de seus modos de ser, de suas virtudes e fraquezas, de suas qualidades e vicios. Nessa leitura, descortina-se 0 universo da cultura, no qual desfilam diferentes tipos humanos, os pequenos dramas da vida quotidiana, a violéncia endémica que subjez as relacdes sociais entre iguais, a pobreza que caracteriza a vida social dos protagonistas incidentalmente vitimas-agressores, a trama que enreda homens comuns e agentes da ordem em uma esquizo- frénica busca de conformidade e obediéncia a modelos de comportamento considerados normais, universais, dignos e justos, O que esta no centro do cenario é menos o crime e suas tepercussées. O que esta em disputa é menos a protecdo da Violéncia Urbana 149 150 Sérgio Adorno propriedade ou da vida. O que divide manipuladores técnicos e protagonistas 6 a protec¢&o de modelos juridicos de relagdes sociais entre homens e mulheres, adultos e criangas, brancos e negros, trabalhadores e no trabalhadores, modelos contra os quais resistem os protagonistas e a realidade dos factos. Contra uma “vontade de saber” (Foucault, 1977b) que mal se esconde por debaixo dos ritos processuais e se expressa num indisfar- gado desejo de auscultar as protundezas dos sentimentos dos protagonistas, sobretudo no que concerne ao exercicio de sua sexualidade, emerge com toda forga e riqueza a heterogenei- dade daqueles que, diferentes porém convertidos em desiguais, espelham uma outra “vontade’, a vontade de serem, frente aos tribunais e aos julgadores, vistos como iguais nos seus direitos, na sua condigao de cidadaos. Nesse ambito, a disputa processa-se noutro terreno. Nele, outros sd os fatores que concorrem para a absolvicéo ou condenagao. As questées burocraticas e processuais cedem lugar a uma busca de verdade que percorre a vida “pregressa” @ os antecedentes de agressores @ vitimas, 0 teor da confissao, as provas orais, a manipulacéo dos factos seja pela promotoria ‘ou pela defensoria, 0 comportamento da vitima, as possiveis interpretacdes que se podem extrair de documentos e certiddes Oficiais, os jogos de poder inerentes aos depoimentos testemu- nhais, agravidade da ocorréncia. Nesse territorio, nao estamais em pautaa severidade dalei penal, aseriedade dos procedimen- tos judiciarios e processuais, ajusteza da leidos cédigos, porém sutis jogos de poder, revestidos de saber juridico. O processo de criagdo judiciaria do direito penal passa nao apenas pelos autos, contudo por toda uma trama em que varios personagens interpretam e aplicam a lei ao caso concreto. Daf, nao 6 apenas o crime ou a pessoa do réu que estéo sendo objetos privilegiados, mas sobretudo a violéncia que ele repre- senta e que se faz presente na vida das testemunhas e dos jurados, geralmente habitantes da mesma regido. Nao resulta estranho que a maior ou menor vuinerabilidade de réus frente 20 arbitrio punitivo seja também fungo dos incontaveis preconcei- tos que grassam sobre apopulagao sob suspeitade ser perigosa e violenta. Além dos preconceitos que contaminam a verdade dos autos, ha teorias que orientam e sustentam argumentos dos manipuladores técnicos (*). Por fim, importa ressaltar que o (9, Conversas informais com promotores, defensores o magistrados permit ram identiicar tr6s teorias: primeiro, teoria dos tr8s pes, isto 6, 0s indiciados S40 pobres, prelos e prosiituias; segundo, teoriado MIB, ouseja, oquelevaaspessoas S'delinguiré a miséra, aignorancia ea bebida, torso, tooia danordostinidade”, Vale dizer, réus e vitimias Sao infelizes migrantes nordestinos. Até que pontoessas espaco do tribunal e dos cartérios configura densa rede de telag6es sociais que, bem ou mal, liga-se &decis4o judiciéria. HA construgao de verdades e jogos de poder por todos os cantos: dentro do cartério entre funcionarios, na sala do cafezinho, na “sala secreta” onde os jurados votam asentenga, noscorredores e até dentro dos elevadores, Nada disso pode ser desprezado. Esses resultados identiticam o perfil dos sujeitos privilegi dos pela aco penal, desfazem a imagem de uma justiga cega e neutra, relevam os debates e disputas de poder no interior dos tribunais, apontam a complexidade dos processos, descaracte- rizam a dimens&o exclusivamente técnica e juridica que se procura atribuir ao desempenho dos aparelhos de contengéo & criminalidade para, em lugar, fazer ressaltar suas determinantes politicas. Os processos penais compulsam falas de diferentes prota- gonistas, sejam eles julgadores ou julgados; ordenam, em certa temporalidade, uma complexa sequéncia de procedimentos técnicos e administrativos; disp6em em série os diversos ele- mentos que concorrem para o desfecho processual. Como resultado, traduzem 0 modo de produzir a verdade juridica que compreende tanto a atribuigao de responsabilidade penal quanto a atribuicdo de identidade aos sujeitos que se defrontam no embate judicidrio. Ademais, em circunstancias especiticas, 0s processos penais expressam um momento extremo nas telagdes interpessoais — a supressao fisica de uma pessoa pela outra que pée a nu os pressupostos da existéncia social, permitindo visualizar a sociedade em seu funcionamento, 0 jogo pelo qual no torvelinho de conflitos e tensdes subjetivas se materializa a ago de uns sobre outros em pontos criticos das. articulagées sociais, transformando o drama pessoal em social (Correa, 1983). Sob essa éptica, o drama pode ser observado em seu duplo registro: por um lado, em sua tradugdo juridica, em que os acontecimentos sao ordenados segundo cédigos pré-estabele- cidos, nos termos de regras fixas e formais; por outro lado, em sua versdo moral, na qual os acontecimentos so reconstruidos apartir de normas sociais nao escritas, informais, nos termos de quem julga ede quem processa. Trata-se de verses que podem estar ora em conflito, ora justapostas, ora convergentes. No cémputo final, no momento em que 0 ritual judiciario proclama tworias se mesciam com jurisprudéncia nao foi possivel aquilatar com clareza. No entanto, na medida em que, cada vez mais, o§ mévels extra-juridicos parecem interferit no deslecho processual, nada obsta de que se suspeite da ingeréncia dessas teorias nos julgamentos. Violéncia Urbana A justica criminal numa ordem democratica: dilemas e desatios 151

Você também pode gostar