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a ee ee Cu eC Cee y CT UU ee CC ee Bre Ree Cee UT) UCT e le aR e) POT SCs Politica energética e conflitos ambientais (ceee ee ee Colegio Terra Mater * AGRICULTURA FAMILIAR E REFORMA AGRARIA NO SECULO XXI Carlos Guanziroli / Ademar Romeiro / Anténio M. Buainain Alberto Di Sabbato / Gilson Bittencourt +O Vator Da NATUREZA Economia e politica dos recursos ambientais José Aroudo Mota * A Dirici, SusTENTABILIDADE Politica energética e conflitos ambientais Marcel Bursatyn (org.) Roberto Bartholo Jr. * Carlos Renato Mota * Maristela Bernardo Carlos A. Klink * Elimar Pinbeiro do Nascimento * Paul E. Lite José Angusto Drummond * Ivaldo Frota * Jodo Nildo de S. Vianna Marcel Bursztyn (org) A Dificil Sustentabilidade Politica energética e conflitos ambientais Garamond Direitos cedidos para esta edicio Editora Garamond Ltda. Caixa Postal 16.230 Cep 2.222.970 Rio de Janeiro, Brasil ‘Tel./Fax: (21) 2224-9088 E-mail: garamond@garamond.com.br Diagramagdo Luiz Oliveira Estidio Garamond ‘Sobre foto de Iara Brasileiro Revisao Atgemiro Figueiredo Solange Nascimento Elaine Mayworm ISBN: 85-86435-59-7 ‘Todos 0s direitos reservados. A reproducio nio-autorizada desta publicagio, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violacio da Lein® 9.610/98. beat Sumario Introdugao Maree! Burseyn . Primeira Parte Estado, energia e conflitos ambientais A Mais Moderna das Esfinges: Notas sobre Etica ¢ Desenvolvimento Roberto Barthelo Jr. As Principais Teorias e Priticas de Desenvolvimento Carlos Renato Mota .. Politicas Pablicas ¢ Sociedade Civil Maristela Bernardo Politicas Piblicas para o Desenvolvimento (Sustentivel) Marcel Bursebn O Papel da Pesquisa Ecologica na Gestio Ambiental ‘¢ Manejo dos Ecossistemas Carles A. Klink. Os Conflitos na Sociedade Moderna: uma Introduce Conceitual Elimar Pinbeiro do Nascimento ‘Os Conflitos Socioambientais: um Campo de Estudo ¢ de Agio Politica Paul E. Little Conceitos Basicos para a Anilise de Situacdes de Conflito em Torno de Recursos Naturais Jost Augusto Drummond... O Setor Elétrico e seus Conflitos: os Novos € 0s Velhos Desafios Toaldo Frota.. Energia ¢ Meio Ambiente no Brasil Joo Nildo de Souza Vianna .. Segunda Parte Visées dos Conflitos Conflitos em Torno da Geracao de Eletricidade no Estado de Rondénia Artur de Souza Mont UHE-Tucurui: Coaflitos socioambientais Sihia Maria Frattini Goncalves Ramos Desintrusio da Terra Indigena ¢ Implantacio da Interligagio Blétrica Venezuela/Brasil Carmétia de Maria Santos . O Olhar Indigena Jesus Cru, Ambrosio. Son . Uso do Solo Marginal aos Reservatérios Hidrelétricos Frederico Reichmann Netto.. Conflitos em Torno da Geracio e Transmissio de Energia Girinen Rocha Linha de Transmissio Itumbiara/Brasilia Thelma Santos de Médo... Col6nia de Pescadores de Rosario Oeste: implementacio do Empreendimento Hidrelétrico de Manso Claudio Amirico Cabral. Implantacio do Sistema de Transmissio € Distribuigio de Energia Elétrica nos Municipios do Estado do Pari Dalua Barroso Sobre os autores ... 191 209 243 249 257 Politicas Publicas para o Desenvolvimento (Sustentavel) Marcel Bursztyn tema seré desenvolvido a partir da apresentago de um conjunto ~ de cinco postulados, que scrvem de referéncia introdutoria, Em seguida, serio abordadas cinco questées, que devem nortear a reflexio sobre 0 pa- ‘pel eas condicionantes das politicas piiblicas para 0 desenvolvimento ~ sustentivel. Finalmente, ¢ pensando de forma propositiva, si sugeridos ‘cinco elementos, que representam imperativos a serem considerados. Trata-se de elementos que servem para orientar a teflexao sobre politicas ‘piiblicas como veror para a construgio de estratégias de futuro, em sintonia com os imperativos do desenvolvimento, em bases sustentaveis ¢ cocrentes “com a construgio de uma ordem social justa ¢ soberana. Na realidade, 0 “debate, que nao é recente, esté focado sobre o cixo do desenvolvimento. As “referencias teérico-conceituais remontam & préptia construcéo do Estado “-modemo, suas caracteristicas ¢ trajetéria a0 longo dos tiltimos 250 anos. A “insergo da sustentabilidade como um atributo indispensdvel a0 desenvolvi- mento é recente ¢ agrega-se como caracteristica que dé forma e consisténcia “especificas ao debate, mas nao substitu o acervo de reflexdes disponiveiss apenas Ihe dé uma identidade especial. O debate sobre desenvolvimento per- siste, embora condicionado por novos elementos que sio delineadores do presente ¢ condicionantes do futuro. E nao é possivel encarar hoje o desafio _ do desenvolvimento sem 0 qualificarmos como sustentével. 1. 05 cinco postulados _ Desenvolvimento — mentum pais se desenvolve sem um projeto nacional. Podemos afirmar, sem diivida, que todos os paises considerados atu- almente como tendo atingido niveis destacados de desenvolvimento, no Panorama mundial, empreenderam iniciativas voltadas a este fim com A Diricn SustenTaBiLioaoe uma antecedéncia consideravel ¢ em sintonia com um projeto de constru- gao de fururo. Isso significa a combinagao de pelo menos trés elementos: a visio de longo prazo, uma predisposigio a empreender reformas ~ 0 que significa vontade politica ¢ um arranjo entre as elites dirigentes — € o estabeleci- mento de instrumentos de indugao por parte do poder publico. O concei- to de projeto nacional sobressai como elemento indissociével de qualquer referéncia a iniciativas consistentes de construgio de pontes para o desen- volvimento. Educagao — nemhum projeto nacional de desenvolvimento cumpre seu papel sem uma ‘marcante componente educacional. Na verdade, todos os paises que atualmente podem ser identificados como desenvolvidos empreenderam processos de reforma — como marco fundador de seus projetos nacionais de desenvolvimento — em pelo menos trés aspectos: reforma agréria, introdugao de politicas de protegio social ~ como legislagao trabalhista ¢ previdencidria ~ ¢ institucionalizagio do en- sino fundamental universalizado, piiblico ¢ gratuito. No caso da educagio, vale ressaltar que se trata de um vetor de agio piiblica cuja maturagao se da a longo prazo. Prédios escolares podem ser construidos em pouco tempo, mas a formagao das pessoas requer mais tempo. Geralmente, é preciso um lapso de mais de uma geragéo para os resultados serem efetivos. Esse ¢ 0 tempo necessdrio para primeiramente preparar os formadores, pata depois multiplicar o processo. Assim sendo, para se pensar um projeto de mudangas de mentalidades, resultante da universalizagao da educagao, é indispensével a continuidade das politicas correspondentes. Estado — nemhum pais empreende um projeto nacional sem uma marcante presenga do Estado. No perfodo absolutista, na Europa, a organizagao burocritica do Es- tado se resumia basicamente a duas fungées: cobrar tributos (finangas) ¢ assegurar-se de que os tributos seriam pagos (justica/policia). De ld para c4, novas fungées foram incorporadas, refletindo a prépria evolugao da sociedade ¢ da economia: relagées exteriores ¢ defesa nacional, por exem- ea, ‘Maxce. Burszryw plo. O final do século x1x foi prédigo em termos de incorporagio de novas responsabilidades ao setor piblico, em fungao da adocio de politicas soci- ais, em geral, ¢ da universalizagéo da educacéo publica, a instituigao de sistemas de previdéncia social, o estabelecimento de legislagao trabalhista, dentre outras, mais especificamente. A experiéncia curopéia se espalhou pelo mundo, moldando a fisionomia dos aparatos institucionais do Estado. Mesmo que com certa defasagem de tempo — que chegou a meio século, no caso brasileiro -, as novas fungées incorporaram-se ao tecido institucional piblico. Algumas delas, como satide ¢ educagao, ja existiam como “servigos” na sociedade, ‘mas eram de cardter privado, restringindo-se, sobretudo, a esfera de enti- dades religiosas. O século xx se caracteriza, neste sentido, pela passagem & esfera piiblica de certas fungoes de interesse piblico da sociedade, como a satide e a educagio. Assim, seria de sc esperar que o Estado ampliasse sua insergao burocrética em tais dominios. Em sintese, pode-se afirmar que o Estado sempre cresceu como re- sultado da incorporagio de crescentes responsabilidades, legitimadas por “demandas” sociais. O crescimento das estruturas estatais pode se dar em termos horizontais, quando se trata do desdobramento de fungdes ja exis- tentes, mas que por sua complexidade necessitam de uma maior especiali- zacio burocritica. Nesse caso, trata-se de um crescimento quantitative; pois, embora reflita aumento fisico das estruturas, nao reflete a incorpora- 40 de novas fungées. Mas o crescimento das estruturas estatais pode se dar também de forma vertical, quando se trata da incorporagao de novas fungdes ao corpo das responsabilidades de Estado. £ 0 caso, entao, da previdéncia social ¢ da regulamentagao do trabalho, além da satide ¢ da educagao piblicas. Quando isso acontece, o tecido institucional do Estado cresce em termos qualitativos, além do incremento quantitativo evidente. Notureza — nenhum projeto nacional se materializa sem a apropriagao de uma base de recursos naturais (agricuhtura, extragéo, pithagem colonial, indstria de transformagéo). Foi preciso muita pilhagem de riquezas das colénias ¢ uma explora- a0 do campo pelas cidades (produgao de excedentes alimentares) para que a industrializagao triunfasse, valendo-se, em seu proceso, da transfor- magio de uma base natural em valores de uso (carvéo em energia, ferro - A Diricit Sustentasiuoape em méquinas, madeira em lenha, plantas ¢ animais em matérias-primas ¢ alimentos). Onde a indvistria gerou desenvolvimento econémico, as florestas fo- ram devastadas, 0 solo empobreceu, as jazidas minerais se esgotaram. O desenvolvimento foi insustentavel, & luz dos nossos horizontes de percep- sao atuais. Sustentabilidade — nenhum pais desenvolvido da modernidade sacrificou seu desenvol- vimento econdmico original em fungéo da consciéncia da finitude dos recursos naturais. A consciéncia dos riscos ambientais, em termos amplos, resultantes do crescimento das atividades econémicas, jé servia de alerta a alguns poucos pensadores, desde os primérdios da Revolusao Industrial. Malthus (1798), que chamou a atengao para a defasagem entre crescimento demogréfico ¢ limites naturais & oferta de alimentos, pode ser considerado como um precursor — ainda que involuntirio — do que depois veio a se constituir como pensamento ambiental. A Iégica da economia industrial é, em sua csséncia, ambientalmente insustentdvel, a menos que sejam impostas posturas reguladoras (politicas piiblicas ou mudangas comportamentais). Foi preciso dois séculos de in- dustrializagdo para que se tornasse evidente a necessidade de se impor resttigdes ao crescimento da economia, em nome da consciéncia da finitude dos recursos naturais ¢ da degradagio do meio ambiente (veja-se, a respei- to, 0 relatério ao Clube de Roma, claborado por Denis Meadows, em 1971 - The Limits to Growth). As teorias econémicas focaram-se sobre modelos que supunham uma trajetéria linear, como se a construgio do desenvolvimento econdmico fosse uma via acessivel a todos os povos, distantes uns dos outros apenas por um intervalo temporal. Na verdade, a histéria revelou que uns poucos aurores que afirmavam haver impedimentos estruturais a essa fSrmula tinham razio. Além das barreiras tecnolégicas tradicionais, a crise ambiental que se evidencia no ultimo quartel do século xx revela também um novo fator limitante. Limites ecolégicos ao crescimento da economia se apresentam justamente no momento em que alguns dos mais pobres podem vislum- brar possibilidades de fazer 0 mesmo que os mais ticos fizeram: transfor- mar 0 estoque de natureza em fluxo de produto ¢, portanto, de riquezas mater is. 62 ‘Mazcet Busszryn 2. As cinco questées Crise do paradigma estatal — fod nova fungdo publica implica crescimento das estrutu- ras estatais (seja no caso do Estado que faz ov do quetaz fazer). Desdobramentos horizontais ou crescimento vertical do Estado im- plicam ampliacao das estruturas fisicas das instituigGes de governo. Isso se dé seja pela légica intervencionista - 0 Estado empreendedor, tipico das experiéncias socialistas e keynesianas -, seja pela légica dirigista — onde 0 Estado impée regulamentacées que condicionam a conduta de atores pri- vados. Em ambos os casos, a presenga do Estado € marcante, embora a magnitude das estruturas burocraticas possa ser diferente. Até a eclosio da crise fiscal universal, que se tornou evidente apés 0 choque do petréleo da primeira metade da década de 1970, cada vez que uma nova fungio publica se tornava necesséria 0 poder ptiblico respondia com um incremento de suas estruturas burocraticas, resultando em cres- cente peso do Estado no conjunto das economias nacionais (maior parti- cipagio estatal no pis). A crise fiscal tornou evidente a incapacidade do poder puiblico em seguir crescendo indefinidamente, reagindo a cada im- pulso de novas demandas sociais. Os tiltimos 25 anos do século xx revelaram um paradoxo: por um lado, novas ages regulatérias foram se tornando imperativas — como é 0 jade do Estado em responder a tais demandas, nos moldes como historicamente caso das necessdrias politicas ambientais -; por outro, a capa sempre o fez ~ crescendo as burocracias correspondentes -, se esgotava. Mas ¢ importante assinalar que, se o aumento do Estado foi perden- do legitimidade social & medida que 0 dnus do custeio das instituigées governamentais foi se tornando insuportivel aos atores econdmicos (em- presas e contribuintes em geral), néo houve, por outro lado, uma retracéo das demandas sociais por ag6es reguladoras. Assim — ¢ os exemplos dos paises onde 0 welfare state se cristalizou sio clogiientes - no houve uma Fentincia da sociedade aos mecanismos historicos de protesao social, como satide, educagéo e previdéncia, mesmo diante do avanco das teses minimalistas neoliberais, que influenciaram 0 panorama politico euro- peu, na década de 1980. O balango, ao final do século xx, é de que, frente aos impasses como a crise fiscal ¢ a perda de legitimidade do modelo keynesiano, fica dificil 63 A Diricit SUSTENTABIDADE cumprir com as novas fungées, seguindo o mesmo padrao do passado. Mas nao se trata de fugir ao cardter regulador do poder piiblico. Trata-se, sim, de buscar novas formas de regulacao das disfungées espontancas que nao se corrigem pela magica “mio invis(vel” do mercado. Nesse sentido, sobressai, da crise do Estado, o desafio de fazer mais, com menos; cumprir a fungao regulamentadora, com menor ago direta (fazer menos ¢ fazer mais). Entretanto, contrariamente ao que teza a cartilha neoliberal, o exer- cicio da regulacao, num contexto em que a ago direta do poder piiblico se rettai, valendo-se da descentralizagao ¢ da terceirizagao (principio da subsidiariedade), implica maior necessidade de regulamentagio. A sustentabilidade pressupoe solidariedade — Aaje, 6 preciso solidariedade com as futu- 10 geragées; mas ainda néo aprendemos a ser soliddrios com o “outro”' no presente. O emprego do conceito de igualdade associado aos direitos civis é do século XVIII, 0 que, em termos civilizatérios, € muito recente. Até a for- mulagao da idéia de um contrato social, nos moldes propostos por Rousseau, as duas oposigées possiveis & igualdade ~ diferenca ¢ desigualdade — eram ontologicamente entendidas como fatalidade, transcendentais a existén- cia de cada individuo e, portanto, nao passiveis de serem revertidas. A luz de nossos valores contemporaneos, a diferenga nao se apresenta como algo necessariamente negativo; ao contrario, em seu aspecto diversi- dade, ela pode até significar riqueza cultural. Jé em relagao & desigualda- de, todas as utopias modernas tém buscado, sendo eliminas, pelo menos reduzir. O projeto iluminista, que serviu de referéncia 4 construgao do Esta- do moderno, parte da imagem da Declaracao dos Direitos do Homem ¢ do Cidadao, da Franga de 1789, que estabelece que “os homens nascem ¢ permanecem livres ¢ iguais em direitos (...]”. Entretanto, transcorreu mais de um século pata que, de fato, os direitos civis basicos passassem a inte- grar as agendas de politicas puiblicas. E 0 caso dos direitos ao trabalho regulamentado, a protesao social, & educagio e ao sufrdgio universal Ja 0 uso da expressio solidariedade, associada a aspectos nao estrita- mente religiosos, é bem mais recente. A solidariedade entre membros de um grupo social, movida por afinidades corporativas ¢ pela identidade de interesses comuns, surge com o fim das politicas de compensagao da po- breza (anti corn laws), na Gra-Bretanha do segundo quartel do século xix. 64 MARCEL BURSZTYN: Foi entao que as classes menos favorecidas tiveram de se organizar para suprir as lacunas da protecéo que o Estado liberal de enti deixou de prover. Surgiram af as associagées de ajuda muitua, as cooperativas, os sindicatos, formas organizativas fundamentadas na solidariedade. Com Marx, o conceito evolui, passando a gozar de um estatuto préprio de prin- cipio politico: a solidariedade de classe. Mais tarde, Durkheim faria uma diferenciaggo entre a solidariedade mecinica (atdvica) ¢ a solidariedade orginica (inerente a consciéncia da interdependéncia dos individuos na divisio do trabalho). A referéncia a génese da codificagéo dos conceitos de igualdade solidariedade ajuda a emoldurar 0 debate, do final do século xx, sobre a sustentabilidade. Trata-se, agora, de inserit nos projetos de utopia a soli- dariedade com as futuras geracées, que tém o dircito de usufruir? um meio ambiente saudavel, que Ihes permita no apenas sobreviver — em termos econdmicos e ecoldgicos -, mas sobreviver com qualidade de vida nao inferior 4 nossa. Ora, ainda nio resolvemos a igualdade e a solidarie- dade em relagio ao outro no interior de nossa prdpria geragao, ¢ temos de encarar 0 desafio de construir pontes de solidariedade com um outro que no nasceu ainda — € que no temos seguranga se nascerd, © desafio é imenso: reduzir desigualdades intrageracionais (promo- ver a justia social) e, a0 mesmo tempo, evitar uma degradacao ambiental que signifique provocar desigualdades intergeracionais. A ampliagio do conceito de solidariedade das dimensées religiosa, corporativa ou de classe para a esfera da ética é um elemento de base da busca do desenvolvimen- to sustentavel. Globalizagao — pode fer um aspecto positive, na medida em que expée o mundo a consciéncia de que somos um sé ‘sistema’ (ambiente global): mas é negativa por criar borreiras invisiveis que hoje tornam “desnecessdrias” nag6es inteiras. Enfocando pelo angulo ambiental, a consciéncia de que o planeta é mais do que apenas um conjunto de nagées constitui um avango. O episé- dio de vazamento de combustivel atémico na usina nuclear deTchernobyl, em 1986, na Ucrania, foi, sem duvida, marcante para tornar evidente a necessidade de vermos 0 mundo como um todo, cujas partes so interdependentes. Vigorava, até entao, um pensamento geopolitico tipico do periodo da Guerra Fria, onde se considerava que tudo 0 que ocorresse 65 .0 seria bom. Foi preciso a tragédia para que s¢ de mal em territério percebesse que estamos todos no mesmo barco. A metdfora da Hipétese Gaia, de James Lovelock (1979), ou a ima- gem da espaconave Terra, de Kenneth Bouding (1973), se revelaram ver- dadeiras: somos todos passageiros da mesma nave. Mesmo que viajemos em condigées diferenciadas ~ uns na primeira classe e outros no compatti- mento de bagagem — somos suscetiveis as mesmas vicissitudes, em caso de acidente. Tchernobyl serviu para mostrar que nossas condigées de sobrevi- yéncia como espécie, ¢ também nossa qualidade de vida no presente, est4o condicionadas ao modo como outros povos — outro grupo de passa- geiros da nave — se comportam. Uma ligao do acidente é, neste sentido, a evidéncia da necessidade de algum tipo de solidariedade planetdria, onde todos saibam que ¢ preciso zelar pelas condigdes do habitat (oikos) co- mum. Mas se por um lado a consciéncia da globalizagio pode ser vista como positiva, por outro este mesmo processo revela uma dimensio per- versa, quando visto pela dtica do modo como as relagdes econdmicas vem se dando. Com uma rapidez enorme, o mundo embarcou em um modelo que esta condicionado a novos modos de produgao, onde cada ver é preci- so menos trabalho vivo para produzir mais mercadorias. Com isso, au- menta o numero de individuos que se véem excluidos dos sistemas produ- tivos formais, tornando-se, no limite, desnecessdrios. Nao sio emprega- dos, nao auferem rendimentos do trabalho, néo sio consumidores — pelo menos no modo como se espera no “mercado” —, representam nus & sociedade, pois implicam custos de politicas sociais e acabam se tornando perigosos a seguranga coletiva. As sociedades, ao final do século xx, parecem cindir-se em dois gru- pos bem distintos: os que estao dentro, que pertencem ao mundo da globalidade econémica e cultural — os incluidos — ¢ os que vio ficando de fora — os excluidos. Nao se trata mais de pobres, que sempre existiram ¢ que sao aqueles que tém condigdes de vida precdrias, por estarem em posigao inferior na hierarquia econdmica ¢ social; nem de marginais, que so os que tém vinculacio precdria com o mercado de trabalho. Pobres marginalizados fazem parte do mundo do trabalho; sio, com todas as ressalvas cabiveis, necessédrios. Afinal, 0 produto de seu trabalho serve ao conjunto da sociedade: seja porque produzem alimentos baratos, em siste- 66 ‘Mace. Bursztw ma de agricultura camponesa; seja porque prestam servigos pessoais ¢ do- mésticos nas cidades; ou por integrarem indiretamente parte de processos manufatureiros modernos - como ¢ 0 caso dos catadores de latas. Merece referéncia 0 fato de que a radicalidade com que a globalizagao produz o fendmeno da exclusio também estd gerando um fosso intransponivel entre nagées ricas ¢ pobres. Em outras épocas, mesmo quan- do submetidos dominagio colonial, os povos das periferias do sistema econémico dominante tinham um lugar no mundo. Afinal, eram produ- tores de algum tipo de matéria-prima, ou eram fonte de pilhagem de alguma riqueza. Eram tteis ¢, portanto, necessérios. Hoje, a0 contririo, constata-se que nagées inteiras no tém fungo dentro do sistema globalizado de interdependéncia econdmica. Sio paises inteiros que pas- sam a ser estigmatizados como pirias; ja ndo se necessita mais de sua parca produgio de amendoim; sio perigosos redutos de migrantes potenciais, que pressionam as fronteiras dos paratsos globais. A globalizacio, amparada no neoliberalismo, se propde a escancarar as fronteiras as mercadorias, mas constréi muros ¢ barreiras sanitérias para deter as hordas de miserdveis fora dos limites tertitoriais das nagGes ricas. E, ao se agregar a dimensao ambiental & rea ade da globalizagio, um novo € perverso comportamento torna-se plausivel, ampliando ain- da mais 0 fosso entre a riqueza ¢ a pobreza, rompendo os lacos de uma possivel solidariedade de espécie. Trata-se da identificagéo dos mais po- reproduzem-se a taxas mais bres como riscos a0 meio ambiente, po aceleradas, aumentando a pressio sobre 0 meio; provocam degradacio do meio fisico, pois queimam lenha para cozinhar (quando tém o qué!), despejam seus esgotos nos cursos d’dgua, sem prévio tratamento; sio vetores de doengas tertiveis, como a aids ¢ 0 ebola; competem, em tilti ma instincia, pelo acesso a recursos crescentemente escassos, como 0 ar ca dgua. Num quadro de gigantescas disparidades entre povos do planeta, nio ¢ dificil supor que surjam teses eugénicas ou racistas que, identifi- cando 0 outro como um dessemelhante, passem a considerar nagdes inteiras como ameacas ao ambiente sauddvel do planeta. Pode parecer ficgdo pessimista, mas basta um olhar sobre a Africa para que se perceba como a globalizagio e a modernidade convivem com aberrantes condi gées de vida infra-humanas. 67 : Neoliberalismo — conspira contra a solidariedade, a sustentabilidade e o papel do Esta- o, na promogio de um projeto nacional (coloca o crescimento acima da egiidade, a eficiéncia @ a competitividade acima da qualidade de vide e do ambiente). O ncoliberalismo, em sua forma idcolégica, estabelece que deve ha- ver uma redugio simultinea do tamanho fisico do Estado (desestatizacao) € da agdo reguladora indireta (desregulamentagio). Evidentemente, 4 medida que hé disfungées espontineas que nao sao automaticamente reguliveis pelo mercado, o Estado minimo provoca a incapacidade regulatéria, comprometendo, em iltima instancia, a governabilidade e a governanga. Na tealidade, uma das grandes armadi- thas do neoliberalismo tem sido a autofagia das instituigdes puiblicas, viti- mas de um voluntarismo demolidor, por parte de ditigentes que cumprem papel antiestatal por dever ideoldgico. Se as regulamentagGes vigentes sdo extemporineas ou ineficientes, a solugio nao deve ser a desregulamentasio, mas a “re-regulamentagio”, pois a0 mau Estado nao deve se opor 0 nao Estado, mas o bom Estado, sob tisco de se perder a capacidade reguladora, fato que provoca tragédia cole- tiva, Educagio — por ser portadora de mudangas de attude, é base para’ a sustentabilidade; ‘mas tem sido voltada a um modernidade técnica. Ji foi dito que a construgéo de uma situagao fucura melhor parte de ‘um projeto nacional ¢ que este nao pode ser concebido sem o ingrediente educagio. O triunfo da sociedade industrial nas nagGes hoje ricas se valeu, em grande medida, do papel da educagéo como formadora de mentalida. des. Ao instituir sistemas universais de educacéo, aqueles pafses lograram dois feitos: trazer para dentro do panorama social institucionalizado as classes menos favorecidas (efeito legitimidade) ¢ imprimir as classes traba- Ihadoras um cardter de afinidade com as técnicas (cfeito cultural). Mas a légica subjacente a sociedade industrial est baseada na razio instrumental, em principios utilitaristas. Afinal, desde a Revolugao Indus- trial, a racionalidade cientifica justifica uma mudanga de postura notdvel: @ natureza se torna recurso natural ¢ as pessoas viram recurso humano. A ordem é, portanto, transformar estoques de riqueza natural em fluxo de riqueza econdmica. O conceito de progresso passa, neste sentido, a estar 68 ‘Mace. Burszren associado 4 capacidade de se “dobrar” a natureza. Quanto maior a habili dade de um povo em transformar a natureza em produto, maior sua rique- za. O conccito de modernidade, inevitavelmente, se reveste de um cardter técnico, afastando-se dos aspectos éticos.! Quando a agenda do desenvolvimento passamos a agregar o princi- pio da sustentabilidade, temos de chamar a atengio para dois aspectos: primeiramente, que a educagao, sendo vetor de mudancas de atitude, representa condigao necessdria, sendo sua promogio responsabilidade do Estado; em segundo lugar, tanto educagdo quanto sustentabilidade pres- supéem continuidade. Ora, no momento em que o Estado se encontra em crise — fiscal, de legitimidade, de identidade, de condigées de governabilidade ~ é relevante atentar para os riscos de a descontinuidade © falta de efetividade das politicas publicas inviabilizarem as estratégias de desenvolvimento sustentavel, 3. Os cinco imperativos Estado — & preciso fazer mais com menos (fazermenos @ fazermais). Um grande dilema da modernidade é que as sociedades tornam-se cada vez mais complexas, exigindo forte acéo reguladora, mas a capacida- de da regulagio estatal se vé limitada pelo avango do neoliberalismo, que & causa e conseqiiéncia da crise do Estado. Ja vimos que uma falécia (ou armadilha) da ideologia neoliberal é propor a reducio do papel do Estado na economia (desestatizacao) ¢, a0 mesmo tempo, reduzir a fungao reguladora ptiblica por meio da desregulamentagao. Ora, a regulagéo, quando nao se dé automaticamente pela “mio invisivel” do mercado — 0 que nem sempre ocorre, principal- mente onde o mercado ¢ imperfeito -, deve ser exercida pelo poder pibli- co, que atua como “mio visivel”, Diante das limitagGes fiscais ¢ operacionais, a governanga moderna tende a buscar mecanismos de regulagio onde o Estado se torne, sempre que possivel, um ator indireto (mao nao ausente). Neste sentido, a0 con- tratio de desempenhar fungées empresariais, o Estado deve concentrar-se na regulamentagao, na gestéo de contratos sociais, na promogao de instru- mentos ¢ politicas indutoras de estratégias planejadas, na garantia da pro- tego social. 69 - A Diricn Sustentasiuioaoe Trata-se de um Estado que busca conciliar pelo menos trés principios complementares: a subsidiariedade, que significa passar a outras instncias tudo 0 que nao precise ser executado pelo poder central (descentralizar, desconcentrat, delegar e mesmo privatizar); a coordenagao, que corresponde ao cardter indelegivel do poder puiblico (‘quem governa € 0 governo”); ¢ a flexibilidade, que implica nao tratar isonomicamente instancias que sio diferentes, nao promover a subsidiariedade de cima para baixo ¢ nao estabe- lecer regulamentagées gerais aplicaveis a qualquer contexto. O novo Estado, que emerge do turbilhao antiestatal neoliberal, deve se identificar mais com a fungao do timoneiro do que com a do remador (steer more, row less). Participaco — é preciso /ortalecer os canais que permitam o envolvimento da sociedade nas decisies puiblicas. O modelo de democracia moderna esta baseado na formula de Montesquieu, que concebeu o Estado bascado nos trés poderes indepen- dentes ¢ complementares: Legislativo, Exccutivo ¢ Judicidtio. Diferente- mente de épocas pregressas, em que a vontade do soberano prevalecia sobre a dos stiditos ¢ a legitimidade emanava muito mais do temor do que do amor, na democracia 0 povo tem o diteito de escolher seus represen- tantes. E claro que a construgao da democracia, desde a Revolugio Fran- cesa, vem seguindo uma trajetéria tortuosa, revelando um lento processo de universalizagao da cidadania e mostrando-se vulnerdvel a recuos notd- veis, como € 0 caso das ditaduras e totalitarismos. Entretanto, a despeito das fragilidades, ¢ inegavel que nesses tiltimos dois séculos 0 mundo avan- gou no amo da: democtacia representativas A crise do Estado, ao final do século xx, mostrou que, mesmo com todos os avangos, a construgio da democracia se vé fragilizada pela inca- pacidade do poder publico em resolver todas as crescentes complexas demandas da sociedade civil. O modelo de decisao ¢ de gestao ptiblicas apresenta sinais de satura¢do, ¢ as perspectivas de reestruturagao do Esta- do, apés a fase desestruturante do neoliberalismo, apontam para a cons- trugdo de mecanismos de partilha do poder deliberativo e Executivo, in- cluindo-se representacoes diretas da sociedade. ‘A emergéncia de formas de representacao de segmentos sociais orga- nizados é uma decorréncia moderna de um fenémeno que ja se verificava 70 E ‘Magcer Burszryn no século xix. Naquela época, como ja assinalado acima, o recuo liberal da fungio protegao social exercida pelo Estado, na Gra-Bretanha (as anti corn-laws), assim como a degradacao das condigées de vida, levaram a0 aparecimento de formas espontaneas de organizagao dos grupos desfavorecidos, em torno de associagées de ajuda miitua, cooperativas sindicatos. Eram instincias voltadas ao bem-estar ¢ & defesa de interesses corporativos. A novidade, que emerge no ultimo quartel de século, é a ascensio de representagées da sociedade civil aos mecanismos decisérios ptiblicos. Trata- se de processo que segue um duplo sentido: por um lado, o crescimento das organizagées ndo-governamentais tem implicado aumento de seu po- der de barganha no jogo politico, revelando uma cada vez maior demanda de insergao na esfera ptiblica; por outro, a propria debilidade das estrutu- ras de governo — cotoldrio do neoliberalismo — vem tornando o poder puiblico mais flexivel & participacao de novos agentes nas decisées. O resultado tem sido o crescimento de formas colegiadas de decisio e de gestéo de polfticas puiblicas, onde a sociedade civil tem assento. Um dos setores mais consolidados onde hd partilha do processo decisério tem sido o da ciéncia e tecnologia, onde se cristalizou uma estrutura de julga- mento por pares, ou seja, a alocacao de fundos piblicos obedece em gran- de medida a apreciagio pela propria comunidade de usudrios dos referi- dos fundos. O crescimento das politicas de meio ambiente e das estrutu- ras governamentais correspondentes também vem mostrando um notavel avango na participacao de setores organizados da sociedade — democracia participativa. O fortalecimento dos mecanismos da democracia participativa vem sendo estimulado por organismos internacionais como o Banco Mundial, que adotou a bandeira do fortalecimento da sociedade como imperativo nos programas que financia. A expresso empowerment (empoderamento) se consagrou como férmula indispensavel em toda a claboragao de estraté- gia de desenvolvimento sustentével. Associada a cla, 0 jargio da burocra- cia internacional também adotou 0 conccito de stakeholder (atores envol- vidos no proceso) como referencia indispensdvel. E preciso chamar a atengao para dois pontos. Primciramente, mesmo que a partilha do processo decisério puiblico seja um avango, ha de se ter em mente que as representacées da sociedade civil correspondem apenas a n . alguns segmentos mais organizados; nem todos os atores conseguem se fazer representar (qual a representatividade das representagdes?). Em se- gundo lugar, e como conseqiiéncia, nfo se pode supor que os mecanismos da democracia participativa substituam a democracia representativa, Esta iltima, embora suscetivel a desajustes e vicios, ¢ a forma mais universal de representacao das vontades coletivas, a medida que esteja legitimada no sufrdgio democratico. Formas como decisées colegiadas ¢ orsamento participativo sio ino- vag6es que tornam as decisdes piblicas mais acertadas e leg(timas, evitan- do inclusive desperdicio de recursos. E sio, sem diivida, excelentes instru- mentos de garantia da continuidade das politicas publicas. Mas é relevan- te considerar que o processo de decisoes piblicas ¢ pretrogativa indelegdvel do poder piiblico: partilhar decisées ¢ gestio com representagdes da socie- dade civil ¢ importante, mas nao se deve transferir a esfera publica para a algada privada. Globalizacao sem exclusdo — é preciso ndo ser qpenas vitima da, globalizagéo. Panacéia do iiltimo quartel do século xx, a globalizagio acabou assu- mindo o lugar de todos os projetos falidos de utopia. No lugar da solidari- edade de classes, elemento fundador da formula marxista, a nova ordem mundial acena com a homogeneizacio cultural de um mundo intrincadamente ligado por relagdes econdmicas franqueadas. A liberalizagao do intercimbio de mercadorias e servicos, inerente ao triunfante neoliberalismo, também provoca uma formidével circulagao de informagses, transmitindo uma certa sensagao de que o planeta se conver- teu em aldcia global. Afinal, é possivel assistir aos mesmos programas de televisio, nos quatro cantos do mundo, em tempo real. E é possivel também comer, sem riscos de surpresas, o mesmo hambirguer em qualquer pais Entretanto, se por um lado temos 0 direito ao acesso a um padrio comum de consumo, por outro as possibilidades efetivas de concretizat desejos sio muito diferentes, segundo os niveis de inser¢ao de cada um no contexto social. No interior de cada socicdade, as desigualdades vio se acentuando, de forma a que um preocupante contingente de pessoas se vé excluida das benesses da globalizagio Nao ha diivida de que um corolério da forma moderna de globalizacio neoliberal é a exclusio social. Neste sentido, nao se pode desprezar o fato n de que o triunfo da economia liberal passa pela precarizagao das condi- goes de vida de um contingente de vitimas do processo. Nao se trata aqui de bradar contra o encurtamento das distancias que separam as sociedades do planeta, mas hd de se evitar que a aproxima- ‘do de elites privilegiadas de diferentes paises se dé ao custo da ampliagio do fosso que separa a opuléncia da miséria. A missio desestruturante do neoliberalismo se cumpre com 0 desmantelamento das estruturas de governabilidade, nos moldes construidos pelo welfare state ou pelas experiéncias de socialismo real. O desafio atual, na fase pés-neoliberal, é 0 da refundagao da fungio reguladora publica. O mercado revelou-se omisso ou perverso na tedugio das desigualdades. Agora, qualquer férmula a ser tentada deve imperativamente estar voltada ao combate a exclusio. Se a globalizacao tem lado bom, que se 0 estenda a todos. Mudancas de atitude — é preciso ambientalizar a educagao. O aumento da consciéncia quanto a gravidade dos problemas ambientais tem levado a uma crescente convergéncia dos educadores quan- to ao imperativo de se promover a educagéo ambiental. Alids, em intimeros campos do saber tem havido um despertar para a dimensio ambiental: direito ambiental, economia ambiental, engenharia ambiental, geologia ambiental ¢ rantas outras. ‘Trata-se de importante avango que, embora seja necessdrio, nao é suficiente para resolver os problemas do meio ambiente. Estes, por sua natureza complexa ¢ multidimensional, muitas vezes carecem de formulas que integrem conhecimentos produzidos em varios campos das ciéncias, numa sintese que transcenda o Ambito de cada disciplina. O quadro a seguir resume o desafio atual da busca de se resolver os problemas complexos com as ldgicas cientificas de que dispomos: Realidade ~ complexa, indisciplinada Ciéncias - racionais, disciplinares Olhares/equipes ~ multi(pluri)disciplinares (soma de disciplinas) Métodos/préticas ~ inverdisciplinares (didlogo entre disciplinas) Produto/conhecimento ~ transdisciplinar E importante que a educagao, como disciplina, evolua, incorporan- do a dimensio ambiental como conteddo necessério, da mesma forma B (A DIFICIL SUSTENTABILIDADE que aspectos, tais como ética, cidadania, transito, sexo e satide, Mas 0 avango da educa¢ao ambiental nao se deve sobrepor ao imperativo de ambientalizagio da educacéo. Ambientalizacdo das decisées econdmicas — em geral, 0 mercado néo conduz é sustentabilidade, E necesséiriointervengéo requladora do Estado, A construgio do desenvolvimento sustentdvel se apresenta como im- perativo, justamente no momento em que a capacidade de promocéo de politicas piblicas se vé limitada pela prépria atrofia das condigécs de exercicio das fungées reguladoras do Estado. Uma geracio inteira de polfticas neoliberais, desde a era de Thatcher € Reagan, demonstra que, em matéria de protegao ao meio ambiente, 0 mercado nio conduz a um étimo coletivo. A busca de étimos individuais conduz & tragédia coletiva. Isso ja havia sido assinalado antes mesmo da maré neoliberal (Hardin, 1968), mas a avassaladora agao desestatizante deixou claro que ¢ preciso cada vez mais intervengao reguladora ptiblica. Esse parece ser, alids, o ténue elo de vinculagao légica entre neoliberais ¢ estatistas. Por outro lado, fica também evidente que 0 modo de intervencao publica tipico da légica keynesiana (Estado interventor) ¢ condicionado & cultura burocrética weberiana (crescimento do estamento burocratico) j4 nao corresponde as condigées atuais, Novas formulas, mais criativas e des- centralizadas, devem ganhar espaco. Um importante vetor de apoio ao desenvolvimento sustentavel é 0 estabelecimento de politicas ptiblicas induroras de comportamentos coc- Tentes com o imperativo da qualidade ambiental, Para isso, 0 Estado deve atuar, ainda que indiretamente, por meio de instrumentos econémicos (sistema tributério e de crédito, condicionados a critérios ambientais) ¢ normativos/legais. E deve, também, se valer de mecanismos contratuais, onde a funcao publica seja de mediacéo, mas assegurando a validade de Pactos, como 0 caso dos sistemas de certificagao legitimados pela credibilidade. E 0 caso também da instituiggo de um pacto ético, onde a Producao de conhecimentos ¢ de tecnologias deixe de se orientar princi- Palmente pela razdo instrumental ¢ pela ldgica do mercado, para se preo- cupar, acima de tudo, com o bem-estar e a perenidade da vida (principio da precaucio), 4 Marcet Burszryn E relevante que nao apenas os modos de producio sejam devidamens te revistos diante da consciéncia da crise ambiental. Também as atitudes da sociedade frente & produsao devem mudar. Nesse aspecto, o papel da educacao é determinante (consumo ético). Referéncias bibliograficas ANDERSON, Perry. “Balanco do neoliberalismo”. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs). Pés-neoliberalismo: as politicas sociais e 0 Estado democrdtico. Rio de Ja- neiro: Paz e Terra, 1995. BARTHOLO Jr. Roberto dos Santos. Vocé e eu: Martin Buber, presenca palavra. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. BOULDING, Kenneth E, “The Economics of the Coming Spaceship Earth”. In: DALY, Herman E. (org.). 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