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[0 Couecionanoa] “Todas essas velharias tém um valor moral." Charles Baudelaire! "Eu creio ... em minha alma: a Coisa.” Léon Deubel, cEuvres, Paris, 1928, p. 193. Foi aqui o ultimo refiigio das criacuras-prodigio que viram a luz do dia em exposigées universais como mala com iluminagGo interna, canivete de um metro de comprimento ou cabo de guarda-chuva patenteado, com relégio e revélver. E ao lado dessas gigantescas criaturas degeneradas, a matéria semi-acabada, atolada. Percorremos 0 corredor estreito ¢ escuro até o lugar onde, entre uma livraria com liquidacées, na qual macos de papel empocirados e amarrados com barbante expressam todas as formas de faléncia, ¢ uma loja s6 de botdes (de madrepérola e outros que em Paris sio chamados de botées-fantasia) localizava-se uma espécie de sala de estar. Uma lampada a gés iluminava um papel de parede de um colorido palido, cheio de quadros e bustos. Junto dela lia uma velha senhora Esté ali, sozinha, como hd anos, procurando dentaduras “de ouro, de cera ou quebradas”. ‘A partir deste dia também ficamos sabendo de onde o doutor Milagre tirow a cera com a qual fabricou a Olympia? m Bonecas (41,1 “A multidao se comprime na Passage Vivienne, onde nao € percebida, ¢ deixa a Passage Colbert onde, talvez, seja percebida demais. Um dia, quiseram chamé-la, a multidio, enchendo cada noite a rotunda com uma musica harmoniosa, que sala invistvel das janelas de uma sobreloja. Mas a multidéo veio xeretar na porta ¢ néo entrou, suspeitando nessa novidade uma conspirago contra seus hébitos e seus prazeres rotineitos.” Le Livre des Cent-et-un, vol. X, Paris, 1833, p. 58. Ha quinze anos, tentou-se igualmente e também inutilmente ir em socorro da loja de departamentos W. Wertheim. Realizavam-se concertos na grande passagem que a percorria. sae 1a 7 Carta de 30 de dezembro de 1857 8 sua me. (E/M) 0 doutor Miagte Olimpia, boneca autémat,s80 personagens da Opera Les Contes o'Hoffmann, de Offenbach (1880); cf. "O Homem de Areia", de E. 7. A. Hoffmann (LL) ~ 0 fragmento todo retoma boa parte do 2 1. (wb) > Loja de departamentos ern Berlim. (.L) 238 m Pessagens Nunca se deve confiar naquilo que os escritores dizem a respeito de suas préprias obras. Quando Zola quis defender sua Therese Raquin das criticas hostis, explicou que seu livro era um estudo cientifico sobre os temperamentos. Sua intencio teria sido a de demonstrar detalhadamente, a partir de um exemplo, como o temperamento sangiiineo e 0 nervoso eagem um sobre o outro ~ em detrimento de ambos. Esta declaracdo néo satisfez a ninguém. ‘Tampouco explica o elemento de colportagem, 0 caréter sanguindrio, a atrocidade cinematogréfica da agio. Nao 4 toa que esta se desenrola em uma passagem.* Se este livro de fato demonstra algo cientificamente, é a agonia das passagens patisienses, 0 processo de decomposi¢ao de uma arquitetura. A atmosfera do livro esté prenhe de seus venenos, € estes fazem suas personagens sucumbir. 1,3) Em 1893, as cocotes so expulsas das passagens. ae Hid ‘A miisica parece ter se estabelecido nestes espagos apenas no momento de seu declinio, quando as préprias orquestras comecaram a tornar-se antiquadas, porque estava prestes @ surgit a mtisica mecinica. De modo que essas orquestras de fato af buscaram refiigio. (O “teatrofone” nas passagens foi de certa maneira o precursor do gramofone.) E, no entanto, havia miisica no espirito das passagens, uma musica panorimica que s6 se ouve hoje em concertos elegantes, porém, antiquados, como, por exemplo, os da orquestra do cassino de Monte Carlo: as composigdes panorimicas de David,’ por exemplo — Le Désert, Christophe Colomb, Herculanum. Foi motivo de orgulho poder executar Le Désert no grande teatro da Opera (2), por ocasigo da visita a Paris de uma delegacio politica drabe nos anos sessenta (2). (HLS) “Cineoramas; Grande Globo celeste, esfera gigantesca de 46 metros de diémetro onde sers tocada muisica de Saint-Saéns.” Jules Claretie, La Vie 4 Paris 1900, Patis, 1901, p. 61. = Diorama © 1H, 61 Muitas vezes, estes espacos interiores abrigam oficios antiquados, mas também os atuais adquirem nesses espacos um ar obsoleto. E 0 local dos servigos de informagGes ¢ investigagdes que ficam lé na luz mortica das galerias do entressolho ao encalco do passado. Nas vitrines dos cabeleireiros véem-se as iiltimas mulheres de cabelos compridos. Ostentam cabeleiras volumosas, ricamente onduladas que séo agora “encaracolados permanentes”, penteados artisticos petrificados. Devia-se consagrar pequenas placas votivas aqueles que criaram um mundo préprio a partir destas construgdes capilares, Baudelaire e Odilon Redon, cujo nome cai como uma mecha lindamente cacheada, Em vez disso, foram traidas e vendidas, € cabeca da propria Salomé foi utilizada, caso aquilo que sonha no console no seja 0 corpo embalsamado de Anna Caillag.* E enquanto essas cabeleiras se petrificam, 0 revestimento das paredes tornou-se quebradico, na parte de cima. Quebradigos so também = Expelhos Ht.) 4 Na Passage du Pont Neuf. (EA¥) ® Félcien David (1810-1876): masico saint-simoniano. Depois de uma viagem pelo Oriente, ele compés 0 oratorio Le Désert (1846). Cf. S. Kracauer, Schriften, vol. Vil p. 102. UL.) ° tsa referéncia permanece obscura. ().L.; EM) H {0 Goleconadon) 2397 F decisivo na arte de colecionar que o objeto seja desligado de todas as suas fung6es primitivas, a fim de travar a relago mais intima que se pode imaginar com aquilo que lhe ¢ semelhante. Esta relagdo é diametralmente oposta & utilidade ¢ situa-se sob a categoria singular da completude. © que é esta “completude” E uma grandiosa tentativa de superar carder totalmente irracional de sua mera existéncia através da integragio em um sistema histérico novo, criado especialmente para este fim: a colecdo. E para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclopédia de toda a ciéncia da época, da paisagem, da industria, do proprietério do qual provém. O. mais profundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisa particular em um cfrculo magico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre um tltimo estremecimento (0 estremecimento de ser adquirida). Tudo o que ¢ lembrado, pensado, consciente torna-se suporte, pedestal, moldura, echo de sua posse, Néo se deve pensar que o tdpos hyperouranios, que, segundo Platéo,” abriga as imagens primevas ¢ imutéveis das cojsas, seja etranho para 0 colecionador. Ele se perde, certamente, Mas possui a forca de erguer-se novamente apoiando-se em uma tibua de salvacio, ¢ a peca recém-adquitida emerge como uma ilha no mar de névoas que envolve seus sentidos. ~ Colecionar é uma forma de recordacao pritica e de todas as manifestagGes profanas da “proximidade”, a mais resumida. Portanto, (© ato mais diminuto de reflexao politica faz, de certa maneira, época no comércio antiquério. Construimos aqui um despertador, que sacode o kkitsch do século anterior, chamando-o & “reuniao”.* (Ha 2} Natureza morta: aloja de conchas das passagens. Strindberg, em “As Tribulagdes do Piloto”, fala de “uma passagem cujas lojas estavam iluminadas”. “Depois ele avangou para dentro da passagem... Havia ali lojas de todos os tipos, contudo, nao se via uma s6 pessoa, nem atrds dos balcses nem diante deles. Apés ter andado por algum tempo, ficou parado diante de uma grande vitrine por detrés da qual se via uma exposiglo completa de conchas. Como a porta estava aberta ele entrou. Do cho ao teto havia prateleiras com conchas de todas as espécies, coletadas em todos os mares da Terra. Pessoa alguma se encontrava ali, mas uma rnuvem de tabaco flucuava no ar como um andl... E entéo ele retomou seu caminho, seguindo o tapete azul e branco. A passagem nao era em linha reta ¢ fazia curvas, de modo que nao se via nunca o fim; e sempre novas lojas, mas nao havia gente; e os proprictirios eram invisiveis.” A imensidao das passagens mortas é um tema significativo. Strindberg, Marchen, Munique e Berlim, 1917, pp. 52-53, 59. 5 1,31 E preciso reexaminar as Fleurs due Mal para ver como as coisas sio elevadas & condigéo de alegoria. Deve ser observado 0 emprego de letras maitisculas. (Hla, 4) ‘Ao final de Matidre et Mémoire, Bergson desenvolve a idéia de que a percepgio ¢ uma fungi dlo tempo.) Poder-se-ia dizer que, se vivéssemos segundo um outro ritmo ~ mais serenos diante de certas coisas, mais répidos diante de outras -, no existiria para nés nada 7 Lugar supraceleste”; cf. Patéo, Fedo, 247¢, (wb; E/M) 8 Jogo de palavas entre Sammein, “coleconar", e Versemmiung, “reuniso", com a conotacso de “reunigo das coisas colecionadas”. (wb) 2 Cf, provavelmente H. Bergson, Matiére et Mémoire, in: Euvres, Paris, RULE, Ed. du Centenaire, 1970, p. 359. ULL) 24 m Passogors “duradouro”, mas tudo se desenrolaria diante de nossos olhos, tudo viria de encontro a nés. Ora, € exatamente isso que se passa com o grande colecionador em relagao as coisas. Elas vio de encontro a ele, Como ele as persegue e as encontra, ¢ que tipo de modificacao é provocada no conjunto das pegas por uma nova peca que se acrescenta, tudo isto lhe mostra suas coisas em um fluxo continuo. Aqui se observam as passagens parisienses como se fossem possesses a mio de um colecionador. (No fundo, pode-se dizer, o colecionador vive um pedaco de vida onftica. Pois também no sonho o ritmo da percepgao ¢ da experiéncia modificou-se de tal manera que tudo — mesmo o que é aparentemente mais neutro — vai de encontro a nés, nos concerne. Para compreender as passagens a fundo, nés as imergimos na camada mais profunda do sonho, falamos delas como se tivessem vindo de encontro a nés) (Ha, 5) “A compreensio da alegoria assume para vocés proporgdes que vocés mesmos ignoram; notaremos, en passant, que a alegoria, esse génerto tio espiritual, que os pintores canhestros nos acostumaram a desprezar, mas que ¢ verdadeiramente uma das formas primitivas ¢ mais naturais da poesia, retoma sua legitima dominagio na inteligencia iluminada pela embriaguez.” Charles Baudelaire, Les Paradis Artificiels, Pais, 1917, p. 73. (Do que se segue resulta indubitavelmente que Baudelaire de fato tem em mente a alegoria, nao 0 simbolo. O techo foi extrafdo do capftulo sobre 0 haxixe.) O colecionador como alegorista. = Haxixe 20 “A publicagio da Histoire de la Société Francaise Pendant la Révolution et sous le Directoire inaugurou a era do bibel6. ~ E nao se veja nessa palavra uma intengao depreciativa; 0 bibelé histérico outrora chamou-se reliquia. Remy de Gourmont, Le Deuxi¢me Livre des Masques, Paris, 1924, p. 259. Comenta-se a obra dos irmaos Goncourt. (2,2) O verdadeiro método de tornar as coisas presentes é representé-las em nosso espaco (e ndo nos representar no espaco delas). (Assim procede o colecionador e também a anedota.) ‘As coisas, assim representadas, nio admitem uma construcao mediadora a partir de “grandes contextos”. Também a contemplagao de grandes coisas do passado — a catedral de Chartres, o templo de Paestum — (caso cla seja bem-sucedida) consiste, na verdade, em acolhé-las em nosso espaco. Nao somos nés que nos transportamos para dentro delas, elas é que adentram a nossa vida. (H2, 3] No fundo, é um fato bastante estranho que objetos de colecéo sejam fabricados como tais de maneira industrial. Desde quando? Seria preciso pesquisar as diferentes modas que dominaram a arte de colecionar no século XIX. A mania das xicaras foi caracteristica do Biedermeier ~ também o foi na Franca? “Pais, filhos, amigos, parentes, os superiores € subordinados exprimem seus sentimentos sob a forma de xicaras; 2 xicara € 0 presente preferido, o enfeite predileto; assim como Frederico Guilherme III enchia seu escritério de pirdmides de xicaras de porcelana, assim também 0 burgués colecionava nas xicaras de seu aparador a lembranga dos acontecimentos mais importantes, as horas mais preciosas de sua vida.” Max von Boehn, Die Mode im XIX Jahrhundert, vol. Tl, Munique, 1907, p. 136. (H2,4) H {0 Colecionador) 241 Possuir € ter esto relacionados ao cardter ttil e se opdem em certa medida & percepgo visual. Colecionadores so pessoas com instinto eatil. A propésito, com 0 abandono do naturalismo terminou recentemente a primazia do dptico que dominou o século anterior. m Flaneur m Flineur éptico, colecionador tatil."” 1H2, 5] Maréria fracassada: ¢ a elevacio da mercadoria 4 condicao de alegoria. Cardter fetiche da mercadoria e alegoria. ae [12,64 Pode-se partir do fato de que o verdadeiro colecionador retira o objeto de suas relagées fancionais. Esse olhar, porém, nao explica a fando esse comportamento singular. Pois nao é esta a base sobre a qual se constréi uma contemplagio “desinteressada” no sentido de Kant ede Schopenhauer, de tal modo que o colecionador consegue langar um olhar incomparével sobre o objeto, um olhar que vé mais e enxerga diferentes coisas do que o olhar do proprietério profano, 0 qual deveria set melhor comparado ao olhar de um grande fisiognomonista. Entretanto, 0 modo como este olhar se depara com o objeto deve ser presentificado de maneira ainda mais aguda através de uma outta consideracio. Pois ¢ preciso saber: para 0 colecionador, 0 mundo esté presente em cada um de seus objetos e, ademais, de modo organizado. Organizado, porém, segundo um arranjo surpreendente, incompreenstvel para uma mente profana. Este arranjo esté para 0 ordenamento € a esquematizagio comum das coisas mais ou menos como a ordem num dicionério esta para uma ordem natural, Basta que nos lembremos quo importante € para cada colecionador nao s6 0 seu objeto, mas também todo o passado deste, tanto aquele que faz parte de sua génese e qualificagao objetiva, quanto os detalhes de sua histéria aparentemente exterior: proprietérios anteriores, prego de aquisicéo, valor etc. Tudo isso, os dados “objetivos", assim como os outros, forma para 0 auténtico colecionador em relagio a cada uma de suas possesses uma completa enciclopédia mégica, uma ordem do mundo, cujo esbogo é 0 destino de seu objeto. Aqui, portanto, neste dmbito estrcito, € possivel compreender como os grandes fisiognomonistas!! (€ colecionadores sio fisiognomonistas do mundo das coisas) tornam-se intérpretes do destino, Basta que acompanhemos um colecionador que manuseia os objetos de sua vitrine. Mal segura-os nas mios, parece estar inspirado por eles, parece olhar através deles para o longe, como um mago. (Seria interessante estudar © colecionador de livros como o tinico que nao necessariamente desvinculou seus resouros de seu contexto funcional) 2, 7.124 1 Pachinger, o grande colecionador, amigo de Wolfskehl, formou uma colegio que, pelo carter proscrito ¢ degradado dos objetos, se podia comparar com a de Figdor em Viena. Ele mal se lembra como as coisas se sitiam no mundo e explica a seus visitantes nfo apenas ‘0s aparelhos antigos, mas também os lengos, espelhos de méo exc. Conta-se que um dia, passando pelo Stachus,” cle se abaixou para pegar alguma coisa no chao. Era algo que 1 Ver, no entanto, H 2, 7; H 2a,1, sobre o “olhar" do colecionador. (EM) 7 0 termo “fisiognomonista" (ohysiognomoniste) ¢ empregado também por Baudelaire e Proust (A la Recherche du Temps Perdu, I, p. 855). (.L) 2 Nome familar da Karlsplatz, grande praca de Munique, perto da estacéo central. Albert Figdor (1843- 1927): grande colecionador austriaco, aconselhado por Alois Riegl. Anton Maximilian Pachinger (1864-1938): outro colecionador. UL) 242 w Passagane estava procurando hé semanas: uma passagem de bonde com erros de impressio, que circulara apenas por umas poucas horas. (H120.33 Uma apologia do colecionador nao deveria passar ao largo destas invectivas-“A avareza € a velhice, observa Gui Patin, andam sempre juntas. A necessidade de acumular'é dos sinais precursores da morte, tanto nos individuos quanto nas sociedades. Ela surge em seu estado agudo nos periodos pré-paraliticos. H4 também a mania da colegéo, em neurologia ‘o colecionismo’. / Desde a colecéo de grampos de cabelo até a caixa em papelfo trazendo a inscrigao: Pequenos pedagos de barbante nao servindo para nada.” Les 7 Péchés Capitan, Paris, 1929, pp. 26-27 (Paul Morand, “Liavarice”). Cf, no entanto, 2 arte de colecionar cas criangast (H 2a, 3) “Nao estou certo se teria me envolvido totalmente na observagao deste tinico acontecimento se no tivesse visto esta quantidade de coisas fantésticas misturadas aleatoriamente na loja do vendedor de antigiidades. Vinham-me ao espirito constantemente quando pensava naquela crianga ¢, amontoados em torno dela, fizeram passar ante meus olhos a situagao desta pequena criatura com clareza palpvel. Sem dar asas & minha imaginagio, vi o retrato de Nell cercado por tudo que contrariava sua natureza ¢ se distanciava inteiramente dos desejos de sua idade € sexo. Se este ambiente nao tivesse existido ¢ eu tivesse que imaginar a ctianga em um quarto comum, no qual nada fosse excraordindrio ou insblito, sem duivida sua vida singular e solitéria teria me impressionado muito menos. Assim sendo, pareceu- me que ela vivia numa espécie de alegoria.” Charles Dickens, Der Raritatenladen (A loja de idades), Leipzig, ed. Insel, pp. 18-19."° (25,4) ‘Wiesengrund em um ensaio nao publicado" sobre A Loja de Antigtidades, de Dickens: “A morte de Nell é contida nesta frase: ‘Havia ali mais algumas miudezas, objetos pobres, sem valor, que talvez cla tivesse gostado de levar ~ mas era imposs(vel”... Mas Dickens reconheceu que a possibilidade da transicio da salvacio dialética ¢ inerente a esse mundo das coisas, rejeitadas, perdidas. E 0 exprimiu melhor do que a supersti¢ao romantica da natureza jamais seria capaz, naquela poderosa alegoria do dinheiro que serve de desfecho & representagao da cidade industrial: ‘..cram duas moedas de centavo, velhas, gastas, de um. marrom enfumacado. Quem sabe se nao brilham mais gloriosas nos olhos dos anjos que as letras douradas inscritas nos timulos?” (H.22, 5} "3 Ch, Dickens, The Old Curiosity Shop, Londres, Heron Books, 1970, p. 16 (cap. 1) (EMM) 4 Diferentemente do que informa Benjamin, 0 ensalo de Adorno foi publicado: "Rede dber den ‘Raritatenladen’ von Charles Dickens”, Frankfurter Zeitung, 18/04/1931 (ano 75, n? 285), pp. 1-2; reimpresso in: Adorno, Gesammelte Schriften, vol. Xi, Noten zur Literatur, ed. org. por R. Tiedemann, Frankfurt 2. M., 1974, p. 522. ~ As passagens de Dickens, The Old Curiosity Shop, encontram-se respectivamente nos capitulos 12 e 44. (RTL; EM) [0 Cotecionador] 243 “A maior parte dos amadores compée sua colego deixando-se guiar pela sorte, como os biblidfilos buquinando... O Sr. Thiers procedeu diferentemente: antes de reunir sua colegio, cle a formara inteiramente em sua cabeca; fizera seu plano, e esse plano, ele levou trinta anos para executé-lo... O Sr. ‘Thiers possui o que quis possuir... De que se tratava? De reunir em tomo de si um resumo do universo, isto , conter num espaco de aproximadamente itenta metros quadrados, Roma e Florenca, Pompéia e Veneza, Dresde e Haia, o Vaticano € 0 Escorial, 0 Museu Britinico e o Ermitage, o Alhambra e o Palécio de Verdo... Pois bem, © St. Thiers péde realizar um projeto to amplo com despesas moderadas, feitas cada ano, durante trinta anos... Querendo fixar, antes de tudo, sobre as paredes de sua residéncia os mais preciosos suvenirs de suas viagens, o Sr. Thiers mandou executar ... cépias reduzidas das pinturas mais famosas... Assim, entrando em sua casa, encontramo-nos, antes de tudo, no meio das obras-primas que eclodiram na Itélia durante o século de Leo X. A parede em frente as janelas ¢ ocupada pelo Ultimo Julgamento, colocado entre A Disputa do Santo- Sacramento ¢ a Escola de Atenas. A Assuncao de Ticiano decora a parte superior da lareira, entre A Comunhito de Sao Jerénimo e a Transfiguragio. A Madona de Sao-Sixto fax. par com a Santa Cecilia, ¢ nos espagos entre as janelas esto enquadradas as Sibilas de Rafael, entre 0 Sposalizio eo quadro representando Gregério IX que entrega as bulas papais a um advogado do concflio... Nessas cépias, reduzidas 2 mesma escala ou quase ... 0 olhar encontra com prazer a grandeza relativa dos originais. Sdo pintadas a aquarela.” Charles Blanc, Le Cabinet de M. Thiers, Paris, 1871, pp. 16-18. 13,1) “Casimir Périer disse um dia, visitando a galeria de quadros de um ilustre amador...: Tudo isto € muito bonito, mas sio capitais que dormem... Hoje... poderfamos responder a Casimir Périer ... que ... 0s quadros..., quando so mesmo auténticos, os desenhos, quando se reconhece neles 0 trago do mestre ... dormem um sono reparador e proveitoso... A... venda ... das curiosidades e dos quadros do Sr. R. ... provou por algarismos que as obras de génio sao valores to sélidos quanto os titulos da companhia ferroviéria Orléans ¢ um pouco mais seguros que os das lojas de departamentos.”!> Charles Blanc, Le Trésor de la Curiosité , vol. IL, Paris, 1858, p. 578. (3,21 O tipo positive oposto ao colecionador que, 20 mesmo tempo, representa seu aperfeigoamento a medida que realiza a libertacio das coisas da servidao de serem titeis, deve ser apresentado segundo esta formulagio de Marx: “A propriedade privada tornou-nos tio tolos e inertes que um objeto é nosso apenas quando o possuimos, portanto, quando existe para nés como capital ou quando € ... utilizado por nés.” Karl Marx, Der historische Materialismus: Die Frithschriften, ed. org. por Landshut e Mayer, Leipzig, 1923, vol. I, p. 299 (“Nationalékonomie und Philosophie”). (3.1) “O lugar de odes 0s sentidos fsicos ¢ espirituas ... foi tomado pela simples alienasio de todos estes sentidos, 0 sentido do ter... (Sobre a categoria do ter, ver Hess em “21 Bogen” (21 5 Para compreender as referéncias lacGnicas do original francés, "I'Oriéans” "les docks", nés nos ‘apoiamos na traducso de E/V. (wb) 244 m Passegens Folhas).) Karl Marx, Der historische Materialismus, Leipzig, vol. I, p. 300 (“Nationalékonomie und Philosophie”). [H 3a, 2) “Praticamente, s6 posso ter um comportamento humano em relagéo & coisa quando a coisa tem um comportamento humano em relago ao homem.” Karl Marx, Der historische Materialismus, Leipzig, 1, p. 300 (“Nationalékonomie und Philosophie”). 3.31 As colegdes de Alexandre de Sommerard no fundo do Museu Cluny. ; ; He 4 © quodliber possui algo do engenho do colecionador ¢ do flaneur. [H 3a, 5) O colecionador atualiza latentes representac6es arcaicas da propriedade. Estas representagies poderiam de fato ter relaco com o tabu, como indica a seguinte observacio: “E certo que 0 tabu é a forma primitiva da propriedade. Primeiro emotivamente ¢ ‘sinceramente’, depois como procedimento corrente ¢ legal, 0 uso do tabu constitufa um titulo. Apropriar-se de um objeto € tornd-lo sagrado € temivel para qualquer outra pessoa, é torné-lo ‘participante’ de si mesmo.” N, Guterman e H: Lefebvre. La Conscience Mysifée, Paris, 1936, p. 228. 3a Trechos de Mars, extraidos de “Nationalékonomic und Philosophie”: “A propriedade privada torou-nos tio tolos ¢ inertes que um objeto € nosso apenas quando 0 possuémes.” “O lugar de todos os sentidos fisicos e espitituais ... foi comado pela simples alienacao de todos estes sentidos, 0 sentido do ter.” Cit. por Hugo Fischer, Karl Marx und sein Verhilinis zu Staat und Wirtschaft, Jena, 1932, p. 64. 30.71 Os ancestrais de Balthazar Clas!” eram colecionadores. 30.8} Modelos para o Primo Pons: Sommerard, Sauvageot, Jacaze. (130.9) E importante 0 lado fisiolégico do ato de colecionar. Nao deixar de ver, 20 analisar este comportamento, que o ato de colecionar adquire uma evidente funcéo biol6gica na construcio dos ninhos pelos péssaros. Parece haver uma alusio a isso no Thattato sullArchitectura, de Vasari. Pavlov também teria se interessado por colecées. man 16 Composigso musical que combina os mais dversos tipos de melodia. (w.b.) 7 O herbi de La Recherche de ’absolu, de Balzac (LL) H (0 Colecionador} 245 Vasari teria afirmado — no Trattato sull’Architecturd? ~ que 0 conceito de “grotesco” deriva das grutas nas quais 0s colecionadores guardam seus tesouros. 114.2) Colecionar é um fenémeno primevo do extudo: 0 eudane colecions sber. 14,3) A relagio do homem medieval com suas coisas € descrita por Huizinga por ocasiéo da andlise do género literério “testamento”: “Esta forma literdria s6 ¢ ... compreensivel quando nfo se esquece que, através do testamento, o homem medieval realmente estava acostumado a dispor em detalhe e completamente mesmo sobre a coisa mais infima (!) dentre seus haveres. Uma mulher pobre legou & sua paréquia seu vestido de domingo e seu capuz; sua cama a seu afilhado, uma pelica & sua enfermeira, sua roupa de todos os dias a uma pobre € quatro libras tornesas (sic) que constitufam sua fortuna, além de mais um vestido ¢ uma capa aos Frades Menores (Champion, Villon, vol II, p. 182). Nao se reconhece aqui também uma expresso bastante trivial da mesma linha de pensamento que fazia de cada virtude um exemplo eterno, de todo costume uma disposicao divina?” J. Huizinga, Herbst des Mitielalers (O Declinio da Idade Média), Munique, 1928, p. 346. O que chama sobretudo a.atencfo neste trecho significativo é que uma tal relacéo com os bens méveis no seria mais possfvel, por exemplo, na era da producgo em massa estandardizada. Com isso, chegarfamos a perguntar se estas formas de argumentacio a que alude o autor e certas formas de racioctnio da escoléstica em geral (referéncia & autoridade herdada) nao estariam relacionadas as formas de produgio. O colecionador — para quem as coisas se enriquecem através do conhecimento de sua génese e sua duracéo na histéria ~ estabelece com elas uma relacio semelhante que agora parece arcaica. 1H 4,4) Talvez 0 motivo mais recéndito do colecionador possa ser circunscrito da seguinte forma: cle empreende a luta contra a dispersio. O grande colecionador é tocado bem na origem pela confusdo, pela dispersio em que se encontram as coisas no mundo. Foi o mesmo espetéculo que ocupou tanto os homens da era barroca; em especial, nao se pode explicar a imagem de mundo do alegorista sem o envolvimento passional provocado por esse espetéculo. O alegorista € por assim dizer 0 pélo oposto ao colecionadot. Ele desistiu de clucidar as coisas através da pesquisa do que lhes afim ¢ do que lhes é proprio. Ele as desliga de seu contexto ¢ desde o principio confia na sua meditagio" para elucidar seu significado. O colecionador, ao contrétio, retine as coisas que séo afins; consegue, deste modo, informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou de sua sucessio no tempo. No entanto ~ ¢ isto € mais importante que todas as diferencas que possa haver entre cles em cada colecionador esconde-se um alegorista e em cada alegorista, um colecionador. No que se refere 20 colecionador, sua colegio nunca est4 completa; ¢ se lhe falta uma tinica pesa, tudo que colecionou nao passard de uma obra fragmentiria, tal como sio as coisas desde 0 principio para a alegoria. Por outro lado, justamente o alegorista, para quem as coisas representam apenas verbeves de um diciondtio secreto, que revelard seus significados ao iniciado, nunca terd acumulado coisas suficientes, sendo que uma delas pode tanto ‘menos substituir a outra que nenhuma reflexdo permite prever o significado que a meditago pode reivindicar para cada uma delas. a Ha 18 “Meditagso" traduz Tefsinn; cf. © peniltimo segmento de ODBA: Grenze des Tiefsins = “Limites da meditacéo”. (wb) 246 m Pacsagene Animais (péssaros, formigas), criangas e velhos como colecionadores. (Hi 4,2) Uma espécie de desordem produtiva ¢ 0 cinone da “memséria involuntétia” assim como do colecionador. “E minha vida jé era bastante longa para que dentre os seres que ela me oferecia eu encontrasse, em regides opostas de minhas lembrangas, um outro ser para completé-lo... Assim um amante da arte, a quem se mostra uma parte de um retébulo, lembra-se em qual igreja, em qual muscu, em qual colesio particular estio dispersas as coutras; (assim também, ao seguir os catélogos de vendas ou freqiientando os antiquitios, ele acaba por encontrar o objeto gémeo daquele que possui ¢ que fiz par com ele; ele pode reconstituir em sua cabeca a predela, o altar inteiro).” Marcel Proust, Le Temps Retrowvé, Paris, vol. I, p. 158."° A meméria voluntétia, ao contrério, é um fichétio que fornece um rimero de ordem 20 objeto, aris do qual ele desaparece. “Foi af que estivemos.” (“Vou registrar este momento na minha meméria.”) Resta examinar qual o tipo de relacéo que existe entre a dispersio dos acessérios alegéricos (da obra fragmentiria) e esta desordem criativa. 15,1] 9 M, Proust, A la Recherche du Temps Perdu, Il, pp. 972 et seq. UL) ~ Sobre a rela¢lo do colecionador ‘com a meméria e 0 mundo das coisas, cf. Q°, 7.(/M) 2° sta traducao livre da frase "Es war mir ein Erlebnis” (iterelmente: “Fol uma vivencia para mim”) procura realcar a diferenca, fundamental para Benjamin, entre a meméria voluntéra, ativada pela “vivénca", Erlebnis, ¢ a meména involuntéria, que surge a partir da “experiéncia", Erfahrung. (w.b,)

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