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oi ut Moya Hebe a ae ue lp Cal ably ee qunir ° ye Gell te INICIAGAO E IDENTIDADE NA CULTURA » AFRO-BRASILEIRA 4 Raul Lody Copyright© 1993 ‘Arrio Vogel, Marco Anténio da Silva Mello, Jose Flivio Pessoa de Barros Editora ‘Cristing Fernandes Warth Produgdo editorial Polias Editora Revisio Marco Anténio Correia Revisio dos termos em loruba Atoir B. Olveica Diagramagaio Cid Barros Capa Leonardo Casvatho Foto de capa ‘Arquivo de José Medeiros MAM — RJ lustragées Raul Lody Todos os direitos reservados 3 Pallas Eaitora e Distribuidora Lida E vetada a reproduco por qualquer meio meciinico, eletrdnico, xerogréfica etc, sem a permissio por escrito da editora, de parte ou totalidade do material escrito. CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, Rl /\aseq, Vogel. Amo. 1946 Fed. A gainha d angols: niciagdo © identidade na cuttera alro-beaslera DP reimp. | Amo Vogel Marea Antsrio da Siva Mella, Jost Flivia Pessoa de Barros, preficio de Anténio Onto: iustragSes de Raui Lody. = 3*ed.— Rio de aneia: Pas, 2007 | 28. it Biblografia Glossirto ISBN 978-85.347-0272.0 LCandembié — Cereriinias epritcas. 2. Galina df angola res condomblés. 3, Negros ~ Brasil ~ Regio ~ influéncias aftcanas. i |. Melo, Marco Ant&nio da Siva, Ik Barros, josé Flivio Pessoa de. ik | Thue 98-0507 COD 29967 eS CDU 299.63 Palas Editora e Distribuidora Lida faa Frederico ce Anuauerue, S6—Hpencpols (RR CEP 24050840 — Rio de Janeiro ~ R) Telffoe (021) 2270-0186 i) wirwpalaseditoraxcomisr pallasfipalasedtoracombr PALLAS Esquadrinhamos, em primor lugar, o discurso sobre a galinha d ‘angola. Além de registrar descri¢Ges naturalisticas, populares ou eruditas, escutamos mitos, anotamos pronunciamentos oraculares, ouvimos cantigas sacrificiais e comentdrios litdrgicos. A riqueza dessas informagGes revelou- se assombrosa pela abundancia e variedade. Os episédios da saga mitica da galinha d‘angola, em particular, representaram, para a pesquisa, um primeiro momento de vertigem e iluminagéo. Tudo parecia, de repente, fazer sentido. Tanto sentido que era quase impossivel traduzi-lo em palavras. Os ritos ajudaram a resolver esse problema, pois, na verdade, 6 tao instrutivo 0 que os homens dizem sobre os seus simbolos, quanto o que fazem com eles. Aqui, talvez caiba uma parafrase da epigrafe de Paul Valéry com que Lévi-Strauss abre o seu texto sobre a poesia de Apoliinaire: 0 rito 6 o lugar dos pontos equidistantes entre o puro sen- sivel e o puro inteligivel - no campo da acdo. Por esse motivo, freqdientamos os diversas contextos cerimoniais onde contavamos encontrar a galinha d “angola. Percorremos o mercado, onde pode ser adquirida para os sacrificios; assis- timos as saidas festivas e publicas dos barcos de iabs; procu- ramos rastrear o caminho feito pelos nedfitos, desde sua consagracao no bort, até o ritual da quebra de interditas, que culmina com a romaria. Em cada uma dessas situacées etnogrdficas encontramos desdobramentos do seu papel sacrificial, esclarecendo, cada contexto, uma faceta diferente do simboto. Todos os ritos séo agregados de simbolos que se relacionam, formando uma rica e refinada trama expressiva. Cada simbolo, entretanto, reine e distingue, sob a forma sensivel de um artefato, todo um conjunto de valores, normas, crengas, estatutos e sentimentos. Por isso, os simbolos néo ocorrem solitariamente. Existem, por assim dizer, em constelacao. Cada rito constitui, neste sentido, uma forma peculiar de conjungao e canjugacéo simbdélica. Em cada uma delas, a magnitude e o brilho nao sao iguais para todos os simbalos que a integram. Alguns, mais elaborados, estao no centro da acao ritual. So estes os simbolos focais ou dominantes. Essa posicdo nao se define, porém a priori. Um simbolo, cuja luz afusca os demais num determinado contexto, pode-se eclipsar, modestamente, em outro. No caso especifico do candomblé, entretanto, a complexidade do quadro etnogratico é ainda maior em virtude das peculiaridades de sua morfologia social, onde se verifica uma clivagem liturgica entre nacées, potencialmente significativa para a interpretacéo dos simbolos rituais. Por esse motivo, buscamos as nossas evidéncias dentro de um espectro o mais amplo possivel tradi¢des religiosas afro- brasileiras. Nossa trajetéria etnografica comecou nos terreiros de rito angola, deteve-se no cerimonial ketu, para terminar numa incurséo aa universe littrgice jeje. Em obediéncia a um principio recomendado por Marcel Mauss “il faut toujours relire”, tratamos de buscar na literatura etnografica consagrada, de Nina Rodrigues e Jodo do Rio aos contemporaneos, toda a informagao elucidativa para o nosso prablema, ndo importa quéo fragmentdria. 2 Nosso empreendimento, entretanto, nado nas levou apenas para 0 4mago dos rituais com suas constela¢ées simb6licas. Conduziu-nos, também, ao coracéo do mundo afro-brasileiro com os seus problemas de identidade e insergdo nas nossas hierarquias sociais. Por isso, somos devedores nda sé de todos aqueles que nos franquearam a etnografia do candomblé, mas, também, daqueles que se aventuraram na sempre arriscada tarefa de propor interpretacées da sociedade brasileira como tem procurado faz6-lo, em muitos de seus trabalhos, Roberto da Matta, sobretudo mediante a interpretagéo, de suas dimensées simb6licas e rituais. Para tornar agradavel e proveitosa o relato desse empre- endimento, recorremos aos artificios dos prdéprios ritos de passagem: contamos mitos; apresentamos artefatos; propusemos enigmas e charadas; comentamos cantigas; reproduzimos férmulas liturgicas e descrevemos etiquetas. Para os mais diversos efeitos serviram-nos os trabalhos dos predecessores, cronistas ou etnégrafos, iniciados ou nao. Estivemos em boa companhia. Apesar disso, nos sentimos, por vezes, sds. A responsabilidade e o risco da invencdo foram, durante todo o percurso, a nossa sombra implacavel. Ousamos, pois, pedir aos nossos leitores o que indistinta- mente se pede a novicos e veteranos - a virtude da pacién- cia. Cremos que, desse modo, poderao alcancar, para além da mera informacao etnografica, a graca e a beleza das ritos de iniciacdo, e descobrir, ao final, como e por que a galinha d ‘angola é, de pleno direita, o simbolo facal do candomblé. Ao longo do caminho que tivemos de percorrer, 0 que nos guiou nado foi um cerrado e exaustiva projeto de investigacao. Foi, antes, a adesdo a um conjunto de atitudes que constituem, no sentido prdéprio do termo, o que Descartes chamava Regulae ad directionem ingenii, e que Dumézil resume, em uma espécie de pentalogo: Utilizar toda a matéria que se oferece, sejam quais forem as disciplinas especiais que a partilhem provisoriamente e sem operar nela, nés mesmos, recortes arbitrdrios; olhar 3 detidamente o dado, com suas evidéncias, que so por vezes menos que evidéncias, e suas miragens, que sdo as vezes melhores que miragens; desconfiar dos julgamentos tradicionais, mas, da mesma forma, das opinides singulares e das novidades em moda; evitar comprometer-se por uma linguagem técnica prematura; ndo considerar a ousadia nem a prudéncia como a virtude por exceléncia, mas valer-se de uma e outra, verificando sem cessar a legitimidade de cada procedimento e a harmonia do conjunto...* A nossa teoria nasceu com o primeiro olhar atento para a galinha d ‘angola, e nao parou de apurar-se desde entdo, seja pela inclusao de novos conceitos e dados etnograficos, seja pelo refinamento ou abandono dos antigos. Quanto a essa disposic¢éo que conduz do ofhar ao considerar, do considerar ao meditar e do meditar ao rela- cionar, e, portanto, alimenta a atividade teorizante, Goethe fazuma adverténcia que pode ser tomada come um adendo as cinco regras essenciais, enunciadas por Dumézil: Mas ha de fazer-se isso com plena consciéncia, com conhecimento de si mesmo, com liberdade e, se nos é permitido o atrevimento, com ironia, para que a temida abstracdo resulte inécua, e palpitante e proveitoso o fruto empirico desejado.* * Da observéncia mais ou menos escrupulosa desses preceitos resultam os possiveis acertos do nosso método, que, ao invés de preceder o objeto, se desenvolveu com ele, curvanda-se as necessidades do caminho, para transformé- Jas em virtudes. * Discipute de Marcel Mauss e Marcet Granet, Georges Dumézil sintetiza desse modo suas diretrizes metadoldgicas em Mitra-Varuna - Essai sur deux représentations indo-européennes de la souveraineté (1948). **Essas palavras de Goethe encontrarm-se na introdugao a Zur farbenlehre — Didaktischer Teil (1963-6). NOTA DO EDITOR: os termos derivados da lingua iorubd que designam cargos na hierarquia dos Terreiros, e nomes privados de Orixd, foram manti- dos em sua forma aportuguesada. A versio e traducio das centigas foram mantidas, or sua vez, em sua ” forma original”, entenda-se em gratia fonolégica, para facilitar eventuais consuitas, por parte dos leitores, de obras de referéneia (diciondrios, p. ex.) em lingua iorubé. 4 O MERCADO A dimensio socioldgica e cosmoldgica de uma licgéo-de-coisas Q & 7 1 “'. .« diziam que os Orixds estavam proibidas, mes dentro do mercado é como se ndo houvesse proibigdo alguma, talvez a mercado fosse o refiigio dos Orixas, . ."” (Antonio Olinto — O Rei de Keto) ‘Uma viagem ao mundo afro-brasileiro comega no mercado. Nas Sete Portas, no Mercado Modelo ou na Feira de Agua de Meninas, pois a Bahia é, como gostava de dizer mae Aninha, uma *’Roma africana”. Mas pode comegar também no Mercado de Madureira, subUrbio carioca da Central, ou em qualquer um de seus congéneres, no Recife, em So Lu/s ou em Belém do Pard. Em todos eles se destaca, de imediato, a enorme concentracéo de negécios voltados para o atendimento da de- manda dos cultos afro-brasileiros — candomblés, xangds, tambores-de- mina, batuques e paras, catimbés, macumbas e babacués, ou como se chamem as diversas variantes dessa religido em seus respectivos contex- tos regionais. A presenca desses cultos em quase todas as grandes cidades do li- toral 6 notdvel. O estranho ndo pode deixar de ver os seus indicios; ora sob a forma de vestigios silenciosos — restos de “despachos", nas encru- zilhadas, esquinas, praias ou cachoeiras; ora sab o aspecto animado de grupos e cortejos rituais, nas “lavagens” e nas “romarias”’. A forga e a amplitude dessa presenca se evidencia, sobretudo, no mercado. Revelam-se ai com toda 2 densidade e multiplicidade que as ca- 5 racterizam no quadro urbano das metrépoles. Sao numerosissimas as lojas dedicadas ao comércio especializado de artigos religiosos e quase poderfamos dizer que nao hd nas demais nenhuma onde nao se ofereca algo destinado a alguma prdtica do culto. Por isso, o8 mercados quer na sua forma permanente, quer sob o aspecto periddico das feiras, essas “cidades de um dia” a que se refere LéviStrauss sempre chamaram a atencdo dos viajantes e cronistas, ndo 6 como centros de intensa vida social, mas também pelo que ofereciam de pitoresco 4 contemplacao do visitante, 4vido de exotismo. Com suas sonoridades e aromas peculiares consequem chocar ou seduzir, as vezes ambas as coisas ao mesmo tempo. Como lugar de encontros, transacées, novidades e escandalos, possuem um ritmo proprio, sempre mais ou me- nos intenso, em virtude da aglomeracdo inquieta de corpos e objetos num espago que parece, por vezes, demasiado exiguo para conté-los a todos. A conversagao e 0 divertimento; as rixas e alteragdes; as amizades e competicdes; as intrigas, pol (ticas ou amorosas, fazem parte desse movi- mentado universo ‘‘onde sao intercambiadas mais saudacées, informa- bes e estérias do que mercadorias ¢ dinheiro”.! Tudo isso numa lingua- gem eivada de expressdes e referéncias que, tanto quanto os nomes nas tabuletas, o cardter dos comentdrios e mexericos, e a natureza peculiar das mercadorias, remete, incessantemente, as diversas formas da pie- dade afro-brasileira. Dinheiro e mercadorias; narrativas, informagdes e cumprimentos tém em comum o fato de serem coisas trocadas. Sdo regidas pelo prin- ‘cipio que governa todas as formas da troca. E porque a troca é movi- mento e o movimento implica transitividade, todas elas est3o subor- dinadas a Esi7, o grande principio dindmico na cosmovisio do candom- blé, Nao é pois de estranhar-se que dentre os t/tulos de Esi, que sio muitos, se encontre também o de O/doja, isto ¢, “dono-do-mercado”, O mercado 6, juntamente com os caminhos e suas encruzilhadas, 0 dominio por excéléncia de Esi. Esquecé-lo, quando se vai as com- pras, & nefasto para os negécios. Por isso, quase sempre encontramos, junto a entrada do mercado, um assentamento sumério, onde se depasi- ta 0 tributo devido ao senhor-dos-limiares e das passagens. Com ele pre- tende-se conquistar a sua benevoléncia, tao importante para o éxito das transagSes num universo onde o intercurso social nem sempre é harmo- nioso, tranqiilo e bem-sucedido. Nesse universo, 6, por vezes, dificil ‘encontrar o que se procura, decidir o que ¢ melhor e pagar o que é ra- zoavel. Por isso, néo bastam as conversas e barganhas. E preciso a com- placéncia ou mesmo a ajuda do O/dofa. Isso é verdade, sobretudo, quando se trata de comprar as coisas Necessdrias para os rituais, O mercado é um meio diverso e complexe onde hd ndo sé um comércio esecializado, mas onde as trocas s30 coman- dadas por uma série de variacGes, sazonalidades e ritmos que, em maior 7 ou menor grau, condicionam a oferta e a demanda, Para comprar bem e certo é preciso levar em conta essas determinaces, que obedecem ao calendério litirgico dos terreiros. O mesmo vale para quem quer vender certo ¢ bem. Nao basta conhecer os circuitos de produgao e as idiossin- crasias da pauta de consumo. Pelo menos no que tange ao comércio es- pecializado, exige-se um algo mais, que é a participacao na vida cerimo- nial das easas-de-santo, seja como iniciado, como benemérito ou como simples membro do grupo de culto, Essa freqdentacdéo tem implicacées para o préprio negécio. Em primeiro lugar porque se estabelece desse modo um nexo necessdrio e fundamental entre um fornecedor ¢ seus possiveis clientes, Esse nexo é tdo mais importante quanto mais pesam as peculiaridades dessa esfera de consumo. E como se, para servir adequadamente os seus fregueses, tivesse 0 comerciante de conhecer o préprio modo pelo qual se conso- mem os itens de seu comércio. O conhecimento do modo de consumo, no entanto, jd é, em larga medida, conhecimento dos cultos. E isto por dois motivos. Primeiramente, porque tais cultos se distinguem no seu conjunto pelo dispéndio ritual, a ponto de se poder falar deles como verdadeiras religides de consumo, Em segundo lugar, porque nao estan- do ainda, em que pesem tendéncias observadas nessé sentido, eclesifi- cados? e nao se encontrando pois subordinados a um dogma, os cultos se diferenciam, no seio dessa totalidade, por seus respectivos maneiri mos liturgicos; pelas suas respectivas distingdes quanto ao modo de efe- tuar o dispéndio cerimonial. A autonomia dos terreiros se estabelece e mantém pelas diferentes escolhas que fazem no mesmo conjunto de meios destinados ao consumo votivo. Assim se diferenciam, umas das outras, as grandes nagées do candomblé, pois kétu, jeje, ijésd, angala, conga, bem como os candomblés-de-caboclo, nao fazem os seus san- tos exatamente da mesma forma; nao usam as mesmas coisas, da mesma maneira, nos rituais do mesmo ciclo, No ambito da mesma nagdo, en- tretanto, encontramos também diferencas de uma casa para outra. E novamente estas se estabelecem pelo uso |iturgico, por sua vez infor- mado por diferentes versdes do sistema cosmolégico. Mas se © consumo permite reconhecer as diferencas que separam os terreiros, 6 iquatmente ele quem aproxima certas casas em virtude de seus lacos genealdégicos, atestados pelo mado comum de realizar os ritos. Finalmente, cabe lembrar que os préprios santos se distinguem e identificam por meio de suas preferéncias em matéria de consumo; pe- las peculiaridades do gosto de cada um deles, Uma divindade privilegia certas cores e texturas, nas suas vestimentas; certos sabores e aromas, nas suas comidas; determinados paladares, em suas bebidas; determi- nadas esséncias, nos seus “defumadores”; certos metais, nos seus ade- recos e emblemas; certas pedrarias, nas suas jdias.3 & Quem quer que pretenda se qualificar como fornecedor deve, an- tes de tudo, qualificar-se como conhecedor. E nessa ultima condic¢ao que goza da confianca de pais, mes e filhos-de-santo. Gracas aela serd indicado e procurado, podendo assim exercer e refarcar o seu conheci- mento. Com o seu prestigio, cresce a sua frequesia. E, com ela, natural- mente, o renome ea prosperidade do seu negécio, elevando-o na hierar- quia do mercado. Assim, 0 mercado contribui para a articulacéo socioldgica da ne- bulosa constituida por essa infinidade de centros e terreiros, que se es- palham pelos mais remotos recantos da grande cidade. Os pontos dessa nebulosa distinguem-se uns dos autros. Nao s6 como se cada qual tives- se a sua propria luz, mas, ainda, como se essa luz tivesse também a sua qualidade propria. Constelagées de variada magnitude e configuracdo, Qs tragos que as distinguem sao numerasos, como sdo numerosas as ten- sdes nesse campo de forcas. O seu conjunto, entretanto, a despeito das diferengas e distancias relativas, alimenta um comércio de especiarias. A idéia do comércio de especiarias no é descabida. Deve ser to- mada, num sentido mais amplo e metaférico, como um tréfico de pro- dutos exéticos, provenientes de lugares muito diversos e, as v zes, mui- to distantes, O mercado retne os diferentes ramos desse comércio. Ar vamos encontrar os armarinhos que expGem toda sorte de tecidos, do mais simples morim 4 mais fina seda, passando pelos fustées, cetins, linhos, veludos, organzas e tafetds; javanesas, viscoses e filds. Ha padronagens de todos os tipos e os matizes compdem um minucioso recorte da esca- la de cores. S30 oferecidos ao comprador, além disso, cadargos, rendas, fitas, gregas, botdes, fechos e sianinhas numa variedade croméatica que acompanha a dos tecidos. Outras casas proporcionam a escolha dos varios tipos de comple- mentos da indumentéria, apresentando ao cliente uma selecdo ex trema- mente diversificada de contas, missangas, guizos e corais; pulseiras e co- lares; brincos, pingentes e anéis. Encontram-se também sabdes, sabone- tes, colonias, perfumes e b4lsamos, sem falar nas resinas e esséncias co- mo 0 estoraque, a alfazema, 0 benjoim, o patchouli, a ‘a, 0 almfscar eo alecrim, com que se compdem os defumadores e aromatizam os banhos rituais. Ha estabelecimentos que ostentam produtos como vamos encon- trédos nos armazéns € quitandas: variedades de arroz, feijdo, farinhas, mitho, mileto e amendoim; gengibre, sagu e tapioca; inhames, cards e aboboras; taioba, bertalha, espinafre, quiabo e agriao; cebola, colorau e alho; favas e sementes de todo tipo; mel, melado, azeite-doce e azeite- de-dendé; coco-da-bara, pimenta-malagueta e do reino, além de estei- ras, Cestos, vassouras, abanos, para os fogareiros 4 carvao, e peneiras- de-taquara. Iqualmente pela variedade, surpreende uma tipologia de recipien- tes que abrange toda gama de materiais, formas e tamanhos, a comecar pelos vasilhames de argila, incluindo alguidares, quartinhas, pucaros e porrdes; bacias e canecas de Agate; gamelas talhadas na madeira; pratos, xicaras, travessas e sopeiras de louga branca, ou de vidro; cabagas de formatos e tamanhos diversas, pintadas ou nao; vasos de ceraémica, por- celana ou lato; potes e panelas de ferro ou aluminio, e assim por dian- te, bem como objetos de cutelaria — tesouras, navalhas, facas, macha- dos, etc. Encontra-se, ainda, uma estatudria votiva, da qual fazem parte desde toscas figurinhas, compostas de pedacos de ferro, com solda, até representacdes plasticas, que incluem a talha, a terracota, 0 gesso e a porcefana, em variados niveis de elaboracdo e acabamento. Com elas, compde-se uma extensa iconografia afro-catélica, integrada pelas repre- sentaces estereotipadas desse pantedo que inclui o Senhor do Bonfim, Sao Ldzaro, Sio Sebastiao, os varios tipos de Nossas Senhoras (da Con- ceicao, da Gléria), Sant’Ana, Santa Barbara, Sao Jerénimo, S&o Jorge, Sido Judas Tadeu, So Lourengo, Sante Antonio, sem falar das “'pretos- velhos” e “caboclos”, dos Esu e das Pombas-Giras. Um tipo especial de representacdo plastica s40 os ex-votos em cera, conjunto do qual nao se exciui um 6rgdo sequer, dos que integram o corpo humano, e ao qual pertencem, igualmente, todas e quaisquer representagdes do desejo, que tenham sido objeto da angustia au da ansiedade dos crentes. Nao faltam tampouco atabaques e angombas; agog6s, aaja (adjas) @ adufes; caxixis e ganzds; agiiés e berrantes, pois ndo hd culto sem sonoridade e ritmo, H& bancas de peixe, onde se encontram também caranguejos ¢ siris, tipos variados de camarao fresco, salgado ou defumado, ostras e caramujos. Determinadas tojas oferecem conchas, cavalos-marinhos, sa- pos e camaledes secos, Outras, ainda, vendem flores, samambaias e aven- cas, drvores-da-felicidade, espadas-de-Sdo Jorge e dracenas, Ha bancas de frutas, onde a variedade ¢ condicionada pela estacao: 0 melao de Osun, © abacaxi de Obaltiwdiyé, a manga e 0 caja de Ogun, o mami e a laran- ja de Yemoja, a banana de Esu, a jaca de Songs. . . Nos ervanarios, podem-se obter as folhas indispensdveis para os amacis, como o sangolovd, a andiroba, o alecrim, a manjericao, o assa- peixe, 0 bradamundo, o bétis, 0 anis-estrelado e os “cheiros” com que se temperam as comidas: cravo, canela, horteléo, noz-moscada, louro, cominha, alfavaca, a segurelha, 0 coentro e a erva-doce. Mas sao as plan- tas de uso medicinal que ocupam mais extensamente os tabuleiros — boldo, camomila, erva-de-santa maria e carrapateira; casadinha, beténica e babosa; angico-branco, sete-sangrias, sassafrds, sdlvia ¢ salsaparrilha; said, poejo, pau-d'alho, manjerona e quebra-pedra; malva, ficus, fede- goso, meldo-de-Sdo Caetano e erva-cidreira; erva-de-Santa Luzia, arruda, 10 aroeira @ espinheira-santa, enfim, hd de um tudo nesse arsenal fitoterd- pico que a medicina popular conheceu e utilizou sempre, sem pretender separar os seus elementos das referéncias magico-religiosas, que serviram para desacredité-los, quando do avanco do saber terapéutico moderno,* Essa quantidade de coisas distintas entre si pelas substancias, co- res, texturas, aromas, formas ¢ tamanhos é agrupada e exposta de acordo com certas légicas que por si s6 mereceriam uma consideracdo mais atenta. Além disso, diferenciam-se em virtude de sua procedéncia, pois, no mercado, encontra-se, a0 lado do azeite-doce de Portugal, com sua tonalidade dourada, o carregado e sangiiineo dendé da Bahia. Hé buzios, ob/, ordghd e favas de dridan provenientes da Africa, como os chifres de antilope e as penas do papagaio-da-costa, ou, ainda, a palha, a pimenta, 0 pano e o sab3o dos quais se diz, igualmente, que sio “da Costa’ *"’ As “firmas’’, pecas cil indricas de basalto negro, ocre ‘ou grend, torneadas pelos artffices africanos, também autores de traba- 'hos em ébano e marfim, rivalizam com as contas multicoloridas de vi- dro ou porcelana vitrificada da Tchecoslovaquia. Chas silvestres, choca- thos de cascavel, camaledes secos e couros de cobra procedentes de re- motos rincSes do sert&o brasileiro coexistem com bods d’autruche, pac: tés, filés, rdfias e purpurinas, sedas, brocados e lames, vindos de So Paulo ou de Paris. Hé ovos de avestruz e banha-de-osi, da Africa, bem como balangandas de prata, da Bahia. Hd permbas, indigo e urucum, tin- turas e pigmentos, produzidos a partir de recursas natives, No proprio mercado floresce, com imaginacdo ¢ requinte, um artesanato de insig- nias, coroas e diademas e outros objetos de prata, cobre, ferro, lato ou, até mesmo, de ouro e pedrarias, 0 qual vai de par com o preciosismo dos produtos das costureiras, bordadeiras e figurinistas. Nesse ambiente marcado pelo burburinho das conversas, dos risos e das rixas, pela expressividade dos matizes, envalta no aroma das fru- tas, das comidas**" e dos defumadores, no cheiro das velas e das ervas e * Para as classificacées cientificas e nomes litirgicos das ervas utilizadas nos can- dombiés jeje-nagé consultar Pessoa de Barros, 1983. ** A expressio “da Costa” sofreu uma atualizagdo seméntica, Outrora, servia para qualificar 0s produtos pela remisséo 4 sua procedéncia, no caso @ litoral da Golfo da Guiné, 20 longo do qual se alinhavam a “costa de ouro”, a “costa do marfim”, a "costa dos escravos", a "costa da Mina’, ete. Hoje, trata-se apenas de uma forma de especificar 0 tipo de pano, pimenta ou sabio, pois esses artigos no costumam vir mais da Africa, *** As compras tamam tempo. O motivo ndo est na tensdo das listas ou no vagar que se pdem nas ponderagées. O mercado é um programa do qual fazem parte as conversas, 08 encontros e, por isso, a comida e a bebida ndo poderiam deixar de ter af um papel destacado. Come-se desde acarajé, acag4, abard ¢ cuscuz, “comida para comer andando"’, na expresso de Cimara Cascudo, até os pratos de resistén- cia que so as feijoadas, os mocot6s, os angus, as peixacias, os sarapatéis, os vata- pas e os carurus. 1 no odor acre de aves e animais, circula uma pequena mul Jao. As pes- soas que a compéem formam um quadro vivo cuja variedade parece querer competir com a das préprias mercadorias expostas, Sdo de dife- fentes categorias sociais, pertencem a grupos de cultos distintos, vam de lugares distantes, embora nao tanto quanto alguns das produtos, e fepresentam as mais variadas tonalidades da colcha de retalhos que é a populacao brasileira nas metrépoles do litoral. O olhar avisado reconhece no meio desse rebuligo uma dupla, for- mada, em geral, por uma pessoa mais velha, que serve de guia e conse- Iheira & outra mais jovern. O primeiro é um veterano e, nessa qualidade, cabe-lhe acompanhar o mais novo nesse primeira passe de sua iniciagdo, que consiste em fazer as compras para rito de integracdo ao candombié. A lista que 0 abid, como 6 designado o novato, traz consigo & comprida e complexa, e, para ele, quase sempre, parte misteriosa, Con- tém muitas coisas que Ihe séo desconhecidas quanto & sua natureza e emprego cerimonial. Por isso, nfo pode tomar sozinho certas decisées, visando 4 sua aquisi¢ao. Precisa da orientacdo e do critério do ebdmin, instrufdo nos afazeres da casa-de-santo e na vivéncia dos seus ritos. Assim, podemos considerar a ida ao mercado nao s6 como uma prelimi- nar, mas, propriamente, como o come¢o da aventura da iniciagdo, uma etapa que j4 se encontra sob a égide do rito de passagem. Pademos ir mais longe: as compras desempenham um papel im- portante na prépria instrugdo do neéfito. Verificamos, por exemplo, que sio regidas pela etiqueta da pedagogia inicidtica. De acordo com ela deve o novico prestar a maxima aten¢ do, perguntando o minimo poss/- vel, € somente nos momentos adequados. Comprar as coisas do ritual, mais do que uma necessidade, é uma arte. Quanto mais cedo e melhor © filhode-santo a dominar, tanto maiores sero as probvabilidades de éxito em suas obrigagées e, com isso, sua ascensdo na hierarquia da seita, As compras piedosas nao podem ser inocentes ou improvisadas. Devem seguir rigorosamente as prescri¢des consignadas na lista que o chefe-de-terreiro compés para esse fim, No mundo dos candomblés, en- tretanto, quem faz uma lista se expéde e sabe disso. Uma lista nao é sim- plesmente um a/de-mémoire, um rol indicativo de itens e quantidades que admitisse substituigGes ou alteragdes ao sabor da conjuntura do mercado ou da vontade momentinea do comprador, E, ao contrério, um conjunto fechado e detalhado de encomendas, cuja destinag&o pre- cisa impée severas limitagSes a liberdade de escolha. Uma lista de feitu- ra permite.estabelecer ou atestar a distribuicdo social do conhecimento relativo as liturgias afro-brasileiras. Os encarregados de seu aviamento podem, através delas, nao sé reconhecer um determinado estilo litargico (de casa ou na¢éo) como também avaliar a competéncia de uma pratica sacerdotal. E isso de um ponto de vista privilegiado, pois, gragas 4 sua 13 posigao (isto é, ao fato de estarem no mercado), tem a possibilidade de comparar. Ao comparar, porém, passam do .confronto das-listas ao das casas e, inevitavelmente, chegam ao cotejo do saber e do desempenho de pais e maes-de-santo. As omissGes, escolhas discut(veis ou os even- tuais equivocos que uma lista revela podem comprometer o bom nome nao $6 do titular, como, através dele, o do terreiro. Pelo lado positivo, as listas permitem avaliar nao s6 quem observa mais “corretamente” os ritos, como também os barcos mais numerosos, os santos mais bonitos, 9s sacriffcios mais opulentos, as cerimdnias mais ricas e as festas mais suntuosas,* Além de consolidar ou abalar reputagdes sacerdotais, 0 mercado funciona, pois, como uma verdadeira caixa de ressonéncia da comuni- dade onde se praticam os cultos. Por isso, vamos encontrar nele ndo sé as mercadorias que [hes sdo destinadas, mas todo um processo de divul- ga¢do, legitimacao e controle social. Os convites e prociamas apregoam as efemérides das casas-de-santo, ao passo que os comentérios e rumo- res ora sancionam os sucessos, ora os percalcos da vida nos terreiros, Tudo isso the confere importancia e, na razo direta dessa impor- tancia, contribui para tornélo, ao mesmo tempo, temivel e sedutor. As casas-de-candomblé ndo podem confinar-se a sua esfera ritual intra- muros. Sua busca de vitalidade as impele, necessariamente, a se torna- rem mais e mais visiveis no espaco publico. O mercado vem ao encontro dessa pulsio, na medida em que thes proporciona no s6 os meios, co- mo também o palco de sua representagdo diante da opinido publica, Sua presenca nessa esfera tende a colocd-las em competicao com suas congé- neres, a0 Mesmo tempo em que as submete a um processo de legitima- G0 que depende também destas. No 6 outra a razdo pela qual esses cultos v8em o mercado como uma instituigdo cujo funcionamento ¢ pre- cise conhecer e dominar, com eficiéncia. A seducao e o poder do mercado, no entanta, ndo derivam apenas do controle social e das imposig¢des aquisitivas de uma religido de consu- mo, Suas raizes mergulham profundamente na tradi¢do africana, pois, se em toda parte hd mercados, com o seu existir tumultuoso e pitores- co, foi em determinadas sociedades da Africa que se Ihes atribuiu acon- dig%o de um dom/nio cujo valor, além de sociol6gico, 6 cosmoldgico. Na sua, infelizmente pouco lembrada, Contribution 4 I’étude so- cialogique des marchés Nagé du Bas-Dahomey,5 Bastide e Verger ilus- tram, com abundantes dados etnograficos, nao s6 a densidade dessa ins- tituigdo, do ponto de vista sociolégico, mas a sua inser¢.do na cosmolo- gia das sociedades do Sudo Ocidental. Mostram que ‘‘ndo hd ato im- portante da vida tradicional que nao se inscreva no quadro sagrado do mercado” © pois ndo s6 os recém-nascidos devem apresentar-se af, par- ticularmente quando se trata de gémeos, como também os mortos, antes de os enterrar no chao de suas casas, sfo obrigados a-uma volta 14 no mercado, O mesmo vale para os recém-iniciados nas confrarias reli- giosas; para-os recém-casados e, no caso dos muguimanos, para os recém- retornados da peregrinacdo que o seu culto Ihes prescreve.” © cardter cosmoldégico dos mercados evidencia-se quer pela sua obrigatoriedade como lugar de romaria dos ritos de passagem, quer pela explicita invocagdo sob a qual estdo, necessariamente, colocados. To- dos, sem excecdo, se beneficiam da protecdo de Es, combinada com a de uma segunda divindade, geralmente de cunho local, que contribui para reforcar a sacraliza¢do da praca-de-mercado.” No Brasil, essa du- plicidade de invocages sofreu uma reproducdo estereotipica. Assim, va- mos encontrar, ao lado de Esd, os santos catélicos, de acordo com o peso e a preferéncia das devogdes locais, O conhecimento corrente sobre Es, entre o povu-de-santo, con- juga uma série de lugares-comuns, de modo algum irrelevantes. Vale a pena alinhar os mais importantes deles. Todo filho-de-santo sabe que ele, além de primogénito da criacdo, ¢ o mensageiro dos deuses; que & quem abre ou fecha as caminhos, sendo, aléin disso, 0 senhor-das-en- cruzilhadas; que, em se tratando do principio dindmico da comunica- ¢4o e expansdo, nada pode dar certo sem o seu concurso; que ¢ dono de um temperamento vingativo e parcial: portador da fortuna ou do infor- tunio, segundo o merecimento dos fi¢is, em virtude da realiza¢o ou do esquecimento das oferendas, Tudo isso sdo apreensdes fragmentérias de um papel, cuja motivacio cosmoldgica se compreende melhor a par- tir das narrativas m/(ticas **. kkk Conta-se que num tempo muito distante, tio distante que dele nao ha noticia histérica, os deuses foram assolados pela fome. Seus fi- thos passeavam na Terra esquecidos de mandar-thes comida. Além disso, reinavam entre as divindades a discordia e a guerra. Diante da pentria que os afligia alguns resolveram cacar, enquanto outros iam a pesca. Os faros antilopes e peixes que conseguiam abater no eram suficientes para sacia-los por muito tempo. Os descendentes dos deuses, no entan- * Em comunicacdo pessoal (1988), Pierre Verger relatou-nos que apés sua inicia- ¢0 em Kotonu, no Benin, foi exibido por trés vezes no mercado daquela cidade. ** A relacdo de Est, com o mercado confirma-se através de algumas dessas formu: as loudatorias que sintetizam feitos ou atributos dos orixds. H4s trés orik/ culo significado deixa pouca margem a divide, quando se trata da relago de Es) com @ mercado. O primeiro afirma: “Sua mde o pariu logo depois de voltar do merca- do". O segundo diz: “Ele compra no mercado sem pagar". O terceiro completa: "Ele faz que, no mercado, no se compre nem se venda até 0 cair da noite’. (Bas- tide e Verger, 1952:55). 15 to, continuavam a perambular pela Terra esquecidos dos seus ancestrais. Estes, por sua vez, davam tratos a bola para encontrar um jeito de fazer com que os homens voltassem a alimentd-los. E nada. Nenhuma oferen- da para aplacar a sua fome, Foi ento que Esd se pds a caminho, Pro- curou Yemoja e perguntou-the se havia algo capaz de granjear-thes nova- mente o cuidado dos homens. Yemoja foi pessimista: ‘Nao adianta. Xampané, que é Obaluaié, j4 tentou. Mandou uma epidemia, Os homens: adoeceram, mas nao vieram lhe oferecer sacriffcios, Ele vai acabar ma- tando todos sem que eles Ihe déem de comer. Xangé também. Mandou raios e matou homens. Mas os homens nem ligaram para ele. Morrem, mas nao fazem sacriffcios, Por isso, é melhor procurar outro jeito, por- que eles néo tém medo de morrer. Acho melhor dar-Ihes uma coisa téo boa que os faca querer mais e que por isso os anime a continuar viven- do”, Est) ouviu com atengdo e continuou sua viagem, Chegou, ent&o, 4 casa onde Orungan, filho de Yemoja ¢ Aganjii vivia. Este Ihe disse: “Ja sei. Os dezesseis deuses tém fome. E preciso satisfazé-los. Eu conhe- G0 algo que pode ajudé-los. E uma coisa Otima. Sao dezesseis coquinhos de palmeira. Quando vocé os conseguir, ¢ souber o que querem dizer, podera reconquistar os homens’’, Est) foi até um lugar onde existiam muitas palmeiras. Convenceu os macacos a Ihe darem dezesseis coqui- nhos. Olhou-os com atengdo, mas no entendeu nada. Os macacos per- ceberam sua dificuldade. Entdo, disseram-lhe: ‘‘Vocé nao sabe 0 que fa- zer com eles, ndo é? Entdo vamos Ihe dar um conselho. Vocé foi muito esperto ao conseguir esses coquinhos. Resta-Ihe ir pelo mundo a forae Perguntar, por toda parte, o que significam. Em cada uma das dezesseis regides do mundo vocé recolher4 dezesseis ordculos. No final de um ano, vocé terd aprendido a compreender dezesseis vezes dezesseis ord- culos. Basta ensinar aos homens o que vocé tiver aprendido e eles volta- ro a temer vocé". Es fez tudo conforme a indicagao, depois valtou e contou tudo aos deuses, Estes ficaram contentes. “Isto é muito bom!"", disseram. Depois ensinaram tudo aos homens. E estes puderam saber, todos os dias, qual era a vontade dos deuses e que futuro os esperava. Quando descobriram a quantidade de desgragas que lhes reservava o porvir, e que, fazendo sacrificios poderiam proteger-se delas, volveram a imolar animais e oferecé-los aos drisd. Foi assim que Est trouxe aos homens, além do Sol, os coquinhos da palmeira que so 0 ordculo de Mfg 8, kk De acordo com as representacdes vigentes, seja no senso comum, seja nos mitos etioldgicos do povo-de-santo, podemos compreender o que é que Est) tem a ver com o mercado. Como se cohstata no relato mitico, coube a Esit a restauragSo do sacrificio e, com ela, tanto os 16 deuses quanto os homens se tornaram seus devedores. Os primeiros porque voltaram a ter comidae bebida com fartura, Os dltimos porque, através do ordculo, puderam conhecer o futuro e a vontade dos dr/sé. Gragas a isso, tiveram nao s6 motivo, como também as meios para se comunicarem com as divindades, dispondo-as favoravelmente aos seus anseios de bem viver. Puderam retomar a prética piedosa do dispéndio sacrificial, retribuindo, por intermédio dele, a benevoléncia divina. A pedra angular da piedade afro-brasileira é 0 sacrificio. Sem ele nenhuma passagem pode efetuar-se com éxito. Os sacrificios, no entan- to, requerem que se oferegam aos deuses as coisas de sua preferéncia. Como saber quais sio? “Afanya”, Ifa nos dird. Quaisquer que sejam, no entanto, é no mercado que vamos encontré-las. E sera Est o seu por- tador,? Quanto mais importante a passagem, mais dramatico o sacrificio. Nos mindsculos transes do quotidiano, basta o dispéndio modesto e pla- cido das libacGes, defumacdes e oferendas culindrias. As grandes passa- gens, no entanto, requerem os grandes sacriffcios, o sangue derramado, as hecatombes. ‘Na relago dos homens com os deuses, o sacrificio animal consti- tui o penhor mais precioso. E indispensavel para abrir 0 caminho em to- dos os grandes ritos que visam transformar radicalmente a forma de existéncia dos seres humanos. Dentre todas eles a iniciagdo, mais do que qualquer outro, precisa oferecer vida por vida, Ninguém se surpreenda, pois, ao encontrar no mercado tado tipo de bicho capaz de satisfazer a enorme variedade e complexidade da de- manda sacrificial. Dividem-se geraimente em trés grandes categorias: os animais “de quatro pés’, como a cabra, 0 porco, o bode, ocarneiro, a navilha, a boi e o veado; os animais “de dois pds” ou os de pena”, como galos e galinhas, pombas, patos, gansos e pavGes, faisées e con- quéns; e, por Gitimo, os demais, incluindo ras, caracéis,” cégados e ta- tus, 0s quais, por variados critérios, ndo estdo inclufdos nas duas ante- riores,! 0 Todas esses animais tém, ao mesmo tempg, o cardter de sustento e simbolo,!! SH compreendidos como sustento pela exegese nativa, quando esta os reconhece como itens preferenciais ou obrigatorios do cardapio de determinados santos. Costuma-se dizer, por exemplo, que o carneiro ¢ comida de Sdngd, o pombo de Odsadid, peixese camardes, de Yemoja, o bade e o galo de Esd, o tatu de Osddst e Osdimaré @ assim por diante. * A rigor, 0 caracol — igbin, integra 2 catego: 6, para efeito sacrificial, 0 “boi de Odsds/d”. dos “bichos de quatro pés”, pois 17 Os mesmos animais oferecidos a determinado dr/sd, e dos quais se diz que ele os “pede”, séo, no entanto, interditos de outros, que néo gostam deles, para quem sao tabus, de quem sao o ééwd ou a quiziia. Desse modo, cada bicho se reveste, no candomblé, de um aspecto simb6lico, Nessa religifio, porém, o préprio dispéndio tem uma dimen- sdo imediatamente expressiva, pois cada item da pauta de consumo — comida, bebida, roupa e aderegos — serve, isoladamente ou junto comos demais, para circunscrever a persona de uma divindade, integrando pois a sua representac3o convencional. Razdo a mais para a existéncia de uma auténtica etiqueta das compras piedosas que determina njo s6ri- tos propiciatérios, como ainda modos de aquisic¢ao, maneiras de transpor- tar e formas de acondicionamento. Dentre os animais que o mercado proporciona aos figis para que estes possam oferecé-los aos deuses, constando particularmente da lis- ta de todo abid (junto com o pombo), encontra-se a galinha-d’angola, Esta apresenta uma singularidade que merece consideragdo, pais, além de nao haver feitura sem ela, cabe+lhe a condi¢ao de oferenda preferida, sendo de todos osdrisd, pelo menos da maioria deles. Acrescente-se que sua cabeca é um interdito para todos os filhos-de-santo, sem ex- cecéo. O cardter simbélico, que a galinha-cl'angola tem em comum com todos os outros bichos que integram © elenco de vitimas sacri apresenta-se, NO caso dela, td0 marcante a ponto de se justificar a hipd- tese de estarmos diante de um s/mbolo focal, verdadeira chave-de-ab6- boda do rito iniciético nos candomblés. Quem vai ao mercado descobre que a galinha-d’angola tem nomes em profusdo. E chamada de “‘galinhola”, “guiné”’, “angolinha”, “capo- te”, “etd, “cocar”, “picota”, “pintada’, “tofraco” e “‘conquém'’*. Os diciondrios!2 e@ os tratados de ornitologia!? registram, ainda, as deno- minagSes de “galinha-da-india” ou “sacué” **. Todos esses nomes se utilizam, para designa-la, de tragos relacio- nados, seja com a sua procedéncia, seja com as qualidades que a distin- quem, isto 6, com a sua morfologia, valendo-se de aspectos relativos, seja 4 forma, tal como se desvenda para o sentido da visio, seja a voz. Foram essas igualmente as variéveis consideradas por Marcgrave na sua * Raul Lody, por ocasifo de um levantamento efetuado para fins de tombamento da casa de Pai Adgo, terreiro nagd do Recife, Pernambuco, cole tou ainda a deno- minago tolutolu (comunicag&o pessoal). ** Jorge de lemanjé, titular da mais importante casa jeje do Rio de Janeiro, em comunicagSo pessoal, registra 0 nome catra/ na lingua litirgica daquela nagSo. ira (1979:31) refere catraio para a Casa das Minas, no Ma- Histéria Natural do Brasil-que integra o Theatrum Reram Naturalium Brasiliae, conjunto das obras produzidas sobre o Brasil, sob os auspfcios de Mauricio de Nassau e depositadas na Biblioteca Jagellonica de Cra- A descrigio de Marcgrave é importante, porque corresponde ao primeiro registro da galinha-d’angola em terras brasileiras. Nas palavras do naturalista holandés: “Galinha Africana. Natural da ilha de Majo, semelhante as nossas galinhas no tamanho e na figura; é quase como a perdiz; tem uma coroa no pescoco e a cauda caida, igual A da perdiz; os pés s30 como os da galinha. O bico é amarelo, e na cabeca se encontra uma crista de pele fusca; dos lados brancos da cabeca e de cada la- do, junto do corpo surge uma crista vermelha, O corpo & coberto de penas pretas, marchetadas de elegantissimas manchas brancas, oblongas nas asas e redondas nas outras partes, um pouco meno: res no dorso, do que no corpo. Semelhantes a esta vi umas trazi- das da Serra da Leoa, mas tinham 0 pescogo cercado ao redor ou envolvido por uma faixa membranosa de um cinzento-azulado. Guarnece-the a cabeca uma crista arredondada, multipla, formada de penas elegantemente pretas; uns pontos brancos salpicam-Ihe a extensio corpérea mais uma sombra verde-mar. Esta ave 6 chama- da de Quetele pelos habitantes do Congo,’ 14 A primeira representag3o iconogratica, atestada para 0 Brasil, en- contrase também no Theatrum. Esté no Libris Princips. A autoria da gravura & controvertida, Costuma-se atribu/-la ora a Marcgrave, ora a0 préprio Nassau, do qual ¢, ao que tudo indica, a legenda manuscrita que a acompanha. Nas obras dos naturalistas do século XVIII, “com freqiséncia mais atentas do que as modernas aos aspectos sensiveis das coisas" S, en- contramos também representacGes figurativas da galinha-d’angola, tan- to em Buffon (prancha 108) quanto em Srisson (prancha 18). A Lineu, entretanto, coube classificdta, atribuindo-Ihe o nome cientifico pelo qual é, até hoje, conhecida — Numida meleagris. (Ordem: Galliformes; Familia: Numididae; Género: Numida; Espécie: Numida meleagris.)!& As duas referéncias contidas nesse nome cient/fico nao sao irrele- vantes. A palavra meleagris remete-nos ao mundo grego*onde “uma fie- go mitolégica fez chamar assim a pintada, cuja plumagem representava * Na descri¢do dos animais feita por Aristételes hé uma referéncia de duas linhas d pintada, Seu dise‘pulo Clito de Mileto, no entanto, dediea-Ihe uma descri¢So nucicsa, 19 as lagrimas derramadas pelas ternas irmas de um cagador desafortuna- da”, coma lemos no Dictionnaire des Sciences Naturelles'7. O termo Numida significou, para a cultura latina, nao s6 a regio da Numédia, mas, para além dela, a Africa em geral. Torna-se, pois, facil compreender a insisténcia com que as denominagdes da pintada apontam para esse continente. Diz-se, além de galinha-d’angola e galinha da Guiné, galinha africana, galinha da Berbéria, de Tunis, da Mauritania, da Lfbia, do Egi- to edo Faraé. . O agrénomo latino Colummela,no seu tratado De Re Rustica (VIIL, 2), do qual j4 se disse que era mais agradavel ao homem de letras do que Gtil ao agricultor, distingue a gallina africana ou numidica da meleagris grega, dado que nos permite concluir favoravelmente a idéia de que a presenga da pintada no Mediterraneo tenha resultado, na ver- dade, de duas introduces, uma pelos gregos e outra pelos romanos! §. O destino da pintada na Europa mediterranea parece ter-se con- fundido a tal ponto com a vigéncia do Império Romano que, apés a queda deste, também ela desapareceu das sociedades do meio-dia euro- peu. Sua reintrodugdo, apds o, para ela, longo eclipse medieval, deu-se por intermédio dos portugueses na época dos descobrimentos. Jd em meados do século XVI, vamos encontrd-la descrita e figurada, com 0 no- me de gallus mauritanus, num documento enviado por John Caius a Gesner, que o publicou nos Paraliomena, em 1555. No mesmo ano, en- contramo-la também numa noticia de Belon, acompanhada de uma xilogravura, na qual se pode ver a poulle de Ja guinee! *. Sempre, e por toda a parte, a mesma referéncia a Africa. . . A partir da primeira década do século XVI, os marinheiros do ca- minho das Indias trouxeram-nas para a América, onde se difundiram, do litoral brasileiro as Antilhas. Nas ilhas francesas do Caribe receberam o name de poules marrones. Essa denominagdo vem do fato de terem af retornado ao estado selvagem, 0 que obrigou os colonos de Sao Domin- gos a importar exemplares menos ferozes da Africa, para poderem vol- tar a “‘crié-las e multiplicé-las nos quintais.“?° “Cimarron, voz antilhana, significa ‘flecha que busca a liberda- de’, Assim chamavam os espanhdis o touro que fugia para @ mon- te, e depois a palavra ganhou outras Iinguas, cimarrao, maroon, marron, para batizar 0 escravo que em todas as regides da Améri- ca busca o amparo das selvas e pantanos, dos vales profundos, e, longe do amo, levanta uma casa livre e a defende abrindo cami- nhos falsos e armadilhas mortais.” 7" A palavra marron (ou cimarron) nao se refere apenas aos animais tornados bravios, mas também aos escravos fugidos. Refere-se, portan- to, a dois tipas de populagdo cujo destino foi o de partilharem as vicis- 20

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