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No Laboratério dos Sentimentos: pratica alquimica ou artificio da verdade— quadros da recepeo actual de Cosi fan Tutte Paula Gomes Ribeiro Instituto Superior de Estudos Interculturais e Transdisciplinares, Almada / FCSH, Universidade Nova de Lisboa «La scéne, en général, est un tableau des passions humaines, dont original est dans tous les coeurs.»! Jean-Jacques Rousseau 1 Os designios de Cosi fan tutte Cosi fan tutte, ossia La scuola degli amanti nunca obteve uma recepgo entu- sidstica, sobretudo por parte das audiéncias do século XIX. Tendo sido apresenta- da pela primeira vez a 20 de janeiro de 1790, no Burgtheater de Viena, contaria unicamente com dez. representagdes, organizadas em duas fases, a primeira em Janeiro e Fevereiro, a segunda entre Junho e Agosto do mesmo ano, interrompidas pela morte do Imperador José Il, ¢ mantendo-se no esquecimento, em Viena, durante trinta anos. Outras cidades ~ como Praga, Dresden, Frankfurt e Leipzig, — assistirdo 4 sua estreia, no ano da morte do compositor, mas o éxito nunca seré comparavel ao de outras éperas mozartianas. Muita literatura, que no nos compe- te aqui listar, no sendo esse 0 intuito da nossa reflexio, se tem dedicado a pro- blemitica recepgtio de Cos? fan tutte nos anos que se seguiram & morte de Mozart € ao longo do século XIX. O perfodo de Oitocentos terd muita dificuldade em aceitar esta obra, depreciando-a por desafiar a propria esséncia do amor ideal, romantico, ¢ a dignidade dos costumes. A trama é considerada indigna: dois rapa- zes, instigados pelo seu tutor, poem em jogo a fidelidade das suas noivas, simulam ‘uma partida, e regressam disfargados. Fstes seduzem as damas trocadas ¢ o inter- cambio dé-se, para grande perplexidade dos jovens ¢ géudio do tutor ¢ da criada, A desilusio é grande, a infidelidade das raparigas ¢ confirmada, e o tutor ganha a aposta. Porém, cré-se que a felicidade ¢ possivel, ¢ os pares retomam a disposigtio original celebrando 0 casamento previsto no infcio da historia. As paixdes violen- tas, 0 assustador desvanecimento da fidelidade sem consequéncias tragicas ¢ abso- lutas, a imprevisibilidade do comportamento humano, a precariedade do equilibrio "Jean-Jacques Rousseau, cit. in Jean Divignaud, Sociologle du hédtre, Paris, QuadrigePresses Universitaires de France, 1999, 360 Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo / and their time, Radighes Colibri, Lisboa, 2010, 169-184 | a Mozart, Marcos Portugal eo seu tempo / and ther time dos principios éticos e morais, envolvem-se num teatro que aparenta tratar com ligeireza a existéncia emocional, alarmando o esteta oitocentista que af no encon- trava o heroismo, os tragos roménticos ¢ a busca de verdade patente nas restantes ‘peras resultantes da colaboragtio entre Mozart ¢ Da Ponte. A paixdio actua como uma corrente que escava o seu leito cada vez mais pro- fundamente [...] € como um veneno ingerido ou uma enfermidade contraida; precisa de um médico que trate a alma do interior ou do exterior, que saiba, portanto, prescrever medicamentos paliativos2 Immanuel Kant, 1798 Criticam-se a trivialidade e imoralidade da intriga, que nao estaria ao nivel da genialidade do compositor, e sobretudo a sua inverosimilhanga. «Existiré um tema de Gpera mais indigente?” pergunta Hanslick. «Poder-se-A apelar de modo mais absurdo & credibilidade do espectador, exigindo que ele aceite a cegueira prolon- gada das duas heroinas: elas nfo reconhecem os seus apaixonados, que acaricia- ram hé um quarto de hora; e vio ao ponto de tomar a prépria criada, a quem bas- tou pér uma peruca, por um médico, e depois por um notario?»’ Considera-se a insergio de um novo libreto, ou mesmo a intervengdo sobre 0 texto de Da Ponte, nomeadamente sobre o final da obra, que causava especial inquietagdo nos gostos e moral da época, por perdoar a inconsténcia das duas raparigas.* Noiray sintetiza esta questo: «la mort de Joseph II, qui en interrompit les représentations, sonna le glas du régime le plus éclairé que I’Autriche avait connu, et ne devait pas connaitre avant bien longtemps. Plus encore, le change- ‘ment de souverain coincida avec un retour de l'esprit de sérieux qui favorisa une nouvelle vogue des sujets tragiques, rejetant comme trivial la Iégéreté mordante qui marque les ‘années d’avant la Révolution’ (...) il n’est pas étonnant que la génération venant aprés Mozart, Beethoven en premier, soit restée hermétique & Pimpertinence d’une oeuvre oit I’ équivoque est érige en principe organisateur.»6 Porém, a situagdo inverte-se no século XX quando, apés algumas décadas pontuadas por esparsas mas determinantes apresentagdes — Gustav Mahler, em Viena, 1900, ¢ Richard Strauss, 1920 e 1922 no Festival de Salzburgo — Cosi comega a estar cada vez mais presente na cena internacional, conquistando o inte- resse das audiéncias e da critica, € tomando-se um verdadeiro fendmeno de con- temporaneidade. 2 eLinelination que la raison du sujet ne peut pas mairiser ou n'y parvient qu'avee peine est la passion.» Immanuel Kant, Anthropologie du point de vue pragmatique, Paris, Vrin, 1979, 109. “Trad, livre da presente autora 3 Neste artigo de 1875, Hanslick revolta-e com a impertinéncia do libreto de Da Ponte, que se pauta, segundo ele, por uma total inverosimilhanga da intra, considerando no ser uma obra adequada A cena da sua epoca. Cf. Hanslick Michot, Pierre, «Frivole, immoral et invraissemblable» in L’avant scene opéra ~ Cosi fan tute, Mozart, Paris, Premiéres Loges, 1° 131-132, Mai 1995, pp. 171-176, 17. Trad, livre da presente autora. 4 Cf, Pierre Michot, op. cit; Edward J. Dent, Mozart's aperas: a critical study, London, Chatto & Windus, 1913; Paula Gomes Ribeiro, «A paixo € como um veneno.. Cosi fan tutte de Wolfgang Amadeus Mozart» nas notas de programa para Cos! fan tte, Lisboa, Teatro Nacional de S. Carlos, 2006, 115-127. 5 Michel Noiray, «Points de repére» in L‘avant scne opéra ~ Cos! fan tutte, op. cit, 5 170 { ‘No Lahoratério das Sentimentos Ora, é precisamente a intima e fécil contemporaneidade desta «Escola dos Amantes», a ameagadora proximidade que a audiéncia sente das vicissitudes sen- timentais e de um quotidiano possivel e actual, desenvolvido em espagos privados € piiblicos reconheciveis — cafés, casas e jardins, que voltard a conquistar 0 pibli- co no século XX. O desafio de Cosi fan tutte é aceite pelos nossos tempos, € as incongruéneias que nos revela, artificios maquinais, paradoxos sentimentais, tor- nam-se cada vez mais um modelo interessante para o espectador e o intérprete de finais do século XX, numa sociedade que reconhece a sua crise da racionalidade e que evidencia a esquise humana num quotidiano de maquinas. Segundo Gilles Deleuze «tudo ¢ maquina», «o inconsciente é uma méquina desejanten,6 porque produz desejo, o corpo é uma maquina, cada drgio € uma maquina, maquinas de recordagdes, maquinas de emogies... E esta subtil e cruel lucidez da obra original, esta sensagdo de intimidade que ‘© homem actual sente com os seus eixos filoséficos, a sua presciéncia, que impele a vontade de transportar 0 seu quadro histérico e social para quotidianos actuais, dando origem a uma miriade de propostas cénicas ansiosas por desafiar conven- gies Milltiplas leituras pontuam as iiltimas décadas, uma grande parte destas tra- endo o tempo ¢ 0 espago da acgio para o presente, motivando alguma controvér- sia, alguma literatura critica, mas sobretudo a sensagiio de descoberta da esséncia de uma obra que seria mantida, hé muito, sob uma aura de suspeigao. As a reaction against general reticence, our century saw a wave of ardent admirers who tried to make virtue out of its very flaws and to take its seemingly archaio features as a token of its modernity. The slogan started to circulate that Cosi was the most Mozartean of all Mozart’s operas and could thus serve as a probing stone of true connoisseurs, as a proof of fidelity, where the real Mozart-lovers would not succumb, like Fiordiligi and Dorabella, to the tricks of the seducers and their easy criticism, Nevertheless, the misgivings did not vanish and whereas Figaro and Don Giovanni continue to possess an immediately universal appeal, Cosi seems to need interpretation, an excuse, a justification, a reference to its historical background and thus an admission of its limited nature.” Mladen Dolar 2 Ruptura céniea Propondo-nos reflectir sobre alguns aspectos das leituras recentes de Cos? fan tutte, detivemo-nos numa produgdo de 2005, dirigida por Patrice Chéreau e estreada em Aix-en-Provence que, pondo em causa este fendmeno de continuas ¢ diversificadas interpretagdes que ligam a estética desta épera aos mecanismos da nossa contemporaneidade, ¢ recusando uma incidéncia na sua dimensto de comi- © CF, Gilles Deleuze & Felix Guattari, O anti-édipo — capitalismo e esquizofrenia, Lisboa, Assirio c Alvim, 2004. 7 Mladen Dolar, «La femme-machine» in New Formations Lacan and love, 23, 1994, 45, m1 eee I EEE Eee eee eee ere reeee eee ee Mozart, Marcos Portugal ¢ o seu tempo f and their time cidade ¢ entretenimento, tio apreciada no espitito da industria cultural que nos engloba, introduz uma ruptura. Ruptura com o recente «fendmeno Cosi fan tutte» (como € descrito por Mladen Délar) em direcgo aquilo que o encenador conside- ra “a verdade”, encontrada através do despojamento e da busca das esséncias, Reflectimos sobre a estética desta leitura, os seus pressupostos, 0 seu enquadra~ mento, a sua pertinéncia, e as estratégias adoptadas para por em pritica este novo “gesto cénico”. 3 «Et si cet opera n’était pis A se tordre de rire...» © extenso ¢ profundo siléncio dramatico que sucede & incisiva asseveragtio de Don Alfonso, na 13% cena do Il acto («Tutti accusan le donne») de Cosi fan tutte, ¢ a sua directa repercussio, numa pausa idéntica, introduzida apés a resposta coral, conjugados & postura abatida e aos olhares de profundo desalento dos jovens Guglielmo e Ferrando, sentados ao lado do filésofo num banco envelhecido, tra- duz com exactidio a estética de Daniel Harding ¢ Patrice Chéreau na leitura desta obra, produgto estreada no Festival de Aix-en-Provence em Julho de 2005.8 Conferindo uma gravidade imprevista a este dramma giocoso, Chéreau c Har- ding aprofundam as dimensdes de seriedade e perplexidade da intriga, desenvol- vendo 0 lado mais s6brio e por vezes cruel da ironia e da jocosidade. «Et si cet op ra n’était pas a se tordre de rire — questiona Chéreau, apés ter recolhido impressdes contraditérias, ¢ terem sido feitas referéncias & “morbidez” da leitura, pot ocasido da estreia da sua versio? — mais grave, au contraire, parce que jouant avec des cho- ses complexes».!9 Numa atmosfera imbufda pelo espirito de Marivaux, - Mladen Dolar afirma que, nesta épera, Mozart conduz ao extremo as premissas de Marivaux sobre 0 amor ao seu extremo: «ove no longer triumphantly defeats all, but rather love is easily defeated.»'! — 0 encenador evidencia o ténue limite entre desalento, esperanga, sofrimento, jibilo e comicidade, procurando o brilho amargo da realida- de, a vibrante descontinuidade ¢ 0 contraste de afectos. Explora, assim, a ambigui- dade, a reversibilidade, a concomitancia entre riso e légrimas. Quel che suole altrui far piangere Fia per lui cagion di riso [..] Exeerto do sexteto final de Cost fam tutte 8A estreia desta produgao deu-se a 15 de Julho de 2005, no Théétre de FArchevéché em Aix-en- Provence. O elenco constitui-se por Fiordiligi: Erin Wall, Dorabella: Elina Garanca, Guglielmo: ‘Stéphane Degout, Ferrando: Shawn Mathey, Despina: Barbara Bonney, Don Alfonso: Ruggero Raimondi. Amold Schoenberg Chor ¢ a Mahler Chamber Orchestra, sob a direcgio musical de Daniel Harding. Encenag#o de Patrice Chéreau, censrios de Richard Peduzzi, figurines de Caroline de Vivaise, luzes de Bertrand Coudere, cabelos de Campbell Young. ° Numerosas critieas exacerbando a componente melancélica e angustiada desta verso, ou a sua austeridade, foram entéo publicadas na imprensa escrita e na World Wide Web. Observe-se por exemplo 0 comentario de Martine D. Mergeay, intitulado «Cosi fan tutte ou la grande deprimen, 20/07/2005, http://www lalibre.be/article phil ?id=5&esubid= 107 éeart_id=231152> ' Patrice Chéreau, «Désillusion et plaisir du theater» in Wolfgang Amadeus Mozart ~ Cosi fan ‘ute, Festival d’Aix en provence, Virgin, 2006, 11 11 Mladen Dolar, op. ct, 47, m ‘No Laborat6rio dos Sentimentos A toda a emogio ¢ atribufda uma aura séria, qualquer distracgao visual € afas- tada para que o espectador se possa concentrar nas personagens e nos seus afectos, na sucessio de quadros humanos e de ininterruptas interaccSes ~ 0 espago como 0 ‘tempo sio neutros, a hierarquia social entre as personagens é minimizada — atra- vvés do guarda-roupa ¢ da caracterizagao, ¢ dos proprios cédigos de gestualidade. A ambiguidade, a assumpgao da mascara, o disfarce, a reversibilidade, sao mais imediatos porque sujeitos e circunstancias assumem estatutos idénticos. Como afirma Chéreau, «J’ai pensé qu'il fallait suivre toutes ces régles avec sérieux, dans Jeurs invraissamblances et leur vérité, vivre ce texte et bien I’écouter.»!2 Expondo uma estética contraria 4 do encenador, Isabelle Moindrot, encara 0 mundo de Cos? fan tutte como «completamente artificial», considerando impossi- vel encontrarem-se tragos de verdade na construceao das personagens ou do qua- dro cénico: (La profondeur de l’oeuvre, car il y en a une, et non des moindres, ne réside pas dans la psychologie ou I’apparente “vérité” des caractéres. Au contraire intrigue de Cosi est d’une extravagance sans défaut.»!® Dotada de uma artificia- lidade conferida pelo uso de tipologias absolutamente instaladas, a intriga desen- volve, segundo a investigadora, uma circunstincia totalmente estrita © inreal: «Maitriséc jusqu’a l'absurde, elle se développe dans un cadre irréaliste et logique, ‘au moyen de personnages répondant 4 une stricte typologie.»!* teatro dialéctico de Chéreau ambiciona desafiar as visdes anteriores, as leitu- ras que salientam os percursos siméticos, as relagdes em espelho, 0 exagero, a comicidade, e fazer uma abordagem critica, acreditando que é possivel apresentar a verdade da obra, ¢ procurando ainda deixar um espago de construgio livre ao espec~ tador: «Compte tenu que Cosi a une grande réputation de Iégéreté,» manifestava 0 encenador antes de iniciar a montagem da obra, «mon travail consistera done & Palourdir, & faire toucher du doigt le sérieux des situations.»!5 Ora, Moindrot refere precisamente, que nto seria intengtio dos autores exibir a seriedade © a verosimi- Thanga, «mais en revanche tout leur soin se portait 4 la convenance, c’est-a-dire a la conformité des caractéres et des actions avec les régles du genre.»!¢ Chéreau revé as componentes que constroem o artificialismo da intriga de Da Ponte e da semiologia movzartiana, ¢ procura, a verdade psicoldgica, o eixo de realidade da comédia da farsa: «et la proximité miraculeuse de la musique qui fait que cette bouffonnerie (se déguiser, ne pas étre reconnu, jouer se suicider, revenir a la vie) et cet héroisme Fiordiligi, Ferrando), mélangés, ne produisent jamais que du réel, et du trés réel: de vrais élans amoureux, de vraies pulsions érotiques, du vrai désenchantement et des coups a prendre.»!? Encenar 0 artificio em verdade, ou as subtilezas da verdade do artificio — revelago de uma apreensio aguda e dialéctica da vivéncia do presente, 12 Patrice Chéreau, op. cit, 11. 13 Isabelle Moindrot, «Cosi fan tutte ou les artifices de Pidéaby in L ‘avant scéne opéra— Cosi fan tutte, Mozart, Paris, Premieres Loges, 131-132, Mai 1995, 23-34, 24 M4 Id, Ibid. 15 Patrice Chéreau entrevstado por Oxile Quirot, «Chéreau, chef d'orchestre» in Nouvel Observateur, 30/06/2005, 16 Isabelle Moindrot, op cit, 24 17 Patrice Chéreau, op. cit, 11 1m | | | | | { | | ‘Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo / and their time dda pereepgsio de que toda existéncia, nomeadamente artistica, se desenrola hoje num universo de metatextos e de hiperrealidades. Como diria Baudrillard: «do mesmo tipo que a impossibilidade de voltar # encontrar um nivel absoluto do real é a impossibilidade de encenar a ilusto.»!8 Através da concepedo e aplicagao de toda uma série de estratégias de des- construgio das aparéncias, o encenador contraria a vontade de exacerbagio das suas potencialidades de entretenimento manifestada em muitas das mais recentes produgées desta obra, Observe-se como René Leibowitz incentivava jé um enten- dimento sério, e mesmo trigico, de Cosi fan tutte, mencionando inclusive, consi- derar que esta obra incarnava mais uma dimensio trigica do que o proprio Don Giovanni.!9 © misico menciona ainda que «la cruauté devient absolue, qualité en soi, Aucune justification des personages et de leurs mobiles, aucune piti¢ pour leur destin. A la place de tout cela, le froid abandon de six pantins a une farce dont ils portent tout seuls la ridicule responsabilité.»22 Sabe-se que Cosi fan tutte se concentra no conceito de iniciago — la scuola degli amanti*\ ~ de um processo de aprendizagem sentimental, devendo os jovens casais passar da sua original condig&o de inocéncia para um estado esclarecido (devidamente acompanhados por Don Alfonso e Despina)>2-Annie Paradis resu- me Cosi como: deux couples de jeunes, deux initiateurs, les jeux du désir et de la loi, un itinéraire d’apprentissage, rien d’autre.»? Ora, 0 processo de atingir essa verdade e lucidez, implica uma perca de ilusdes «a loss of illusions and amour- propre», como refere Mladen Dolar* uma “desilusio”, parafraseando Chéreau. A estética deste intérprete concentra-se precisamente numa estrutura de “desilusdo”, € constrdi-se no reverso das aparéncias.25 18 Jcan Baudrillard, Simulacros e simulacdo, Lisboa, Relégio d’ Agua, 1991, 29. 49 «Ce qui peut paraitre paradoxal, c'est que, a ce point de vue, Cosi fan Tutte me semble Gavantage incarmer Te tragique que Don Giovanni (.). René Leibowitz, Histoire de lopéra Paris, BuchetiChaste, 1987, 54. 20 Id, ibid. «Tout cela témoigne dun esprit qui, sous l'apparence de la plus grande désinvoltur, fait preuve, en premier lieu, d’une concision et d'une lEgéreté (au sens o3 Nietzsche prenait ‘mot) qui sont les qualités fondamentales de tout tragique véritable.» I, 53. 21 Paradis salienta a importancia do percurso inicidtico, dominado, naturalmente, pela filosofia ‘magénica, em todas as Operas de Mozart. «Les opéras de Mozart racontent tous la méme histoire, se posent tous a méme question: comment devient-on adulte? (..) Tous les jeunes ‘couples mozartiens parcourent le chemin coutumier de Dapprentissage, celui qui conduit de la jeunesse & la maturité.» Annie Paradis, Mozart, l'opéra réenchanté, Paris, Fayard, 1999, quatriéme de couverture, 22 Em finais do séc. XVII, eram numerosas as comédias “de aprendizagem” que se apresentavam nos teatros Vienenses. O tema da intriga inspira-se igualmente em toda uma série de referéneias literérias que 0 abordam sob diversas dpticas, cf. Mare Vignal, «Sources, composition et erésteurs», L avant sedne opéra— Cosi fan tutte, op. cit, 8; Paula Gomes Ribeiro, 2006, op. cit 23 Annie Paradis, op. cl, 281 24 Mladen Dolar, op. cit, 47. 25 Patrice Chéreau, op. cit, 12. 174 No Laboratério dos Sentiments 4 “Tutti accusan Je donne” — a leitura da feminilidade — entre mecanismos, artificios e verdade 4.1 Fiordiligi © Dorabella stio paradigmas da feminilidade do seu tempo, apresentando aspectos de inconstancia, superficialidade e leveza de espitito, ¢ 0 seu desenho reflecte, em grande medida, as estratégias usadas por Marivaux na sua especial atengio conferida ao género feminino, devidamente combinadas com as premissas da educagio sentimental de Jean-Jacques Rousseau, ‘Toute I'éducation des femmes doit étre relative aux hommes. Leur plaire, leur étre utiles, se faire aimer et honorer deux, les élever jeunes, les soigner grands, les conseiller, leur rendre la vie agréable et douce: voila les devoirs des femmes de tous les temps, et ce qu’on doit leur apprendre dés lenfance 26 Jean-Jacques Rousseau, Emile ou l'éducation ‘Num acidentado percurso sentimental que dura simplesmente vinte e quatro horas, a mulher € encarada como pega de engrenagem de um sistema que a ultra- passa, reagente numa prova laboratorial & qual é submetida, «Sao elas como os homens?» pergunta Don Alfonso, o filésofo, Sto «de came e osso, comem elas como nés, usam calgas?y?7 Don Alfonso move-se neste laboratério enquanto filésofo dotado do magnifi- co poder das luzes setecentistas, associando as suas capacidades intelectuais as competéncias da criada Despina, representante do instinto e das leis naturais, bra- va aliada enquanto intima conhecedora do universo feminino. Investido em pre- ceptor, cientista, bidlogo, iré apresentar a sua andlise dessa «razza d’animaliv? & qual pertencem as duas belas. O filésofo conhece os sentimentos individuais, as PaixGes, domina-as com lucidez e cepticismo e antevé as suas consequéncias. “Sabe” que as mulheres so naturalmente desleais e pretende provi-lo aos dois Jovens inocentes. A. necessidade de observar os seres humanos como méquinas biolégicas, a capacidade de os ver a transparéncia, a lucidez. perante 0 seu espec- {ro comportamental, e subtilezas emocionais, revela a imponéneia dos seus propé- sitos cientificos e racionais.%° 2 Jean-Jacques Rousseau, File ow de I’éducation Pars, Gallimard, 6d, de Bemard Gagnebin et Marcel Raymond, (Bibliotheque de La Pléiade), . 1V, 1990 [1762], 702. 7 Alids, Rousseau afirma, apés delinear toda a educagSo para o jovern rapaz, que «para nfo deixar a sua obra incompleta, vejamos como se deve igualmente formar a mulher que convém a este hhomem2? Jean-Jacques Rousseau, Id, 700. 28 «Ex-eathedtra parlo,» afirma na sua primeira intervengfo. 2 1 Acto, 18 Cena, recitatvo secco. % Saliente-se a proximidade com Descartes, ¢ a sua andlise detalhada e profundamente racional as paixdes humanas, de que é exemplo a seguinte afirmagio: «Parece'me, com efeito, que a8 primeiras paixdes que a alma teve, quando comecou a estar unida ao corpo, foram devidas ao facto de algumas vezes o sangue, ou outro suco que entrava no coragdo, ter um alimento mais conveniente que o habitual para nele manter o calor, que é principio da vida, o que levaria a alma a unir-se voluntariamente a esse alimento, isto €, a amé-to; e ao mesmo tempo os espiritos corriam do cérebro para os misculos, que podiam comprimir ou agitar as partes donde ele tinha Vindo para © corapio, para fazer que clas Ihe enviassem mais; e essas pares eram 0 estémago ¢ 175 aa ee | ‘Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo / and their time | Numa dissertagio sobre a condig&o feminina em Cosi fan tutte, que incorre nomeadamente na problematica da assimilagao de modelos literdrios franceses do i 6c. XVIII no libreto de Da Ponte, Dominique Jameaux salienta a naturalidade ‘com que a infidelidade feminina se posiciona no centro desta obra, enquadrando- | se essa directriz com perfeigtio no quadro social da época. A mulher é-Ihe conferi- da insensatez, volatilidade, deslealdade, segundo o autor, «verdades permanen- tesy. Nao & nosso objectivo estendermo-nos sobre esta problematica, intimamente associada ao binémio ¢ constructo social: Mulher-Natureza/Homem-Cultura,*! | estando este amplamente documentado, inclusive no que respeita a estudos sobre 0s géneros na area da misica ¢ mais especificamente, da pera. Salientamos sim- | plesmente o intuito dialéctico original desta intriga, que aproxima a mulher da | sensibilidade — espontaneidade, impulsividade ~ ¢ 0 homem da raziio ~ lucidez, | previsdo, Alfonso insere assim cuidadosa ¢ sabiamente numa armadilha os quatro jovens, como elementos num tubo de ensaio, ¢ utiliza os reagentes necessérios para provocar o efeito que preconiza, ¢ deste modo assume igualmente a posigo de um condutor sentimental — elemento moderador de uma estrutura patriareal ~ permitindo as duas irmas e aos dois rapazes a passagem de um estado de inocén- cia e desprotecgio a uma postura de consciencializagiio e de maturidade. Mas, «Acton Vu ailleurs pareille machine de guerre masculine dirigée contre deux filles dans le seul but de les faire chuter, de les pousser & la faute?»°? questiona Ché- reau. 4.2 Observe-se o dueto inicial entre as irmiis de Ferrara, Fiordiligi ¢ Dorabel- Ja, na versio de Jurgen Flimm (dirigida por Nikolaus Harnoncourt em 2000, na Opera de Zurique) ~ Cecilia Bartoli ¢ Liliana Nikiteanu. As raparigas encontram posturas complementares, agitam animadamente os belos caracdis morenos ¢ lou- ros, em fungdo da criagdo de uma imagem de futilidade e inconstancia feminina, ‘Atente-se a0 comportamento das duas adolescentes, que folheiam avidamente a tf Vanity Fair na versdo de 1990 de Peter Sellars, ‘veja-se o mesmo dueto sob a 6pti- ca de Dorris Dorrie, na produgao de 2001 da Berlin Staatsoper, integrado numa ; residéncia de classe média dos anos 70, entre fotografias, copos de Coca-Cola, aperitivos de queijo, televisor ¢ telefone. Na ptica de Chéreau, que devota um especial interesse a versio feminina da intriga (como veremos de seguida), 0 dueto, embora mantenha uma leve comici- dade fundamentada, sobretudo, no jogo do desejo e da sedugdo, perde a aura bur- lesca e dissipa, sobretudo, a dimensao de fatilidade ou até frivolidade com que as inns so habitualmente caracterizadas, conferindo as suas paixSes um estatuto nobre e sério. O comportamento das personagens indicia um sentimento de verda- de e um discreto pathos, contrariando a habitual comicidade da cena, na qual as 0$ intestinos, cuja agitago aumenta o apetite, ou entilo também o figado ¢ os pulmBes, que os misculos do diafragma podem comprimir. Por isso este mesmo movimento dos espiritos facompanhou sempre desde entio & paix‘lo do amor.» René Descartes, Trataco das paixdes da ‘alma, Lisboa, Sa-e Costa, 1981, 123. 31 Cf Nomeadamente, Sherry B.Ortner, «ls Female to Male as Nature is to Culture?» in Hilary Robinson (ed.), Feminist Art-theory — an anthology 1968-2000, Oxtord, Blackwell, 17-32. 32 Patrice Chéreau, op. cit, 12. 176 No Laboratério dos Sentimentos raparigas esto demasiadamente inflamadas pela paixdo, perdendo a sua genuini- dade ¢ teatralizando os seus sentimentos. A coloratura é assim encarada, nao como uma saliéncia da emogao exacerbada, mas como uma exclamagao de ternura e desejo. Evidenciando o desenraizamento das personagens de um meio pré-definido e concentrando a atengio do espectador nas subtilezas do sentimento, 0 quadro visual evade-se da tradicional atmosfera roméntica poética — originalmente, segundo a didascélia, um belo jardim a beira mar ~ e expée as paredes cruas ¢ deterioradas dos bastidores de um teatro. Veja-se como o arrebatamento do momento: «Ab, guarda sorella, se bocca pill bella, se aspetto pid nobile si pud ritrovar», se relativiza ¢ adquire uma estranha perplexidade, afastando-se da aura burlesca e aproximando-sc de um conceito de verdade essencial, quando ¢ apre- sentado como quadro envolvente, um extintor, escadotes, toda uma série de indi- cages de seguranga do teatro. Como escreve Chéreau, «La maturité des affec- tions et le plaisir d’un plateau nu, peuplé de gens qui jouent et qui sont vrais pour- tant [...*3 Incentivando esse jogo entre o teatro ¢ a realidade, os rapazes encon- tram-se na plateia, e a atengfio de Fiordiligi ¢ Dorabella nao se remete especifica- ‘mente as suas imagens penduradas nas correntes, mas incide, em grande medida, directamente nas suas figuras, enquanto trocam de guarda-roupa. «Toute I"éducation des femmes doit étre relative aux hommes." Jean-Jacques Rousseau 4.3 Apesar de Despina salientar que os homens também s&o infigis («ln uo- mini, in soldati sperare fedelta?»), trata-se de uma deslealdade caracteristica de uma merecida liberdade...: «The corruptibility of men appears to be of a different nature,» afirma Mladen Dolar, «They are free agents, free, supposedly, to take their pleasures, in our-case, free to decide to put women to the test. If women are like mechanical devices, then men are like constructors of those devices.»35 encenador estimula a visto das personagens femininas da intriga, ambicio- nando extrai-las da sua condigao de futilidade e dependéncia, ¢ apresentar a sua versio das peripécias vividas. Desenvolve amplamente 0 seu espectro psicol6gico, € prova que detém uma complexidade muito maior do que a dos seus jovens n vos: «Comment aimer ces deux femmes plus libres que les deux gargons?» per- gunta Chéreau, «Atteindre un peu de la complexité de oeuvre et faire entendre cette musique adulte, feminine, frémissante?»3 Criando uma intensa pausa dramitica entre a questéo colocada por Don Alfonso, «Chi vi fe’ sicuriti che invariabili sono i lor cori», e uma atitude hesi- tante e reflexiva por parte dos rapazes, Chéreau denuncia precisamente as suas débeis auto-consciéncia ¢ capacidade de fundamentagdio das suas convicgdes. % Patrice Chéreau, op. cit, 12. 34 Jean-Jacques Rousseau, op. cit, 703. 38 Mladen Dolar, op. cit, 47 36 Chéreau, Patrice, op. cit, 12. 117 a ‘Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo / and their time «Lunga esperienza...» e «Nobil educazion...» ete, revelam-se justificagdes inécuas para o repto langado pelo tutor. Sellars resolve esta situagdo através de um meca- nismo contrério — apresentando uma dramatica acelerago no discurso: entre per- {gunta e resposta nao ha sequer tempo de reflexdo — os jovens debitam as palavras instintivamente, demonstrando, também assim, a sua vacuidade. Em contrapartida, Dorris Dorrie mantém, em grande medida, os perfis de Dorabella ¢ Fiordiligi como mulheres caricaturais, mecanismos simples, faceis de manipular, em grande medida, equivalentes aos rapazes. Observe-se como define o cardcter frivolo e instdvel das jovens irmis, rodeadas por um ambiente marca~ damente Kitsch, no final do primeiro acto. Angustiadas com a partida dos seus apaixonados, e perplexas com o facto de terem sido envoltas numa trama de sedu- gio por dois novos e estranhos pretendentes, as raparigas acabam de sair de um banho na piscina, ¢ limpam-se com as toalhas mimando com os seus movimentos a figuragdo ondulante das flautas, estiram-se nas espreguigadeiras, protegendo-se com éculos escuros da tiltima moda, solugando a sua tristeza e amargura enquan- to, simultaneamente, espalham creme solar no corpo ou tentam encontrar o melhor éngulo para se bronzearem, 4.4 Evidenciando a componente caricatural e maquinal das personagens, a sua submissdo — enquanto marionetes — a alguém que rege todos os seus movimentos, Peter Sellars introduz varias vezes ao longo da sua leitura desta obra, toda uma série de movimentos maquinais, verdadeiras coreografias que se situam entre uma gestualidade robética e uma danga de discoteca dos anos 80. Esta produgo con- centra-se no interior de um snack-bar americano dos anos 80, que assume, a néon, o nome da sua proprietéria, Despina. Nesses momentos, sibita e inesperadamente, as personagens deixam de estar em posse da sua consciéneia e autonomia, ausen- tam-se de si proprios e reagem maquinalmente, como despersonalizados, miisica e drama transferidos para o estatuto de artificio. Através desta gestualidade automé- tica, artificio da verdade, Sellars traduz-nos a ideia de jogo em que os sentimentos se podem cruzar, como os corpos, descontextualizados do proprio sujeito, o que nos remete ao comentério de Johannes Birringer sobre a corporalidade pés- moderna: «0 corpo artefacto, construido, desenhado, aperfeigoado ¢ logo absorvi do cm intimeros ¢ contraditérios cédigos culturais de performance, estilo, ¢ dese- nho global, é um corpo alienado, deslocado do sujeito, que procura encaixar-se num modelo estranho ao da sua propria produgio.»7 Corpo e gesto alienado, como ruptura numa narrativa que nos fala também da reificagao sentimental. 5 Espago vazio dispositivo cénico (um cenétio tinico), criado pelo habitual colaborador de Chéreau, Richard Peduzzi, erige-se enquanto receptéculo — Leibowitz refere 0 proprio esquema estrutural do libreto como «vase clos»'8 — e laboratério de emo- 37 Johannes Birringer, Theatre, theory, postmodernism, Bloomington, Indianapolis, Indiana University Press, 1991. 38 René Leibowitz, op. cit, 53 178 No Laboratério dos Sentimentos ges, apoiando-se em trés conccitos fundamentais: em primeiro lugar, 0 despoja- mento decorative e a auséncia de determinagao de um quadro espacio-temporal, de seguida, a concentragao sobre as esséncias, sobre a “verdade” da intriga, das personagens ¢ as suas subtilezas emocionais, ¢ finalmente a criago de uma estru- tura épica. Auséneia de caracterizacao espacio-temporal, despojamento de qualquer ele- mento decorativo ou de figuras que dirijam e condicionem a atengio do espectador. Depurando 0 espago cénico ad-extremis, Peduzzi e Chéreau propiem um cenério que despe 0 teatro,%? um espago vazio amplo ¢ nao compartimentado, os bastidores de um teatro que revelam o seu 4mago, mostrando-nos as paredes nuas, de pintura envelhecida, que confluem com um chao de tabuas, criando uma base de cores neu- tras que homogeneiza todo o espaco.!® Clément Hervieu-Léger define-o como: «Un décor pour raconter absence méme de décor.»*! Fundem-se no espago adere- {0s inerentes aos bastidores, tais como escadotes, cordas, aquecedores, caixas, ban- cos, bombas de incéndios, interruptores, tomadas, indicadores de seguranga, entre outros simbolos. Peduzzi e Chéreau resgatam 05 conceitos das convengSes que habitualmente os ornamentam, numa ampla sala onde se buscam e se combinam as, esséncias, «machine & jouer," como refere o encenador, laborat6rio, podiamos afirmar. Espago vazio, magico ¢ pleno de energia como aquele idealizado por Peter Brook: «A man walks across this empty space whilst someone else is watching him, and this is all that is needed for an act of theatre to be engaged.» Concentragao sobre as esséncias, as personagens, as subtilezas ¢ a verdade das emogdes que sentem ¢ transmitem, ¢ as complexas interacgSes entre eles. O dispositivo permite o desenvolvimento de uma gramética teatral complexa, man- tendo um nivel relevante de espontaneidade, genuinidade ¢ inacabamento. Uma intensa vivacidade conferida, em grande medida, por um continuo movimento e reposicionamento de cantores/actores e objectos, origina uma atmosfera de per- ‘manent instabilidade, inerente A estética de “obra em movimento”: nfo existem aderegos fixos — insere-se o banco segundos antes da cantora se sentar, estende-se a catpete ¢ introduz-sc uma mesa tao rapidamente quanto se retiram. O desenho de luzes reforga esta dimensdo, regendo-se por um cédigo que no permite deci- fragGo-no-tempo de fruig%io de uma récita, motivando uma permanente sensagao de imprevisibilidade’S Desafia-se o espectador a confrontar-se com as esséncias, 39 Chéreau descobre a épera em Spoleto, 1969, a0 preparar A Italiana em Alger de Rossini 40 Refira-se que despojamento reflecte a propria economia de meios da obra em si, como o refere Leibowitz: «lei nous avons affaire a un dépouillement total [..], & une économie des moyens cemployés, & une subtilité des nuances qui tiennent du prodige.» René Leibowitz, op. cit, 52. 41 Clément Hervieu-Léger, «En répétition» in Wolfgang Amadeus Mazart ~ Cosi fan Tutte, Virgin, 2006, 6. “2 Patrice Chéreau entrevistado por Odile Quirot, «Chéreau, chef d'orchestren in Nowvel Observateur, 30/06/2008, btp:/Ihebdo.nouvelobs.com/hebdo/parution/p212 /articles/a272062. hhiml (Gitima consulta 25 de Outubro de 2009) 43 Peter Brook, The empty space, Harmondsworth, Penguin, 1990, 4 CE Umberto Beo, Obra Aberta, Lisboa, Difel, 1989. 45 Ora temos um projector a incidir directamente sobre um cantor, no momento da sua éria, ora 0 ‘temos sobre as paredes varias 179 Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo / and their time procurando a verdade e seriedade existencial propostas pela obra mozartiana que, segundo Chéreau, aprofundam a leitura banindo a componente de mero entrete- nimento que Ihe é usualmente adstrita. Criagiio de uma estrutura dialéctica, brechtiana que, interditando 0 espectador de se projectar no especticulo, Ihe recorda que est no teatro. Chéreau e Peduzzi ndo s6 confontam directamente 0 pliblico com o espaco interior de um teatro, como apresentam uma proposta ainda mais radical, expondo o local onde a ilusio se desfaz, 0 reverso do paleo. Qualquer tentativa de identificagao do espectador com a cena é ainda impedida pela imensa inscrigo a vermelho na parede, «vietato fumare», que domina a leitura do espago. Todo 0 espago cénico é visivel, os varios graus de ambiguidade s4o construidos sob o olhar do piblico. Desafiam-se as fronteiras entre o paleo ¢ a plateia, levando-se a acgio ao espago da audiéncia e, do mesmo modo, incluem-se, no palco, figurantes que agem enquanto espectado- res — numa dindmica que joga em permanéncia com diversos prismas-do-conceito de “teatro no teatro” e do desvanecimento da ilusdo. Observe-se o inicio da intriga: toda a cena inicial se desenrola na platcia, ¢ 0 paleo s6 € conquistado apés Don Alfonso ter langado 0 desafio a Ferrando Guglielmo, ¢ exposto os termos em que este se deveré desenrolar--O encenador enfatiza assim a divistio dramatiirgica que se encontra entre estas duas componen- tes. Como condutor da aco, Alfonso ¢ o primeiro a pisar o paleo, o que sucede no inicio do recitativo secco, mas nesse espago, ainda na penumbra, deixa somen- te 08 seus objectos (como se de um bastidor se tratasse) e regressa a plateia, anun- ciando os seus pressupostos sobre a condigdo feminina, no que conceme, nomea- damente, a infidelidade, sentado no muro do fosso de orquestra. Podemos identificar, em muitos aspectos desta estética teatral, a importante ascendéncia de Giorgio Strehler,* com quem Chéreau trabalhou e pelo qual reco- nhece manter uma profunda admiragao. A dindmica dialéctica que Chéreau pro- pde nesta encenagio segue os ideais de Strehler, que defende um «théatre dialec- tique, un théatre de la raison, un théatre du “texte”, interprété de fagon critique. Ce qui, contrairement a ce que I’on dit aujourd’hui, n’exclut rien, me semble-til, la créativité ni I’imagination, ni l’émotion. Un thédtre od se pratique [...] concréte- ment et comme base méthodologique, la technique du théatre (pique) dialecti- que.»"” Recordemos que Strehler tinha uma imensa admirag4o por Mozart, ¢ enca- rava a sua estética como consciente do seu presente, associando-lhe 0 passado projectando-se no futuro. O director do Piccolo Teatro enaltecia, nas obras de Mozart, a simplicidade, clareza, legibilidade, e humanismo, ¢ louvava a imensa facilidade com que 0 compositor se expressava teatralmente, demonstrando com- preender a “totalidade” desta arte. Criticava as abusivas interpretagées cénicas de 6peras mozartianas, e salientava a importincia de saber ler a esséncia da escrita tcatral do misico: «ll suffit de faire ce qui est écrit. [...] Dans Mozart, tout est écrit: mouvements, pauses, attitudes extérieures et intérieures, couleurs de la si- 46 Patrice Chéreau trabalha com Giorgio Strehler, no Piccolo Teatro, 20s 25 anos. 47 Giorgio Strchler (trad. Emmanuelle Genevois), Un shédtre pour la vie, réflexions, entretiens et notes de travail, Patis, Fayard, 1980, 74. 180 No Laboratério dos Sentimentos tuation, retournements dramaturgiques, atmosphéres. Tout. L’extréme difficulté est d’arriver & transposer scéniquement ce jeu ot musique et situation sont tou- jours en équilibre parfait, od aucune ne se développe aux dépends de Pautre.»‘* ‘Aproximem-se as duas estéticas ~ Chéreau e Strehler, e encontramos os mesmos j fundamentos e preocupagdes. E veja-se, como exemplo, a encenagio de Le nozze | di Figaro, de 1973, por Strebler, na Opéra de Paris, observando-se as prementes i afinidades com a presente versio de Cosi fan tutte de Chéreau. i} | 6 Imagens e conclusses do jogo da verdade 6.1 Detenhamo-nos sobre a longa cena da separagdo: se, na versio de Dorrie, a despedida se passa num ambiente de comicidade, os rapazes contendo 0 riso, as f raparigas no expoente da ansiedade, na leitura de Chéreau encontra-se um verda- deiro climax dramatico desenhado a partir de um quadro humano. Os quatro ado- lescentes estabelecem entre si uma cadeia corporal, ligag&o fisica que previne seu afastamento, inspirada na Pardbola dos cegos de Bruegel, imagem que 0 encenador ja tinha usado em Das Rheingold, 1976, no Festival de Bayreuth. O { encenador evidencia a crueldade do momento: os casais permanecerdo, a partir dai, dissociados para sempre. A cessago da inocéncia da-se no momento em que 0 jovens oficiais manipulam os sentimentos das suas namoradas, encenando uma partida, e em que estas se separam e despedem verdadeiramente deles, com toda a dor associada A situagfo. Presos entre si, nessa corrente humana, interdependentes — esto conscientes do movimento de ruptura, e do caminho que encetam para a maturidade ~ seré Don Alfonso que, observando a cadeia, a ira quebrar, desligan- do-os asperamente, 6.2 Voltemos ao final do segundo acto, e & obtengo do primeiro resultado da experiéncia laboratorial de Don Alfonso, anunciada imediatamente antes das fal- sas bodas dos amantes trocados: Ferrando e Guglielmo foram despeitados e esto numa situagdo de extremo desencantamento, prestes a cancelar 0 noivado. A conclusio de Don Alfonso € tio breve quiio incisiva é a sua experiéneia alquimica e, verificando-se mesmo que, de todas as personagens, ele ¢ 0 Unico que se mantém imutavel: Tutti accusan le donne, ed io le scuso | ‘Se mille volie al di cangiano amore; | Allri un vizio lo chiama ed altri un uso, j Eda me par necessita del core. | L’amante che si trova alfin deluso Non condanni Valtrui, ma il proprio errore; Giacché giovani, vecchie, ¢ belle e brutte, Ripetete con me: "Cosi fan tutte!"® 48 Giorgio Stebler, «La voix mise en scénen in Musical ~ Les voor mozartiennes, Pévrier 1987, 4, 49 L ‘avant sedne opéra— Cosi fan tutte, op. ct, 129. ee ee eo EE Mozart, Marcos Portugal e o seu tempo / and their time j Ao terem conseguido atingir os objectivos propostos pelo tutor, a sedugao das | namoradas trocadas, terdo perdido a aposta realizada e terao provado a inconstan- cia proclamada inicialmente por Alfonso. Confirma-se 0 primeiro resultado da prova laboratorial: « Ia fede delle femmine / Come laraba fenice: / Che vi sia, ciascun lo dice; / Dove sia, nessun lo sa.v*° Em suma, cosi fam tutte. «Les femmes dépendent des hommes et par leurs désirs, et par leurs besoins; nous subsisterions plutét sans elles qu’elles sans novs.»5! Jean-Jacques Rousseau Quem 6, afinal, Jesado, no meio deste jogo da verdade? As raparigas desco- \ brirfo que as novas conquistas ndo passam de um logro, ou pior, de uma prova & 1 qual os seus namorados decidem expé-las para testar a sua lealdade, mas estes i ficardo destrogados emocionalmente ao tomar consciéncia de que o amor pode ‘ndo ser univoco, ideal e intemporal, como tinham inicialmente sustentado ¢ dese- i jado... A tristeza no podia ser mais profunda do que a que nos € transmitida, na i versto de Chéreau: pela imagem dos trés homens sentados num banco de madeira il no meio de um paleo vazio, todos no lado esquerdo do banco (enfatizando a ima- | } gem de desequilibrio) ~ olhar inconsolivel, corpo abatido, roupa desalinhada, 0 disfarce confundindo-se jé com o estado original. Peter Sellars encontra uma outra solugo para este momento incisivo do dra- i ‘ma: Alfonso expée a sua doutrina, na obscuridade do snack-bar Despina, enquan- to desenvolve uma coreografia estrita, caracterizada por gestos tensos, simétricos attificiais 2 Progressivamente, os dois homens imbuem-se nesta corcografia € assumem um contraponto gestual com o seu mestre. Concluindo com um desespe- rado «cosi fan tutten, permanecem em posigées fixas, dolorosas, artificiais, enquanto Despina os circunda, proclamando 0 sucesso do plano, pelo facto das raparigas terem aceite 0 casamento. A estagnaglo revela a total perplexidade ¢ a apatia provocada pela percepgio de que a maquinago acabara por assimilar, numa vit6ria-derrota geral, os préprios conspiradores. ‘A versio de Dorrie adopta a tradicional ascendéncia quase agressiva de ‘Alfonso sobre os iniciados, e abole mesmo a 14* cena, ligando a proclamagao uninime wcosi fan tutte» ao final, os preparativos da celebragao das falsas bodas. 6.3. Mozart aprofunda a complexidade da trama de Da Ponte, manipula sub- tilmente os cédigos, mantendo uma constante incerteza sobre a definigzio dos pares certos. Quando encontramos a conjungo perfeita? No inicio, onde todas as convenges so respeitadas e enquanto os jovens oficiais ¢ as belas damas decla- ram a sua paixio ¢ fidelidade eternas — no momento em que Fiordiligi se despede 50 Ia, 46 SI Jean-Jacques Rousseau, op. cit, 702. 52 Note-se que, uma vez que Sellars transpSe a aceo para o presente, Alfonso perde o estatulo clevado que detinha perante os dois jovens. Preservando-se claros momentos “paternais”, fencontram-se, no entanto, mais circunstancias em que a classe “masculina” se comporta de modo mais uniforme. 182 No Laborat6rio dos Sentimentos de Guglielmo ¢ Dorabella de Ferrando? © compositor joga com a percepgio do publico quando, ao trocar os pares, sintoniza as vozes mais agudas, ¢ as vozes mais graves, soprano com tenor, mezzo-soprano com baritono. Esta articulagao introduz uma instabilidade: seria entéo Ferrando, tenor apaixonado, lirico e terno, cuja definigdo encontra origem na épera séria, o par natural de Fordiligi (4 seme- Ihanga dos casais Belmonte ¢ Constanze ou Ottavio e Anna?).3 Encontra Dora- bella, mais sensual terrena, dotada de uma voz mais grave do que Fiordiligi, uma cumplicidade natural com Guglielmo? Estardo, como tem sido proposto por varios teéricos em anilises recentes da obra, os pares trocados no inicio ¢ no apés a peripécia que os leva a cruzarem-se? E esta pergunta que se encontra na génese de algumas das mais recentes leitue ras de Cosi — e a resposta é desvendada no final, quando as circunstancias cénicas contradizem directamente o cardcter harménico e festivo da miisica ¢ a nitidez do texto. E neste ponto que se retinem as trés encenagées ja nomeadas, as de Dorris Dorrie, Peter Sellars e Patrice Chéreau. Em todas, encontramos um final pleno de perplexidades, um estado confusional que desafia a pretensa felicidade exposta na escrita musico-dramitica, e que se refere a reiterago da forma inicial, No final, todos os actores devem estar presentes, qualquer que seja o seu niimero [...}. No teatro, isso assume um valor de dogma, eles devem compare- cer um a um, dois a dois, trés a trés, a seis, a dez, a sessenta se for necessério, Devem cantar soli, duos, terzetti, sextetos, octetos, etc. Todas as férmulas possiveis e, se a natureza do drama se ope, deve o poeta suplementé-lo, para la dos critérios da raziio, do bom senso, de todas as regras de Aristételes, dos poderes da terra e do eéu; e se o final é mau, paciéneia para o autor.34 Lorenzo da Ponte © final transmite uma sensagio de abismo e perturbagdo quando, sobre as. palavras luminosas de apologia a razo, nos confrontamos com seis personagens num estado de profunda angiistia e abandono. Fortunato ’uom che prende O; -osa pel buon verso, E trai casi e le vicende Da ragion guidar si fa.55 Leibowitz refere que Mozart deixa, cruelmente, os personagens de Cos? A sua sorte, no demonstrando qualquer piedade por eles. Sendo, numa primeira leitura © final entendido como reconciliador, a dimensio trigica que apresenta é no entanto, evidente. Como refere Leibowitz, «la chose pourrait pu, tout aussi bien, tourer au plus mal et cela n’aurait rien ajouté au tragique de la situation.»5 £8 Sylvie Hauel, «Bssai de typologie vocalen, in Musical ~ Les voix mozarticnnes, Févtier 1987, 21 $4 Da Ponte, cit in, Isabelle Moindrot, op. ct, 28, Trad. livre da presente autora, 55 Sexteto final de Cast fan tue 56 René Leibowitz, op. cit, p. 54 | ‘Mozart, Marcos Portugal ¢ 0 seu tempo / and their time No final de Dorris Dorrie, o cardcter festive da miisica é contrariado pela expresso de angristia ¢ desespero dos jovens casais. A felicidade e regozijo con- centram-se exclusivamente nas personagens de Despina e Don Alfonso, Cujo pac- (oe afinidades se explicita. Na encenagio de Sellars, as donzelas ¢ os dois homens encetam uma coreo- grafia maquinal na qual dividem a ateng3o por ambos os pretendentes ~ 0 do casamento ficticio e aquele com quem deverdo partilhar o resto da vida. O final de Sellars é pautado por uma estética desconstrutivista — risos e légrimas confundem- se numa coreografia em que os sentimentos se cruzam e se misturam ¢, contra- riando o apelo A primazia da razdo, a imagem é de um extremo desnorteio e desa- Jento comportamental Na encenagio de Chéreau, 0s casais conhecem, ao longo do extenso € com- plexo final, as mais profundas ¢ contraditérias perplexidades emocionais =a ino- c@ncia inicial, a candura passional que se verificara nas primeiras cenas, a inocen- te, feérica e tio desejada ligagao dissipa-se para sempre. O percurso inicidtico ¢ cumprido do modo mais violento, a aprendizagem emocional é realizada através de complexas ¢ insuperiveis desilusdes. E isso que sentimos no fim, quando os trés pares vagueiam desnorteados, através de uma teia de olhares ¢ toques, numa imponente obscuridade, penumbra das almas, tentando encontrar, individualmen- te, um sentido para a premente turbuléncia emocional. Chéreau assevera-nos que a razo no prevaleceu ao sentimento. Este mundo, mais complexo, denso, ou feminino ~ como ele afirma ~ das emoyGes, atinge os personagens e deixa-os sem rumo, perdidos ¢ em busca de referéncias € simbolos, Jongos siléncios pontuam as diividas, inquietude, profunda desilusio. Em trajectos desconformes, descobrem-se dindmicas psicolégicas que se processam simulta- neamente, redimensionando-se 0 espago cénico de acordo com a progresséo das ‘emogées. Procuram-se os pares adequados: mas haverd uma configurag4o correc- ta? As personagens reimem-se finalmente num circulo ritualizado como em busca de um sentido para tal desfasamento. «Une mort,» sugere 0 encenador, «pour renaitre, autrement, aprés l'appren- tissage et les initiations malheureuses, parfois féroces et tendres toujours.»? 57 Patrice Chéreau, op. cit, 12. 184

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