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O QUE E UM IMIGRANTE?* Uma das caracteristicas fundamentais do fendmeno da imigragao € que, fora algumas situagdes excepcionais, ele contribui para dissimular a si mesmo sua propria verdade. Por nao conseguir sempre por em conformidade 0 direito € 0 fato, a imigragdio condena-se a engendrar uma situagio que parece destiné-la a uma dupla contradigao: nao se sabe mais se se trata de um estado provis6rio que se gosta de prolongar indefinidamente ou, ao contrério, se se trata de um estado mais duradouro mas que se gosta de viver com um intenso sentimento do provi- soriedade. Oscilando, segundo as circunstancias, entre 0 estado provisrio que a define de dircito ¢ a situagdo duradoura que a caracteriza de fato, a situagao do imigrante se presta, nio sem alguma ambigiidade, a uma dupla interpretagdo: ora, como que pata nao confessar a si mesmo a forma quase definitiva que com freqiiéncia cada vez maior a imigragio reveste, apenas se leva em conta na qua- lidade de imigrante o seu cardter eminentemente provisdrio (de direito); ora, ao contrério, como se fosse preciso desmentir a definigao oficial do estado de imi- grante como estado provisério, insiste-se com razio na tendéncia atual que os imigrantes possuem de se “instalar” de forma cada vez mais duradoura em sua condigiio de imigrantes. Por se encontrar dividida entre essas duas representa- gdes contraditérias que procura contradizer, tudo acontece como se a imigragdo necessitasse, para poder se perpetuar e se reproduzir, ignorar a si mesma (ou fazer * Este artigo foi publicado em Peuples méditerranéens, n, 7, abr-jun, 1979, pp. 3-23. ‘ABDELMALEK SAYAD 46 de conta que se ignora) ¢ ser ignorada enquanto proviséria e, ao mesmo tempo, nao se confessar enquanto transplante definitivo, Da mesma forma como que se impde a todos — aos imigrantes, é claro, mas também A sociedade que os recebe, bem como a sociedade da qual provém -, essa contradicao fundamental, que parece ser constitutiva da prépria condigdo do imigrante, impée a todos a manu- tengo da ilusao coletiva de um estado que nao € nem provis6rio nem permanen- te, ot, o que da na mesma, de um estado que s6 € admitido ora como provisério (de direito), com a condigao de que esse “provisério” possa durar indefinidamen- te, ora como definitive (de fato), com a condigao de que esse “definitivo” jamais seja enunciado como tal, E, se todos os atores envolvidos pela imigragio aca- bam concordando com essa ilusio, € sem diivida porque ela permite que cada sso sem ter um componha com as contradigdes préprias & posigdo que ocupa, © © sentimento de estar infringindo as categorias habituais pelas quais os outros pensam e se constituem os imigrantes, ou ainda pelas quais eles prdprios se pen- sam ¢ s¢ constituem. Sao, em primeiro lugar, os primeiros interessados, os pré- prios imigrantes que, tendo entrado como que sub-repticia ¢ provisoriamente (como cles pensavam) numa sociedade que sentem hostil, precisam convencer a si mesmos, As vezes contra as evidéncias, de que sua condigdo é efetivamente provis6ria: ela no poderia ser aquela antinomia insuportavel (uma situagio teo~ ricamente proviséria mas que, de fato, se dé objetivamente como praticamente definitiva) que Ihes mostram sua experiéncia ¢ seu itinerdrio de imigrantes. Sao, em seguida, as comunidades de origem (quando nao ¢ a sociedade de emigragio por inteiro) que fingem considerar seus emigrantes como simples ausentes: por mais longa que seja sua auséncia, estes iltimos sto chamados evidentemente (quando nao por necessidade) a retomar, idénticos ao que cram, o lugar que ja- mais deveriam ter abandonado e que s6 abandonaram provisoriamente. E, por fim, a sociedade de imigragao que, embora tenha definido para o trabalhador imigrante um estatuto que 0 instala na provisoriedade enquanto estrangeiro (de direito, mesmo se nao o € sempre, ou, x¢ 0 € pouco, de fato) que, assim, nega- Ihe todo direito a uma presenga reconhecida como permanente, ou seja, que exista de outra forma que nao na modalidade do provisério continuo e de outra forma que no na modalidade de uma presenga apenas tolerada (por mais antiga que seja essa tolerancia), consente em trata-lo, ao menos enquanto encontra nisso al- gum interesse, como se esse provisério pudesse ser definitivo ou pudesse se pro- longar de maneira indeterminada, Enquanto a expansio econdmica, grande consumidora de imigragio, preci- sava de uma mao-de-obra imigrante permanente ¢ sempre mais numerosa, tudo concorria para assentar ¢ fazer com que todos dividissem a iluso coletiva que se (© QUE E UM IMIGRANTE? encontra na base da imigrag3o. Com efeito, emanando de todos os horizontes politicos ¢ sociais (0 patronato em primeito lugar, os homens no poder, mas tam- bém, ¢ por razGes certamente diferentes daquelas dos principais beneficidrios da imigragio, os partidos politicos ¢ os sindicatos de esquerda), s6 se viam entio — ¢ isso durante décadas ~ proclamagbes e declaragdes que, todas, desejavam ser tranqiilizadoras; fossem quais fossem os sentimentos que se pudesse alimentar e as opinides que se pudesse ter em relagdo aos imigrantes, néio se parava de afir- mar que eles eram necessdrios, quando nio indispenséveis, para a economia ¢ até mesmo para a demografia francesas, O resultado disso tudo foi que todos acaba- ram por acreditar que os imigrantes tinham seu lugar durdvel, um lugar & mar- gem ¢ na parte inferior da hierarquia social, é verdade, mas um lugar duradouro; quer, ao reconhecer a utilidade econdmica e social dos imigrantes, ou seja, as “vantagens” que eles ofereciam para a economia que 0s utilizava, se queira agra- decer-Ihes (pelo menos verbalmente) ou ainda defender seus direitos (os que ja foram adquiridos ou os que precisam ser conquistados, como, por exemplo, 0 di- reito de “continuar como imigrantes”); quer, ao taxiilos de parasitas ¢ 0 esti- mar que nao se deve nada a cles, se deplore 0 “custo social” clevado que sua presenga impde & sociedade', ao mesmo tempo que se gosta de afirmar, nas suas costas (ou seja, de forma facil), as virtudes com as quais se gratifica a sociedade de recepgao e com as quais se gratifica a si mesmo, dessa forma (virtude das tra- digdes politicas e sociais que se querem todas humanitérias, liberais, igualitérias etc.), Assim, a garantia da permanéncia e da continuidade da presenga do imi- grante partilhada por todos e antes de tudo pelos préprios imigrantes?, 1. Por certo, mesmo se continuames céticos em relagio a validate dos resultados € quanto aos efeites persuasivos da costumeira contabilidade dos “custos e vantagens” comparados da imigragao. $6 po- demos deixar 0 cuidado de decidir entre posigoes extremas que, ao se determinarem (ou ao se comba- terem) umas &s outras. devem sua “verdade” apenas, diretamente ou por reagio, a pressuposios ideo- 6gicos € ndo a argumentos cientficos: ef. para isso nosso artigo, “Coats et profits de I"immigration, les préssupos¢s politiques d'un débat économique”, Acte de fa recherche en sciences sociales, , 61, ‘mar, 1986, pp. 79-82, 2, Esta certeza, da qual os imigrantes nio estavam sempre seguros ~ pois, como nunca est adquirida de ‘uma vez. por todas, supde um trabalho continuo de re-garantia -, no exclui angiistias, medos fantas éticos habitados pelo temor da eventualidade sempre possivel de uma “expalsio” em massa: "e se ‘eles nos mandassem de volta para casa..; em todo caso, nds no estamos em casa, principalmente porque nds (subertendido: 0s argelinos), nds escolhemos, nds fizemos de tudo para ni estarmos em caza, aqui, na Franga.. 0 que vor’ diria de um estrangeiro que viesse & sua casa e ¢e instalasse como se estivesse na casa dele... yoc8 sempre pode mandi-lo embora!... nés nfo estamos no nosso pais!” Tudo ocorre como se a situagio de hoje tivesse como efeito reavivar, mesmo entre os imigrantes mais ‘certox” da perenidade de sua condigio de imigrantes, ¢ principalmente entre estes, 0 temor da "cals ‘midade da expulsi0”, dando assim razdoa percepdo esponidinea, instintiva, emocional, iacional, po- deriamos dizer (por oposicdo & andlise “vientifica” que conclui a partir de consideragoes econdmicas a7 ABDELMALEK SAYAD 48 Tendo adquirido essa certeza, os imigrantes comegaram a tomar 0 hébito de reivindicar, de forma extremada, poderfamos dizer, seu direito a uma existén- cia plena ¢ nfo mais apenas seus direitos parciais de trabalhadores imigrantes. ‘Ao sc afastarem dos limites que Ihes haviam sido outorgados, ao ultrapassarem seu papel de imigrantes, eles deixaram, em certa medida, de se parecer com a definigao que deles se dava. Era mais do que se poderia tolerar para que os imi- grantes continuassem sendo imigrantes; assim, era necessdrio voltar a uma de- finigo mais estrita da imigragao ¢ do imigrante. Esta revisdio parece tanto mais facil de operar quanto as circunstincias atuais (ao menos tais como so apresen- tadas), porque nao sio de natureza a encorajar a imigragio ¢, muito mais, por- que servem de pretexto, certo ou errado, para um refluxo dos imigrantes (de forma desigual segundo sua pertinéncia nacional segundo suas caracterfsticas sociais, principalmente as caracterfsticas adquiridas durante a imigragdo) j4 nao podem autorizar a série de dissimulagdes que alimentavam a imigragio em tem- pos normais. Assim, basta que as circunstancias que se encontravam na origem da imigragdo (ou seja, as condigdes cconémicas) mudem ¢, ao mudar, que im- ponham uma nova avaliagaio dos lucros que se pode tirar dos imigrantes, para que ressurja naturalmente, contra a ilusio coletiva que permitia que a imigragio se perpetuasse, a primeira definigao do imigrante como trabalhador provis6rio ¢ da imigragio como estadia literalmente proviséria. Ao mesmo tempo que se faz essa confissio da provisoriedade — que todos concordam em dissimular em tempo normal -, é também a verdade objetiva do que € a imigragio ¢ do que é 0 imigrante (ou um aspecto dessa verdade) que se desvenda. Essa verdade é a mesma que preside ao balango contabil que se faz dos “custos ¢ vantagens comparados” da imigragdo; quais as “‘vantagens” de se recorrer 4 mao-de-obra imigrante ¢ quais os “Custos” que se pagam pela utiliza- io dessa mio-de-obra, “vantagens” ¢ “custos” sendo entendidos, € claro, em todos os sentidos desses termos (¢ no apenas no sentido econdmico)? Mesmo se ¢la ndo acaba mais de inventariar as “vantagens” ¢ os “custos” que considera — sem diivida porque nao se esté sempre de acordo sobre a definigdo ou, mais ¢xa- tamente, sobre as definigdes que devem ser dadas a esses termos? —, essa técnica, ‘ou politicas a permanéncia da imigragio € a estabilidade dos imigrantes), que os imigrantes tém da precariedade de sua sitwagio 3. Mesmo incerto — j4 que nunca estaremos seguros de que ele possa ser exaustivo, assim como nunca poderemos estar certos da exatidio das avaliagées a que chega, quando nio da possibilidade de algu- ‘mas dessas avatiogdes ov da possibilidade de avaliar tudo -, 0 método de andlise que consiste em le- vantar os efeitos da imigragio chegou a excelentes resultados: permitiu, notadamente, identficar wm ‘numero crescente de fatores que nao aparecem sempre claramente; ele constitu assim, uma excelen- (©. QUE E UM IMIGRANTE? te abordagem para a teoria econdmica da imigrago, Mas, na contramfo desse método de pura inves tigagao das incidéncias da imigragdo (incidéncias de toda ordem) ¢ porque dele se afasta, o “modo de tratar os problemas de migragio em termos complementares ou antitéticos de custos e vantagens traz algumas ressalvas, algumas de ordem epistemoligica, outras de ordem pritica” (cf., entre ou- tras referencias, N. Scott, Principes d'une analyse comparative des coats et des avantages des migrations de main-d ‘oeuvre, OCDE, semindrio de Atenas, out. 1966; “Grandes lignes d'une méthode pour Manalyse des codis et des avantages des migrations de main-d'oeuvre". em Bullevin de l'Institut inter- nacional d'études sociales, 2 fey, 1967, pp. 55-72; E. 1. Mirshan, “Does Immigration Confer Econo- mic Benefits on the Host Country”, em Economic Issues in Immigration, stitute of Economic A\tfais, 1970, pp. 91-122; G. Tapinos, L’Economie des migrations internationales, Presses de la F. N.S. R. 1974, 287 pp.; Anicet Le Pors, Immigration et développement économique et social, Paris, Documen- tation frangaise, 1977, 364 pp) 15) Em primeiro lugar, por mais dteis que sejam os resultados levantados pelo métedo, nfo se deve esquecer que fazer mecanicamente um balango dos efeitos da imigragio (mesmo agueles menos visi- veis ou mais dificeis de quamtificar, ou aqueles cujo alcance ests mais distante) ¢ repart-los em “eus- tos" ¢ “beneficios”(c isto para cada uima das partes em questdo: a sociedade € a economia usudrias da ‘mao-de-obra imigrante, a Sociedade de origem ¢ sua economia, os préprios imigrantes) nto passa, cm ‘iltima instineia, da retomads, em termos contabeis, do inventirio brutal que uma certa tcoria econd- ‘mica (i, €..a teoria do equilfbrio geral) acabou impondo. 2) Aldm disse, a definigio que se dé das “vantagens" dos “custos", mesmo te for corrigida, se for efinada e atenuada, notadamente com a distingo introdurida entre efeitos quantitativos (ou seja, estritamente econdmicos) ¢ efeitos qualitativos (ou seja, «rosso modu, todas as outras implicagdes, sociais, politicas, culturais ete.) da imigragdo e entre efeitos a curto prazo-e efeitos a prazo mais dila- tado, permanece sinda demasiado absoluta: enquanto cada um dos elementos do quadro de conjunto ‘que a imigragio oferece ¢ definido co ‘ou “custo” de forma imutdvel, na verdade todes eles sio objeto de interpretagSes coniraditérias: "beneficios” aqui, “eustos” ali, ov ainda “beneticios" para uns e “custos” para os outros, a impressio que prevalece &a de uma construgio para fins polémi- cos: um dos melhores exemplos dessa polémica imposta (em razao das divergéncias que a imigragio suscita) nos é fornecido pelas conclusdes radicalmente opostas as quais chegam, a partir de pontos sensivelmente idénticos, os relatérios conhecidos com 0 nome de “Rapport général Anicet Le Pors" (cf. op. cit) € "Rapport Fernand leant" (Le Cod social des travailleurs étrangers en France, nota de sinese, Assembiéia Nacional, 1976, 123 pp) Se Anicet Le Pors, inspetor das financas, ex-aluno da ENA (Escola Nacional de Administragio) e principalmente membro influente do partido comunista frances, ao retomar de seu ponto de vista a problemitica dos “custos e vantagens” da imigragiio, pro- cede a uma avaliagio do custo social dos imigrantes que contraria as idéias fetas bem como uma grande uantidade de teses comumente admitidas ¢ traz assim a prova do carster relativo da distingo que se ‘20sta de estabelecer, de uma vez por todas, entre “vantagens” € “custos”, o deputado F. Icart entrega- Se a uma avaliagao simétrica em todos 0s pontos, colocando as vezes entre os “custos” 0 quc seu rival tratava como “vantagens” 3*) "Custos e vantagens” foram estabelecidos ¢ calculados, antes de mats nada, pela sociedad de imi- fragdo. Mas ndo terfamos a tendéncia de transpor para a sociedade de emigrago nossa problemstica nossas técnicas de avaliagdo, ¢ isso sem nos perguntarmos sempre sobre a validade da operacao ¢ sobre as conseqiéncias que acarreta? Pecando por excesso de einocentrismo, rotalmemte inalequado quando se trata de apreciar os efeitos mais propriamente sociolégicos (i. ¢., qualitativos) da emigra- 649, a transposigao descontrolada do méiodo ignora a especificidade da economia das sociedades de origem dos emigrantes: se no caso da economia desenvolvida das soviedades de imizrayiio é quase um postulado afirmar a primazia do calculo, pois tudo € (idealmente) mensurdvel ¢ calculdvel e, ma verdade, udu ou guase two € medido vu calculady, nv easy da economia do» paves suldesenvol vi dos (posto que esta ¢ a realidade econdmica da maioria dos paises dc emigragdo) a primazia seria dada mais & qualidade, que escapa ao célculo, Como enido realizar 0 desafio que consiste em calcular (i ., €m avaliar 0s “custos” € as “antagens”) 0 que por definigdo se da como incalculivel? Como, por exemplo, medir os efeitos qualitativos do que é, nesse caso, auséncia (ou seja, emigragdio)? Como apreciar, no mesmo ato € ao mesmo iempo que se avalia a quantidade de dinheiro introduzida com a antage! 49 ‘ABDELMALEK SAYAD. 50 que ¢, em seu prinefpio, to antiga quanto a prépria imigragao, trai a fungao atri- bufda aos imigrantes ¢ © significado que se deseja reservar imigragio: imigra- gio ¢ imigrantes 86 tém sentido e razdo de ser se 0 quadro duplo erigido com 0 fim de contabilizar os “custos” e os “Iucros” apresentar um saldo positivo — ideal- menie, a imigragdo deveria comportar apenas “vantagens” e, no limite, nenhum “custo”. Como maximizar as “‘vantagens” (principalmente as vantagens econd- micas) da imigragio, reduzindo a0 mesmo tempo ao minimo o “custo” (notada- mente 0 custo social e cultural) que a presenga dos imigrantes imp6e? Esta é uma formulagio que, ao mesmo tempo que condensa em si toda a hist6ria do fendme- no da imigragdo, revela a fungdo objetiva (ou seja, secreta) da regulamentagio aplicada aos imigrantes: mudando segundo as circunstancias, segundo as popu- lagOes relativas, essa regulamentagdo visa impor a todos a definicao constitufda cm fungdo das necessidades do momento. Com efeito, no pode escapar a nin- guém que, no fundo, é uma certa definigiio da imigragio ¢ dos imigrantes que emigragio (0 que é habitualmemte pereebido como uma “vantagem” para a sociedade que recebe esse dinheiro), os efeitos que a gencralizagdo do uso da moeda podem ter a longo prazo sobre a economia camponesa tradicional? Na verdade, & o préprio estatvto da economia (no sentido em que a eniende- ‘mos num sistema econdmico desenvolvido) que se enconira em questi. +) Pode-se ainds fazer outra etitica a esse método, Sendo concebido e comprovado apenas do ponto de vista da economiaa servigo da qual os imigrantes se colocam, ele opera, implicita ¢ as vezes expli- citamente, como se as "Yantagens” de uma das duas partes (a sociedade de imigragio ou a sociedade de emigrago) correspondessem necessariamente aos “custos” sofridos pela outra parte: assim, s6 se~ iam “beneficios” trazidos pelos imigrantes aqueles que fossem pagos com um “custo” qualquer por sua Sociedade de origem (assim o par “vantagem’ custo” constituido como o seguinte: por um Indo, a “vaniagem” que representa uma miio-de-obra imigrante na idade adultae. do outro, em contraparti- Usio” da eriagio, como se diz, com que o pais de origem deve arcar) e, inversamente, no existe iputivel a0 fato de se usar uma maio-de-obra imigrante que niio corresponda. para os paises de emigrago. a alguma “vantagem” econdmica ¢ social. Essa forma absoluta de transpor a definigio hsoluta do “custo” eda “vantagem”, doravante constituidos como solidarios um do outroe igualmente solidarios de ambos os sistemas econdmicos (0 de imigragao ¢ 0 de emigragdo), impede de perceber ‘que 0 que pode ser considerado como uma “vantagem” hoje, ou seja, num momento dado da histéria ‘da imigragdo num caso ¢ da emigragdo no outro (ou ainda num dado momento do estado de wma ou ovira dessas sociedades ¢ do estado das relagdes de forga que se instalam entre elas por ccasido da relagdo migratoria), pode revelar-se como “custo” amanha; da mesma forma, o que era (ou ainda é) “custo” pode (ou poderd) tomar-se “vantagem’. Assim, para ambos os parceiros, mas de forma mais fundamental para 0 pats de emigragdo, bastaria uma mudanga de perspectivas ou uma mudanga pol tica (notadamente em terms de desenvolvimento) para que se tomem “custos” ou problemas objesi- Vos 0 que antes, em circunstincias particulares, era definido como “vantagens”. No fundo, o que nunca 1 definigdo de “vantagem” e de “custo” negociada; ela reflete o estado de uma cada parte trabalha para convencer seu parceiro de que ele encontra no fenémeno migratério uma “vantage” maior ou, pelo menos, uma soma de “vantagens” que compensa ampla- mente inconveniente que resulta para ele; vantagens sempre renovadas para colocar em beneficio, do outro, Trabalhar, por um lado, para maximizar as vantagens que s¢ atribui a seu parceiro e, por outro, para mascarar suas préprias vantagens ou minimizé-las: & desse trabalho de imposigio que resulta a definigdo do que se entende, a cada vez, por “vantagens” e “custos”” © QUE € UM IMGRANTE? esti em questao através do trabalho 20 mesmo tempo juridico ~ direitos que de- vem ser reconhecidos ao imigrante, posto que ele vai residir e trabalhar na Franga (direitos de nacionalidade) -, politico ~ acordos de mio-de-obra, conven- ges bilaterais concluidas com os paises de emigragdo (ao definir sempre de for- ma diferente as condigoes de entrada, de estadia e de trabalho na Franca, esses contratos desembocam em estatutos diferentes que apenas consagram, em suma, as diferengas que existem ou as variagdes que surgem nas relagdes de forga entre a Franga ¢ os paises de origem) - ¢ social ~ agées diversas que contribuem, to- das, para uma melhor adaptagdo da populagdo imigrante -, empreendido sobre as pessoas dos imigrantes. Sem diivida por causa da distancia que se tomou insuportavel, apesar do trabalho assim efetuado, entre, por um lado, a concepgao que se tem de costume (ou que os empregadores notadamente adotam) da imi- gragdo - ou seja, como tendo uma fungao exclusivamente econdmica e técnica - e, por outro lado, a realidade presemte da imigragao (que, pelo “custo social” e, de forma acessoria, cultural cada vez maior que ela impde, contradiz esta con- cepgaio), nunca talvez a contradigao prépria imigragiio ou ao que se pode cha- mar de politica de imigragdo esteve tao evidente quanto neste periodo conheeido pela crise econdmica, pelo desemprego e por dificuldades de toda sorte. Ao fin- 51 ABDELMALEK SAYAD 52 gir que a estamos descobrindo somente hoje, estamos jogando sobre essa contra digo para orientar a imigracao no melhor sentido para os interesses, materiais ¢ simb6licos, que atribuimos a nés mesmos: é ela que inspira as palavras que sio ditas hoje em dia sobre os imigrantes ou a propésito dos imigrantes*; é cla que serve de pretexto para as préticas cotidianas em relagio aos imigrantes’, bem 4, Na situagio atual, podemos dizer que nio existe discurso sobre o desemprego que nio seja ao mesmo tempo um discurso sobre os imigrantes, ou melhor, sobre a relagio de causa-efeito que, as vezes, & apenas sugerida, mas que, outras vezes, é explicitamente afirmada, entre a imigracio e o desemprego, “Num pais que conta com dois mithdes de trabalhadores imigrantes, 0 problema do desemprego nio deveria se colocar”, (J. Chirac). As vezes. € para indignar-se e escandalizar-se: e, quando se finge 0 espanio € a incompreensio, ¢ apenas para suspeitar melhor que os imigrantes so nocivos ao interesse nacional (¢ is80 coma cumplicidade de seus “amigos”, dentre os quais aparecem, mesclados, primei- +10 08 mifitantes, os sindicalistas ¢ os intclectuais de esquerda, os homens de igrejae, depois, os pa trdes, bem como os politicos ou os homens no poder que sfo considerados como “favordveis” acs imi- ‘grantes): "Os imigrantes tomam o trabalho dos franceses... logo, roubam o pao dos franceses”, “tra- tase de substituir com a mao-de-obra nacional (subentendidos os desempregados) a dos imigrantes"(R. Barre), “a preocupagio do governo francés ¢ diminuir 0 nimero de trabalhadores imigrantes na Fran- sa” (L. Stoléma, 28 set, 1978), ow ainda “no vale a pena cantar de galo no exterior quando nao somos ccapazes de catar 0 lixo em nosso priprio pais” (L. Store): “As regides que tecebem muitos imigran- tes nio devem esperar auxiio do govemo” (ministro da Industria) ete. As vezes, rata-se, 30 contri- ro, de esforgar-se (sinceramente ou apenas pela circunstincia) de tranquilizar os imigrantes: “0 imi- ‘grante ndo ¢ uma pessoa que s¢ deporta... um homem que vem para nosso pais com uma esperanga, a de participar da vida econdmica de um pais que a tera do trabalho, a term da liberdade.."(P. Dijoud, nos Dossiers de I’écran, 14 jan. 1975); “O pats nfo deve explorar os trabalhadores imigrantes, ¢ sim da-thes os mesmos direitos e as mesmas oportunidades que di aos trabalhadores franceses, © muitas veres mais..." (P. Dijoud, apresentaglo de seu programa de 25 medidas em 1974), ou ainda: “Ni se- ria comreto querer se livrar da mio-de-obra imigrante que trabalha para n6s hi muitos anos sob o pre- texto de que sentimos dificuldades de emprego” (L. Storélu, Le Figaro, 1 de setembro de 1975): “Os trabalhadores imigrantes podem atravessar a crise conosco, como n6s" (L. Storélu, na televisio, § nov. 1977), “a fraternidade francesa estende-se aos trabalhadores imigrantes que contribuem para nossa produgaio ¢ nosso progresso” (V, Giscard d’Estaing, no Conselho dos Ministros, 9 out. 1974), “acom- paahavei pessoalmente a implantagdo do programa de melhoria das condigdes de vida dos trabalha- dores imigrantes e de sua protegio social ¢ cultural” (V. Giscard d’Estaing, jul. 1974). Em todos os casos, seja qual for 0 discurso, 0 resultado é 9 mesmo: de um lado, os imigrantes, ou sejo, trabalhado- res estrangeiros ou estrangeiros em trabalho, pois 0 imigrante s6 pode ser concebido indissociavelmente ligndo ao trabalho (um imigrante desempregado ndo existe, como diria RK. Desnos); do cittro lado, os desempregados franceses. ow melhor, franceses no desemprego. Mesmo se essa aproximagio, 2 qual se da um aspecto de esciindalo completo (escdndalo intelectual, social, moral ¢ politico), é na verdade ‘questionavel (intelectualmente), inexata (socialmenic),injusta (moralmente), mesquinha (politicamen- tc), ela basta para langar o deserédito sobre os imigrantes; basta para producir ¢ impor na opiniio publica a cquagao simplista¢ falaciosa: imigragdo = desemprego, contraverdade que tem como efeito tomar os imigranies responsiveis pelo desemprego dos franceses ¢, fazendo com que se tomem bo- des expiatirios, apresentar sua partida como a solugio mais répida para as dificuldades do emprego: “Num pais em que hi mais de um milho de desempregados ¢ dois milhdes de imigrantes ativos, a solugdo € simples: mandem-nos de volta para casa”, 5. Ainda é no dia-a-dia, nas préticas cotidianas (por exemplo, nas verificagdes de documentos feitas nas ruas ov por ocastio de todas as diligencias administrativas, nas reiagdes com a ANPE ~ Agencia Na- ‘cional para o Emprego -, que sempre sto relagdes de crise, pois explicitam a coniradigao entre a qua- lidade de imigrante ¢ a situayio de inativo etc), na atitude geral adotada para com os imigrantes (as (© QUE E UM ImiGRANTE? como para as decisdes administrativas tomadas com relagio a cles®; é cla que serve de justificativa para os textos legislativos que regem a presenga dos imi- circunstdncias alvais, suscitando enire nds 0 sentimento de que ¢ preciso se “solidarizar” entre si, $6 podem tomar mais agudo 0 racisino, a hostilidade geral para com o estrangeiro, para com o imigrante ‘que € apresentado como um concorrente), que se pereebe melhor a definigao implicita que deles foi forjada, bem como a definigdo da fungao que thes ¢ atribuida, Para trabalho, conforme proclama uit empresirio da Lorena, “o papel deles é o de serem sacrficados”, “Sacrificados” quando sio ativos (sua ‘qualidade de imigrantes prejudica sua promogio, sua formagio, quando no sua remuncragdo), “sa- crificados”, principalmente, quando so desempregados (seu “sacrificio", se € que poderia esconjurar ‘0 medo dos franceses, chegando entdo & propria negagio de sua existéncia). “Em parte, nds os contra- ‘amos para isso. Em caso de crise, eles contam menos do que os nacionais"(Le Monde, 14 dcz. 1971), Esta é, sem divida, a razdo que havia permitido no $6 que se submetesse a limitagio o trabalho do ‘migrante (natureza e zona de atividade autorizadas) como também, em caso de crise, que se tomasse como pretexto a incerteza que pesa sobre sva estadia para licencié-lo ou fazer com que seja licencia- do, Desempregado no meio de tantos outros, o imigrante desempregado é diferente dos outros desem: pregados (estes, franceses), porque ninguém deixa, & sua volta, de fazer com que ele sinta que “no tem mais lugar”. que “ests a mais”. que “ele & aquele de quem ni se previsa mais mas que ainda ects a; cada um de seus atos, cada uma de suas iniciativas junto & Agencia Nacional pelo Emprego (a ANPE), lugar onde se objetiva plenamente a verdade da condigao de trabalhador imigrante, desperta nneke uma especie de sentimento de culpa, 0 sentimento que ele tem de sua inconveniéncia social, da ilegitimidade de sua presenga, Na vida cotidiana, as exigéncias que se iém em relagdo a ele sio perce- bidas por ele. ndo sem motivo, como tantas provagdes humilhantes que revelam a desconfianga em relagdo a ele; marcé-4o como um suspeito, a seas clhos. esta € a fungdo objetiva das verificagdes de documentos miltiplas (que do so sempre verficagdes policiais). das desagradaveis exigencias bu- rocréticas ts quais estd submetido: ele tem a obrigacao, muitas vezes de forma intempestiva e, nas circunstincias atuais, nao desprovidas de certo excesso de zelo © de manifestages de mau-humor, de ‘mostrar constantemente seus documentos. de apfesentar, para cada um de seus mfnimos gestos, em qualquer circunstincia ¢ na frente de todos (no 56 para a policia) a prova de sua identidade (docu- ‘mento de identidate), da regularidade de sua presenga (titulo de estadia) de seu domictlio (recibo de aluguel), de seu trabalho (hollerith), de sua renda (comprovantes que podem ser até a exibigo de re- cibos pessoais), Um imnigrante; “E inerivel como essa sociedade tem confianga, As folhas de pagamento, 56 jase, em todo lugar em que voce se apresenia 36 Ihe pedem isso! O que voct € aqui? Voce € s6 uma folha de pagameato por més. Como sc tivessem medo de que voce comesse 0 pio deles [..] Com 4a gente, os imigrantes, isso chega muito Tonge: é logo a suspeita, ndo € o regulamento (..J; coma gente, € preciso provar que a gente ganha o nosso dinheiro, sem isso voet esté roubando, voce esti mendi ando, € a mesma coisa, voeé virasuspeito [..] Ui im feito para trabaltar, vost fem que povar que esté trbalhando; se voeé nio trabalha, entio pra que voc? serve? [..] No correio, para mandat seu dinheiro [..}, a0 seguro social (,.], yoo precisa provar que ako db delat oe 1068 balha, que nfo roubow {... Até para morrer, quando vox? nao morreu no trabalho, voe€ precisa pro Yar que trabalhou; de outro jeito vo® ndo pode morret [1 66. Essas decisdes concomem para um mesmo resultado: provoear, de uma forma ou de outra, de forma resignada ou de forma imposta, a partida dos imigrantes: “ausilio para o retorno” (sob a forma do “milhgo Storslu"); “auxilio para as partidas voluntérias” (prémio de SO mil francos) dos trabalhado- res da siderurgia (Usinor-Longwy) mas que, no caso dos imigrantes trabalhadores siderirgicos, esta submetido A condigo de acumular-se com este outro aunilio, 0 “auniio para o retorno™, ¢ de ser libe rado segundo 9 mesmo procedimento deste ultimo (“avxilio para 0 retomo” que acaba, alids, de ser invalidado pelo Conselho de Estado, max que continua sendo efetivado); “formagiio para o retorno”, outro modo de se livrar, sem grandes prejuizos. dos imigranies desempregadios convencendo-se de que estamos quites de qualquer obrigaao para com eles e até mestno, fazendo isso, de estar prestando um grande servigo ¢ ajudando os seus paises de origem; restrigdes a0 reagrupamento familiar ¢ tentaga0 53 ‘ABDELMALEK SAYAD grantes (sua entrada ¢ sua estadia)’. Se a fungdo de tudo isso, dos fatos como dos discursos, aparece como uma lembranga para os imigrantes de sua condigio de trabalhadores apenas tolerados ¢ tolerados a titulo provisério, 0 objetivo visado & © de poder agir sobre a realidade social (ou seja, a imigragio) até submeté-la & definigio que dela se dé: como impor a definigio mais préxima do modelo ideal tipico do imigrante ¢ da imigragio? Qual sera entao essa definigao? Afinal, o que é um imigrante? Um imigran- te & essencialmente uma forga de trabalho, ¢ uma forga de trabalho proviséria, temporiria, em trénsito. Em virtude desse prinefpio, um trabalhador imigrante (sendo que trabalhador e imigrante so, neste caso, quase um pleonasmo), mes- de “proibir 0 trabalho” para as novas pessoas que chegam (esposas,filhos) ou de levd-los a aceitar 0 faio de serem “proibides de trabalhar” (a sespensdo do reagrupamento familiar foi anutada pelo Con- selho de Estado); vigilincia extrema ds continuidade de estadia do imigrante © controle rigoroso das datas de viagem como fim de detectar qualquer auséncia da Franga que exceda a durago normal dos prazos aulorizados: ndo-renovagdo ou renovagdo condicional dos iitulos de estadia (as condigBes para 1 enovagio so mais draconianas do que as condigdes exigidas quando do estabelecimento do pri imeiro titulo de estadia: assim, avonteceu que se pedisse aos imigrantes argelinos ou a alguns deles que presentassem os holleriths de trés anos consecutivos, quando em 1969 era, para os imigrantes arge- linos, a data de registro no seguro social que dava fé dos trés anos de residéncia exigides para ter di- reito a um certificado de residéncia vilido por de2 anos) ete.; tudo isso sem falar evidentemente das expulsdes, das recusas que, na maioria das vezes, em como pretexto motives insignificantes. 7. Trata-se dos miltiplos projetos da lei n, 922 que trazem modificagSes da Ordenagio de 2-de novembro de 1945 relativa as condigdes de entrada ¢ de estadia dos estrangeiros na Franga, Alguns desses proje- tos, que visam legalizar as priticasarbitrrias mais correntes que controlam a “entrada de esirangeitos (na verdade dos imigranies) em ternt6rio frano8<” © que regulam as condigdes segundo as quais eles podem permanceet ¢ trabalhar na Franga. tém pelo menos o mérito de ser claros. Ao submeterem a entrada na Franga a um regime discriminat6rio, posto que “a entrada em territ6rio francés pode ser ve= {ada por outros motivos além da auséncia de documentos ¢ vistos exigidas pelas convengdes intemna- cionais” (egue-se exposigio de motivos), 0 projeto de let conhecido com o nome de seu promotor, 0 rinist do Interior Christian Bonnet (sob 0 govemo de Raymond Barre) divide doravante © mundo fem duas partes: um mundo geogrifica e demograficamente minoritirio mas majoritirio em todos os Outros aspectos (econdmico, politico, militar, € ciemifico ete.) esse mundo corresponde grasso modo 0s paises industrializados que também sio passes de imigragdo, unico digno de produzit turstas pois, 1, convengies internacionais (aquelas que ligam os pafses da Comunidade Econ6mica Européia, por ‘exemplo) vetariam que a let proibisse “aentrada em temitérnio francés por um motivo outro além daque- les exigidos pelas convencdes intemnacionais” ~ podermos duvidar que se exija de um nomte-americano ou de um canadense, de um belga ou de um alemdo, de um australiano ou mesmo de unm japones que eles justifiquem, por exemplo, “meios de existéncia suficientes”, como se faz com qualquer pessoa oiunda de um pafs subdesenwolvido, principalmente se esse pafs fomnecer emigrantes ~; outro mundo, ‘este minoritino em tudo (embora seja majoriirio geogrifica e demograficamente), “indigno”, por ‘motivos que no so apenas econdmicos ~ cles sao sozinis. politicos. culurais, todes acumulados na percepydo que se tem do estrangeiro do Terceiro Mundo (eles fazem essa percepgdo) -, de produzir turistas, capaz somente de dar emigrantes; assim, importa para let discriminar os verdadeiros turistas dos falsos turistas ¢, entre estes ultimos, os imigrantes virtuais contra os quais & preciso ter garantias. Estas disposig®es policiais ¢ muitas outras mais tendem a reafirmar a subordinagao da situagdo do imi- grante definigdo que se dé dele e & representaso que se faz de sua condigdo. (© QUEE UM IMIGRANTE? mo se nasce para a vida (e para a imigragio) na imigragio, mesmo se 6 chama- do a trabalhar (como imigrante) durante toda a sua vida no pais, mesmo se esté destinado a morrer (na imigrag’o), como imigrante, continua sendo um traba- Ihador definido ¢ tratado como provisério, ou seja, revogdvel a qualquer momen- to, A estadia autorizada ao imigrante esta inteiramente sujeita ao trabalho, tni- ca razo de ser que Ihe € reconhecida: ser como imigrante, primeiro, mas também como homem — sua qualidade de homem estando subordinada a sua condigao de imigrante. Foi 0 trabalho que fez “nascer” o imigrante, que 0 fez existir; € cle, quando termina, que faz “morrer” 0 imigrante, que decreta sua negagio ou que © empurra para 0 ndio-ser. E esse trabalho, que condiciona toda a existéncia do imigrante, nao é qualquer trabalho, nao se encontra em qualquer lugar; cle é 0 trabalho que 0 “mercado de trabalho para imigrantes” the atribui ¢ no lugar em que Ihe € atribuido: trabalhos para imigrantes que requerem, pois, imigrantes; imigrantes para trabalhos que se tomam, dessa forma, trabalhos para imigran- tes. Como o trabalho (definido para imigrantes) € a propria justificativa do imigrante, essa justificativa, ou seja, em tltima instancia, 0 préprio imigran- te, desaparece no momento em que desaparece o trabalho que os cria a ambos, Entende-se entdo a dificuldade, que no é apenas técnica, que se tem em definir © desemprego no caso do imigrante (até quando? durante quanto tempo?), a di- ficuldade que se tem em pensar a conjungio do imigrante ¢ do desemprego: imigrante ¢ desempregado € um paradoxo. E sem chegar a dizer que go € propriamente impensdvel, ela nao deixa de ser sentida como um escindalo para a mente, em primeiro lugar, mesmo que de um ponto de vista puramente intelectual; a dificuldade esta, aqui, em conciliar objetos inconcilidveis: desem- pregado ¢ imigrante ou, 0 que dé no mesmo, 0 nio-trabalho com o que sé se concebe e s6 existe pelo trabalho. Afinal, um imigrante s6 tem razo de ser no modo do provisério com a condigao de que se conforme ao que se espera dele; cle s6 esta aqui c s6 tem sua razdo de ser pelo trabalho ¢ no trabalho; porque se precisa dele, enquanto se precisa dele, para aquilo que se precisa dele e li onde se precisa dele. Isso nao é tudo. Se a realidade da imigragao é algo muito antigo, o problema social que cla constitui, que é relativamente independente dessa realidade feno- ménica, ou seja, nao € necessariamente definido pela populagdio que concerne (i. e., © conjunto de pessoas que devem apresentar os tragos especificos do imigran- te), é relativamente recente; ¢ tem suas condigdes sociais de possibilidade*. A pes- 8. Como todos os “problemas sociais”, 0 da imigrasdo nao poderia ser definido por alguma natureza que Ihe fosse propria. Herbert Blumer demonstrou como varia segundo as épocas e os lugares aguilo que 55 ABDELMALEK SAYAD 56 quisa sobre a imigragio, esse outro objeto aparentemente natural ¢ totalmente evi dente, nao poderia ignorar que cla é também c antes de mais nada uma pesquisa sobre a constituigaio da imigrag%o como problema social; af est toda a dificulda- de da construgao do objeto de pesquisa em sociologia. Por muito tempo quase exclusiva das ciéncias jurfdicas cm todas as suas formas (notadamente no campo universitdrio, onde os primeiros trabalhos de pesquisa ¢ as primeiras teses sobre a imigragao so trabalhos de juristas ¢ teses de direito), depois da demografia, seja ela proveniente de demégrafos propriamente ditos ou de historiadores (demogra- fia historica), ou, com maior freqiiéncia, de gedgrafos ~ ciéncia do espago e cién- cia da populagdo, a geografia ¢ a demografia estio ligadas no estudo da imigra- 40, porquanto esta consiste no deslocamento de populagdes por todas as formas de espago socialmente qualificadas (0 espago econdmico, espago politico no du- plo sentido de espago nacional ¢ de espago da nacionalidade ¢ do espago geo- politico, espago cultural sobretudo em suas dimensdes simbolicamente mais “im- portantes”, © espago linguistico € © espago religioso etc.) -, a imigragio acabou, sob a influéncia de diversos fatores, por se constituir como “problema social” an- tes de se tornar objeto da sociologia. Mais do que qualquer outro objeto social, nio existe outro discurso sobre o imigrante ¢ a imigragdio que no seja um discur- So imposto; mais do que isso, & até mesmo toda a problematica da ciéncia social da imigrag’io que é uma problemitica imposta’. E uma das formas dessa imposi- ¢40 € perecber o imigrante, defini-lo, pensé-lo ou, mais simplesmente, sempre falar dele como de um problema social. Essa relagdo entre um grupo social e uma série de problemas sociais (os imigrantes e 0 emprego ou os imigrantes e o de- ‘Jo, os imigrantes ¢ a formagao, os imigrantes semprego, os imigrantes ¢ a habi se constitui como “problemas sociais”: determinado “problema social” s6 pode aparecer muito tempo pds 0 surgimento do fendmeno que esta designando , muitas vezes. desaparecer como tal, embora 0 fendmeno subsista; assim, por exemplo, a pobreza. que $6 se constitulu como grave “problema social” nos Estados Unidos durante os anos 1930, ou ainda 0 racismo, que s6 vai se tormar problema social a pair de 1960 (ef. H. Blumer, “Social Problems as Collective Behavior", Social Problems. XVII n 3, Winter 1971. pp. 298-306); €,da mesma forma, poderiamos acrescentar a “infincia”, a “adolescén- cia” ou os “jovens”, a “vethice”, as “mulheres” etc. (para lembrar apenas as categorias mais evidentes Porque mais proximas do biol6gico , aparentemente, mais naturais), Para todos esses problemas de construgdo do objeto em sociologia, cf. P. Bourdicu, J. C. Chamboredon ¢ J. C. Passeron, Le Mérier de sociologue, Paris-La Haye, Mouton-Bordas, 1968, ¢ P. Champagne, Rémi Lenoir, D. Merlié € L. Pinto, Initiation @ (a pratique sociologique, Paris, Dunod, 1989, 238 pp. 9. A. Sayad. “Tendances et courants des publications en sciences sociales sur "immigration en France depuis 1960", em Current Sociology, vol. 32, m3, inverno 1984, t. 2, pp. 219-251 (ver notadamente pp. 237-251); ef, também “Santé et equilibre social chez les immigiés”, em Psychologie médicale, 1981, 13, 11, pp, 1747-1773 (ver notadamente p. 1748); ¢ “Coats et profits de "immigration, les pré- supposes politiques ’un débat économique”. Actes de la recherche en sciences sociales, n. 61, mat. 1986, pp. 79-82. (© QUE € UM IMiGRANTE? ou os filhos de imigrantes e a escola, os imigrantes ¢ 0 direito de voto, os imigran- tes ¢ sua integrago, os imigrantes ¢ a volta para sua terra ¢, para coroar, os imi- grantes ¢ a velhice, ou os velhos imigrantes! etc.) constitui o fndice mais claro de que a problemdtica da pesquisa, tal como é encomendada ¢ tal como € conduzida, encontra-se em conformidade ¢ em continuidade direta com a percepgdo social que se tem da imigragio e do imigrante, Objeto sobre © qual pesam numerosas “representagdes coletivas”, a imigragdo submete-se a essas representagdes que, como sabemos, “uma vez constitufdas tornam-se realidades parcialmente auténo- mas”, com uma eficiéncia tanto maior quanto essas mesmas representagdes cor- respondem a transformagdes objetivas, sendo que estas condicionam o surgimen- to daquelas ¢ determinam, da mesma forma, seu contetido. No fundo, é de todo 0 entendimento que temos de nossa ordem social € po- Iitica, é de todas as categorias de nosso entendimento politico (¢ nao sé politico) que se trata nas “percepgies coletivas” que se encontram no principio da defini- Go dada do imigrante ¢ do discurso que atualiza essa definigao. Qual é essa definig’o? $6 se aceita abandonar o universo familiar (universo social, econd- mico, politico, cultural ou moral, quando nao mental etc.), ao qual se pertence “naturalmente” ou do qual se é “natural”, para usar uma linguagem pr6xima da linguagem jurfdico-polftica da naturalizagio (ou, melhor dizendo, da “naturali- dade");_s6 se accita emigrar ¢, como _uma coisa leva a outra, $6 se aceita viver em terra estrangeira num pafs estrangeiro (i, ¢., imigrar), com a condigdo de se convencer de que isso niio passa de uma provacdo, passageira por definigao, uma 86 se aceita que haja imigracao e que haja imigrantes, ou seja, s6 se aceita entrar num universo do qual nao se é “natural” naturalmente com as reservas das mes- mas condiges. Todas estas especificagdes pelas quais se define e se identifica 0 imigrante encontram seu principio gerador, sua soma ¢ sua eficiéncia, bem como sua justificago ultima, no estatuto politico que 6 préprio do imigrante enquanto ele ndo € apenas um alégeno mas, mais do que isso, um “ndo-nacional” que, a este titulo, 86 pode estar exclufdo do campo politico. Politica e polides diivida mais a polidez do que a politica, exigem semethante neutralidade, que é também chamada de “obrigagio de ser reservado”: a forma de polidez que 0 estrangeiro deve adotar ¢ que ele se sente na obrigagio de adotar —e, no limite, ele 6 deve adotar essa polidez porque se sente obrigado a adoté-la -, constitui uma dessas malicias sociais (ou malfcias do social) pelas quais sio impostos " (1924), 10, Cf. E. Durkheim, “Les représentations individuelles et les représentations colle Sociotegie et philosophic, Paris, PUF, 1973. 57 ABDELMALEK SAYAD_ 58 imperativos politicos © consegue-se a submissao a esses imperativos!’. Sem que se perceba perfeitamente a arbitrariedade (no sentido 1égico) que existe em opor “nacional” ¢ “nio-nacional” ¢ em reduzir todas as discriminagdes de fato a esta oposigdo (de dircito) fundamental", a distingdo legal, ou seja, refletida, pensada e confessa, que se opera assim no plano politico de modo totalmente decisivo constitui como que a justificativa suprema de todas as outras distingdes. Com efeito, porque todas essas distingdes so suscetiveis de serem apresentadas como derivadas da primeira, clas se encontram assim fundadas na razao (frente a ra- zio em si, posto que dela recebem sua explicagéio, mas igualmente frente a ra- 240 politica, social, econémica e, mais ainda, ética); nao sendo o imigrante um clemento nacional, isso justifica a economia de exigéncias que se tem para com ele em matéria de igualdade de tratamento frente a lei ¢ na pritical’. “0 ideal” teria sido que, assim definido, o imigrante fosse uma pura mé- quina, um sistema integrado de alavancas, mas, neste caso como em qualquer outro, “uma vez que 6 homem nao ¢ um puro espirito™ ~ sabemos disso hd mui- to tempo - ¢ uma vez gue o imigrante nao é puramente mecanico, é forgoso conceder-Ihe um minimo, Assim, como trabalhador, € preciso que seja alojado, mas entiio o pior dos alojamentos (que ele consegue sozinho) é amplamente su- ficiente; como doente, & preciso que seja tratado (isso por ele mesmo, ¢ talvez muito mais para a seguranga dos “outros"), mas que seja da forma mais répida ¢ mais ccondmica, sem tomar sempre o tempo c 0 cuidado que uma situagio particular requer, principalmente no caso de doengas mentais (que, em sua maio- ria, so de origem sociolgica ou ao menos comportam uma importante dimen- 11, Extorquiro essencial sob a aparéncia de exigir apenas o acessério ou o insignificante, impor o respei- to pelas formalidades para obter todas as formas de respeito consttutivas da submissio & ondem esta- belecida, as concessses da polides s6 tém prego porque darko A luz concessies politicas: para todas as relagdes entre “politica” e “potidez”. ef. P. Bourdieu, Esquisse d'une théarie de la pratique, Pats, Librairie Droz, 1972, pp. 189-199, 12, Para uma andlise mais rigorosa do prineipio de di-visdo constitutive da ordem social ov ainda do prin- cipio de constituigio dos grupos instituidos (7, «., opostos 20s grupos priticos) na base de “proprieda des comuns (..], de tagos ou de experiéncias que pareciam incompariveis enquanto faliava o prinet- pio de pertinéncia priprio a constitul-tas como indices do pertencimento a uma mesma classe”, ef. P Bourdieu, “Décrire et prescrire. note sur les conditions de possiilité et les limites de I'efficacte politique”, Actes de lu recherche en sciences sociales, n. 38, maio 1981, pp. 69-71. 13. A discriminagio de direito (entre nacional ¢ ndo-nacional) pede reforgo as discriminagoes de faro (ou seja, as desigualdades sociais, econdmicas, culturas) €, em troca, estas encontram una justificativa © atribucm a si mesmas uma legitimidade na discriminagio de dircito: esta logica circular, segundo a qual as situages de fato © de direito se sustentam mutuamente, encontra-se no principio de todas as segregagdes (escraviddo, apartheid, colonizagao, imigragdo etc) ¢ de todas as dominagies (o escravo, © negro, © colonizado, o imigrante, a mulher etc.) geradoras de racismo, a igualdade de direito sendo recusada usando.se como pretexto as desigualdades de fato, ea igualdade de fato, por sua vez, torna- se impossivel devido a desigualdade de direito, © QUE E UM IMIGRANTE? so sociolégica); o mais das vezes casado ¢ pai de familia, nao seria possivel proibi-lo de trazer para junto de si, dentro de certos limites e sob certas con oes, sua mulher e seus filhos ~ nao se poderia nem mesmo impedi-lo indefini- damente de fazé-lo, principalmente quando manifesta tal desejo —; tendo accito que ele viva em familia na Franga, nao se poderia, sem cair em contradigaio ou sem incorrer na ameaga de ser tachado de racismo e de discriminagao notérias, privé-lo das vantagens (ao menos das principais vantagens) que Ihe dio sua qua- lidade de trabalhador c de pai. Enquanto trabalhador, assegurar-lhe — ao menos teoricamente - a igualdade de salirio (salario direto e salério indireto) com re- lagao ao operdrio francés constitui, sem diivida, a melhor forma de proteger este tiltimo contra a ameaga que uma -de-obra imigrante demasiado barata cons- titui (ou constitufa)'*; enquanto pai, nao se poderia, por exemplo, privar seus fi- Thos de educagao escolar e de formagao profissional (ao menos até os 16 anos, © que & uma obrigagao da lei), mas a Idgica do sistema de ensino e de formagaio reduz essa cscolaridade ¢ esse aprendizado ao estritamente necessério (0 mini- mo de tempo, 0 custo menos alto e a certeza de reproduzir assim in loco a forga de trabalho que seus pais haviam trazido ao emigrar). Porque muitos foram cha- mados, porque foram acantonados nos mesmos setores profissionais, no mesmo habitat, nos mesmos espagos sociais, ndo se poderia honestamente, ao menos enquanto a “ordem publica” estiver a salvo (a ordem politica, social, moral, mas também a ordem externa, a ordem estética, aquela que © panorama de uma pre- senga demasiadamente grande de imigrantes disparatados viria turvar), impedi- los de se agrupar e de se entregar a um minimo de prdticas que Ihes so préprias; praticas estas que dio um testemunho de sua “cultura” ou as quais sua cultura é facilmente reduzida. Ainda podemos nos perguntar, sobre cada um dos pontos cnunciados, se este minimo — na verdade indispensdvel para a sobrevivéncia do imigrante — concedido ao imigrante por ele mesmo ou ent&o para manter limpa a conscién- cia da sociedade que dele se utiliza; se este minimo lhe € concedido pelo homem que cle continua sendo (embora diminufdo, mutilado, alienado) ou, ao contra- 14, A divisto atual do trabalho, mesivo (ou principalmente) manual, entre a mio-de-obra nacional ¢ @ mo de-obraimigrante, a0 acarretar a autonomizayio do mereado dos empregos executados pelos imigrantes {c,correlativamente, aimpossibilidade ou, ao menos, a extrema dificuldade que existe, mesmo em época dc descmprego, em subatituir por trabalhadores nasionais 98 tabalhadores imigrante:),talvee tenha tomado caduco o problema da concorréncia, bem como todas as querelas de rivalidade, mas no po- deria fazer esquecer uma das caracteristicas fundamentais da imigragio, caracteristiea dbvia na ori ‘gem e contudo mais camuffada hoje, que & a de ser intrinsecamente (1 ¢., de direito se nio & mais de fato) uma arma entre as mios do patronato, uma arma que serve para fazer pressio sobre a balhadora nacional 59 ABDELMALEK SAYAD 60 rio, se s6 Ihe & concedido para permitir & sociedade ser (ou parecer) coerente consigo mesma, com seus princfpios morais de organizagtio que so sempre, em todos os campos, prinefpios de justiga, de igualdade, de respeito dos direitos ¢ das liberdades do individuo etc. Tudo isto faz com que a imigragdo, enquanto inscrita na relagdo entre dominante ¢ dominado, enquanto sobredeterminada, quando nao totalmente constituida por essa relagio de dominagio, no pode ser livre de toda moral, nao pode ser totalmente laicizada (i. ¢., livre de toda consi- deragaio moral). Nao hé fala, ndo hd discurso sobre a imigracio, mesmo os mais hostis, que niio apelem para a moral, ou seja, para as boas intengdes € os bons sentimentos, para os interesses simbélicos a cles ligados. Assim como 0 univer- so doméstico ou a economia da afetividade dos quais a imigrago constitui de certa forma um paradigma - ela participa em parte de ambos: 0 universo domés- tico tem aqui como par 0 universo nacional ou a “nagdo como famflia” ¢ a eco- nomia da afetividade encontra sua retradugio no que podemos chamar de cco- nomia da “paixao nacional” -, ¢ sem duvida, mais do que estes dois objetos sociais, a imigragdo ainda nao se configura como um objeto politico propriamen- te auténomo, ou seja, um objeto politico exclusivamente politico. O Maquiavel da imigragdo ainda nao foi inventado'’, Nisso reside, sem davida, a razdo ou uma icil conceber ou decidir uma das razdes que fazem com que seja extremamente di verdadeira politica em termos de imigragio, objeto fundamentalmente contradi- t6rio, Se a politica, para poder constituir-se como politicamente politica, preci- sa distinguir-se da moral, € 0 proprio objeto imigragio em si que escapa a toda politica autOnoma, separada da moral. A tinica politica possfvel em termos de imigragdo é precisamente uma auséncia de politica. Depois de haver tirado da imigragdo 0 maximo de proveito que dela pode- ria tirar (ou seja, de havé-la retribufdo com o prego, a0 mesmo tempo econdmi- co, social, cultural, mais baixo possfvel), a sociedade de imigrag%o ainda pode, através das concessdes que parece estar fazendo e também através da condescen- déncia que se encontra no princfpio dessas concessGes ¢, mais ainda, através da exploraco politica que delas pode ser feita, encontrar novas gratificagdes ¢ ou- tro motivo para satisfagaio: com efeito, aos proveitos materiais que a imigragio Ihe dé, ela acrescenta as vantagens simbélicas que Ihe fornece, além disso, a ma- nipulagao que sabe fazer (em proveito préprio) da situagdo que reserva para os 15. Sobre a autonomia da esfera politica € das condi¢des socisis de constituicdo dessa autonomia, cf. por exemplo J.-J, Chevalicr, Les grandes oeuvres politiques de Machiavel «nos jours, Patis, A. Colin, 1949 (ver, particularmente, a primeira parte, “A Servigo do Absolutismo”, © o Capitulo 1, “O Principe” de Maquiavel, pp. 7-37). (© QUE E UM IMIGRANTE? imigrantes. A légica propria & ordem simbélica é estruturada de tal forma que, pela negagdo que opera em relagio aos proveitos materiais ou pela transfigura- ¢%0 ou sublimagio pelas quais eles passam, ela os perpetua ¢ reforga ainda mais porque consegue melhor mascaré-los, ou seja, converté-los melhor em proveitos simbdlicos, logo aparentemente desinteressados. Porque a relagdo de forgas pen- de incontestavelmente a favor da sociedade de imigracaio ~ o que permite que cla inverta completamente a relagZo que a une aos imigrantes, a ponto de colocé-los em posigdo de devedores onde deveriam ser credores ~, ela tem uma tendéncia demasiada em contabilizar como realizagio sua o que é, contudo, obra dos prd- prios imigrantes: assim, & com freqiiéncia que se apresentam pelo menos os as- pectos mais positivos (ou considerados como tais) da experiéncia dos imigran- tes, ou seja, grosso modo, 0 conjunto das aquisigdes que eles conseguiram impor durante sua imigrag%o —e que conseguiram impor, podemos dizer, contra sua condigdo de imigrantes mesmo quando essas aquisigdes pareciam freqtientemente obtidas & forga ~ como o resultado de um trabalho difuso ou sistematico de inculcamento, de educagio que € operado gragas A imigragio (trabalho esse que consiste em produzir 0 que chamamos de “setes evoluidos” e, concomitantemen- te, em discriminar os imigrantes “evolufveis”, “educdveis” ou “consertdveis” € 0 imigrantes que niio 0 so ou que no querem sé-lo) e cujo mérito reeai, & cla- ro, sobre a sociedade de recepgio e somente sobre ela. Auxiliado pelo etnocen- trismo — principalmente quando ele é alimentado e reforgado, como é 0 caso aqui, pela certeza dada pclo fato de ocupar uma posigdo que se sabe dominante em tudo e de forma absoluta —, 6 este, em certa medida, 0 sentido objetivo do discurso que € proferido sobre todas as iniciativas multiformes de moralizagao as quais os imigrantes estdo submetidos, tanto os trabalhadores quanto seus filhos ¢ os membros de suas famflias, quer estas iniciativas tenham sucesso, quer fracassem, mas talvez mais ainda quando fracassam. Tudo isso so coisas que se gosta de confundir ¢ encarar apenas do ponto de vista daqueles que tomaram essa inicia~ tiva: a ago educativa, no sentido mais amplo do termo (continua-se a chamé-la de agio civilizadora), exercida sobre essa “classe perigosa” & moda nova, esses “nativos” desnaturados, esses “selvagens” vindos de outro continente — geogra- fico ¢, mais ainda, cultural ~ ¢ de outro tempo; a ago de formagio de toda natu- reza desde a formagdo mais simples, o aprendizado profissional no nivel mais ru- dimentar (principalmente quando € qualificado de “formagio para 0 retorno”), até a formagiio mais geral (lingiiistica, social ¢ até mesmo politica); a ago de adaptagio, primeiro, a uma forma de trabalho (o trabalho industrial assalariado, ou seja, mensurado € remunerado em conseqiiéncia) ¢, em seguida, inevitavel- mente, a formas de vida consideradas como indices de alto nivel de civilizagao; a ‘ABDELMALEK SAYAD 62 também, na medida em que nenhuma dessas agdes pode excluir, quando se tem vontade (ou porque no se ousa dizé-lo), a inteng&io de “reabilitar” os imigran- tes, sua cultura de origem (ou o que se considera como tal), sua lingua e, pode- ‘mos acrescentar, como ponto culminante desse paradoxo, todas as iniciativas que se autodenominam “reaculturagio”, pois elas permitiriam que eles se reencon- trassem a si mesmos, que redescobrissem seu pafs, sua lingua, sua religiao, que se reconciliassem com suas tradigdes, sua cultura etc, Sinal dos tempos; mas também, uma coisa estando ligada & outra, necessidade imposta pela forma em diregao para a qual evoluiu a imigragao (imigragdo de familias inteiras cuja ins- talagdo na Franga se prolonga a ponto de se tomar quase permanente), a popula- ¢%o imigrante constitui atualmente o alvo privilegiado do trabalho social, insti- tuigdo inventada em outros tempos, é verdade, ¢ instaurada progressivamente para ajustar & ordem econdmica e social estabelecida, na origem, outras pessoas que no os imigrantes de hoje. Entretanto, agora que a verdade da condigio de imi- grante aparece claramente, ou, em outros termos, agora que estamos sentindo de forma aguda as contradigdes imanentes a essa condigdo; agora que os imigran- tes, como que colocados contra a parede, sentem a necessidade de se livrar de todas as ilusdes constitutivas de sua condicao (ilusdes indispensaveis para pode- rem existir e para poderem suportar sua condigao de imigrante), o apelo inces- sante € insistente para que se lembrem de que devem se conformar ao imperati- vo segundo © qual eles continuam sendo, de direito, dispensévei (muitos sdo os meios que levam esse fim; regulates ou excepcion ou mais sorrateiros e mais disfargados, todos servem) dé prova, mais uma con- tradigdo, da inanidade, para nao falar do cardter mistificador das intengdes que se proclamam, bem como dos discursos proferidos sobre a virtude educativa ¢ formadora da experiéncia adquirida durante a imigragdo e por causa da imigra- 10. Mais do que isso, também aparece o fim a que essas intengdes ¢ esses dis cursos podem estar servindo: ao lembrar aos imigrantes que eles sio constante- mente objeto de um trabalho de correg’o que consiste em reduzir os erros, as falhas que cles demonstram com relagio & socicdade de sua imigragdo (mas, na verdade, esse & um trabalho pelo qual se quer tomar posse deles); a0 lembri-los dos estigmas pelos quais so denunciados ¢ se denunciam como imigrantes (anal- fabetismo, incultura, falta de qualificagio, inadaptagio ou desajustamento rela- tivamente aos mecanismos prdprios da sociedade ¢ da economia a que vieram servir, ignordncia dos prinefpios e das regras que presidem ao funcionamento dessa economia e dessa sociedade, em suma, barbaric no sentido primitivo do termo), nao é, no fundo, uma forma de lembré-los a sua condigao de imigrantes? Ou seja, homens de outro lugar, de um lugar para o qual deverio voltar mais cedo © expulsiveis , violentos (© QUEE UM IMiGRANTE? ou mais tarde. Como 0 imigrante deve continuar sendo sempre um imigrante — 0 que significa que a dimensio econémica da condigio do imigrante é sempre 0 elemento que determina todos os outros aspectos do estatuto do imigrante: um estrangeiro cuja estadia, totalmente subordinada ao trabalho, permanece provi- s6ria de direito ~, de que serve a “solicitude” que parecem testemunhar para com ele ainda hoje, 20 menos em certos meios? Existiria apenas em fungHo das cor rentes atuais? Estaria comandada, na verdade, pela simples preocupagao com 0 interesse econdmico? Em todo caso cla contribui, afinal, segundo as necessida- des do momento, ora para mascarar aos olhos de todos, ora para lembrar a todos (e antes de tudo aos imigrantes) a natureza fundamentalmente provis6ria e utili- tdria da presenga do imigrante. Entretanto, os imigrantes, em geral, aprenderam bastante com sua histéria — sua histria de imigrantes ¢ sua histéria mais antiga de antigos colonizados, ou de individuos oriundos de paises dominados — para conhecer 0 que vale a proclamagio narcfsica dos grandes principios: tudo acon- tece como se 36 se proclamassem esses princépios em altos brados para poder me- lhor desmenti-los ¢ viold-los na pratica ou, em outros termos, é quando eles sao pisoteados que se sente a necessidade de proclamé-los em alto ¢ bom som! Com relagio as mUltiplas vantagens, materiais simbélicas - estas mais maledveis do que as primeiras, pois acomodam-se menos com a confissio da realidade ~ que a imigragdo oferece, como explicar que se esteja voltando, cor Jo? Por que, ao operar esse retor- mais realista, quando ndo “cfnica”, da imigrag: no repentino & verdade fundamental da condigao do imigrante (condigio provi- s6ria e instrumental), correu-se 0 risco de romper a ilusio ou a crenga coletiva- mente mantida de uma imigragio (i. ¢., de um provisério) que pode durar de forma indeterminada? Serd realmente por causa do que chamamos de “crise econdmi- ca”? Serd por causa das transformagdes de toda espécie, econdmicas, sociais, cul- turais etc., préprias da sociedade francesa?! Nao sera porque os préprios imi. grantes mudaram? Eles mudaram segundo uma perspectiva que, de todos os pontos de vista que se pode pensar (pontos de vista morfolégico © demogritico, ponto de vista econdmico, pontos de vista cultural ¢ politico ete.), mostra-se para ‘os “usuarios” da imigragao (os empregadores ¢ os poderes ptiblicos em primeiro 16, E 0 que parecia querer dizer 0 chefe de governo Raymond Barre quando declarow para a Assembléia Nacional: “Estamos mudando de época, precisamos mudar de politica no que tange a imigrayo” (12 out, 1977) ou ainda: “f normal que num momento em que a economia francesa est se transtormandy € em que os jovens tém dificuldade em encontrar um emprego, precisemos reconsiderar nossa polit- cea de imigrago" (der. 1978) 63 ABDELMALEK SAYAD_ 64 lugar, mas também os servigos sociais, as instituigdes de ago social e, mais am- plamente, a opinido publica) muito menos “vantajosa” do que no passado. Em geral — trata-se quase de uma lei do fendmeno -, quanto mais recente ¢ uma cor- rente de imigragiio (como parece ser 0 caso, hoje, da tiltima a chegar, a imigra- go dos turcos para a Franga), mais “vantajosa” é, em todos os sentidos, a mao- de-obra que ela traz. A despeito das revolugdes que a engendraram, enquanto a emigragio ainda se encontrava em seu inicio, ou seja, enquanto a ligago com as estruturas Comunitdrias (estruturas sociais, estruturas econdmicas) permanecia ainda bastante viva, ela s6 dizia respeito aos homens s6s (¢ nao as mulheres € ds criangas, posto que a emigragio das famflias acompanha sempre com um atraso a emigragio dos trabalhadores) e, prioritariamente, aos homens jovens, na forga da idade; o ritmo alternado das partidas para a emigragao ¢ das voltas para a ter- ra, das estadias (relativamente curtas) efetuadas fora do pafs ¢ dos perfodos (mais longos) passados na sua terra, ao dar & imigragio um aspecto de fendmeno rotativo, permitia assegurar a renovacao continua da massa dos imigrantes. A essas “vantagens” correlativas as caracterfsticas comuns aos emigrantes antes mesmo de sua partida ¢ preciso acrescentar também todas as outras “vantagens” que, corolarias das primeiras, pareciam proceder da retradugio que as caracteristicas de partida encontravam na imigragdo: os imigrantes recém-chegados, faixa situada na parte inferior da hierarquia interna da populagdo imigrante (seria ingénuo acre- ditar que essa populagao é desprovida de toda hierarquia ¢ de toda diferenciagio social), estao mais inclinados a aceitar os trabalhos mais penosos, menos esté- veis, menos remunerados etc. Maior desconhecimento dos mecanismos sociais, dos mecanismos econdmicos préprios do universo que estdo descobrindo? Falta de familiaridade com os modos de organizagdo, com os métodos de trabalho, as técnicas de remuneragao, os hibitos de célculo, todo esse patrimOnio objetivado de uma civilizagdo diferente da deles? Mé integragHo da condigfo de trabalha- dor, auséneia dos “reflexos” que uma longa experiéncia (ou experiéncia acumu- lada de muitas geracdes) de trabalho assalariado fornece? Tudo isso ¢ sem diivi- da verdadeiro, contudo mais verdadeiros ¢ mais determinantes ainda sdo 0s efeitos do sistema de exigéncias que continuam a sofrer esses imigrantes que ainda nio foram completamente desenraizados de seu mundo tradicional e de seus modos de pensar e de agir. 0 sistema de exigéncias importado na imigragio parec desvié-los ainda mais, pelo menos num primeiro momento, de tudo o que tende- ria a assegurar-lhes um melhor controle de sua experiéncia; ao invés de uma ade- sto imediata que encontraria sua forma mais bem acabada na constituigao das disposigdes requeridas pela condig3o dos trabalhadores, bem como no dominio que essas disposigdes permitem — essa adesio, esse dominio e, claro, as disposi- © QUE E UM IMIGRANTE? des que comandam a ambas, tém todas, na verdade, suas condigdes de possibi- lidade, condigdes materiais, mas também culturais -, até prova em contrario, € 0 antigo estado anterior & emigragio que, através das preocupagdes que a ele es- to ligadas, sobrevive ¢ se prolonga na imigragio”, Ao que parece, esse ¢ 0 pre- ‘go que faz com que certos imigrantes cheguem a ser mais “vantajosos” do que outros. Mas, na medida em que dura a imigragdo, porque nfo se emigra (i. e., no se cortam os lagos com seu universo social, econdmico, cultural, habitual) e nao se imigra (i. ¢., no se agrega, mesmo que marginal ¢ muito superficialmente, a outro sistema social) impunemente (i. ¢., sem conseqiiéncias), produz-se, entre os imigrantes, uma inevitivel reconversio de suas atitudes em relagio a si mes- mos, em relagdo a seu pais ¢ em relagdo & sociedade na qual eles vivem cada vez por mais tempo ¢ de forma mais continua e, principalmente, frente ds condigdes de trabalho que essa sociedade Ihes impSe. Essas qualidades novas, sem ser um impedimento completo ~ pois elas também tém, quando necessério, suas “vanta- gens”* — aparecem, quando as circunstancias sio menos favordveis, como “da- nosas”: no sé nao trazem ou nio dio o maximo, sendo que todas as outras “van- tagens” sio consideradas, desta vez, sob seu aspecto social, politico, cultural, mais do que econdmico, como também, na medida em que podem contrariar estas “van- tagens” (melhor integragio nas lutas da classe trabalhadora, preocupagiio de se organizar de forma auténoma ctc.), clas constituiriam por si mesmas “danos’ O melhor exemplo dessa imigrago “ruim” (ou que se tornou “ruim") e des- tes imigrantes “ruins” ou que se tornaram menos “vantajosos” é fornecido pela 17. Para uma andlise mais completa das transformagdes correlativas das condigdes geradoras da emigra- ‘Ho e das condigdes correspondentes na imigragio, sendo que estas fegem por sua ver. 0 movimento de emigragio, podemos nos referir, a propésito do caso exemplar da emigrac%o argelina para a Fran- 62. a nosso artigo “Les trois “ages’ de I'émigration algérienne”, Actes de la recherche en sciences sociales. n. 15, jun, 1977, pp. 59-79. 18, Em outra conjuntura ou simplesmente junto s outros agentes (notadamente empregadores), essas “qua lidades” divididas pelos imigrantes que sao chamados de mais bem “adaptados” ao trabalho indus- trial e as condigdes de vida na Franga podem ser muito apreciadas: menor absentefsmo, maior conti- nuidade na situagdo de imigrante e. por conseguinte, maior estabilidade no emprezo e, por causa dis- to, melhor rendimento do pequeno aprendizado fornecido inicialmente, bem como de toda a forma- lo adquirida na pritica ao longo da carrera de imigrante etc 19, Imigrantes “ruins”, imigrasdo “ruin”, essas qualificagdes depreciativas podem parecer exageradas frente a0 eufemismo gencralizado com o qual a linguagem atual se protege, ¢ particularmente a linguagem dos dominantes quando precisa nomear as diferenciagdes sociais que existem na realidade; principal- ‘mente quando essas caracterfsticas distimivas dos dominados, apenas pelo fatu de sua cnunciayay, seja por etnocentrismo, seja por preconccito ou abordagem socioligica, cometh risco objetivo de serem acusadas de racismo (racismo de classe num caso racismo de cultura ou racism da xenofobia no outro caso, em se tratando de imigrantes), Por certo pode-se apenss, com relagdo a ética, congratular-se com © trabalho feito sobre si mesmo aqui ou Ii; ¢ sem duvida é preciso ver nessa forma de “polidez” um dos efeitos da vulgarizagdo (ou da democratizagio) do “relativismo cultural” que, numa primeira aproxi 65 ABDELMALEK SAYAD 66 imigracdo e pelos imigrantes argelinos. Sem diivida, muito antes da imigragio argelina, as diferentes ondas de imigrantes constitufram, cada uma em seu tem- po © ascu modo, paradigmas da imigragdo “ruim” feita de imigrantes “ruins”, mas é acima de tudo no caso dessa imigragdo ¢ por ocasido dessa imigragao — ela tem a seu favor 0 fato de ter sido a primeira imigragdo oriunda de um pafs que hoje faz parte do que convencionamos chamar de Terceiro Mundo, de ter sido uma imigragio de colonizados (de trabalhadores coloniais, de cidadaos france- ses ¢, por fim, de franceses-mugulmanos) etc. — que perecbemos a que ponto a negaciio do cariter fundamentalmente politico de toda emigragio ¢ de toda imi- gracdo é indispensavel para que estas possam ser efetuadas ¢ continuadas. Se & possfvel, se ndo traz conseqiiéncias maiores, podemos dizer, fazer de qualquer individuo estrangeiro um trabalhador, um agente produtor € consumidor, seria igualmente conveniente transformé-lo no cidadio de amanha? Da mesma forma, concordarfamos tao facilmente em fazer de nossos préprios cidadaos trabalha- dores de qualquer pais estrangeiro se ndo concordassemos, no fundo, ¢ anteci- padamente, que consentimos em que eles se tornem cidadaos (virtuais) desse mesmo pais? “Exportam-se” ou “importam-se” exclusivamente trabalhadores, mas nunca — ficgdo esta indispensavel ¢ compartilhada por todos — cidadaos, atuais ou futuros. Alids, seria possivel que fosse diferente? Assim, semelhante saga © pagando o prego de uma alteragdo de seu sentido original, parece ter descido do céu depurado da axiomitica cientifica para o cotidiano ¢ para as priticas correntes. Eniretanto, nio se pode, apesar disso, desconhecer completamente 0 que as aguisigdes culturais (como, por exemplo, 0 “relativismo” cultural no campo das relagdes entre culturas), que s80 também aquisi¢des sociais, mentais, éticas © polfticas, mascaram ¢ por enquanto tornam tal coisa apenas inconfessavel mas no impensdvel. Assim, em outros tempos, as pessoas se permitiam mais do que hoje em dia opor-se ou deplorar que ninguém ‘opusesse (0 que € outra forma de opor) uma imigragdo que consistiria apenas em trabalho e seria feita apenas de trabalhadores ¢ uma imigragdo que seria de povoamento; em outros termos, uma “imigragdo dde quantidade” e uma “imigragdo de qualidade” (cf. Louis Chevalier, “Principaux aspects du probléme de immigration", em Documents sur immigration, Paris, INED, Cahier n. 12, 1947; texto redigido em jan, 1944), sendo que uma remete as"priticas de imigrago do Antigo Regime” c a outra a “historia recente do século XIX" (ef. M. Coornaert, “L'Etat et l'immigration de main-d’oeuvre sous I" Ancien Regime”, INED. op. cit.) Para registro, citemos algumas publicagdes que se referem implicita ou expli- citamente em seus titulos 8 nogio de “qualidade” em termos de imigragdo: Jean Pluyette, La Doctrine des races-et la sélection de Uimmigrationen France, Paris, 1930, 148 pp.; Raymond Millet, Trvis millions a étrangers en France, les indésirables et les bienvenus, Patis, 1938, 167 pp.: René Martial (médico) € seus diversos eseritos(liveos ¢ artigos) Sobre 0 “enxerto interracial”, deatre os quais, otadamente, Trité del'immigrarion et de la greffeinter-raciale, Paris, 1930, 304 pp.."Race et immigration” (comunicagio Academia das Ciéncine Morais e Pliticas, jul. 1936), Race. hérédité folie: étude d'anthmpa-tociologie appliquée a Vimmigration, Paris, 1938, 210 pp.; Paul Bertin, Promotion de la race en France. Niott 1939, 32 pp.: Paul Vincent, “Les conditions psychologiques d'une immigration de qualité”, em Four la vie, n.4, abejun, 1946, pp. 37-40: A la recherche d'une patric, a France devant immigration. Paris. 1946, 254 pp., do Centro de Oriemtagdo Social dos Estrangeiros; Robert Gessain, "Anthropologie et ddémographie. apergu sur une recherche du qualitatit” © QUE € UM ImiGRANTE? dissimulago acrescentada a muitas outras da mesma natureza aparece como a propria condigao, a condigio absolutamente necessdria para que existam emigra- Gao ¢ imigragaio. Nao que seja imprevisivel, nzio que seja indispensdvel; a espé- cic de “transubstanciagdo” que a emigragdo © a imigragdo operam a longo pra- 20, ao fazer passar de uma nagao para outra, de uma nacionalidade para outra, precisa ser imprevista, precisa ser irrefletida, © mascaramento do carter intrin- secamente politico do fendmeno efetuado, enquanto abundantemente carregado de implicagdes politicas, constitui uma das malicias que a I6gica propriamente simbélica, a légica da ordem simbélica, exige. Constituindo a mais numerosa populagdo de imigrantes oriundos de um pais nao-curopeu, a comunidade argelina que vive na Franga é também a comunidade estrangeira (niio-curopéia) cuja implantagio é @ mais antiga ¢ a mais progressi- va", Conseqiléncia das perturbagdes engendradas pela colonizagio, ou seja, pela confrontagao brutal da antiga sociedade argelina (¢ notadamente do campesina- to) com o sistema econdmico ¢ o sistema social introduzidos pela colonizagio, a imigragio dos argelinos na Franga, devida a causas principalmente econémicas, aparecia em seu inicio, e mesmo muito tempo depois, como uma imigragdo de trabalho exclusivamente, Mas, a despeito de todas as resisténcias (culturais) que 10 (geografica e social) do fendmeno, a sociedade argelina podia opor A extens essa imigragao iria evoluir e tender para uma imigrago de povoamento, confir- mando assim a regra quase geral de todos os movimentos migrat6rios: toda imi- gragao de trabalho contém em germe a imigragao de povoamento que a prolon- gard; inversamente, pode-se dizer que nao ha imigragao reconhecida como de povoamento (com excegio talvez dos deslocamentos de populagdes que a coloni- zagio requer ou ainda dos movimentos de populagdes consecutivos ao estado de guerra ou 20s remanejamentos de fronteiras) que nao tenha comecado com uma imigragdo de trabalho". Prolongamento ¢ continuidade das estadias na imigragao 20, Evolugdo dos fluxos migratérios dos argelinos. 1918; 60 mil (saldo); 1921: 48 mil (saldo); 1923: 110 mil; 1931; 111 mi (saldoy; 1937; 150 mil (saldo); 1946; 22 mil (censoy; 1954; 212 mil (censo); 1962: 355 mil (censo); 1968: 530 mil (censo); 1972: 800 mil, 1975: 711 mil (censo), 21. Nao foge a esta regra nem mesmo a imigrasdo transcontinental dos europeus para a Amr todo 0 século XIN € até mesmo até a primeira dscada do século XX (1820-1920); essa imigraglo que uma certa imagem (literatura, cinema, folclore) gosta de descrever como um transporte em massa de familias “herdicas” partindo para a conquista de terras vingens apresenta, na verdade, guardadas as proporydes, as mesinis earacicristicuy demnvgrficas day imigraydes europeias (inta-curopeias Ou pro venientes de paises ndo-curopeus) posteriores a 1945; imigragiio de homens ~ 60% dos migrantes para 6 Estados Unidos entre 1830 e 1915 € 70% entre 1900 € 1910; 70 a 80% dos migrantes para a Ar gentina entre 1860 ¢ 1920; segundo os paises de partida, essa proporyio cleva-se em [910 a 87% para 0s portugueses, 85% para os italianos quando & de apenas $0 a 60% para os alemées, 08 austriacos, os cemigrantes das IIhas Britinicas -; de homens jovens (a faixa eldria de 15 a 40 anos sempre represen- durante 67 ABDELMALEK SAYAD_ 68 (no censo de 1968, 30% dos imigrantes argelinos interrogados ja contavam de 8 a 17 anos de presenga na Franga), instalagio na condigao de imigrantes ¢ “profis- sionalizagiio" desta condigdo, agravamento do desmantelamento das estruturas sociais ¢, em primeiro lugar, familiares, proletarizagao mais acentuada das cama- das rurais, tudo isso iria trazer a emigracio de famflias inteiras para a Franca. Os primeiros sinais dese movimento apareceram desde 1938 ¢, a partir de 1949, a partida das familias se acelerou; de maio de 1952 a agosto de 1953, uma centena de famflias em média chegavam a Franga todos os meses; em outubro de 1954, cerca de 6 mil famflias argelinas (15 mil criangas) residiam na Franca. Os anos de guerra ¢ as revolugdes subseqiientes ~ casos de fora maior ¢ de urgéncia — fizeram 0 resto, acabando com as Gltimas resisténcias: entre 1962 e 1968, num conjunio de 162 mil argelinos que emigraram para a Franga, contavam-se mais de 35 mil pessoas do sexo feminino (ou seja, 21,60%), denire as quais 11 mil me~ ninas de menos de 6 anos (na data de sua chegada); no censo de 1968, a popula gio feminina — na qual deviam encontrar-se quase 60 mil mulheres adultas (com mais de 16 anos) ~ representava a quarta parte do conjunto dos imigrantes argeli- nos (122 $40 em 471 mil argelinos). Em |® de julho de 1972, segundo 0 Ministé- rio do Interior, as mulheres argelinas imigrantes na Franca eram 70 882 — uma mulher para cada sete homens adultos imigrantes. A suspensio da emigragio na partida da Argélia (medida tomada por Argel no dia 18 de novembro de 1973) ¢ da imigragdo decidida pelo governo francs (dia 5 de julho de 1974) nao conse- guiu impedir (salvo episodicamente quando as portas foram fechadas), de um lado, a partida das familias da Argélia ¢, do outro, sua entrada na Franga”: afinal tou mais de 66% dos imigrantes para os Estados Unidos; 83% entre 1906 © 1910); de homens que se instalaram no nas terras do oeste do pais mas, principalmente depois de 1870, nas éreas metropolita- nas da costa atlantica ¢ nos centros industriais do Norte (0s censos de 1900, 1910 ¢ 1920 davam res- pectivamente 22.2%, 22,6% ¢ 19,5% de homens brancos nascidos no exterior, ou seja, de migrantes ‘europeus, nas cidades de mais de 2 500 habitantes, contra apenas 7,6%, 7.7% ¢ 67% nos distritos rurais); de homens ocupados nfo na agricultura e sim nas atividades industriais e nos transportes (ale mies, ingleses e, em parte, irlandeses nas atividades tipicas da revolugio industrial; italianes nos em- pregos nio-qualificados do setor das minas, dos servigos da construg30 civil ou nas profissses ar- tesanais): de homens nd definitivamente implantados no pats, jf que, durante o ditimo quartel do sécalo XIX, a taxa de retornas para 0 pats de origem situava-se entre 30 € 40% do total das partidas para os emigrants britinicos, italianos, espanhiis notadamente (entre 1908 ¢ 1915), mais de 50% dos imi- grantes para os EUA voltaram para 0 pafs de origem, Para todos esses dados, cf. notadamente W. F. Willeox (ed). International Misrations. New York. Bureau of Ec. Res.. 1929: reprinted in New York- London-Paris, Gordon and Breach Publ., 1969, 2 vols., citado por A. Bastenier ¢ F. Dassetto, L’Eranger nécessaire, cpitalisme et inégalités, FERES, Lowvain-la-Newve, 1977. Evolugdo da imigragdo famitiar argelina, Numero de famifias; 1969: 183; 1972: 1 685; 1974: 2317; 1975; 1 744; 1976: 2 590; 1977: 2748, 1978: 2 542, Nuimero de pessoas: 1974: 5 663; 1975: 4 249; 1976; 5 832; 1977: 6 365; 1978: 5.565. (© QUE E UM IMIGRANTE? de contas, podemos avaliar em cerca de 100 mil o numero de familias argelinas na Franga, quer tenham imigrado no Ambito do procedimento de reagrupamento familiar, quer se tenham constituido na Franga por casamento realizado no seio da comunidade dos imigrantes. Outro componente da imigragao familiar infinita- mente mais importante, tanto pelo volume de seus efetivos quanto pela amplitude ¢ complexidade dos problemas que gera, ¢ constitufdo pela populacio das crian- gas. Se o tamanho da famflia (trés filhos em média), inferior ao tamanho médio das familias argelinas (4,7), atesta estrutura que ela adota na Franga ~ ela se apro- xima da famflia conjugal que é regra ~, atesta muito mais a juventude da popula- cdo imigrante: em 1968, 30% da populagio tinham menos de 17 anos (270 mil criangas), 17% de 17 a 25 anos; em 1975, 45,5% menos de 25 anos. Desde 1969, nascem em média 19 500 eriangas nas familias argelinas na Franga; estima-se em 136 $00 0 total de nascimentos de 1969 a 1975, ¢ para o ano de 1978 ~ 300 mil criangas no total -, com cerca de 25 mil nascimentos, é uma crianga que nasce a cada vinte minutos! Na outra ponta da escala das idades, mesmo se ainda ¢ restri- to, 0 ntimero de imigrantes que atingiram a idade da aposentadoria (5 300 em 1968 € 8 600 em 1975, ou seja, em ambos os casos, um pouco mais de 1% da popula- ¢40 global dos imigrantes argelinos) ou que se aproximavam dessa idade (6% ti- nham mais de 50 anos em 1968, 4,5% tinham 55 ou mais em 1975), acaba de dar da populagio argelina uma imagem diferente da convencionada: cada vez mais cla se impde como uma pequena sociedade relativamente auténoma que apresen- ta todas as caracteristicas (morfoldgicas, sociais, culturais) de uma formagao, se nao integral ¢ perfeitamente equilibrada, ao menos em via de compensar os dese- quilibrios antigos que trazia das condigdes iniciais de sua génese Tudo isso faz com que os imigrantes argelinos, em relagio ao que se espe- igrantes ¢ em relagio ao que se gostaria que ela fos- vantajo- ra de uma populagao de se, acumulem os paradoxos ¢, por isso, possam parecer muito menos sos” do que no passado ou relativamente a outros imigrantes: assim, para tomar apenas um exemplo e para comparé-los apenas a outra populagdo “proxima”, se a “vantagem” é atribuida & populagdo que conta menos inativos ¢ nesse sentido acarreta menores despesas sociais — despesas julgadas (quando se trata de imigrantes) sempre excessivas, porque nio-produtivas diretamente e a curto pra- ZO ~, oS imigrantes argelinos tém uma taxa de atividade inferior & dos imigran- tes marroquinos ¢ tunisianos, que so mais freqiientemente, quando nio solteiros, ao menos isolados de suas familias”, Além de um certo tamanho morfoldgico, 23. Como os desempregados estio incluidos entre os ativos, as taxas de atividade medidas nos censos de 1968 ¢ de 1975 cram respectivamente, para os imigrantes argelinos, de $1% (eonjunto dos homens © 69 ABDELMALEK SAYAD. 70 sobretudo quando esse tamanho s6 foi atingido no fim de uma longa historia (como € 0 caso para a populagdo argelina residente na Franga, que conta atual- mente, segundo determinadas fontes, 850 mil pessoas e que chegou perto de 1 milhdo em seu perfodo de maior expansio), nao se pode pedir a uma comunida- de imigrante que comporte apenas ativos, ¢ mais ainda, apenas ativos assalaria~ dos, relegando ao “parasitismo” todas as fungdes necessdrias para sua organi- zagao, bem como o pessoal que garante essas fungdes (artesdos, comerciantes, agentes especializados na produgdo de bens simbdlicos, responsaveis que garan- tem a mediagdo com as estruturas sociais ¢ econdmicas francesas etc.). Como a presenca das familias é aceita, nao se pode pedir-Ihes que se conformem estri- tamente & estrutura do modelo de familia francesa, jogando na “ilegalidade” as pess sideradas como intrusas (ascendentes, agnatos, sobrinhos ¢ sobrinhas, uterinos, aliados ctc., todos pessoas agregadas & familia conjugal por um siste- ma legitimo de direitos ¢ obrigagdes). Assim, no deixam de surgir todos os ca- sos, todas as situagoes, todas as configuragoes familiares que sao outros tantos desmentidos da definigao estrita da imigragao ¢ dos imigrantes pelo trabalho. O contexto atual, econdmico mas também social ¢ politico, constitui na verdade um incentivo para detectar esses desmentidos a fim de apurar um estado que nio tem mais a simplicidade ¢ a verdade de sua definigao simples. Assim, temos a res- posta que a policia deu, num primeiro tempo, num tom meio sério, meio ironi- co, a.uma vitiva argelina (esposo morto aos 45 anos num acidente de trabalho), mie de sete filhos (sendo o mais velho, tinico maior de idade, um jovem que vive sustentado pela mae por ser deficiente mental; duas outras filhas que chegaram A Franca aos 4 ¢ 2 anos, sendo que todos os outros nasceram na Franga), que estava solicitando a renovagao de seu certificado de residéncia: “Mas, minha senhora, 0 que est fazendo aqui? A senhora nao trabalha (i. ¢., para ser uma imigrante), seu marido morreu, logo ele nio pode trabalhar (i. e., a senhora nao € membro de uma familia de imigrante), 0 que a senhora quer?...” Ou entdo este outro caso que suscitou uma resposta ainda mais ameagadora, Uma jovem arge- lina de 18 anos, aluna no tiltimo ano do segundo grau, recolhida havia ja quatro anos por uma familia francesa que conta que “ela & a sobrevivente de uma fa- milia deslocada” (pais separados, aqui na Franga, que voltaram para a Argélia, as cor das mulheres) ¢ de 65% para os homens ¢ 7,6% para as mulheres; para os imigrantes marroquinos, de 67% (conjunto de ambos os sexos) ¢ de 75% para os homens ¢ 13,8% para as mulheres; para os imi- sgrantes tunisianos, de 53% (conjunto de homens ¢ mulheres) ¢ de 69,5% para os homens € 13,7% para as mulheres. Para os franceses, temnos, no censo de 1968, 41°% de ativos no total e, no censo de 1975, 51,9% para os homens ¢ 30,7% para as mulheres © QUE UM IMIGRANTE? cada um para o seu lado ¢ cada um levando consigo uma parte dos filhos que dividiram); como nao havia pedido a regularizagio da situagao da moga quando esta completou 16 anos, sem diivida por desconhecimento da regulamentagao, a famflia protetora, alarmada pelas ameagas que hoje pesam sobre a populagdo imigrante, quis assegurar 0 futuro de sua protegida e ouviu do Departamento de Policia que a moga, em situagio irregular, ndo tinha nenhum motivo para estar na Franga (cla nao ¢ uma imigrante c nao filha de imigrante) ¢, por conseguinte, nfio s6 era expulsdvel como deveria ser expulsa! Quantas situagdes andlogas as dessa vitiva e dessa moga pode haver numa populaco imigrante de 800 mil pes- soas, resultado de uma histéria que, no fundo, comegou em 1830? E sem divi- da para apurar essa quesido colonial © seus vestfgios (dentre os quais a imigi ¢fo) que se perseguem os jovens, outro paradoxo de uma situagio que tem varios: imigrantes que jamais emigraram de lugar algum, Se a atengio é dirigida mais precisamente para a imigragdo chamada “nio-européia” nao serd, em cer- ta medida, por causa do passado colonial que produziu essa imigragao ¢ do qual cla constitui uma sobrevivéncia: colonizados como niio 0 foram os outros sidi- tos coloniais, os imigrantes argelinos comportam-se na Franga como nao se com- portam os outros imigrantes. Como adquiriram da sociedade francesa e de seus ae mecanismos, apesar das falhas que sofrem, uma familiaridade que apenas um longo “comércio” pode dar (¢ isso antes mesmo da emigragao), os argelinos imigrantes de hoje — ontem imigrantes oriundos da colénia — poder permitir-se maiores liberdades, a comegar pela liberdade de defender seus direitos, Serd que com 0 pretexto da crise se vai resolver apagar todo esse passado e anular seus efeitos? Pode-se medir o quanio é falaciosa, nesta circunstancia, a comparagio que sc gosta de fazer, para proteger-se de qualquer critica ou para ficar com a consciéncia limpa, com as medidas “semelhantes” adotadas pelos “paises viz’ nhos”; € como comparar o incompardvel: comparar uma imigragao que é pro- duto da colonizagao ou que deriva em linha direta da colonizagao (os argelinos entravam na Franga como franceses de 1947 a 1962) com uma imigragdo sem anterioridade colonial (os imigrantes na Alemanha)"*, A colonizagiio que a imi- gragio prolonga e faz sobreviver de certa forma constitui uma espécie de “la- borat6rio” no qual se mostram, em estado experimental (com intervengio), as 24, “Nés 0 farcines (seconsiderar nossa politica de imigragto) respeitando a dignidade des trbalhadores imigrantes ¢ sem infligirthes tratos que &s vezes sofreram em outros lugares” (R, Barre na Assem- biéia Nacional, quando da discussio do orgamento, em dezembro de 1978); ef. também a conelusio da exposigo que introduz o projeto de lei que modifica a Ordenagzio de 2 de novembro de 1945 ¢ ‘que vai buscar seus argumentos em disposigdes adotadas pelos outros paises de imigragio, como a Suiga'¢ a Alemanha, para reduzir 0 nimero de seus imigrantes. n ABDELMALEK SAYAD 72 ondigdes de perpetuagao ¢, talvez também, as condi- irregulares”, mas condigoes geradoras. gies de extingo do fendmeno migratério. Se, “regulares” ou “ facilmente “regularizaéveis” quando necessério, os emigrantes responderam em massa ao “apelo” que Ihes era feito, foi porque 0 estado das relagdes de forga entre, por um lado, os paises, as sociedades de emigragdo ¢ sua economia e, por outro, os paises, as sociedades ¢ a economia que eles vinham servir jé haviam produzido as condigdes objetivas para sua emigragdo. Como por um efeito bumerangue, os imigrantes, confrontados hoje a verdade de sua condig&o, des- cobrem 0 turbilhdo no qual esto presos, que dé a sua emigrag’io um aspecto de movimento browniano: eles sdo os griozinhos de ateia (i. ¢., os individuos es- parsos) arrancados a rocha-mie (i. e., a sua Sociedade, a suas comunidades de ‘origem) pela ago de um vento que sopra numa longa tempestade (i. e., os efei- tos destruidores, perturbadores, iniciados pela imposigio da economia moneté- ria) ¢ que, transplantados para longe, acabaram constituindo, assim que encon- traram 0 primeiro acidente de terreno (1. é., a primeira fabrica que os atraia e que se oferecia para comprar a forga de trabalho que as condigSes novas haviam | berado neles), essa imensa “duna” (o paradoxo do “monte de trigo”) em que hoje se transformaram os imigrantes. Eles também estio descobrindo que, afinal, a tempestade inicial que os levara ¢ 0 elemento que os manteve em sua louca cor- rida cram uma s6 ¢ tinica coisa: a economia capitalista ¢ seus efeitos de transfe- réncia de um campo econdmico (a agricultura, aquela que € chamada de tradi- cional) para outro (a inddstria, essa atividade que se autodenomina moderna), de um pats para outro, de um continente para outro, de uma civilizagao para outra. Sera preciso que essa tormenta ainda dure ¢ que hoje levante ou retome os imi- ‘grantes para voltar a transporté-los para seu ponto de partida, sem poder contu- do colé-los de volta a “rocha” de origem, que, alids, j4 no existe’?

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