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RESENHA A NOVA QUESTAO SOCIAL As metamorfoses da questao social: uma crénica do saldrio. Rio de Janeiro, Vozes, 1998, de Robert Castel. Crega ao Brasil, langado pela colegio Zero & Esquerda da Editora Vozes, 0 mais recen- te livro de Robert Castel, As metamorfoses da questo social: uma crénica do saldrio. Trata- se, como diz o titulo, de um estudo sobre a ques- to social e suas metamorfoses, das sociedades tutelares no século XIV, passando pela institui- ao do contrato liberal em meados dos séculos XVII-XIX, até a constituigao das sociedades sa- lariais do Ocidente. Metamorfoses porque uma hist6ria fragmentada, sem um sentido evolucio- nista ou teleolégico. Porém, 0 objetivo de Castel ao tragar todo esse percurso nao se restringe ao que j4 seria um belo estudo historiografico. O livro tem uma pretensdo maior. Seu objetivo é fazer “a * Mestrando do Programa de P6s-Graduacio em Sociolo- gia da FFLCH-USP. Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 169-172, L.sem, 1999 Por Edson Miagusko* hist6ria do presente”, “um esforgo para reenten- der o surgimento do mais contemporfneo, re- construindo o sistema das transformagées de que a situagdo atual é herdeira”. (p. 23) Deste modo, logo no inicio, Castel define aquilo que anima o estudo: a nova questo social vivenciada no coragio das sociedades salariais, Trata-se de uma profunda interrogagao sobre as formas de precarizagdo e desfiliagao acarretadas pelos processos de reestruturagéio produtiva no ambito do trabalho e das transfor- magGes econémicas, politicas e sociais que vul- garmente passaram a ser definidas pelo nome de globalizacao. A nova questéo social fala do retorno de uma ampla vulnerabilidade de massa, vivenciada pelo conjunto dos trabalhadores, mesmo por aqueles que possuem uma aparente estabilidade em suas relagGes de trabalho. 169 Desta forma, Castel desenha através do estudo uma espécie de diagrama da atual questo social. De um lado esto aqueles que aparentemente sao os mais atingidos pela pre- carizag4o — os desempregados, os inimpreg4- veis, os jovens e trabalhadores com baixa quali- ficagdo, os estrangeiros, as mulheres € todos aqueles que vivem a relagio de trabalho como algo instavel e inseguro. De outro, mas nao fora dessa légica, 0 restante dos trabalhadores, que véem alterarem-se aquilo que estruturava até entio a questo social. Com isso 0 estudo vai iluminando deter- minadas nogdes comumente empregadas no de- bate puiblico atual. A primeira e a principal delas € 0 conceito de exclusao. Este termo traz consi- go a idéia comum de uma margem, de individu- 08 ou de coletivos fora do tecido social, sepa rados dos lagos de sociabilidade comuns ¢ dos cédigos de reciprocidade nos quais se articulam as relacdes sociais. No entanto, para Castel, estas definicdes sao imprecisas para entendermos os enigmas da questio social Se podemos afirmar que “os intiteis do mundo”, os vagabundos, os estrangeiros, os de- sempregados e os desfiliados de toda a espécie esto muitas vezes situados na margem da so- ciedade, os processos que levaram sua consti- tuigdo nao so assim tio marginais. A onda de desfiliago e exclusio social ndo é periférica, no sentido de deslocada para as bordas da constitui- ao da sociedade salarial: ela faz parte do seu centro ¢ € desta forma que deve ser entendid: Numa definig’o mais precisa: “a exclusio no é uma auséncia de relagio social, mas um conjun- 170 to de relagées sociais particulares da sociedade tomada como um todo”. (p. 568) Desta forma, Castel volta 4 constituigao das sociedades tutelares e ao lugar do vagabundo nesse perfodo histérico. Porém, 0 foco utilizado por ele € a hist6ria do presente, de como esse acontecimento ilumina 0 nosso tempo. Com isso ele dir que o problema dos vagabundos nas sociedades tutelares nao dizia respeito somente a estes individuos sem lugar no mundo. Nem todos os vagabundos eram desfiliados de todo o sem- pre, desvinculados de relagdes com a sociedade. Muitos, nas sociedades tutelares, haviam sido “estéveis” num perfodo anterior ¢ faziam parte de uma ampla parcela da sociedade, exposta a todo tipo de inseguranga. Da mesma forma, muitos dos desempre- gados de hoje nao sao excluidos desde sempre, mas fazem parte de um contingente altissimo de trabalhadores vulneraveis as oscilagdes do mer- cado: os precarizados, terceirizados, jovens, tra~ balhadores com baixa qualificagéo, mulheres e uma gama infinita daqueles que esto separados dos de fora por um limite profundamente ténue. ‘Assim como uma parte significativa dos vaga- bundos das sociedades tutelares os desemprega- dos de hoje nao so resquicios daqueles que fica- ram para trés e no conseguiram ser integrado: Eles fazem parte do processo central que origi- nou e definiu os pardmetros das nossas socie- dades. Como ele proprio diz: “o cerne da proble- miatica dos excluidos nao esta entre os exclui- dos”. (pp. 142-143) Como conseqiiéncia da problematica da exclusaio e da vulnerabilidade de massa, Castel Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 169-172, 1 sem, 1999 nos mostra que nas sociedades que vivenciaram esses processos histéricos, a resposta coletiva dada foi a criagio dos Estados sociais. Estes edificios sociais foram uma resposta pactuada entre os atores perante a inseguranga social. Além disso, a relagdo salarial foi a chave para a obtengiio dessa protegdo e seguranga. Esta, com © passar do tempo, tomou-se a relagiio por exce- léncia do Estado social. Por ela que se articulou toda uma parcela de direitos e protegdes que vi- saram A diminuigao da vulnerabilidade de massa tao comum na historia dessas sociedades. Bi isto que, atualmente, est erodindo e que constitui cemne da nova questo social. A nova vulnerabilidade de massa se traduz nos ntimeros cada vez maiores de desem- pregados, de inimpregaveis, de precarizados, daqueles que sobrevivem gracas aos programas de renda minima de inser¢do, dos jovens sem perspectiva de ter um emprego estdvel e de todos aqueles que mesmo momentaneamente “inclui- dos”, esto separados da inseguranga social por uma linha muito fragil. O que est4 em curso é 0 desmonte da sociedade salarial e um retorno aos patamares de inseguranga anteriores a sua consti- tuigdo. Porém, seria uma volta no tempo, a um periodo anterior aos Estados de bem-estar social? Castel acha que nao. Nao se trata de uma volta ao passado, j4 que a solugdo alcangada pelo Estado social, definiu toda uma nova forma de encarar a questo social. Trata-se de um novo tipo de rela- Ao. Ao jovem que nao consegue um emprego por sua baixa qualificagao no corresponde a imagem do vagabundo desvinculado dos lagos sociais. Muitos jovens desempregados possuem lacos de Plural; Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 169-172, 1.sem. 1999 sociabilidade e um universo de relages muitas vezes maiores do que muitos membros da classe média reclusa na casca protetora da intimidade. No entanto, 0 que se trata é de uma relagéo em que a sociedade recusa um futuro a boa parte desses individuos. Daf a explosdes de violéncia ou mesmo de uma existéncia apartada dos cédi- gos comuns que regem as relagées sociais a dis- tancia se reduz drasticamente. Mas aqui cabe a pergunta: seré que essas sociedades poderiam voltar a um tipo de relagao de inseguranga pré-Estado social? Seria possivel retornar ao tipo de vulnerabilidade de massa tao comum aos perfodos que antecederam a sua construgéo? Para Castel 0 Estado social continua sendo a heranga e 0 horizonte possivel na com- binagdo entre o econdmico do mercado e a soli- dariedade do social. No entanto, no se trata de uma proposta de repetigao da histéria. Castel entende todo o processo de burocratizagiio dos Estados de bem-estar na condugao das politicas sociais ¢ 0 “individualismo negativo” dado pela relagio fria entre a mAquina estatal e o benefi- cidrio dos programas sociais. O que ele propoe, portanto, € uma reinvengio do Estado social Uma reinvengdo que nao descarta a relagio salarial que se instaurou no coragao dessas sociedades. Neste ponto ele entra no debate acer- ca do futuro da sociedade do trabalho. E claro 0 diélogo com outros autores, mais conhecidos do pablico brasileiro, tais como Clauss Offe e Jur- gen Habermas. Para Castel “o trabalho € mais que o trabalho e, portanto, o nao-trabalho é mais que o desemprego”. Desta forma, 0 trabalho nao m pode ser tomado como uma simples relagdo econdmica, mas como algo que insere o indivi- duo na estrutura social e organiza uma parte sig- nificativa de suas redes de sociabilidade. Mesmo para aqueles que afirmariam ser essa uma inter- pretacio classica colocada em xeque, Castel Ihes diria: a maior prova de que o trabalho continua sendo uma referéncia dominante € a reacdo daqueles que nao o tém. ‘As metamorfoses da questio social, ape- sar de estar muito imerso no debate francés, das novas formas de desfiliagdo, precarizagao e subemprego, guardando as devidas dimensdes, m nos ajuda a iluminar o debate brasileiro. Nao no sentido de transpor nos mesmos termos as questdes formuladas num outro espago. Certa- mente, no discutimos por aqui a sobrevivéncia ou reinvengao de algo que no Brasil nunca foi sequer inventado. Mas pode nos retirar da letar- gia econdmica que impossibilita pensar o social. © livro de Castel nos mostra que o dogma neoliberal que subordina tudo ao econédmico pode ser subvertido, E mais que isso, demonstra que a dindmica social reinventa 0 econémico e recria novas formas e possibilidades de se pensar a sociedade. Il Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 169-172, 1.sem. 1999

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