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Uma longa permanéncia em uma escola publica de Primeiro grau desvenda os meandros da producao das dificuldades de escolarizago que atingem grande parte das criangas brasileiras das classes populares. De um lade, uma escola, via de regra, precéria como Instituicéo de ensino; de outro, alunos vistes pelo filtro do Preconceito racial e social de profundas raizes cultural em geral, informades por pseudo-conhecimentes cientificos que inculpam os pobres pelo fracasso da escola. Como Sylvia Leser de Melle resume muito. bem, o resultado néo poderia ser ‘a escola nao aceite acrianco como ela 6 e a crianga néo ‘celta a escola tal como ela funciona”. Eis 0 desafic sobre o qual @ autora nos estimula a pensar com este livro que, segundo Jerusa Vieira Gomes, “desde seu langamento, estava destinade @ provocar grande impacto na comunidede cientifico-académica, especialmente nes Greas de Psicologia e Educacdo. No que concerne @ Educagéo, as repercussées desta obra foram de tal monta que, em 1995, mereceu prémio de livro de maior relevancia pora a area, concedido pela APEOESP”. | APropucho po Fracasso EscoLar Historias de Submissio e Rebeldia Tce fee es ‘ ‘SP, Brau rat, Maca Helen Sou ‘A produgia do fracas (Maria Heleea Sous Pato, — Sio P Bibliograi ISBN 83-7396. 1. Baudantes — Condigoes socials 2. Fracanso escolar 3 Preconceios 4 eicacional 5. Repetinca 6, Sociologia cefvencional |. Talo 90.2300 cpp-371.28 fantces para eatilogo sistematieo: 1, Fracamo escola: Edueagho 371.28 Maria Helena Souza Patio A PRODUGAO DO FRACASSO ESCOLAR Historias de submissdo e rebeldia Casa do Psicélogo” © 2000 Casa do Psicclogo® Livaria¢ Editora Lida. 2 edsto, 2000 ~Casa do Psicblogo® Liveariae Editora Lida It reimpressio: 2002 2 reimpressio: 2005, Vedigtio, 1990-T.A. Queiroz, Editor, Lida, Ireimpressio: 1991 ‘2 reimpressiio: 1993 3 reimpressiio: 1993 Reservaclos todos os direitos de publicago em I{ngua portuguesa a Casa do Psicdlogo® Livrariae Editora Lida, Rua Mourato Coelho, 1.059 - Vila Madalena—05417.011 Sio Paulo- SP - Brasil Fone (11) 3034.5000 Enmail: casadopsicologo@ casadopsicologo.com.br hitp://www.casadopsicologo.com.br # proibide a reprodusfo total ov parcial desta pablicasdo para qualquer finalidade, sem autorizagio prévia por escrito dos editores Impresso no Brasil / Printed in Brazil Agradecimentos ste estudio ndo teria sido possivel sem a colaboragio das educadoras € funciondrios, dos alunos ¢ dos pais dos alunos da escola municipal onde foi feito o trabalho de campo. apoioda Pundagio Carlos Chagas, onde grande parte-da pesquisa se desenvolveu, teve um papel f 1 Bernarde A. Gatti e Vitor H. Paro, pesquisadores do Departamento de Pesquisas Educacionais dessa Fundagio, compare ima leitura critica e valiosas sugestoes, Dermeval Saviani, Alfredo Bosi, Celso de Rui Beisiegel, Sylvie Leser de Mello e Lino de Macedo foram membros da banca do concurso de livre-docéncia no qual ho foi apresentado como tese no Instituto de Psicologia d e So Paulo; suas contribuicoes certamente continuario a ser incorporadas 8 nossa produgdio ao longo dos préximos anos, Denise Trento, lanni Scarcelli ¢ Sandra Sawaya foram companheiras soliddrias ¢ corajosas de uma longa ¥ n baitro pobre ¢ uma piiblica da cidade de Sio Paulo, A autora agradece 20 CNPq e & Finep pelo apoio financeiro em diferentes momentos da realizagao desta pesquisa MHSP. Prefacio a segunda edigao Desde seu langamento, este ivro de Maria Hel @ provocar um grande impacto na comunidade pesquisas, reverso, o sucesso escolar. No que concemne & educagio, epercussdes desta obra foram de tal monta que, em 1995, merece 0 premio de livro de maior relevancia para a rea, concedido p APEOESP. Assim, se, a0 apresentar a ediglo original, Sylvia Leser de Mello reconheciaque wm livro forte e sugestivo comoeste nie necessitava comentdiri es fo, penso, nada eeessirio dizer. Aulora e cbra sto sobejamente (re)conhecidas por si mesmas. Eis porque lisonjeou-me tanto o convite de ara que en dissesse algumas palavras sobre ele. Ese 0 foi para aproveitar esta oportunidade ¢ chamar a atenglio dos ‘atuais Ieitores para aspectos que, a despeito de sua relevancia, acabam quase sempre embacados pelo vigor das idéias centrais. Refiro-me as farnlias que refletem, muito além da n mmiliar¢ educagko escolar, os estereétipas e os preconceitos no que coaceme as pessoas pobres e, especialmente, & vida familiar te entre clas. Uma nova apropriagiio do texto, ppouco mais acurada, € 4 minha proposta. Politica e profissionalmente comprometida com o seu tempo, Maria busca coletiva de noves rumos para.a Psicologia porque seu inconformismn eom os altos indices de evasllo e repeténcia, em escolas pablicas de primeiro grau, fi suficiemte no intuito de realizar as das tarefas por ela assumidas na Introdugio deste livro: revisar crticamente a literatura sobre fracasso escolar e dar continuidade as pesquisas nessa sea. No que diz respeito a revisdo da literatura, contida na primeira te do livro, além de uma coniribuigio inestimavel ao estudo das relagées entre a ciéncia psicoldgica ¢ a educagio, cla fomece o$ fundamentos par i de novos saberes concernentes & escolarizagiio das camadas populares. Em relagio A pesquisa — apresentada e discutida na segunda parte deste livro —, a0 invés de limitar-se & continuidade prometida, o que Maria Helena faz € um: ‘ruptura teérico-metodolégica, que Ihe permitira analisar o fracasso de maneira inovadora, enquanto processo psicossocial E, embora também esta obra x6 possa ser integralmente compreendida em seu conjunto, éda (re)leitura cuidariosa dessa segunda parte que emerge, em certa medida, o reconhecimento desse mérito. Nela.a autora, além de demonstrar a intima relagdo entre teoria e pesquisa, convida 0 Te -ompanhar 0s sucessivos passos de sua pesquisa de campo. De uma pesquisa inovadora, pioneira mesmo, desde as bases tecricas que a fundamentam —em especial 0 conceito de cotidianidade, segundo Agnes Heller —, & metodologia e até 2 escolha dos sujeitos. Para o pesquisador — em especial o jovem pesquisador ¢ 0 pos graduando, ainda iniciantes no trabalho de campo — esta obra oferece uma preciosa liga de rigor em pesquisa quslitativa, quando ainda € tio. precério o entendimento dessa modalidade de fazer ciéneia. Este rigor vel na eacollia ds Insttumentos de coleta de dados: gio e entrevista. Sem divida, a entrevista € sempre insuficiente quando se trata de apreender as relagées intersubjetivas No caso da situagiio escolar, 0 recurso a observagio, jf tradicional na Psicologia, toma-se essencial ao pesquisador de campo interessado nox aspectos mais sujeitos & camuflagem, ao encobrimento, quando 0 seu objeto de Pesquisa envolve esterestipos.e preconccitos. Se es ambigiidades podem. Ser percebidas nas falas, as contradigbes entre o discurso e a agi pedagdgica s6 se revelam por meia da comparagdo entre eles, discurso. ‘¢ato. Em outras palavras, este livro demonstra, de mancira inequivoca, ‘que a face menos vis(vel do fazer pedagSgico sc torna acessfvel quando se conjugam observagio e entrevista. Mas o rigor da pesquisadora ressalta, também, 0 cuidlado na escolha dos sujeitos. Reconhecendo os Tim anilises que privilegiacam apenas os profissionais da escola, « pesquisadora inclui, também, as familias e cs alunos que apresentam luma histéria de fracasso escolar. E, pela vez primeiraya perspectiva dos Sujeitos 6 levada em conta no estudo do que se convencionou chamar fracasso escola Jo, Maria Helena (re)coloca em debate a relagio entre escola e vida familiar Mas, observem, a autorape essarelasfio em novostermos, i medida que recorrea aspectos da hist6ria de vida familiar das professoras, em s busca de melhor compreender a atividade docente. Assim, ao contrapor a Pritica pedagégica de duas professoras, Maria Helena revela-nos, Propriedade, como a histéria pessoal ¢ a familiar influenciam: a maneira particular de cada uma delas perceber a familia ea crianga pobre, a partir de esterestipas e preconceitos; © modelo disciplinar que norteia as suas relagbes com os altinos; as concepgées sobre as aprendizagem em seu sentido mais resirto; a atitudes por elas assumiclas 1no intrincado jogo das relagbeshierdrquicas de poder no interior da escola. E tudo isso influencia a valorizasio institucional atribuida a cada Drofessora, que, ao fim ¢ a0 cabo, vai tefletir-se em sua agio pedagSgica. Todavia, é a0 contrapor a perspectiva da instituigSo & dos sujeitos, fala € alunos, que Maria Helena mostra, a0 seu leitor, a maneira insidiosa de se produzr o fracasso escolar: no basta prodici-lo na cotidano escolar, 6 necessirio inculcé-lo nas mentes enquanto a escoia se esforca Portodos os meins,em dacilizar as corpar. Nas falas das mics, juntamente ‘com a valorizagio da escola, a autora identifica os sentimentos de ilegitimidade e de fracasso — anteriormente interiorizados ¢ em cuja ‘continunidade a escola revelaempenho, Identifica, ainda, a perplexidade Siaate du fiavasse esculur dos Mh0s, “wna profunda dificuldade de compreender 0 que acontece ¢ wna anguistia de ndo seber como explicar, ‘muitos vezes contornada pela repeticdo do discurso considerado-o tinico Aegitime (0 discurso competente), em suas wirias verses”. Mas Maria Hielena atribai uma ceria ambiguidade a esses diseursos, a medida que se © século XIX caracteriza-se por uma contradigaio bisica: neste perfodo a sociedsde burguesa atinge sen apogeu, segrega cada vez mais 12. Ancontrri do que acontecia na ala burguesia, que teve nos mead do século XIX ‘a idade de curo das pesoas em Hae madura, na qual os homens stingiam 0 ponte ‘uliirante de suas carreras, de sua renda e de sua atlvidade (Hobsbawn, 1979, pa 15, ‘Nasociologia freionalista norte arericana, esa lasura na class operiria enterida ‘come um process de conetituigo de dhas clases sociaisdstinas: a classe “baixar flue & classe “buisa-balea A produsdo do fracas escolar 39 al ¢ se torna inflexfvel na admissio dos que vem de. baixo. No nivel politico ¢ cultural, mantém-se viva a renga na ‘possibilidade de uma sociedade igualitiria num mundo onde, na verdade, ‘apolarizagdo social ¢ cada vez mais radical. Entre as pequenas conquistas de uma minoria do operariado ¢ a acumulagio de riqueza da alta bur ‘guesin cavara-se um abismo que saltava aos olhos. Justficd-lo serd a tarefa clas ciéncias humanas que nascem ¢ se oficialicam neste periodo, Por mais que se dese énfase & melhoria geral das condigées © Perspectivas de vida trazida pela nova estrutura social, a pobreza que ainda dominava a vida da maior parte dos trabalhadores era por demais, Visivel e contradizia concretamente as palavras de ordem da revolugio francesa. Tal como ocorrera neste movimento revolucionério, batalles, de miserdveis participaram ativamente da Comuna de Paris (1871), liderada nao mais pela burguesia mas pelos seus antigos aliados, agora ‘antagonistas.!¥ Mesmo enire os opersrios especializados que conse- ‘uiram atingir um padrdo de vida que guardava semelhangas remotas ‘com o estilo de vida burgués, a vida era pesada, Conseguiam, a duras pena, manter uma fachada de respeitabilidade: comiam pouco, domniam. ‘mal, economizavam migalhas ¢ eram constantemente perseguidos pela imin€ncia da misétia, Segundo Hobsbawm (1979), “a distancia que os separava do mundo burgaés era imensa ~¢ intranspontvel" (p. 240). ‘A visio de mundo da barguesia nascente foi profundamente marcada pela crenga no progresso do conhecimento humano, na racionalida na iqueza e no controle sobre a natureza, O idedcio iluminista s taleceu com o visivel progresso ocorrido na produgio e no com resultado, segundo se acreditava, da racionalidade econdmicae E, fato compreensivel, esta ideologia encontrou maior recep mo entre aqueles mais diretamente beneficiados pela nova ordem ci ¢ social em ascensio: “os cfreulos mercantis € 0s financistas, ¢ proprictirios; os administradores sociais e econdmicos de espt scientfico, a classe méia instrutda, os fabri Mos er do un burgsés, como Hobsbawm chama asegunde metade do séeuks XIX, io fo uma era de revolugdes ou de movimentes de mata. 0 fitodea "miscelinen ‘dos pores da idadeter apoiado a Camuna dew apo tse de Da Marcuse quase cen anos depos) de quo potencal de isurrecZo estava mals nos marginais e subproltirios do quene proletaviade prepriamente di, 40 Mana Helena Souza Pato ideologia (Franca ¢ Inglaterra), ela irradiou-se para as mais diversas © distantes regides, tomanda-se voz corrente intemacional, Em termos individuais, 0 seifsmade man, racional e ativo, representava 0 cidadiio ideal. (O fato de 0s novas homens bem-sucedidos o serem aparentemente or habilidade © mérito pessoal — jé que nfo o ecam pelos privilégios advindos do nascimento ~ confirmava uma visio de mundo na qual o sucesso dependia fandamentalmente do indivtduo; como afirma Hobsbawm (1979), “um individualismo se ionalista © pro= sressista dominava o pensamento ‘esclarecido’ "(p. 37), Tudo contribuia, éenire 05 vitoriosos na nova ordem, para o desenvolvimento da crenga a liberdade individual nom mundo racional como o valor maximo de onde advisiam todos os resultados positivos em termos de progresso cientifico, técnicoe econdmico. A ordem feudal ainda em vigor, com seus esforgos no sentido de fazer frente aos avangos econdmicos e politicos de uma parcela da plebe, constitufa o mais sério obsticulo & realizagio das aspiragSes da burguesia; por isso, um dos principais objetivos politicos dos que se o iluminista e do modo de produgao capitalist uma ordem social que em tese libertaria 4 todos 08 cidadaos do tradicionalismo medieval obscurantista, supersticioso e irracional, que dividia os homens em estruturas hlerdrqulvas segundo criterios indetensavers. © liberalismo cidssico, tal como formulado pelos fildsofos economistas dos séeulos XVI-XVII, era a ideologia politica da bur- guesia, A Declaragiio dos Direitos do Homem ¢ do Cidadiio, de 1789, documento representativo das exigéncias burguesas, nio é, segundo Hobsbawm, um libelo a favor de uma sociedade democriticae igus & acima de tudo, “um manifesto contra a sociedade hierérquica de Privilégios dos nobres”: prevé a existéncia de distingdies sociais, tem a Propriedade privada como um direito natural ¢ inaliendvel, preconiza a igualdade dos homens frente & Lei e as oportunidades de sucesso pro- fissional, mas deixa claro que, embora seja dada a todos os competidores apossibilidade de comegar no mesmo ponto de largada, “os corredores ‘ido termina juntos”. A produce de fracas escolar “a de ensino feriones de que a divisio social em classes superiores: no critério 0 talento individual itd, mais adiante, nos ajudar a compreender os caminhos trilhados pela psicologia nascente pelas ‘explicagdesdo fracasso escolar, onacionalismo, cuja primeiraexpresséo oficial é obra da barguesia de 1789, 60 pano de fundo que nos permite entender, pelo menos em parte, 0 advento dos sistemas nacionais de ensina. Através da defesa de um regime constitucional, a burguesia screditava estar sendo porta-voz dos interesses “do pove sindnimo de “nagio”.'S A pesquisa histérica revela que uma polfiica educacional, em seu sentido estrito,'6 tem inicio no século XIX ¢ decorre de trés vertentes da visio de mundo dominante na nova ordem social: de u ‘no poder da raz ¢ da ciéncia, legado do iluminismo; de outro, o projeto liberal de um mundo onde a igualdade de oportunidades viesse a Substituir a indesejivel desigualdade baseada na heranga familiar; finalmente, a luta pela consolidagio dos estados nacionais, meta do ‘nacionalismo que impregnou a vida politica européia no século passado, Mais do que 0s dois primeitns, « idealogia nacionalicta parece ter sido a Principal propalsora de uma politica mais ofeasiva de implantagio de redes pdblicas de ensino em partes da Europa e da América do Norte ‘nas dltimas décadas do século XIX. A renga gencralizada de que chegara o momento de uma vida Social igualitiria c justaerao cimento ideoldgico que unia forgase punha fem relevo a necessidade de instituir mecanismos sociais que garantissem 15, No momento histrico em que emerge, ets identifica ento estes dois concekos 29 mesmo tempo revoluciondvia ~ na medida em que mpugna a vis de mando dominant ae nto, jusificadora da extruturs social sob as monarquinssbnolatn ‘conservaons poi contén uma concepedo de homem, de sociedade ede histria ‘que obscurse apercepcto da reaidade social nascere,facende cre exitencia fe integra ¢ rciprocidade onde hi comradigaoe interessesinconcilaveis ¢ de fqualdade © Nberdade onde se sediments uma nova forma de desigualdade © de opreaito 16, Segundo Zanowi (1972), potica educacionl "1 ag sistemitica« perrianente do Estado dirigica &orientopto, supervisdo © provisto do sistema tducatvo escolar (9.22, “e Maria Hiden Sousa Pate 4 transformagio dos stiditos em cidadios, Para isto, a constituigio determinaria direitos e deveres; 0 aparelho judiciério, considerado um poder independente, g ‘a imprensa livre ficaria e as eleigdes garantiriam a participagaio popular nas decisdes, através da escolha de seus representantes ¢ da rejcigio dos maus governantes. Para grant 4 nacional ¢ popular, que eno se supunha posstvel 1uma sociedad de classes, a educagio escolar recebe, segundo Zanotti (1972), uma fundamental missio: “a ilustragBo do povo, a instrugho publica universal, obrigatéria, a alfubetizago como instrumento-mie (que atingird © resultado procurado. A escola universal, obrigatsria, comam —e, para muitos, leiga ser também o meio de obter a grande tunidade nacional, er ocadinho onde se fundirdo as diferencas de credo e de raca, de classes e de origem’ (p. 21). Daf para a concepgiio da escola como instituig2o “redentora da humanidade” foi um passo pequeno, 0 que nao significa afirmar que os sistemas nacionais de ensino tenham assumido proporetes significativas de imediato; ao contrario, do final do século XVIL até meados do século seguinte, a presenga social da escola ¢ muito mais intengio de um grupo de intelectuais da bburguesia do que realidade, =A inexisténcia de uma efetiva politica educecional neste perfoco, apesar de sua prescrigdo legal, deveu-se, segundo andlises historicas, a vérias circunstincias: 1) « pequena demanda de qualificagio de mio- de-obra no advento do capitalismo ¢ as maneiras alternativas de supri- Ja; 2) adesnecessidade de acionar a escola enquanto aparato ideol6gico hos anos que se seguem a revolusio francesa, até pelo menos o final da primeira metade dos oitocentos; 3) as presses inexpressivas das classes, Populares por escolarizacio, nos primeiras anos da nova ordem social; 4) a propria marcha do nacionalismo e suas comtradighes. Quanto a relagdo entre escola e capital no sutorizam a conclusio de que, de 1780 até pelo menos 1870, aescola tenha sido uma institu essiria i qualificagio das classes populares para o trabalho que movia os setores primério ¢ secundéio da economia capitalistayNa Gri-Bretanhs, por exemplo, a transfe obrado campo para a cidade foi o resultado da passagem para industrial que implica uma diminuigo da populagio agricola e aumento erescente da populagéo urbana, Estas andlises indicam também que a A producao do fracas escelar transformagies sociais do que pela introdugin de na producto agricola "Com estas transforma reduzidos, a partir de 1815, » uma massa expropriada, 0 que levou Hobsbawm (1982) aafirmar que “em termos de produtividade econdmica esta transformacios: ci ‘emtermos de sofrimento humano, uma tragédia’” (p. 66). A industrislizagdo heneficiou-se deste contingente de camponeses erradicados que s sias (1981). em “farta mo- el, quese sujcita aqqualquer saldrio, vivendo emcondices de miséria, promiscuida ‘A questiio da adequagiio dessa novaclasse de trabalhadores asnovas condigdes de trabalho era resolvida através de outros meios que no a eseolarizagio, Namedida em que a méquina ainda nfo era o principal instrumento de produgio, as existentes eram de funcionamento simplese ‘grande parte da produciio téxtil se dava através dotrabalho manual ouem teares rudimentares que funcionavam nas casasou empequenas oficinas, ‘grande problema de qualificagaa da mao-de-obra nao era aquisigyio de abitidades especiticasmas sobretucle de atindec compativeic cama nava maneira de produzir: “.. tato operdrio tinha que aprender a trabalhar de ‘uma maneira adequada inddstria, on seja, num ritmo regular de trabatho dicério inincerrupro, inteiramente diferente dos altos © baixos provocados twolida doartesio independente. A milo-de-obra tinha também que apr dora responder 20s incentivos monetirios.” (Hobsbawm, 1982, p. 67) ‘As medidas mais imediatas ¢ eficazes de io da classe trabalhadora inclufam impor uma disciplina rigida no ambiente de tra- bbalho, pagar pouco 20 operrio para forgé-Io a trabalhar sem deseanso durante toda a semana para poder sobreviver, recarter a uma mio-de- ‘obra mais décil, como as mulheres e as criangas, € mediar a relagio 17, A fei das cereas, por exermpo, zeabou com o cutivo comunal da Idade Média, com ‘acultura de sbsistincia © com a relay rlo-cemorcal com a tera, faze da ‘Gra-Bretunha um teritrio de alguns prandesproprictrias e de mites arencatiios ‘comercais que cuntratavar tabalhadoresrurss, 0 que promoves sintstorizagio ‘do modo capitalisa de produ. 4a Mama then Souza Pato entre patrdes e empregados pela ago vigilante ¢ cobradora de in: termedidrios que garantiam a dis-iplina do trabalhador. De outro lado, 2 demanda de trabalhadores tecnicamente habilitados estava suprida no primeiro pafs capitalists; ainda segundo Hobsbawm, a lenta semi-in. dustrializagao da Gri-Bretanha nos séculos anteriores ao dezenove produziu um contingente suficiente de habilitados. Este fato-a levou, a ccontrario dos paises do continente, a nio dar maior atengtio & educagdo téenica e geral durante muito tempo. No entanto, mesmo quando a especializagtio técnica do operdrio passa a ser uma necessidade, seu ireinamento ¢ feito no proprio trabalho; por isso, cabe afirmar que a fabrica foi, nos anos de consolidagtio do capitalismo, a escola profissionalizante por exceléncia. Neste periodo, a escola também nfo é necesséria enquanto ins tituigo destinada a fixar um determinado modo de soeiabilidade; sua dimensio reprodutora das relagdes de produgio, via manipulagio e do. mesticagio da consciéncia do explorado, também era dispensivel num "momento em que este ainda nio se constitfm como forga de oposigio ao estado de coisas vigente e enquanto as instituigdes religiosas davam conta do papel justifieador das desigualdades existentes. Além disso, € preciso lembrar que “no infeio do processo de aseensio, é verdade que ‘nova classe representa um interesse coletivo: o interesse de todas a: classes niio-dominantes” (Chauf, 19814, p. 100), Neste sentido, a un lade de suas idéias € real num certo 1 cA medida que a se transfo d i digdes para que seus interesses particulares aparegam como universais ¢ se tornem senso comum. Como vimos, é somente em torno de 1830 que a classe operdria comega 4 se organizar e a engrossar as fileiras das descontentes com 2 nova estrutura social; porém, nio ser4 antes das iltimas décadas desse sécalo e dos primeiros anos do sécuilo XX que as jzagdes opersrias se tornaro ativas como forgas antagGnicas nos paises industriais capitalistas. Entre 1780 e 1848, os trabalhadores, ‘compartilham da ilusdo da chegada de um mundo novo, livre de opressiio ¢ pleno de oportunidades ¢ formam uma espécie de “comunidade de destino” com as demais parcelas sociais insatisteitas com a dominagao da nobreza, Nao se esté ainda na “era do capital”; embora rica de mobilizagdo politica, a primeira metade do século XIX ¢ sobretudo a “eradas revolugbes” que, como vimos, tém como alvo os antigos regimes, A prey “6S B certo que 0 desejo de ascensio social fazia parte deste sonho ‘igualitdrio ¢ libertério, As vias que ofereciam aos pobres alguma pos- sibilidade de se aproximarem de alguma forma dos ricos eram as que traziam prestigio, mas nio riqueza: 0 saccrdécio, 0 magistério © a burocrocia. A maquina esiatal se ampli nentando © mimero de funcionarios piblicos; formalmente, 0 século XIX esté distante da estiticn sociedade hieriquica do passado, As duas revolugSes abriram possibilidades de carreiras profissionais e as linhas que dividiam as lasses eram menos impermedveis. Porém, a maioria da populoglo 1 finha acesso ans cargos burocriticos de maior prestigio e devia se Contentar com madestos cargos enquanto servidores civis, mas isto bastava para que os que 0 conseguiam vivessem o encantamento de ixar a categoria dos trabalhos bragais. Se a precétia rede de ensino pblico fundamental exisiente nesta primeira metade de sécalo teve alguma fungao social, esta foi a de preparar este pequeno contingente mcionérios publicos de médio ¢ baixo escaldio requerido pelo desen- nto do estado modern. inalmente, andlises hist6ricas do nacionalismo tém permitido concluir que os movimentos nacionalistas conscientes praticamente ine- xistiram antes de 1830," Mais que isso, tudo indica que na primeira meiade deste século os movimentos nacionalistas fora do mundo burgués ¢ fora da Europa no passavam de movimentos protonacionalistas, Mesmo em sua segunda metade, o nacionalismo de massa ainda no era uma realidade nas nagdes emergentes, até pelo menos 1860. Assi embora 0 século XIX tenha concluido 0 processo de consolidagio das estados nacionais modemos, segundo Julian Marias (cf. Zanotti, 1972, p. 14), € "a panir de 1870 que a nagao ¢ o grande pressuposio da vida Politica européia”. Até endo, os sist onais de ensino so muito ais anseio da pequena ‘eda pequema nobreza / classes empresariais, nesta época, preferiam os grandes metcados em ‘expansio, ¢a grande massa popular, para quem a religgio era o grande indicador da nacionalidade, ainda nio tinha qualquer interesse digno de nota pela escola elementar, Afinal, os aparatos ideolégicos por exceléncia ainda era a Igreja e x fart [A respeito des movimentos nacionalistas no século XIX, veju Hobstuwm (1982, ap. 5: 1979, cap. 7, Maria Hokona Soave Hato E somente nos paises capitalistas liberas, estiveis e présperos, qu ‘partir de 1848, a escola adquire significados diferentes para diferentes gTupos ¢ segmentos de classes, em fungo do lugar que ocupam nas relagdes sociais de produgio. Neles, a escola & valorizada como instrumento real de ascensi e de prestigio social pelas classes médias ¢ Pelas elites emergentes. Como instituigdo a servigo do desenvolvimento tecnolbgico necessério para enftentar as primeiras crises do nove modo de produgio, de modo a rac aumentar € acelerar a produgiio, la interessa aos empresérios, Como manutengio do sonho de deixar a condigdio de trabalhador bragal desvalorizado e de vencer na vida, ela € ‘almejada pel ssa de trebalhadores miserdveis de uma forma ainda frigil e pouco organizada, ‘Os sistemas de ensino nilo so, portanto, una realidade du 105 do século passado. Emboraos 1 4408 varios tipos de escola revelem um inegével progresso, € preciso Jembrar que este aumento foi sensivel nos niveis secundério e superior. Meso nos pafses que jd contavam com um sistema piblico de ensino, Primaria, segundo Hobsbawm (1982, p. 211-12), era nciaca e onde existia limitava-se a ensinar rudimentos de leitura, moral. Algm disso, nio se deve esquecer que ‘em torno de 1850 a grande maioria dos que se dedicavam ao ensino das primeiras letras era constituida de protessores privados © governantas dedicados &s criangas da burguesia. Apesar da vulgarizacio do livro € dda €nfase na necessidade de uma lingua nacional oficial, aimensa maioria da populagiio mundial pecmaneceu analfabeta até por volta de 1870. Certamente, foi levando e: todos estes aspects que Zanotti (1972), a0 periodizar a histéria da politica educacional no mundo ocidental em tr8s grandes etapas, coloca como marco da primeira 0 ano de 1870, quando, até 1914, se atribui A escola a miss de redimir a humanidade. A partir de 1870 vigora, em vérias partes do mundo, 0 idedrio nacionalista em sua segunda versio: o da construgio de nagdes Uunificadas, independentes e progressistas, Para que a dimensiio desen. , faz-se necessério que as nacBes-estado sejam we grandes, condigao para serem econdmica, tecnolégica nie vidveis, Os idedlogos das nagdes-estado insistiam em, que deveria haver somente uma I{ngua e um meio de instrugdo oficiais: € assim que a uni 1gwa, dos costumes ¢ 4 aquisigio da cons- A produsd do fecasso occolar a ade seré a primeira missio da escola no. mundo lista do século passado. O tema da igualdade dos cidados, inde cera vista c 10 espontiineo mas como algo que precisaya ser cons- tenfdo; nesta construgio, a escola, como instituiglo estratégica na impo siglo da uniformidade nacional, expandiu-se como sistema nos p mais desenvolvidos."? O sentido missionirio atribuido 4 escola ¢ © papel de apéstolos leigos de que os professores foram investidos ficam patentes na andlise documental realizada por Zanotti. Entre os documentos analisados, 0 \liscurso feito pelo presidente da Argentina quando da inaugu Escola Normal Nacional de Professoras de Rosario, em 1869, exemplar: “Inangurar uma escola ¢ fazer um chamado a todos os poderes do hem: sendo o ato mais benéfivo, mo ato mais Solene, porque signific solocar-se, como nunca, diante do porvir (..).Assisto com os senbores, 4 majestosa ceriménia © pego ao senhor bispo que a encerre deixando air suas béngios sobre 0 novo edificio para que ele fique sanificado ‘como um templo ¢ as esienda em seguida sobre 0 bergo da crianga, sobre a terna solicitude da mie, sobre 0s campos ¢ colhcitas, sobre nosso povo e seu destino.” (Zanotti, 1972, p. 25) A.crenga no poder da escola foi fortemente abalada pela Primeira ‘Guerra Mundial. 0 século XX tem inicio desmentindo s escola obrigatdria e gratuita viera para transformar a humanidade, para Tedimi-la da ignordincia e da opressio. A posse do alfabeto, da cons- titigdo ¢ da imprensa, da ciéncia ¢ da moralidade nito havia livrado os homens da tirania, da desigualdade sociale da exploragao. Bste conflito mundial desferiu um duro golpe nos liberais gue acreditavam nos supespoderes da escola ¢ os levou a investirem contra a pedagogia tradicional, na elaboragio de uma pedagogia que promovesse espiti- ‘walmente 0 ser humano. Se 0 movimento escolanovista jé era uma realidade no final do século XIX (as primeiras escolas novas datam da lidade,a escola e outa insttuigbes ‘de wnifiagio nacional provoeavam reagies cootre-nacionalistas em areas de Pvoamento nio-homogéneo; apenas nae reas mals homogénens & que todas a3 ‘cuvadas soins embarcaram na ideal'zagao da escola com insttniglo redeatora (Hobsbawm, 1982, cap. 1) 48 Mara tena Souza Pace a de oitenta desse século), 6 de 1918 a 1936 —a segunda etapa da politica educacional, segundo Zanotti — que ele se propaga com uma

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