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Afonso Murad GESTAO E ESPIRITUALIDADE Uma porta entreaberta A gestdo profissignal de uma instituicdo exige de seus coordenadores 0 dominio de conhecimentos e habilidades especificos, por meio de longo proceso de aprendizagem, numa relagdo constante de teoria € pratica, Ndo so adquiridos instantaneamente, em , cursinhos de final de semana, nem se conquistam com a leitura de manuais pretensamente magicos, como O segredo do sucesso da gestéo em 100 paginas. Por isso mesmo € preciso criar um processo de iniciacao, no qual se introduzem, lentamente, conceitos e in- formagées Uteis para realizar melhor o trabalho. Este capitulo tem a finalidade de ser um ponto de partida, estimulo aos.gestores, para que conhecam, estudem e ampliem suas competéncias. Escolheram-se, aqui, alguns pilares da gestdo de organizagées. Eles séo necessdrios as instituicdes sociais ¢ religiosas, empresas familiares, drgaos publicos € organizagées de natureza comercial. Restarao muitas lacunas, pois nao € possivel apresentar, neste exiguo es- paco, conceitos € informagées completas que abranjam um horizonte tao amplo. Utilizarei as contribuigdes de Peter Drucker, considerado, hoje, a grande figura mun- dial da gestao. Ele desmonta paradigmas tradicionais a respeito da administragao! e os reconstrdi sobre novas bases. Serao apresentados alguns pilares sobre. os quais * se edifica o desempenho eficaz dos gestores. Visdo generalista Drucker enfatiza que ndo se administram somente negocios. A primeira aplicagao pratica da teoria da ad- ministragdo ocorreu em instituigdes sem fins lucrati- vos € agéncias governamentais no inicio do século XX. No apés-guerra, a gestao passou a identificar-se com “gerenciamento de negécios", por influéncia america- na. Embora a gestdo de organizagées tenha-se desen- volvido no horizonte das empresas que visam ao lucro, sua origem € outra. Portanto, qualquer organizagao que hoje deseja realizar sua missao precisa estar munida de instrumentos gerenci 1 Substituiremos o termo gerenciamento (utilizado na tradugdo brasileira para a palavra inglesa management) por gestéo, pois 0 primeiro, na {ingua portuguesa, evoca, sobretudo, a condugao de rotinas e controle de processos, em contraposigao @lideranga. Para Drucker (2001, pp. 7-36), a lideranga 6 parte fundamental do processo de gestao. Atualmente, as maiores diferengas na gestao estao nos termos e na aplicacao. Os principios, as tarefas e os desafios sao semelhantes. Noventa por cento dos obje- tos de preocupacdo das instituigdes e empresas sao ge- néricos. Somente dez por cento tém de ser adequados a miss4o especifica da organizacao, a sua cultura, historia € ao seu vocabulario especifico. Assim, a gestao torna- se 0 Orgao especifico e distintivo de toda e qualquer organizacao. Vale articular os principios essenciais da gestdo, apresentados por Drucker, com a missao dos gestores. © Em qualquer instituicdo, a primeira tarefa da gestdo é capacitar e mobilizar as pessoas para atuarem em conjunto, de forma a ampliar suas at forcas e minimizar suas debilidades. Nao exis- tem colaboradores com todos os requisitos ideais para as fungées, especialmente aquelas mais estratégicas e menos operacionais. A arte da gestao consiste, exatamente, em formar um time coeso, que trabalhe em sintonia. Ao somar as habilidades e os conhecimentos, multiplicam- se os resultados positivos. Esse time atuard con- forme o contexto cultural onde estiver inserido. Quanto mais a organizacao assimilar os elemen- tos culturais da realidade local onde esta inse- rida, condicionando a forma de gerir, melhores possibilidades de desempenho tera, pois as pes- soas sentir-se-do valorizadas e respeitadas em suas tradigdes e culturas. 22 0 Murad © Para que a insergdo nas culturas locais ndo se torne um fator dissipador e os regionalismos nao dissolvam a identidade institucional, as pessoas que compdem a organizacao devem partilhar Os mesmos valores e estar comprometidas com metas comuns. Os gestores continuamente re- lembram os principios que regem a instituigdo e criam os mecanismos para que eles transpirem no dia-a-dia das relagées internas e na forma de atuar junto ao seu puiblico-alvo (clientela). © Compete aos gestores fixar as metas, apds uma acurada andlise de cenario e didlogo com os colaboradores, e zelar para que elas sejam cumpridas. Para isso, sdo necessarios multiplos indicadores de desempenho. Todos seraéo men- suraveis, embora algumas metas possam con- ter valores intangiveis. © As organizacdes modernas esto centradas no cliente (ou publico-alvo) ¢ nao em si mesmas. 0 “foco do cliente” significa interpretar suas deman- das e apresentar solugdes e beneficios. Os gestores so os primeiros responsaveis para que isso acon- teca. Quando a chefia esta centrada na missdo e nas demandas do destinatario, ajuda todos os co- laboradores a dirigir o olhar para o alvo. Entao, ha uma mudanca de pergunta. Nao mais “o que agra- da ao chefe" e sim “o que o cliente necessita". 0 poder direciona-se para a missao da instituigdo. © Para funcionar bem, a organizacao desenvolve um eficiente sistema de comunicagao, de circulagao de informagao e de servicos internos. Na."gestao dos processos”, ha uma teia enorme de relacdes no interior da instituigdo. As pessoas servem aos outros, fornecendo-Ihes informag¢ao, dados, obje- tos e servicos. E deles recebem o que é necessario para executar bem suas fungées. Em tal sentido, cada um tem seus “clientes internos” (a quem serve) e seus “fornecedores internos" (por quem é servido). Esse fluxo de informagées e servicos internos funciona bem quando as pessoas sao empoderadas em suas fungdes e desenvolvem a interdependéncia. Assumem, responsavelmente, 0 que thes diz respeito € exigem dos outros o que é necessario para executar bem sua tarefa. * No contexto atual, no qual o saber aplicado transformou-se na grande fonte de riqueza, as organizacGes precisam,.constantemente, desen-. volver novas habilidades (= saber fazer) e conhe- cimentos. Elas estimulam a postura de constante aprendizagem. E os gestores coordenam e esti- mulam esse processo. A visao de Drucker desautoriza um dos argumentos mais utilizados por aqueles que se negam a coordenar uma instituigao social ou religiosa de forma eficaz, ar- gumentando que ela é radicalmente diferente das outras organizagdes que atuam na sociedade e no mercado. Na verdade, trata-se de conhecer bem os noventa por cento BIseQ) dsq 90 a S & & 23 24 Afonso Murad que sao comuns as organizacées e os dez por cento que qualificam as do terceiro setor. Mas quais sdo afinal, os dez por cento prdprios delas? Como irdo configurar uma forma especifica de ser e de agir na sociedade? Essa pergunta precisa ser respondida pela organizagdo mes- ma. N&o renunciando a forma profissional de exercer a gestao, mas sim realizando-a com valores mais eleva- dos. Voltaremos a esse ponto mais tarde. Drucker prevé que, nos préximos anos, o setor social, sem fins lucrativos, crescera muito em todo o mundo. Nesse dmbito, somente a gestdo sistematica e menos improvisada produzira resultados efetivos, com maior rapidez. Sem duvida, trata-se de uma grande oportuni- dade para as instituigGes religiosas, fundagdes, associa gdes, OSCIPs, cooperativas e demais formas de organi- zagao do terceiro setor. Estrutura funcional flexivel Segundo Drucker, no existe a organizacdo certa, mas apenas organizacGes, cada uma das quais com forcas e limitagdes distintas e aplicagdes especificas. A organi- Zago nao € um item absoluto, mas sim um instrumento para tornar as pessoas produtivas no trabalho conjunto. Assim, uma- dada estrutura organizacional ¢ adequa- da para algumas tarefas em determinadas condicdes e ocasiGes.” Existem vastas diferencas em estruturas organizacionais, de acordo com a natureza da tarefa. Importa que as pessoas conhecam e compreendam a estrutura organizacional na qual se espera que traba- lhem. Em qualquer empresa, ha varias estruturas orga- nizacionais diferentes coexistindo lado a lado. Algumas ¢disas devem ser centralizadas. Outras, completamente descentralizadas. O que diz respeito ao atendimento es- pecializado ao cliente amolda-se a este caso, pois dele- ga-se a maxima autonomia local possivel. Para Drucker, € um absurdo falar em fim da hierar- quia. Em qualquer instituicdo deve haver uma autori~ dade final, um comando claro. Isso € particularmente importante nos momentos de crise, em que € preciso haver uma chefia a quem reportar-se. Ao mesmo tem- po, porém, muitas outras situagGes requerem delibera- ¢do e trabalho em equipe. As pessoas devem ser capa- - zes de atuar, a0 mesmo tempo, em diferentes estruturas organizacionais. Para umas tarefas, trabalhar em equi- pe; para outras, em estrutura de comando e controle. Combinam-se, assim, estruturas mistas. Além disso, as organiza¢ées atuais configurarn-se com o menor nu- mero possivel de camadas hierarquicas, para combater a burocracia e agilizar seu trabalho. 2 Conferir em Druckér (2001, pp. 18-24). apepientuids3 9 ogiseg 25 26 Afonso Murad Em sintese, a estrutura organizacional é necessa- ria, mas nao € absoluta. A melhor organizagao ¢ aquela adequada 4 tarefa. A autoridade deve ser proporcional responsabilidade. Ou seja: 0 que determina um grau mais alto na escala hierarquica nao € 0 privilégio ou o jogo politico, mas a complexidade do trabalho a realizar ea habilidade de coordenar processos, de forma a con- duzir a instituigao para realizar bem sua missao. Esse principio € extremamente util para qualquer organizagao. Ajuda a superar a absolutizacao de estru- turas anacrénicas. Fornece critérios para a adogdo de novas estruturas, dando a liberdade de abandond-las ou modificd-las quando se mostram ineficazes para a realizagdo da missao. Sinaliza que € necessdrio tanto 0 poder formal da autoridade quanto o trabalho em grupo a participagao em diferentes instancias. E que a estru- tura organizacional deve ser a mais leve possivel, para ajudar a instituicéo a manter, vivo o seu carisma. Politica de mudanga: abandonar, aperfeigoar, aprender Segundo Drucker (2001), qualquer instituigao. tradi- cional’é concebida para a continuidade. Por isso tem tanta resisténcia 4s mudancas, 0 que parece até uma contradicao para ela. Mas em periodos de “rapidas mudangas estruturais, os tinicos que sobrevivem sao os lideres de mudangas. Uma politica de mudanga con- templa trés aspectos: abandonar o ontem, promover um aperfeigoamento organizado e explorar o sucesso. 0 primeiro aspecto significa liberar recursos, deixando de comprometé-los com a manutencao daquilo que nao mais contribui para o desempenho da organiza¢ao, ném produz resultado. Quando um servico ou processo ve- Iho e declinante esta levando a negligenciar o novo, ele deve ser abandonado. No é possivel criar o amanha, a menos que se Jogue fora o ontem. Manter o ontem é sempre dificil e consome muito tempo [...] Os produtos, servicos ou processos moribundos sempre re- querem mais cuidado e maiores esforcos. Eles ‘ocupam as pessoas mais produtivas e capazes . (Drucker, 2001, pp. 65-66). Por que as organizacées sem fins lucrativos tem tanta dificuldade em abandonar aquilo que da mostras de decadéncia ou perdeu grande parte de seu sen- tido original? Elas tém a tendéncia de considerar tudo aquilo que fazem como justo, ético e a servico de uma causa. Assim, ndo se mostram dispostas a di- zer, caso alguma coisa nao produza resultados, que seus recursos devem ser redirecionados. 3” Para o que segue, conferir Drucker (2001, pp. 65-72). apepyentuidsy 8 opsés) 7 28 Todas as organizagdes sem fins lucrativos ne- cessitam mais da disciplina do abandono or- ganizado do que uma empresa. Elas precisam enfrentar opgdes criticas (Drucker, 1995, p. 8). 0 abandono assume distintas formas. Pode-se até continuar a fazer o mesmo, de maneira diferente. E tdo importante quanto abandonar é saber agir sobre © abandono. 0 lider da mudanga deve perguntar a res- peito de cada servico ou processo: "Se féssemos entrar nisso agora, sabendo 0 que sabemos, fariamos o que estamos fazendo?”. 0 que abandonar e como fazé-lo precisam ser praticados de forma sistematica. Caso contrario, serao adiados, pois nao sao politicas popula- res, que agradam a todos. Aperfeicoamento organizado implica a postura sis- tematica e continua, que envolve produtos € servicos, processos de producdo, marketing, assisténcia técnica, treinamento e desenvolvimento de pessoal e uso de in- formacées. Para isso, faz-se necessario definir clara~ mente o que é “desempenho”. Por exemplo: um banco introduziu uma série de produtos financeiras novos, mas descobriu que, para o cliente, o bom desempenho + Drucker-(2001, p. 67) dé um exemplo: cerca de sessenta por cento dos lucros do editor de livros vem de obras langadas ha mais de um ou dois anos. Mas nenhum editor investe recursos para vender esses titulo. Entgo, uma empresa organizou-se em duas unidades: uma para novos Utulos, outra para os antigos. € seu lucro duplicou em banco significa nao esperar na fila para transacdes de rotina. O aperfeigoamento continuo acaba levando a mudangas fundamentais, pois cria as condigées para perceber e abracar 0 novo. Exploracdo do sucesso significa, fundamentalmente, dar énfase as conquistas e &s oportunidades ¢ nao fi- car mergulhado em problemas. Isso significa, também, alocar as pessoas mais capazes nos lugares de melhores oportunidades. Trata-se de valorizar os préprios suces~ sos € construir sobre eles. Dar passos pequenos e con- sistentes, um apds 0 outro, sobre as realizagdes e proje- tos bem-sucedidos. E essa exploragdo conduz, cedo ou tarde, a uma inovagao genuina. A politica de mudanca proposta por Drucker é fun- damental para qualquer organizacdo atual. O passo mais dificil para as instituigdes tradicionais consiste_ em “abandonar o ontem". Por exemplo: Iguns colégios confessionais, hoje, séo invidveis, por diversos moti- vos. Ha cidades do interior onde ja nado ha um puiblico que requeira tal tipo de escola e esteja disposto a pa- gar por ela. Ha, também, escolas de capital que, hoje, estdo localizadas em local inadequado, longe de sua clientela potencial. Mas por forca da inércia, por amor a tradigao, por apego ao patriménio tangivel, nao se abandona o ontem. Entao, os recursos financeiros € as energias sdo canalizados para aquilo que esta no epepyenquidsy 3 opjsex) 29 30 Afonso Murad caminho da morte. Algumas organizagGes irao morrer junto com suas obras agonizantes se nado abandona- rem o ontem, Outro exemplo: ha centros socioeducativos volta- dos para criancas e adolescentes da periferia, que fo- . ram fundados em bairros extremamente pobres. Com © passar dos anos, houve uma dupla mudanga. Um setor da populacdo local melhorou suas condicdes de vida. E outra parte, mais pobre ainda, migrou para mais longe. Se esses centros socioeducativos que- rem ser fiéis 4 sua missdo original e atender. “os mais pobres entre os pobres", devem migrar com. eles e deslocar-se geograficamente. Os procedimentos do aperfeigoamento organizado e da exploragdo do sucesso sdo fundamentais para que as organizagoes construam uma tradi¢ao auténtica, que nao € mera repeticdo do passado ou nostalgia parali- sante, mas sim uma acumulacao. qualitativa de conhe- cimento. As instituigdes que amadurecem a deutero- aprendizagem aprendem a aprender,® sao capazes de resgatar as experiéncias bem-sucedidas e, assim, con- quistar exceléncia e qualidade nos servicos. 5. expressdo “aprender a aprender” foi difundida por Gregory Bateson, um dos pioneiros da teoria sistémica no final da década de sessenta. Ganhou © campo da teologia na década de setenta, com o teélogo uruguaio Juan Luis Segundo. Mais tarde, a perspectiva de organizagao aprendente onquistou 0 Ambito empresarial, com a contribuigéo de Peter Senge e sua escola, Este € 0 primeiro requisito de acao: preparo e refocalizacdo constantes, sem nunca estar sa- tisfeito. Isso deve ser feito quando vocé esta tendo sucesso. Se esperar até que as coisas co- mecem a cair, serd muito dificil. Nao é impos- sivel reformular uma instituigao em declinio, mas um quilo de prevencdo é muito melhor que uma tonelada de cura (Drucker, 1995, p. 35). Inovacgao e continuidade ‘Segundo Drucker, o lider de mudangas precisa intro- duzir na organizagao uma politica sistemdtica de ino- va¢ao, ou seja, uma politica para criar mudancas.° A inovagao comega quando a organizacdo sabe aproveitar as janelas de oportunidades, que advém de sucessos ou fracassos, dela e de.seus concorrentes, e incongruén- cias nos clientes. As oportunidades surgem também de necessidades de processos, alteracdo de estruturas no mercado, mudangas demograficas, mudancas em sig- nificado, percepgdo e novo conhecimento. A inovacdo nunca ¢ isenta de riscos. O erro mais comum, aquele que mata mais ino- vagdes do que qualquer outro, é a tentativa de embutir-se um excesso de seguranga na mu- danga, para cobrir seu flanco ¢ néo alienar o passado (Drucker, 1995, pp. 9-10). * Ver Drucker (2001, pp. 72-75), ow 32 4 Inovacao nao € somente um lampejo de genialidade, mas 0 resultado de duro e persistente trabalho. Deve estar baseada nas exploragées bem-sucedidas. Nesse processo, aparecem armadilhas. Uma oportunidade desajustada é tentadora e pode levar ao fracasso, ou a despender muito tempo, energia dinheiro, sem o retorno esperado. Além disso, nao se deve confundir inovagao com mera novidade. Somente a primeira cria valor. Ao implantar uma inovacdo, nao se pergunta: nds gostamos disso? e sim: os clientes a querem e pa- gardo por isso? Por fim, é necessario diferenciar movimento e acéo. Nao basta o movimento que da a impressao de que algo esta sendo feito. Agdes inovadoras comportam resulta- dos efetivos. Para que elas se consolidem, é fundamen- tal que sejam testadas em pequena escala, em forma de experiéncias-piloto. Somente depois disso podem ser generalizadas na instituigao. E sempre aparecem sur- presas. Em geral, as coisas realmente novas encontram sua maior aplicagdo onde o empreendedor ou inovador nao esperava. As mudangas requerem, também, continuidade,” As pessoas precisam saber com quem trabalham, os valores e as regras da organizagao; saber onde estao € 0 que podem esperar. Elas nao atuam satisfatoria- Para o que seque, conterir Drucker (2001, pp. 75-79). mente se 0, ambiente for imprevisivel, incompreensi- vel e desconhecido. Mudanca e continuidade sdo’ pdlos e nao ~ opostos.. Quanto mais uma instituicéo for oyganizada para ser lider de mudangas, mais ela precisaré estabelecer continuidade inter- na e externa e maior sera a necessidade de equilibrar mudangas rapidas € continuidade (Drucker, 2001, p. 78). . O equilibrio entre mudanca e continuidade requer um trabalho constante em informagao. A continuidade fica comprometida e os relacionamentos corrompem-se caso as informac6es sejam deficientes ¢ ndo-confiaveis. Qualquer mudanga, mesmo pequena, deve vir acompa- nhada da pergunta: quem precisa ser informado? Quanto mais as pessoas trabalham em conjunto sem estarem fisicamente uma ao lado das outras, mais € necessa- - rio que estejam bem informadas. No entanto, uma nao substitui a outra. Vo juntas as informagées sistemati- cas, especialmente a.respeito de qualquer mudanca, e os relacionamentos face a face, que sao ocasiées para as pessoas estreitarem os lacos e entenderem-se. Os processos de mudanca‘exigem a continuidade, em relacao aos fundamentos da organizacao: sua mis- ‘so, seus valores, sua definigao de desempenho e resul- tados. Por fim, 0 equilibrio entre mudanca e continui- a = POR BE TET apepientuids9 9 o81s85 33 dade é fortalecido por compensacao, reconhecimento e recompensas. As pessoas que se comprometem com as mudangas, em coeréncia com os principios que norteiam a organizacao, devem ser estimuladas e recompensadas por seu trabalho. Isso inclui uma série de procedimen- tos, desde a manifestacdo explicita de gratidao, por pa- lavras e gestos, até a remuneracao condizente. A dialética inovacdo-continuidade, apontada por Drucker, é fundamental para as organizacées contem- pordneas. Ha certa incoeréncia em varias instituicées no que diz respeito continuidade. De um lado, a forca da inércia favorece a resisténcia a processos de mudan- ¢a e inovacao. De outro lado, o personalismo e as lutas internas de poder ocasionam perda de seqiiéncia nas conquistas. Como os avancos de uma gestao sao facil- mente anulados pelo governo seguinte, fica nas pessoas a impressao de que as mudancas nao tém raizes, pois esto condicionadas ao desejo de quem esta no poder. Entao, a continuidade precisa ser bem entendida. Seu valor nao consiste na repeticao de rotinas ou na manutencao de estruturas e habitos anacrénicos, e sim nos valores, nos principios, no nicleo de identidade da organizacado e numa historia de conquistas consolida- das. No correr desta historia, ha, simultaneamente, con- tinuidade e rupturas. 0 ambito da gestao: além dos préprios muros O ambito da gestao nao diz respeito somente as questées' internas da organizagdo. Segundo Drucker, criou-se uma dicotomia entre interior da organizacdo e espirito empreendedor, que deve ser superada. Gerenciamento e espirito empreendedor sio apenas duas dimensées diferentes da mesma tarefa. Um empreendedor que nao aprende a gerenciar nao durara muito, assim como uma geréncia que ndo aprende a inovar (Drucker, 2001, p. 39). As atividades empreendedoras comécgam com 0 ex- terior, ou seja, em resposta as demandas da sociedade, e sao nelas focalizadas. A gestao existe para ajudar a realizar a missdo da instituigao. Ela comeca com os re- sultados pretendidos e organiza os recursos, da institui- 40 para atingi-los. Eo Orgao para tornar a organizacdo capaz de produzir resultados fora dela mesma. Portanto 0 foco da gestao, é sua responsabilidade corresponden- te, consiste em tudo o que afeta o desempenho da insti- tuigdo e seus resultados, dentro ou fora, sob o controle da organizacao ou além dela. 0 critério apontado por Drucker ajuda as organiza- des a romper sua auto-suficiéncia e a superar a vi- 489 9 08885 apepi 35, 36 Afonso Murad sao demasiadamente focada em si mesmas, com pouca relagao com a sociedade e o~mercado. Ser gestor(a) nao é somente tomar conta da instituic¢do, mas conti- “ nuamente refletir sobre seu: desempenho, seus clientes, seus concorrentes e 0 real beneficio que ela traz para a sociedade. A partir dessa reflexdo, tomar decisdes e elaborar estratégias de agdo a curto, médio e longo prazo. A estratégia “capacita a organizagao a atingir_ 0s resultados desejados em um ambiente imprevisivel, pois ela Ihe permite ser intencionalmente oportuna" (Brucker, 2001, p. 42). . A apropriacao e a utilizagdo de novos conhecimen- tos, visando atualizar a missdo da organizacdo, depende de um olhar para além dos préprios muros, e especial- mente de desenvolver ¢ articular saberes que ampliem a perspectiva do(a) gestor(a). Segundo Drucker? o modelo de desenvolver um saber especifico para cada negocio esta em crise. A industria farmacéutica, por exemplo, depende cada vez mais do. conhecimento que esta além dos seus laboratérios especificos, como “genética,: microbiologia, biologia molecular, elétréni- ca médica etc. A industria automobilistica precisa da eletrénica e do computador. Parece que as tecnologias com probabilidade de ter maior impacto sobre uma em- presa sdo aquelas externas ao seu campo. O que uma * § Para o que segue, conferir Drucker (2001, pp. 29-33). produz serve para outra.’ Os conhecimentos aplicados ogsa: cruzam-se ‘constantemente. Uma tecnologia externa forga a industria “a aprender, a adquirir, a adaptar-se, @ mudar sua mentalidade-ou mesmo seu conhecimento uids3 tecnolégico”. a2ep) No inicio do século passado, acreditava-se que os usudrios finais eram fixos e determinados. Por exemplo: vasilhame de cerveja é de vidro; transporte e entrega de c btém-se alimen- to cozinhando ou indo ao restaurante. Ora, hoje os usos finais nao estéo mais ligados unicamente a um determi- comunicagées fazem-se pelo correi nado produto ou servigo. Houve uma grande mudanga: (“a necessidade é que é Unica, no os meios para satis- fazé-la". O cliente néo compra o que o fornecedor vende, mas aquilo a que ele atribui valor. 37 O ponto de partida para gerenciar nao sdo seus préprios produtos ou servicos, nem mesmo seu mercado conhecido e seus usos finais conhe- cidos pata seus produtos e servicos. Precisa set aquilo que os clientes consideram valor (Drucker, 2001, p. 33). Em escala crescente, os nao-clientes tornam-se mais importantes que os clientes atuais, pois € com eles que ° Por exemplo: o transistor, produzido nos laboratorios da Bell Labs, de telefonia, foi util para outros setores. E 0 cabo de fibra ética, essencial telefonia, veio de outra drea 38 Afonso Murad as mudancas sempre comecam. As megaigrejas pasto- rais cresceram enormemente nos Estados Unidos. Elas perguntaram: “que é valor?" a um ndo-freqiientador de igrejas. E constataram que é muito diferente daquilo que as igrejas tradicionais pensavam estar suprindo. O maior valor para os freqiientadores das megaigrejas.é a experiéncia espiritual e ndo 0 rito, acrescido do envol- vimento em servigos voluntarios..Portanto nem a tec- nologia nem o uso final sdo bases para a politica de gestao, mas sim os valores do cliente e suas. decisdes com base na utilizagao da renda disponivel. Se as organizagées levarem a sério a observacao de Drucker, empenhar-se-do em valorizar os conhecimen- tos € a tecnologia que parecem fora de sua area tradi- cional. Por exemplo: as.contribuigdes da antropologia cultural e da ciéncia da comunicagao chegarao depres- sa a escola para ajudar os educadores a compreender © que esta acontecendo na mente ¢ no coracao das criangas e adolescentes e como as mudaneas culturais condicionam a aprendizagem. Além disso, os gestores das escolas nao escutarao somente as familias a quem atendem, mas procurardo mecanismos para compreen- der as necessidades e os desejos dos que “estado fora dos seus muros". Gestao de pessoas As empresas modernas, especialmente aS-de servi- gos, descobriram que os “talentos humanos” so sua principal riqueza, depois da marca e da imagem. Por isso desenvolveram técnicas e procedimentos miltiplos em vista de potencializar 0 “capital humano*. Fazem questéo de mostrar ao mercado que valorizam seus funcionarios. Até 0 nome mudou. Nao se fala mais em “empregado", e sim em “colaborador” ou outro termo que traduza maior envolvimento ‘afetivo e efetivo da pessoa no ‘empreendimento, Nessa mesma linha, os grandes executivos usam boa parte de seu tempo para monitorar, avaliar, estimular e redirecionar a atuacao das pessoas que esto sob o seu comando. Investem muita energia para escolher adequadamente os cola- boradores, definindo bem o perfil ideal para a tarefa necessaria. Dissemina-se a cultura de que cada che- fia imediata forme e acompanhe as pessoas que fazem parte de seu time (anteriormente chamados de “subar- dinados' , em vista da satisfacao do cliente e dos resul- tados a alcangar. A geréncia de recursos humanos (ou termo equiva- lente) tornou-se, em muitos casos, 0 coragdo da em- presa. Desenvolvem-se processos cada vez mais pro- fissionais para selecionar os colaboradores, especial- mente aqueles que desempenham fungées estratégicas. 83 9 OF1S85 apepijem 39 40 Afonso Murad Criam-se sistematicas de avalia¢éo de’ desempenho, conjugando critérios objetivos e.subjetivos. As empre- sas investem muitos recursos no treinamento e na for- macdo continuada de seus colaboradores. Aplicam po- liticas de beneficios (comorseguro-satide, suporte edu- caciondl, aposentadoria complementar), proporcional 4 rentabilidade da organizagao e & necessidade de manter determinados profissionais em seus quadros. Por fim, criam até procedimentos para acompanhar a demissao das. pessoas, de forma a atenuar o impacto negativo. Periodicamente, as empresas realizam uma pesquisa de clima organizacional para detectar varios aspectos rela- cionados ao ambiente de trabalho, ao fluxo de informa~ gGes, aos sentimentos e 4 percep¢do dos colaboradores _€m relago a organizacao. ~ Drucker (2001) acrescenta um fator importante: as organizagdes modernas apresentam um novo tipo de colaboradores que cresce cada vez mais. Ele os deno- mina de trabalhadores do conhecimento, ou seja: pes- soas que detém um saber especifico, que as qualifica de maneira prépria. Sabem mais do seu trabalho. do que suas chefias; sendo seriam desnecessarias. Além disso, as chefias de hoje nao. ocuparam, antes, o cargo dos membros de sua equipe de trabalhe, como acontecia antes; Entao, o relacionamento da coordenagdo com » sua equipe assemelha-se mais aquete do maestro de uma orquestra com seus instrumentalistas.. 0 trabalha- dor do conhecimento depende da chefia somente para definir padrées, valores, desempenho e resultados. Nas outras coisas, precisa de independéncia para criar. A insatisfagdo com o salario desmotiva o trabalho, mas a reciproca nao é verdadeira. A remuneracao, so- zinha,, nao’ motiva. Os trabalhadores do conhecimento precisam, acima de tudo, de desafios, conhecer a missdo da organizacgdo e nela acreditar, dé treinamento conti- nuo, € ver resultados. Cada vez mais, os colaboradores sero gerenciados como parceiros. E como parceiros sao iguais, nao se pode simplesmente dar ordens, mas per- suadir. Ai esta 0 segredo do gestor: trabalhar em grupo, redefinir em equipe a tarefa, mas sempre gerenciar para o desempenho. A meta € tornar produtivos as forcas e 0 conhecimento especifico de cada pessoa. Se as organizagdes querem sair do marasmo e (re)conquistar-seu lugar na sociedade, devem imple- mentar, com ousadia e 'profissionalismo, a gesto de pessoas, a qual se conjuga com a estrutura funcional flexivel e diversificada, apontada anteriormente. Ambas estao direcionadas para o servigo concreto que se pres- ta ao destinatario (ou cliente), visando a resultados concretos. A introdugao de procedimentos sistemati- cos dé avaliagdo de desempenho, conjugando fatores diversos, ajudara a melhorar a atuacdo dos profissionais apepieniuids3 8 ogisep 41 42 Afonso Murad € valorizara os reais talentos humanos. Podera acarre- tar a substitui¢éo dos que atuavam de forma deficiente em areas estratégicas e executivas e até ento se es- condiam debaixo do manto da ineficdcia, travestida de aparente boa intencdo. A gestdo de pessoas, ao almejar a constituigdo de uma “instituigdo aprendente", impli- cara, necessariamente, um grande investimento em for- magcdo continuada. Conclusao aberta Neste capitulo, selecionaram-se seis pilares para edificar_a gestao eficaz na atualidade: visio generalis- ta, estrutura flexivel, potitica de mudanga, inovacao e continuidade, Ambito da gestdo € gestao de pessoas. A imagem dos “pilares” evidencia que ‘nao se aprende a habilidade da gestao de uma forma mecdnica, assi- milando conteddos. Menos ainda em livros de receitas Para 0 sucesso. Os cursos de graduacdo e pés-gradu- acdo em gestdo sdo cada vez mais necessarios para quem atua a/frente de institiuigdes, No entanto, livros € cursos serdo Uteis aos gestores se de fato oferecerem chaves de compreensao para a acdo transformadora. As vezes, uma pequena descoberta pode levar a gran- des mudangas. A questo fundamental é pensar sobre a propria pratica, inserindo-a em horizonte mais amplo, e -ter a coragem de fazer melhor. 2. EMPECILHOS A GESTAO Anos atras, uma escola cristé que tinha um diretor com visdo muito aberta resolveu fazer a releitura de suas op¢des pedagdgico-pastorais a luz da ecologia contemporanea. Essa inovagdo marcava um diferen- cial competitivo no mercado, além de traduzir a atua- lizagdo do carisma do fundador. Mas encontrou uma série de resisténcias internas, 0 que fez a proposta da escola caminhar muito lentamente. Anos depois, 0s concorrentes assumiram a ecologia integral como bandeira e, com isso, conseguiram melhorar sua ima- gem na cidade e captar mais alunos. Entao, perplexo, o diretor perguntava-se: por que saimos antes e che- gamos depois? Ha muitos outros casos, nos quais algo novo irrompe nas insttuigdes, & interrompido e poste- riormente apropriado pelo concorrente. Por qué? 44 ad Afonso Mur Neste capitulo, seréo apontados fatores da cultu- ra institucional que dificultam a insercdo diferenciada de organizagées na sociedade e no mercado. Cultura institucional significa, aqui, 0 conjunto de habitos, de atitudes, de procedimentos, tacitos ou explicitos, que configuram o seu rosto e influenciam as pessoas que trabalham nela. O nucleo da questao reside na dificul- dade em conduzir organizagdes complexas no atual momento historico. Acumulam-se fatores paralisantes, que as tornam deficientes tanto na misséo humanista quanto no negécio. Quais seriam esses?” Visao estratégica insuficiente Viséo estratégica é a competéncia para: ler cendrios externos, compreender as oportunidades e ameacas que oferecem e construir solugdes que respondam’a deman- da emergente, antecipando-se ao futuro. A palavra “es- tratégia" vem do vocabulario militar. Evoca a arte de compreender a si mesmo e ao seu inimigo, potencializar . Recentemente, tornou-se conhecido no Ocidente o classico A arte da suas forgas e explorar a do adversa guerra, de Sun Tzu, com distintas publicagdes e.versdes. Ha uma visdo equivocada, que considera a estratégia como algo especifico do capitalismo, intrinsecamente ruim, pois transforma as pessoas em meras pecas de um jogo de xadrez. Na verdade, a habilidade estratégica € muito.antiga. Em culturas tradicionais, é desenvolvida nao somente nos povos que fazem guerra, mas tam- bém naqueles que exercitam 0 comércio e estabelecem relagdes culturais com outros. O confronto com o di- ferente desequilibra suas certezas e estimula a buscar um novo equilibrio. Na atual sociedade brasileira, ha um grupo que explicitamente se contrapée 4 economia de mercado e cuja lideranca desenvolve enormemente a visdo estratégica: 0 MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Os grandes gestores capitalistas descobriram que a visdo estratégica é fundamental para ter sucesso num mercado de alta concorréncia e de mudangas rapidas. 0 grande problema do capitalismo nao consiste na visao estratégica, mas em usd-la somente para o lucro, em detrimento de outros valores fundamentais. Produzem- se riqueza e valor em intensidade jamais vista. Mas es- tao concentrados, cada vez mais, em poucas maos.' E - causam um impacto crescente no meio ambiente, con- duzindo a destruigéo de “comunidades de vida" e ao desequilibrio no ecossistema. “0 Brasil 6, realmente, o pais dos grandes contrastes. No seu teritorio, que abriga mais de quatorze milhes de pessoas passando fome, segundo dados recentes do IBGE, ¢ possivel também registrar 0 maior crescimento percentual no numero de ricos de todo 0 mundo [..). Os trezentos e cinquenta mil ricos da América Latina controlavam ao final da ‘ano pasado uma riqueza da ordem de USS 4,2 trlhdes, o que — pelos valores envolvidos e pela divisdo per capita — mostra coma 0 modelo concentrador de renda esta em franca ascensdo em todo 0 mundo” (Carlos José Marques, editorial da evista/sto £ Dinheiro n. 458, de 28.6.2006, p. 7) apepifeniuids3 8 ogise: 45 46 Uma releitura contempordnea da Biblia fara desco- brir como a visdo estratégica esta presente na men- talidade judaica, enquanto habilidade de responder, de forma sistémica e criativa, aos desafios emergentes. Basta ver, por exemplo, os complexos mecanismos uti- lizados por Moisés para libertar 0 povo do Egito (cf. Ex 5-10). E também a forma como lidera os hebreus no processo de educacdo do povo no deserto, visando consolidar a conquista da Terra Prometida (cf. Dt 6-8). Moisés antecipa-se aos fatos, responde aos desafios com rapidez, pois tem uma grande meta a alcancar: constituir 0 Pove de Deus, fiel a Javé e a sua alianca (cf. Dt 10,12-15). Quando Jesus pede aos seus disci- pulos que sejam “simples como as pamhas e espertos como as serpentes" (cf. Mt 10,16), esta lembrando algo vital na visdo estratégica: a argucia, o olhar atento, a superacao da ingenuidade. . Quando se afirna que a visdo estratégica é uma competéncia, quer-se dizer com isso que € uma habi- lidade, algo que deve ser aprendido 4 medida que se exercita. Algumas pessoas tém mais possibilidade do que outras para desenvolver a competéncia estratégica. Em principio, todo ser humano pode ampliar sua com- peténcia estratégica. A visdo estratégica insuficiente, somada ao pouco senso de profissionalismo na conducao das organizacées, € a grande responsavel por deficiéncias que impac- tam significativamente o seu desempenho. Dentre os sintomas da caréncia de estratégia, destacam-se os seguintes: percepcao ingénua da realidade, énfase no patriménio tangivel e investimentos desproporcionais e compreénsdo equivocada sobre marketing. Percepgao ingénua da realidade Muilas instituigdes no esléo habituadas a lidar com instrumentais cientificos para ler 0 cenario in- terno e externo. Nao poucas vezes, baseiam-se em informagdes de algumas pessoas que consideram con- fidveis e ignoram tantas outras. Subestimam as pes- quisas de opiniao e outros instrumentos atuais. Nao tém a pratica de promover uma escuta sistematizada de sua clientela. Ora, o que tal procedimento sinaliza de falta de visdo estratégica? \ Segundo Braga e Monteiro (2005,-p. 18), 0 mais im- portante elemento que distingue um gestor com visdo estratégica de outro sem essa visdo € a capacidade de diferenciar a percepcdo subjetiva do que € concreta- mente real: As pessoas comportam-se e decidem de acordo com aquilo que percebem ser real, 0 que elas acreditam estar certo. No eritanto, em muitas ocasiGes as acontecimentos nao se dao exata- mente da forma como o gestor os entende [...] apepileniuids 9 oFIse5) 47 48 QR B 2 B 5 Ha casos em que o mantenedor nos diz (a con- sultoria) “nossos alunos estéo muito satisfei- tos com a qualidade do curso tal" [...] Quando vamos averiguar tecnicamente essa satisfacdo, constatamos que ela esté presente em nao mais do que cinqUenta por cento dos alunos. Também é comum, conforme os autores, que os ges- tores e coordenadores de instituigdes de ensino superior afirmem que seus cursos sao melhores do que os dos con- correntes. No entanto, quando se analisam os indicadores de qualidade, constata-se outra coisa. Ora, “um verda- deiro estrategista jamais toma como fato concreto a sua percep¢do da realidade sem antes valida-la mediante in- dicadores confidveis" (Braga e Monteiro, pp. 18-19). Uma das maneiras de superar 0 amadorismo é mu- nir-se do maior numero possivel de informacées, de va- rias fontes, e confronta-las com instrumentos cientifi- cos, para avaliar criticamente a situagdo da instituicdo € tomar as decisées cabiveis. Enfase no patriménio tangivel e, investimentos desproporcionais Varias organizagées do terceiro setor comecaram sua atuagdo no Brasil com poucos recursos. Em mui- tos casos, ganharam terrenos do poder publico ou das dioceses, ou os adquiriram a precos médicos, pois, na €poca, nao havia especulacao imobiliaria. Consolidaram um enorme patrim6nio material a partir do ingente tra- balho de varias geracées. Isso explica porque varias ins- ,tituigdes ndo somente possuem um patrimGnio material invejavel, como também cultivam grande respeito e cuidado pelo seu patriménio tangivel, especialmente as edificagdes. Como seus prédios foram construidos len- tamente e expressam algo de sua cultura institucional, ha um certo apego afetivo e efetivo ao patriménio. Hoje, patrimGnio tangivel nao significa producdo de valor. Ao contrario, os custos corh limpeza, manutencado e reforma de estruturas fisicas podem comprometer os resultados de determinado empreendimento. Além dis- SO, as empresas de ponta investem muito mais no pa- trim6nio intangivel, aquele que nao esta imediatamente ao alcance da mao, mas produz valor, como tecnologia, marca e imagem. Qualquer dominio na area do conheci- mento que tenha aito valor agregado “vale mais" do que prédios. O homem mais rico do mundo, um dos sécios da Microsoft, multiplica sua riqueza com o software, um conhecimento intangivel. As marcas, hoje, valem mais do que o seu patriménio. A marca Coca-Cola, a mais poderosa do mundo, tem um valor intangivel mui- to maior do que todos os seus prédios e maquinaria.? 2 “Ainda que todas as nossas fébricas e instalagdes fossem consumidas pelo fogo amanha, o valor da empresa mal seria afetado; tudo 0 que realmente compde 0s intangiveis representados por nossa marca e pelo conhecimento coletivo da organizacao” (Roberto Goizueta, falecido CEO da Coca Cola. Citado por Kotler [2003, p. 119]) gy 8 OFISa_, Nyids3 9 OF » 4g 50 Afonso Murad Mas as organizagées tradicionais mantém o paradig- ma da prioridade do patriménio material, como se esse constituisse uma realidade intocavel, sem referéncia a realizacao efetiva da missao, ao contexto econdémico- financeiro, ou sem proporcdo com o retorno de seu in- vestimento. Recentemente, uma determinada instituigdo educa- cional investiu vultosa quantia na construgdo de salas de aula e dotagao de laboratérios para implantacdo do ensino superior, sem fundamentar-se no estudo de via- bilidade do empreendimento. A faculdade foi implan- tada numa cidade de porte médio, que ja tinha cursos similares com pregos mais atrativos. O .investimento descapitalizou a organizacao e nao ha previsdo de re- torno. 0 curso deficitario continua minando os seus re- cursos e nao ha perspectivas de mudanga. Nao se faz uma reflexdo sobre o fato. Simplesmente, lamenta-se, porque nao deu certo... Outro caso comum consiste em investir em equipa- mentos sem levar em conta a necessidade da contratagdo do profissional para otimizar sua utilizagdo. Por exémplo: numa escola, monta-se um laboratério de informatica com maquinas potentes de ultima geracdo, mas nado ha uma pessoa competente para viabilizar a informatica educativa com educadores e alunos. Falta, ainda, uma articulagao do laboratério de informatica com a proposta pedagégica da escola. Sabe-se que a taxa de depreciacao de computadores é muito alta e o equipamento torna- se obsoleto em poucos anos. Fazer investimentos, com mentalidade estratégica, levaria a considerar, no mesmo projeto, a viséo pedagdgica, os equipamentos e as pes- soas adequadas para lidar com eles. Compreensao equivocada sobre marketing Falta um instrumento para avaliar, estatisticamen- te, como os gestores de instituigdes véem o marketing € com qual conceito de marketing atuam. Tudo indica que a concep¢ao predominante € aquela que identifica marketing com propaganda. O marketing nao € sequer entendido conforme as definigdes gerenciais comuns, como “a arte de vender produtos”. Como a propaganda nao seria constitutiva da missdo’e do negécio de orga- nizagdes que atuam com educagao, salide e assisténcia social, deveria ser acionada somente no momento em que a instituigao esta em crise e necessita captar novos clientes ow recursos adicionais, para nao desaparecer. Verificam-se casos, cada vez mais comuns, de tra- dicionais escolas em descenso, que se lancam, durante a época de matriculas, a fazer propaganda com alguns meios ja conhecidos, tais como folders, encartes nos jornais de domingo, cartazes e outdoors. Em cidades do interior, também se faz propaganda no radio e até na 51 52 Afonso Murad TV local. A tarefa € realizada de forma amadorista. 0 material publicitario nado traduz um conceito, um.po- sicionamento da instituigdo diante da sociedade e do mercado. Ela simplesmente se anuncia de qualquer for- ma, na ilusdo de que, assim, vai salvar-se.> Uma escola, localizada no interior, ha muitos anos acumulava resultado negativo e amargava a crescente perda de alunos, embora a cidade apresentasse boas perspectivas de crescimento. 0 diretor ja havia enviado uma solicitacao 4 matriz (mantenedora), para que fosse liberada uma verba extra para propaganda, o que in- cluia até mesmo anuncios na televisdo local. Em visita a escola, a equipe educacional da instituigao analisou sua_ situacdo e chegou a outra conclusdo: nao adiantaria fa- Zer propaganda enquanto a auto-estima dos professo- res, dos alunos e de suas familias estivesse em nivel tao baixo. A imagem da escola deveria melhorar “de dentro para fora". Uma analista disse ao diretor: E incoerente vocé dizer que a escola é a melhor da cidade se nao percebe coisas elementares, coma as placas da cantina, que esto tortas, quase caindo. Faga uma andlise apurada ‘da qualidade de todos os servigos prestados pela escola e como as familias a percebem. 8 Ver a opinido de Ariza em Colombo (2004, p. 68) No ano seguinte, houve mudanca na direcdo. Em dois anos a escola recuperou sua imagem; e a Clien- tela também. Kotler define 0 marketing camo “um processo socie- tal por meio do qual individuos e grupos obtém aquilo de que necessitam e que desejam com a criaco, a ofer- ta ea livre negociagao de produtos e servicos" (2005, p: 6). Para ele, trata-se de um processo, nao de um mo- “mento, e que envolve toda a organizacdo (societal), nao somente uma parte dela. O marketing é utilizado para compreender, criar, comunicar e fornecer valor. “ — Rauséncia de visdo estratégica faz com que as ins- tituigdes nem sequer conhecam o chamado “mix de 53 marketing”, que é essencial para a viabilidade das orga- nizagées. Visdo estratégica comporta, necessariamente, um planejamento de marketing. E as agdes de marketing 86 so conseqiientes se estao inseridas na estratégia " global da instituigao. Amadorismo e pouca énfase em resultados Certa vez, um grupo de consultoria foi atender uma escola catdlica, localizada em cidade de’ porte médio, * Sobre a finalidade do marketing, vera sintese de Kotler (2000, pp. 31-51).

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