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ETNOMUSICOLOGIA/ANTROPOLOGIA DA MUSICA - DISCIPLINAS DISTINTAS? Anthony Seeger E uma honra estar aqui no Rio de Janeiro com vocés, neste pré- dio da Escola de Musica da UFRJ, pois. no periodo em que eu era professor adjunto no PPGAS [N.E.: Programa de Pés-graduagao em Antropologia Social] do Museu Nacional, estive aqui conversando com Dulce Lamas, professora de Folclore. Achavamos que seria muito interessante fazer alguma coisa em conjunto, no Museu Nacional e na Escola de Musica. Isso era dificil naquela época por varios moti- vos, entre eles, a falta de um corpo docente e discente, na Escola de Musica, interessado e preparado no assunto. Hoje, quase trinta anos mais tarde, este quadro mudou muito. Aqui trabalham o professor Samuel Aratjo ¢ seus colegas, e ha outros professores em varias universidades no Rio de Janeiro que criam uma massa imponente de estudiosos sobre musica. E também uma honra estar aqui ao lado de Bruno Nettl, que conhego ha muitos anos, um dos fundadores da Sociedade Norte- -Americana de Etnomusicologia junto com meu avé Charles Seeger. Nettl, no decorrer dos anos, sempre tem apoiado uma visdo ampla do campo da etnomusicologia. Foi eximio editor da revista Ethnomusi- cology. Ele nao dizia: isto nao é etnomusicologia, nao entra na revista da Sociedade de Etnomusicologia (varios alunos meus escreveram trabalhos para a Ethnomusicology em outras épocas e receberam esta resposta). Bruno Nettl é um homem que tem uma visio vasta e generosa do campo académico na area de musica. Infelizmente, nao so todos assim, nem seus colegas de musicologia, nem meus colegas da antropologia. Penso que a questdo importante para debater, hoje, nao ¢: 0 que é etnomusicologia? A questio fundamental para mim é: 0 que é a musica? Porque a resposta a esta questao vai determinar quais sao os campos intelectuais importantes no estudo do fenédmeno. No inicio da ctnomusicologia', entéo concebida como musicologia comparada, investigadores estudavam gravagGes em cilindros de cera realizadas em lugares distantes. Era um tipo de “musicologia de gabinete” (se- melhante a antropologia da época) e a tinica coisa que foi possivel trazer para esses gabinetes foram gravacées de som. Existe uma falsa impressao, criada em parte pela midia, de que musica é somente som. No entanto, a musica nao ¢ apenas som. Musica ¢ também — como nos ensinou Alan Merriam (1964) — a intengdo de fazer sons. é a mobilizagao de grupos para fazer sons, é a industria de fabricagao. distribuigdo e propaganda sobre musica. Musica é muita coisa além de som, No decorrer da historia da musicologia. a resposta de grande parte dos musicdlogos a pergunta “o que é musica?” foi que musica é som. Isto é muito diferente, a meu ver, da resposta 4 mesma per- gunta dada por um antropologo. Um antropologo diria que musica ¢ um dos processos sociais através dos quais as pessoas criam e participam em relagGes sociais de diversos tipos. A musica é, assim, um recurso social que, em certos momentos, vai ser utilizado junto a outros recursos sociais. + NE: A musicologia comparada tem vigéncia entre 1885 e meados do século XX aproximadamente. Hoje quem escreve sobre musica? Quase todo mundo esta escre- vendo sobre musica — music6logos, antropdlogos, historiadores etc Li anteontem, nas paginas financeiras do Jornal do Brasil, uma longa reportagem sobre pirataria e musica aqui no Brasil. Ha jornalistas que também escrevem. Etnomusicdlogos e musicologos nao tém mais um monopdlio sobre 0 objeto da nossa disciplina. Compartilhamos o mesmo com muitos outros estudiosos, mas cada disciplina retém uma especificidade importante — cada um usa a musica para empreender uma conversa diferente. Uma disciplina ¢, até certo ponto, um dialogo. Euma conversa com pessoas mortas e com pretensos ouvintes que ainda irao viver. Quando fazemos um trabalho sobre a musica — sobre os cantos dos Suia, por exemplo (Seeger. 2004) — estamos debatendo com Aristoteles, Rous- seau, Marx e também com Bruno Nettl. Estamos, simultaneamente, conversando com pessoas ainda nao nascidas. Isso ¢, parece-me, 0 procedimento académico, uma conversa que escapa ao tempo. Oxala futuros pesquisadores leiam nosso trabalho. Todavia, as disciplinas de base se diferenciam nas questdes debatidas. As questdes que tenho sobre os cantos Suid ndo so as mesmas questées que pessoas que tém uma formagdo musicologica mais tradicional teriam. Porque minhas questées tém uma preocupagao com principios e processos semelhantes, que ocorrem tanto na musica, como na cosmologia e na organizacao social. Esta ¢ uma questao sobre a vida social humana — nao unicamente sobre sons. Nao quero dizer que os sons devem ser esquecidos — sao tao importantes precisamente pelo fato de que os Suia os acham importantes (Castro, 2002). Precisam de uma analise séria e profunda. Contudo, minha conversa principal é com teorias sobre a sociedade e a natureza humana Onde ¢ que se deve estudar etnomusicologia? Onde deveria estar colocada a etnomusicologia nas instituigdes de ensino? Essa é uma pergunta que meu av6 Charles Seeger enfrentou quando formou 0 pri- meiro Departamento de Musicologia na Universidade da California, em 1913. Ele escreveu um trabalho perguntando onde deveria estar situada a musicologia (Seeger, 1923). Deveria estar nos conservatorios de musica, porque la todo mundo pensa sobre musica? Ou deveria ser alocada nas universidades académicas ao lado da antropologia. sociologia. filosofia. entre outras? Ele argumentou que é essencial que a musicologia esteja presente na universidade, porque a musi- cologia usa a linguagem para falar e escrever sobre musica, ¢ assim tem afinidades com os campos de pesquisa que usam a linguagem. Falar sobre a musica nao é a mesma coisa que fazer musica. Entre essas duas coisas, ha uma brecha grande, sobre a qual Charles Seeger escreveu durante cinco décadas. Ja que se trata de uma disciplina falada, a etnomusicologia deveria estar junto com outras disciplinas que usam, em suas interpretagées, todo um instrumental linguistico: a linguagem como um dos pontos de partida para suas anilises. Aqui no Rio de Janeiro. a musicologia e a etnomusicologia devem estar na “Escola de Musica” ou num departamento de ciéncias sociais? E possivel argumentar que as escolas de musica, aqui no Rio, estao tdo preocupadas com a produgao de misicos, que é dificil destinarem apoio financeiro e técnico para um programa de etnomusicologia. E também possivel que haja este apoio a uma filosofia que contemple simultaneamente a investigacao linguistica e pratica— mas isso deve ser examinado com cuidado em cada caso. Sempre havera um conflito do seguinte tipo: vamos contratar mais um professor para dar aula de piano ou vamos contratar um etnomusicologo? Exatamente por esse tipo de questo houve uma sessao numa reunido da Sociedade Norte-Americana de Etnomusicologia, dedicada a questao: “Por que a etnomusicologia esta radicada em departamentos de musica?” Na Universidade da California, em Los Angeles, ha trés depar- tamentos de musica, exatamente porque nao era possivel resolver esse conflito entre manciras de se aproximar da musica — como as do intérprete e compositor, do analista de musica ocidental ou do estudioso de musica de todos os tipos no mundo todo. Nos temos um Departamento de Musica que trabalha na formagao de musicos e compositores. Temos um Departamento de Musicologia que trata da musicologia historica (14 existem excelentes pessoas estudando musica popular e musicologia pos-moderna). Temos, também, um Departamento de Etnomusicologia, onde trabalho atualmente, que permaneceu na Faculdade de Artes. Nosso departamento conta com pessoas de formagao em ciéncias sociais, em musicologia historica, e com musicos. A vantagem da separagdo das unidades é que cada departamento pode fazer as escolhas que quiser sobre a contratagaéo dos professores. sobre os concursos para entrar no programa, sobre 0 que deveria fazer um aluno de pos-graduagao etc. Esta independéncia nos critérios de funcionamento facilitou muito o trabalho de todos: fez cada departamento crescer e melhorar. Agora, devo acrescentar que o perigo da diviséo ¢ que os alunos (mais que os professores) vo esquecer que as outras maneiras de se tratar a musica existem e devem ser estudadas. Concordo com Bruno Nettl que sempre existe um perigo de isolamento e redugdo de perspectivas em grupos de trabalho nas universidades. Contra isto tenho uma receita essencial: leia muito, converse com colegas de outros departamentos, participe de congressos diversos e evite isolamento intelectual. Como é que se cria um clima de colaboragao, de interagéo numa organizagao fundamentalmente burocratica e que precisa de divisées para crescer? Este ¢ um grande desafio para alunos e professores. Os alunos tém que derrubar as muralhas de Berlim burocraticas que existem entre o Museu Nacional e¢ a Escola de Musica, ¢ entre a UFRJ e outras universidades no Rio. Vocés tém que realizar os saltos intelectuais, aproveitando o melhor de cada disciplina. Os professores podem contribuir muito nesse sentido, criando meios de interagéo entre as instituigdes. As Escolas também podem colaborar através de eventos tanto aqui quanto na Unirio, ou no Museu Nacional. Debater com Bruno sobre a definigéo de etnomusicologia nao tem sentido, porque concordo com o que ele diz. Entretanto, tenho opinides diversas das dele sobre como deveriam ser os programas de etnomusicologia. A formacao institucional ideal varia muito de pais para pais, de cidade para cidade e de época para época. Espero que aqui no Rio de Janeiro surja uma formagao institucional que crie uma nova geragéo de estudiosos capazes de teorizar sobre toda a musica do mundo, de hoje, do passado e do futuro. Certamente esto comeg¢ando bem agora, finalmente, trinta anos apds minha primeira visita a esta Escola. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS CASTRO, Eduardo Batalha Viveiros de. A inconstncia da alma selva- gem (e outros ensaios de antropologia). Sao Paulo: Cosac & Naify, 2002 MERRIAM, Alan. The Anthropology of Music. Evanston, N: Northwes- tern University Press, 1964. SEEGER, Anthony. Why Suyd Sing: A Musical Anthropology of an Amazonian People, 2nd Edition, University of Illinois Press, com CD. 2004. (1° ed., 1987, Cambridge University Press, com fita cassete) SEEGER, Charles. Music in the American University. Educational Review 66, p. 423-431, September, 1923

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