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Cadernos LUTA SOCIAL

número 2

Internet: http://www.luta-social.org
E-mail: iniciativalutasocial@gmail.com

Sumário

EDITORIAL
Directiva do retorno instaura o fascismo na Europa
Comunicado da CGT-E
Apelo à Cooperação em Defesa da Escola Pública*
Vários
Sobre o referendo ao Tratado de Lisboa na Irlanda *
Por José Antonio Gutiérrez D.
(Espanha)
Sobre as origens da crise presente do capitalismo
Por Manuel Baptista
(Colectivo Luta Social)
Capitalismo e autoritarismo. O papel de Estado no apoio a ambos
Por Grazia Tanta
Cadernos “LUTA SOCIAL” / Critérios para Publicação
EDITORIAL
O Colectivo Luta Social apresenta-vos o segundo «Caderno Luta Social».
O tema central escolhido é o Estado, essa construção complexa e sujeita às
evoluções mais variadas, apenas conservando como referencial imutável a
manutenção do poder nas mãos de alguns.
Podemos questionar-nos acerca da realidade e viabilidade de Estados -
«nações», de construções pluri-étnicas ou pluri-nacionais, ou ainda de
entidades supranacionais e de potências regionais, enquanto estruturações
normativas da vida dos povos.
Podemos fazer a crítica da visão ideológica do Estado como garante da
redistribuição das riquezas. O Estado Providência, ainda invocado nos
discursos, transformou-se paulatinamente no Estado Mínimo, destinado a
conter a revolta dos segmentos populacionais desinteressantes do ponto de
vista do capital – os reformados, os desempregados, os estudantes, os pobres
em geral.
Podemos analisar os casos particulares das transformações ocorridas na
Saúde e na Educação…. Ou como a Segurança social se transformou num
instrumento de pressão para que o trabalhador desempregado aceite a
desqualificação de um emprego qualquer, sob chantagem… Ou ainda como as
pensões de reforma se foram rapidamente reduzindo, a pretexto da falácia do
aumento da esperança de vida e da redução da natalidade.
Qual o papel das forças armadas e de segurança em geral no contexto actual
da fusão de ambas as suas funções, num panorama esquizofrénico em torno
da ameaça terrorista e da criminalidade?
Quais as novas formas de que se vem revestindo a ligação entre o capital e o
aparelho de Estado, com os mecanismos de ‘contratualização’, privatização,
parcerias público / privadas, adjudicação de serviços, etc.?
Qual o papel do Estado na formação da ideologia dominante, do consumismo,
da teologia de mercado, da sacralização da concorrência, da atomização do
indivíduo enquanto trabalhador e sua agregação enquanto massa de
consumidores?
Finalmente, encaramos também com particular interesse, estudos de formas de
organização da humanidade que apontem para a dispensabilidade dessa
construção chamada Estado, mormente na sua forma capitalista de hoje.
O estudo de alternativas organizativas para a produção e para a gestão da
sociedade constituem formas de afirmação do pensamento libertário junto dos
leitores dos Cadernos, em clara confrontação com as várias apresentações de
um papel supostamente insubstituível do Estado, nomeadamente provenientes
de quem admite uma sua mudança regeneradora.
Para esta publicação reflectir a actualidade e diversidade do pensamento
libertário, estamos abertos a diversos ângulos sob os quais se podem encarar
As questões teóricas e práticas relacionadas com o Estado.
Quaisquer sugestões, críticas ou colaborações deverão ser encaminhadas
para: iniciativalutasocial@mail.com
Um abraço solidário do Colectivo Luta Social

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COMUNICADO da CGT-E:
Directiva do retorno instaura o fascismo na Europa
Hoje é o dia da vergonha, o dia europeu da caça à pessoa imigrante, o dia em
que os direitos humanos deixaram de ser universais. Hoje foi aprovada a
Directiva sobre a detenção e expulsão das pessoas estrangeiras pelo
Parlamento Europeu, cuja redacção tinha sido anteriormente aprovada pelos
governos da União Europeia.
A directiva da Vergonha constrói-se basicamente sobre duas medidas
repressivas: generalização antidemocrática do internamento arbitrário até 18
meses das pessoas indocumentadas; e o retorno forçado, sem possibilidade de
voltar a pisar o solo europeu durante 5 anos.
A Europa transforma-se numa fortaleza militarizada ao mesmo tempo que
paraíso para o movimento de capitais, produtos e serviços, militarizada e que
criminaliza o simples facto de ser imigrante sem recursos e sem documentos,
seres humanos que serão forçados a retornar, sem possibilidade de voltar a
pisar solo europeu como se fossem criminosos perigosos.
A Directiva de Retorno recém aprovada, constitui a expressão máxima do
retrocesso calculado, desenhado pelas elites políticas e económicas europeias
em matéria de direitos humanos. Esta agressão centra-se agora na legitimação
da inexistência de direitos para as pessoas migrantes, para quem estão
preparadas prisões especiais sem garantias jurídicas e com tempos de
detenção arbitrários, além do retorno forçado sem possibilidade de regresso.
Mas, uma vez dado este passo, quem garante que a breve prazo não se
eliminem direitos fundamentais aos que ostentam o duvidoso título de
cidadãos/ãs?
Agora - com mais afinco e menos travões - as forças de segurança dos países
da UE poderão dedicar-se com impunidade à caça ao imigrante, a deportação
brutal com colorações fascistas na Itália de Berlusconi.
Agora, com alguma hipocrisia mais, no resto dos países europeus, que estão a
pôr em prática isto gostosamente. Dentro de pouco tempo veremos as
estatísticas destas indignas e particulares olimpíadas, em que se disputa o
primeiro lugar de ser o país com maior número de imigrantes caçados e
expulsos. Muitos de nós temem que os primeiros lugares caberão ao reino de
Espanha e à república de Itália.
Mas, a vergonha deste dia, não a transportam apenas os governos e os
europarlamentares, sem dúvida trata-se da vergonha de todas e todos, de nós
europeus/eias, das sociedades embriagadas pelo consumismo e o medo, é a
vergonha da nossa incapacidade para dar resposta ao capitalismo totalitário de
uma UE, que para lá da crise provocada pelo ‘não’ irlandês ao novo Tratado,
está disposta a impor a sua forma de governo antidemocrática e as finanças
acima dos direitos e das necessidades das pessoas.
CONFEDERACIÓN GENERAL DEL TRABAJO
http://www.luta-social.org/2008/06/comunicado-da-cgt-espanha-directiva-
de.html

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Apelo à Cooperação em Defesa da Escola Pública
Estimados/as Camaradas,

Tal como noutros lugares na Europa, em Portugal, neste momento, a Escola


Pública está sujeita a um ataque sem paralelo. A gravidade dos ataques, a sua
convergência e simultaneidade, não pode deixar quaisquer dúvidas: trata-se
realmente de uma ofensiva concebida e coordenada ao mais alto nível.

Onde os povos têm tido, de longa data, uma forte ligação aos valores da escola
pública universal e laica, este ataque pode estar mais camuflado e a resistência
pode ser maior.
No nosso país, onde muitos de nós se envolveram activamente na construção
de uma sociedade mais justa, a reacção de repúdio tem sido muito viva,
procurando contrariar os recuos sociais, nomeadamente no domínio da
educação.
Neste estado de espírito, um grupo informal e heterogéneo de militantes
comprometidos/as com a defesa da Escola Pública propõe a adesão da Vossa
organização/associação/sindicato à realização de um Congresso Europeu Pela
Defesa da Escola Pública, Laica e Universal a realizar 6, 7 e 8 de Abril de
2009. Precisamos de lutar contra a fragmentação que nos ameaça, através da
solidariedade e acção em comum. É urgente construir um modelo alternativo
sério, tanto em termos de gestão pedagógica como relativamente às redes de
solidariedades combativas dos sindicatos de trabalhadores da educação, de
sindicatos de estudantes e das associações de pais.
Propomos igualmente que subscrevais um apelo público (a redigir e aprovar de
comum acordo entre todas as instâncias que aderirem à ideia do referido
Congresso) denunciando a destruição selectiva da Escola Pública com a
privatização dos domínios considerados rentáveis na educação.
Este congresso deveria ser realizado em colaboração estreita entre
profissionais dos vários países. Nós propomos que participeis desde já na
definição e discussão dos diversos painéis ou workshops, assim como em
quaisquer outros aspectos da organização. Com efeito, pretendemos fazer
deste evento um tempo de reflexão para a continuidade do combate que
travamos nos diversos países e de abertura em relação aos interesses e
aspirações de muitos milhões de cidadãos europeus que têm na Escola pública
o principal senão o único meio de escolarização.

Saudações fraternas,

Alda Margarida Azevedo, Bebiana Gonçalves, Cláudia Girelli, Elodie Mota,


João Goulart Medeiros, Manuel Baptista, Maria Conceição Rolo, Maria Romana
Reis, Nuno Freitas, Paula Montez, Teófilo Braga, Vítor Lima.

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Sobre o referendo ao Tratado de Lisboa na Irlanda *

José Antonio Gutiérrez D.

[…]
Contra (quase) todos os prognósticos da elite política, o Tratado de Lisboa foi
rejeitado em referendo na Irlanda. Com mais de 50% de participação eleitoral,
o NÃO impôs-se com uma margem categórica, por cerca de 53% dos votantes.
Isto foi um verdadeiro balde de agua fria para as elites, irlandesa e europeia.
Não duvidamos que também foi uma alegria para a imensa maioria de
cidadãos europeus aos quais foi negada a possibilidade de votar no Tratado,
por uma União cada vez menos democrática e cada vez mais burocrática.

Recorrerem-se a todos os meios para pressionar o eleitorado por um voto de


apoio a Lisboa: terrorismo mediático, que previa toda a espécie de catástrofes
apocalípticas sobre a economia e a sociedade, se o referendo apontasse para
uma rejeição; um ostracismo da União Europeia; uma enchente de papel e de
espaços televisivos a apelar ao voto a favor. Os meios de imprensa, em vez de
informar de maneira tão imparcial quanto possível, optaram por uma entusiasta
e desavergonhada adesão à ratificação. Experimentaram tudo, excepto uma
coisa: apresentar argumentos convincentes.
[…]

(*) Para ler o resto do artigo consultar:


http://www.anarkismo.net/newswire.php?story_id=9175

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Sobre as origens da crise presente do capitalismo

O mundo tem vindo a sofrer uma das mais graves crises do sistema capitalista
e esta ainda vai a meio. Podemos traçar a sua origem próxima (a sua origem
remota radica no próprio sistema capitalista como modo de produção): é a crise
do crédito à habitação nos EUA. Com efeito, há cerca de um ano e meio, neste
país, começaram os créditos hipotecários – concedidos principalmente aos
compradores de suas habitações – a ficar de cobrança incerta, devido às
dificuldades económicas diversas que a classes média e trabalhadora vêm
experimentando desde há sete anos. O regime de Bush incentivou o consumo,
o recurso ao crédito, como uma espécie de keynesianismo em tempo de
«guerra contra o terror», afirmando o «patriotismo» de se gastar, de recorrer ao
crédito, de se fazer dívidas. Isto, num país já tradicionalmente inclinado a
consumir mais do que produz e a recorrer ao crédito com muita frequência.
Os especuladores, ansiosos por salvaguardar os lucros gerados nas bolsas,
correram a um «mercado derivado», que dava menos para especular, mas com
a segurança de que o devedor tinha uma razoável probabilidade de pagar a
tempo e horas o crédito imobiliário e os juros correspondentes. Quando isto
tudo faliu, assistiu-se (em Setembro – Outubro de 2007) a injecções massivas
de biliões de dólares nos bancos que estavam em maiores dificuldades, por
parte do banco central, o banco emissor de moeda, «Federal Reserve Bank».
Claro que isto iria criar ainda mais inflação.
A inflação é estrutural, tal como o desemprego, num sistema capitalista. Neste,
não há maneira de dominar a inflação completamente, porque a massa
monetária mundial está na proporção de 6:1 relativamente a tudo o que se
poderia comprar (quer esteja à venda, quer não) neste planeta. Seriam
necessários 7 planetas Terra, para que o valor monetário total correspondesse
ao valor de tudo aquilo que tem hipótese de ser adquirido com ele.
Assim, os especuladores deixaram de ter um «porto seguro» para as suas
mais-valias, geradas nos casinos que são as bolsas de valores no mundo
inteiro, New York, London, Paris, Frankfurt, Tóquio, Hong-Kong etc.
Os grandes investidores, como os bancos, que promovem sociedades de
investimento em acções por eles geridas, captando as poupanças dos
trabalhadores ou mesmo fundos de pensão geridos pelos próprios sindicatos,
têm que assegurar aos seus clientes uma elevada «rentabilidade»: só poderão
obter um retorno do investimento com mais-valias superiores a dez por cento
(já descontada a taxa de inflação) nos mercados mais especulativos. Porém, a
volatilidade dessas cotações é tal, que apenas derivando uma parte dos lucros
para investimentos de retaguarda, como obrigações a juro fixo (de grande
estabilidade, mas dando pouco lucro) ou … o mercado matérias-primas, visto
que o crédito hipotecário estava em crise.

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O facto é que, desde o verão de 2007, em plena crise do crédito hipotecário, os
capitais especulativos vão investir e especular cada vez mais com o oiro, o
petróleo, os cereais. Não espanta pois a subida em flecha das cotações dessas
matérias-primas. O que espanta é a profusão de pseudo análises que esconde
propositadamente a razão e a lógica que está subjacente a estes bruscos
aumentos. Estes são os mecanismos tradicionais em momentos de recessão
económica. A classe capitalista não quer perder completamente os lucros
gerados em fase expansiva e vai exercer pressão de compra nas matérias
primas. O que gera a actual crise da subida nos cereais não é a subida do
petróleo, não é uma súbita sucessão de catástrofes naturais que, conjugadas,
fizessem baixar as reservas de cereais que existem em muitos países. Não! A
crise é gerada e mantida pelo afã de lucro do capital especulativo, que nunca
está saciado e precisa de sua mais-valia como um «junkie» precisa da sua
dose de heroína quotidiana.
A expropriação e abolição da propriedade dos meios de produção de todos os
bens e dos serviços continuam a ser indispensáveis agora, como há cem anos
atrás. O movimento operário e socialista, nas suas diversas componentes,
sabe isso. Experimentou-o com maior ou menor sucesso em vários momentos
da sua história, Comuna de Paris, Revolução Russa, Revolução Espanhola,
etc.
A propriedade privada dos meios de produção é o principal obstáculo à gestão
racional e dirigida à satisfação básica dos seres humanos. A propriedade
estatal apenas irá criar uma nova classe de proprietários, os burocratas, como
aconteceu no chamado «socialismo real», que se apropria colectivamente das
mais-valias geradas pelos trabalhadores, os quais são espoliados de qualquer
semblante de controlo sobre os instrumentos de produção (os sindicatos
tornam-se máquinas do regime, totalmente submissas, destinadas a enquadrar
as massas).
Resta pois avançar em direcção ao socialismo libertário, etapa nunca atingida a
uma escala global, de um país ou continente inteiro. Não se trata de nenhuma
utopia no sentido de algo irrealizável, mas de uma forma alternativa de
organização da sociedade. Como seres fortemente determinados culturalmente
(o mesmo é dizer com grande indeterminação genética) somos capazes de
inventar diversas formas sociais, como tem sido feito ao longo da história.
Neste momento, há que avançar com a utopia realizável, preparando-nos para
o aprofundar dos abalos, das fendas e rupturas que estão a acontecer debaixo
dos nossos pés e diante dos nossos olhos: Só vejo uma maneira; reforçar os
valores e as práticas da solidariedade, do espírito livre e igual. Temos de nos
unir, nós somos a imensa maioria, nós que não beneficiamos com a economia
mafiosa e especulativa dos ricos.
Manuel Baptista
(Colectivo Luta Social)

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Capitalismo e autoritarismo
O papel de Estado no apoio a ambos

Por Grazia Tanta*

A forma como se encaram as questões em epígrafe determina as diferenças


essenciais entre a esquerda e as esquerdinhas, a revolução e a aceitação da
(des)ordem estabelecida. Porque a sua clarificação é necessária, entendemos
escrever estas linhas.

Índice
1– Aspectos a clarificar para uma actuação política mais profícua
2– O carácter desastroso do capitalismo
3– O autoritarismo na empresa e em casa
4– O Estado, a base de todo o autoritarismo
4.1 – O surgimento e configuração do moderno Estado-nação
4.2 – O Estado como produtor. O capitalismo de Estado
4.3 –O intervencionismo keynesiano
4.4 - O Estado no contexto do neoliberalismo
A actuação neoliberal
A estratégia das esquerdas institucionais e as alternativas anti-capitalistas

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1– Aspectos a clarificar para uma actuação política mais profícua

A situação que o capitalismo, particularmente na sua actual versão


neoliberal provoca, vem agudizando os graves desmandos a vários níveis:
a nível económico, com a subalternização da actividade produtiva face à
especulação e à financiarização da economia global;
a nível social, com o aumento da insegurança no trabalho, a repressão e o
desinteresse pela sobrevivência de enormes faixas de seres humanos;
a nível político, com a dicotomia entre governantes corruptos e incapazes e
os governados, apesar das loas hipócritas que se vão tecendo sobre a
democracia de mercado, cujo conteúdo se vem revelando mais e mais
restritivo;
a nível ambiental, com os problemas do aumento da temperatura, da
desflorestação, da poluição e da redução da biodiversidade.
O pensamento progressista, anti-capitalista e anti-autoritário, apesar dos
esforços analíticos de muitos pensadores devotados à libertação da multidão
de trabalhadores está hoje, longe de ter conduzido a um enraizamento
organizado nas camadas populares, sobretudo, quando comparado com a
proliferação de organizações que trabalham para o apuro da gestão
capitalista à escala planetária.
Um aspecto em que o capitalismo tem sido particularmente hábil é o do
aproveitamento de ideias revolucionárias e progressistas para, através do
seu desvirtuamento, gerar a ideia de que se preocupa honestamente com o
bem-estar dos trabalhadores e da humanidade em geral. Para esse
desvirtuamento contribuem decisivamente os aparelhos ideológicos, com
relevo para os media; e a cooptação aos seus objectivos estratégicos ou a
domesticação de forças políticas e sociais de origem popular ou
revolucionária, destacando-se neste contexto, partidos socialistas e
comunistas, bem como a maioria dos sindicatos.
O processo histórico tem, no entanto, mantido intacta - ainda que com uma
influência minoritária junto da multidão de trabalhadores, sobretudo no
capítulo organizativo - as virtualidades profundas do pensamento libertário.
Vamos aqui cingirmo-nos a dois aspectos essenciais:
A recusa frontal e radical do capitalismo como sistema global de gestão da
Humanidade, nomeadamente a apropriação privada dos meios de produção,
do produto do trabalho, da própria vida humana;
A não aceitação do autoritarismo sob as suas várias formas, mormente
através do aparelho do Estado, nos locais de trabalho e no âmbito familiar
(patriarcalismo);
Há ainda um aspecto, o da afirmação da democracia directa e da
responsabilização a todo o momento dos representantes para com os
representados que trataremos oportunamente.

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2– O carácter desastroso do capitalismo

O capitalismo é, do ponto de vista da gestão económica um verdadeiro


desastre. Apesar dos meios técnicos e tecnológicos de hoje permitirem a
vida condigna a 12 mil milhões de seres humanos, o capitalismo está longe
de assegurar o bem-estar à grande maioria dos actuais 6 mil milhões. A
cupidez inerente aos capitalistas gera um subinvestimento em áreas tão
importantes para a vida humana como a saúde, a habitação ou o ambiente;
e a acumulação de rendimentos e riqueza nas mãos dos capitalistas trava o
consumo da multidão e condena o sistema a baixas taxas de crescimento
económico. Essa cupidez do capitalismo vem, irresponsavelmente,
reduzindo a biodiversidade e degradando o ambiente tornando o Homem
como o único ser vivo que destrói o seu próprio habitat.
A acumulação capitalista causa profundas desigualdades regionais e sociais
irracionalizando a distribuição do Homem pelo planeta, tornando
improdutivas enormes extensões de recursos sob o primado da
competitividade e do mercado, tornando o comércio (e não a produção)
como o elemento virtuoso da actividade económica, apesar dos enormes
custos de transporte.
Dessas desigualdades resultam conflitos e guerras um pouco por toda a
parte, para além da insegurança e do banditismo de vários matizes. Esses
elementos alimentam, não só a economia do crime mas, também as
multinacionais e o sistema financeiro que constituem a tríade de elementos
essenciais da acumulação capitalista.
A cega procura do lucro constitui um entrave ao desenvolvimento
tecnológico com o adiamento da entrada em produção de descobertas
essenciais para a melhoria das condições de vida das pessoas, ou um real
acesso a medicamentos, por exemplo.
Inversamente, a introdução de alimentos geneticamente modificados é
objecto de uma enorme pressão sem que se conheçam os seus efeitos a
longo prazo, quer sobre os organismos humanos e animais, quer da
contaminação da flora natural. Lembramos que a BSE resultou da espantosa
tentativa de tornar os bovinos animais carnívoros, para aumentar o ritmo de
crescimento da produção de carne ou leite. A recente tentativa do governo
sul-coreano de introduzir carne suspeita proveniente dos EUA tem
provocado fortes reacções populares e revela a íntima relação entre Estados
e empresas.
O mal-estar social, o desemprego, os preços da habitação, a precariedade, a
pobreza produzem um consumo enorme de anti-depressivos, ansiolíticos e
afins, formas de obstar, de modo lucrativo para as multinacionais, ao mal-
estar psicológico de milhões de pessoas.
A pressão desapiedada sobre as condições de vida da grande maioria dos
seres humanos configura, cada vez de modo mais evidente, o carácter de
genocídio levado a cabo pelo capitalismo.
Posto isto, a luta anti-capitalista não é apenas uma questão de aumentos
salariais acima da taxa de inflação, ou da idade da reforma, ou das leis que
configuram os despedimentos ou o funcionamento da justiça. Tudo isso está

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marcado pela existência do capitalismo como sistema dominante de gestão
da humanidade e, portanto todas as lutas são parciais e necessariamente
integráveis no combate pela destruição do capitalismo. É uma questão de
sobrevivência para a Humanidade.
Sendo a luta pela melhoria das condições económicas a realidade mais
imediatamente perceptível ela deve ser enquadrada numa perspectiva mais
alargada e, sobretudo, enquadrá-la num quadro não somente de defensiva
mas de ofensiva, com iniciativas constantes e até audaciosas que afectem o
funcionamento do sistema global capitalista. Quer com o reforço das acções
conjuntas entre trabalhadores de vários países, quer prejudicando
objectivamente o funcionamento do sistema com acções localizadas na
infra-estrutura mais frágil do capitalismo, como as vias de transporte, as
comunicações, a distribuição de energia, como no conhecido caso do
“businão” de 1994, na ponte 25 de Abril ou, mais recentemente, pela luta
coordenada dos camionistas ou dos pescadores do sul da Europa.
3– O autoritarismo na empresa e em casa

O autoritarismo é uma característica cultural inerente às sociedades


baseadas na propriedade privada dos meios de produção e do produto do
trabalho. Ele revela-se através da hierarquização não democrática das
relações sociais insinuando-se, como cultura, nos hábitos sociais e, portanto,
na sua aceitação como facto inelutável, próprio da vida social. Como
característica cultural, o autoritarismo não dispensa, contudo, o apoio dos
sistemas coactivos, da lei, dos regulamentos e regras disciplinares como
superestrutura formal de legitimar o poder de alguns sobre muitos.
O autoritarismo ao nível da empresa baseia-se no direito a que o patrão se
arroga de decidir sobre o processo produtivo, as condições de trabalho e
remuneratórias dos assalariados (hoje chamados cinicamente de
colaboradores), os investimentos e a distribuição da riqueza criada. Essa
autoridade absoluta contradiz o carácter social da produção, sobretudo nos
tempos de hoje, em que as qualificações tendem a ser elevadas, permitindo,
objectivamente, ao colectivo dos trabalhadores da empresa dispensar o
capitalista, o detentor do poder e gerir a empresa numa perspectiva de
colectividade e não do poder de alguns sobre a maioria. Tornando-se o
processo produtivo muito complexo, só o saber conjunto dos trabalhadores
pode gerir adequadamente a empresa, resultando o poder do capitalista
como de um elemento de ordem política (a lei) e não de uma real
necessidade do próprio processo produtivo.
A interligação entre as funções dos diversos trabalhadores, a sua
interdependência, o seu domínio colectivo das técnicas de produção e de
gestão comercial e financeira, concretas permite, por conseguinte uma
gestão democrática da produção da riqueza, sem um poder autoritário,
despótico e parasitário do capitalista. Há, pois que incutir nos trabalhadores
a consciência da sua força colectiva e da sua capacidade conjunta de gerir
as empresas, em seu próprio proveito, como seres humanos.

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Outra forma típica e enraizada de autoritarismo é a concepção patriarcal das
unidades familiares, baseada na aceitação da predominância do homem
sobre a mulher, considerada poucos séculos atrás, no ocidente como um
homem incompleto, desprovida de “alma”, gerada a partir de uma costela do
homem. Como é evidente, nas sociedades ocidentais, o patriarcalismo está
em acentuada crise pela generalização do papel da mulher na angariação de
rendimento familiar através do trabalho remunerado e, pela maior liberdade
de realização sexual, em parte derivada da vulgarização da pílula anti-
conceptiva.
Contudo, o patriarcalismo ainda apresenta grande vitalidade como
demonstrado pelas diferenças salariais entre homens e mulheres para
funções idênticas, pela predominância de homens em posições de chefia e
direcção, no maior desemprego feminino ou na violência doméstica. Não se
pode deixar de referir o cinismo dos sistemas de quotas nos cargos políticos
adoptado por muitos partidos ditos socialistas ou da esquerda institucional,
convencidos que desse modo dão um exemplo a seguir nas empresas e nos
lares. Ocultam uma das características do capitalismo que é a segmentação
dos trabalhadores em várias categorias (sexo, raça, imigrantes com ou sem
papéis…) para estabelecer diversos níveis salariais e assim estabelecer
pressão para uma baixa dos níveis salariais.

4– O Estado, a base de todo o autoritarismo

4.1 – O surgimento e configuração do moderno estado-nação

A expressão mais complexa de autoritarismo é a presença do Estado,


com as formas de actuação que lhe são inerentes.
Na sua génese, o Estado, ancorado numa figura despótica com atributos
divinos, servia para estabelecer e garantir as regras de obediência e
exploração da maioria, para benefício dos detentores da terra que para o
efeito criaram uma burocracia e um mandarinato, agrupados em torno da
tal figura despótica, ungida pelos deuses. No período feudal, a instituição
de um suserano com poderes limitados, género de “primus inter pares”
revelava também a interligação hierarquizada entre o conjunto dos
senhores da terra; e, por seu turno, as mudanças dinásticas revelavam as
suas lutas internas para a manutenção de uma certa (des)ordem social.
Como essas regras, no seu conjunto, nunca foram, em qualquer época,
propriamente favoráveis aos trabalhadores tornou-se necessário forçar a
sua legitimação com o uso da força, desenvolvendo-se, para o efeito,
exércitos, guardas pretorianas, prisões, execuções, polícias e tribunais.
Isso, em complemento do papel da religião e, muito mais tarde, da escola
e dos media na homogeneização e domesticação das mentes.
A mundialização da economia, a partir do século XVI, com a rapina de
terras e a escravização em massa de pessoas, constituiu a força

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impulsionadora do capitalismo como sistema dominante. O alargamento
da área de actuação e o enorme crescimento da actividade económica
daí resultante obrigaram a uma certa cartelização dos senhores de um
dado espaço geográfico, umas vezes unidos por uma língua e cultura
comuns, outras nem tanto; dessa cartelização nasceram, o moderno
estado-nação e o patriotismo.
Os estados-nação constituíram-se de facto, em prisões de povos e
trabalhadores, numa escala bem mais alargada do que a vigente para os
servos da gleba do passado então recente. Estabeleceram-se fronteiras e
arregimentaram-se exércitos para as defender tornando-se a guerra forma
comum de aumentar a riqueza. Assim, cada cartel, isto é, cada burguesia,
procurava assenhorear-se em exclusivo dos seus trabalhadores, como
reserva de mão-de-obra, dando uma designação de estado-nação à sua
coutada.
Por seu turno, o nacionalismo tornou-se a ideologia da introdução de um
sentido de pertença a esse espaço alargado, tornando-se o patriotismo
culto obrigatório do estado-nação, forma criativa de dividir os povos e os
trabalhadores entre si, de os fazer enfileirar ao lado e em benefício dos
“seus” senhores e dos “seus” capitalistas sob os auspícios do que se
costuma chamar, interesse nacional. Cada estado-nação tinha, portanto o
seu rei, bastas vezes divinizado ou erigido em autoridade absoluta; a sua
lei e a força repressiva necessária para a fazer valer; o seu exército; e,
tendencialmente, a sua religião e a sua língua dominante. Tudo isso à
sombra de um símbolo sob a forma de trapo agitado pelo vento, a
bandeira nacional.
Esta unidade nacional de interesses dissonantes e antagónicos entre
trabalhadores e camadas possidentes, mormente a burguesia, foi, desde
o princípio uma verdadeiro embuste para dividir a esmagadora maioria
das pessoas, miseráveis e maltratadas, contra os seus vizinhos do outro
lado da fronteira, com igual condição. Note-se, no mapa político de hoje, a
arbitrariedade das fronteiras que, de facto, nada dividem geograficamente
de distinto, abarcando frequentemente comunidades de culturas diversas
sob uma mesma nacionalidade; com os conflitos e guerras que se
conhecem.
O domínio total da burguesia ou do espírito capitalista com Cromwell e na
Holanda (século XVII) e, mais tarde, a criação dos Estados Unidos da
América e a Revolução Francesa (século XVIII) criou as bases para um
aumento da intervenção estatal, para além da defesa, da polícia, dos
tribunais e dos assuntos externos. É o domínio da intervenção dos
aparelhos dos Estados na conquista de mercados coloniais, de apoio à
navegação comercial e à pirataria, do alargamento do sistema educativo
para fazer face às novas necessidades do processo produtivo.
Ideologicamente a economia política constitui-se como ramo autónomo,
derivado da filosofia, articulando um enorme lastro do puritanismo
protestante com os interesses comerciais da burguesia inglesa; mas,

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facilmente adoptada pelas restantes. Com a criação dessa ciência
originariamente marcada por uma classe social em ascensão, erguem-se
como verdades científicas, autênticas panaceias, os mitos do equilíbrio
natural entre produção e consumo, da concorrência como virtude, da
especialização competitiva, das vantagens da concentração da poupança
social em alguns (investidores) em detrimento das condições de vida de
muitos (trabalhadores), das compensações do trabalho árduo como fonte
de riqueza para os mais esforçados. Este último ponto, ainda hoje muito
presente no imaginário americano, mais se assemelha a um conto de
fadas pois, o trabalho árduo raras vezes permite sair da mediania ou,
quando conduz à riqueza, apresenta demasiadas vezes roubos e fraudes
pelo meio.
A partir do final do século XIX, o desenvolvimento tecnológico e a maior
complexidade do ambiente social, tornam necessária a escola, entendida
como elemento de maciça preparação para as tarefas inerentes à
produção ou para a formação de quadros administrativos e políticos
destinados ao aparelho estatal. Tal como o serviço militar, a escola
passou também a servir como elemento de reforço da coesão nacional,
de enquadramento patriótico, com a glorificação ou invenção dos heróis, o
amesquinhamento dos estados e povos concorrentes. E, a sublinhar da
importância de um Estado forte, colocado acima dos cidadãos, como ente
com interesses próprios (o interesse nacional) a sobrepor ao dos
indivíduos e, “obviamente” neutro no que respeita aos conflitos entre a
burguesia e as classes populares, nas disputas entre ricos e pobres.
Pela mesma época, finais do século XIX, nos países de capitalismo
avançado, começa a levantar-se a necessidade de sistemas extensivos
de saúde e segurança social, para além do quadro limitado das
instituições religiosas e de caridade. Até então, o campo, a emigração e a
escravatura foram fontes inesgotáveis de mão de obra para o trabalho
industrial e nas cidades, pelo que o investimento na saúde dos
trabalhadores seria excessivo e dispensável. A organização autónoma e
combatividade do proletariado, a maior complexidade do processo
produtivo, das tecnologias, o abandono da escravatura nas metrópoles
imperialistas, obrigaram o capitalismo a propiciar melhores condições de
vida para os trabalhadores das metrópoles, porquanto nas colónias
europeias, o trabalho forçado e a brutalidade eram a regra.
A educação e a saúde, como necessidades transversais aos sectores
mais dinâmicos e modernos da produção capitalista, assentavam que
nem uma luva nas funções estatais, acrescentando-se, portanto, às
atribuições tradicionais dos aparelhos, gerando mais elos na ligação entre
as funções estatais e as necessidades do capital.

4.2 – O Estado como produtor. O capitalismo de Estado

A rápida degenerescência da revolução russa de 1917 significou a


adulteração da produção colectiva e iniciou a assunção directa pelo

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Estado da actividade produtiva propriamente dita, inaugurando-se assim
o capitalismo de Estado. Na ausência (histórica ou por esmagamento) de
uma burguesia clássica, o capitalismo de Estado passou a ser o recurso
para uma acumulação acelerada levada a cabo por uma minoria de
eleitos, corruptos erigidos em vanguarda, tornando-se as massas
trabalhadoras objecto de uma exploração acrescida, por vezes sob a
forma de “emulação socialista”, batalhas de produção e cuja resistência
significava uma repressão brutal ou mesmo a morte.
O Estado passou a estar omnipresente na organização económica, na
detenção dos recursos, para além da saúde, na educação, na defesa e
repressão, as funções tradicionais. As funções policiais e de propaganda
ganharam um papel de uma dimensão nunca vista, sem se perder de
modo algum o culto da pátria, antes pelo contrário. No capitalismo de
Estado, o líder é o Grande Irmão, o pai dos povos, figura que Stalin
herdou do czar; e, como pai tradicional é austero, severo e distante. O rei-
sol Luís XIV ao dizer “L’Etat c’est moi” não podia imaginar o poder que um
líder de um capitalismo de Estado poderia ter sobre a sociedade.
O surgimento dos fascismos italiano e alemão não se baseou na
estatização da propriedade capitalista mas, na coordenação subordinada
do capital privada aos desígnios nacionais, assentes numa mística
nacionalista e imperial. O Estado, polarizado no seu líder, um duce, ou um
fuhrer, erigia-se em determinante único da vida política e económica e,
como sempre convém nestas situações, dando um papel de relevo à
actuação das forças repressivas e de delação, através de partidos de
massas e da utilização extensiva de novas tecnologias (a rádio e o
cinema) para a propaganda.
O modelo do capitalismo de Estado não se confinou às degenerescências
conhecidas por “Estados socialistas” ou aos fascismos tradicionais. Veio a
ser adoptado, com naturais particularidades em países neocoloniais nas
décadas de 50 a 70, com resultados económicos relevantes na Coreia do
Sul, Taiwan ou Singapura mas, menos conseguidos na África ou na
América Latina.
O esforço de guerra quer para os países fascistas como para as
chamadas democracias ocidentais reforçou em muito o papel do Estado
na actividade económica; como produtor directo de armamento ou como
adjudicatário de encomendas ao sector privado, como aconteceu na
Inglaterra, nos EUA ou na Alemanha.
4.3 – O intervencionismo keynesiano

A dependência do nível da actividade económica das encomendas


públicas, iniciado com o New Deal teve o seu seguimento com as
encomendas para a guerra e fez os EUA saírem da grande depressão;
mais tarde, o plano Marshall foi o seu substituto, promovendo a compra
pelos europeus de bens americanos financiados, pelo governo americano.

15
Pela mesma época, Hitler demonstrara como o papel do Estado era
essencial como factor de saída da recessão, mesmo que com a guerra no
horizonte isso constituísse, de facto, um crescimento económico não
consolidado a médio prazo, como se diria hoje.
Esta intervenção do Estado na economia, revelou claramente, as
insuficiências da “mão invisível”, do mercado, já não somente para dotar a
multidão de trabalhadores de um nível de vida sustentavelmente decente
(coisa acessória para os capitalistas) mas, para assegurar um nível de
crescimento gerador de boas taxas de lucro.
O período que se seguiu ao findar da guerra de 1939-45 revelou vários
aspectos da assunção da imprescindibilidade da intervenção do Estado
nacional, numa escala muito elevada.
Primeiro, essa assunção foi teórica, ao nível da teoria económica, com
Keynes e outros a demonstrar que as finanças públicas não são neutras
em relação ao nível da actividade económica; e, que portanto, um deficit
até é … virtuoso, coisa que alguns professores universitários lusos
ensinaram até enveredarem pelo mandarinato, como Cavaco, Constâncio
ou Ferreira Leite;
Foram criadas instituições internacionais para controlo da economia
mundial (FMI, Banco Mundial, GATT) com uma moeda quase única para
as transacções internacionais, o US dólar, a testemunhar a enorme
hegemonia americana no chamado mundo ocidental. Essas instituições
tornaram-se instâncias controladas pelas multinacionais e foram dotadas
de autoridade supranacional, impondo assim, as suas regras aos
Estados-nação, mormente aos de pequena e média dimensão quando
fragilizados por crises orçamentais, financeiras e sociais. E foram
lançadas as sementes do estado plurinacional, com o pioneiro Mercado
Comum Europeu, inicialmente restringido ao carvão e ao aço, à energia
atómica e ao comércio entre os membros.
Ao nível do funcionamento da estrutura produtiva, alguns Estados-
nacionais assumiram o controlo directo de sectores básicos da produção
(metalurgia pesada, química, energia) e do sistema financeiro;
subsidiaram fortemente as grandes empresas privadas; e alargaram os
sistemas de saúde, educação e protecção social, mantidos afastados da
lógica de mercado. Essa extensa intervenção na área social, aliada a um
relativo paralelismo entre os ganhos da produtividade e os níveis salariais
constituiu o que se convencionou chamar o modelo ou pacto social-
democrata ou modelo social europeu, que hoje quase só sobrevive nos
países nórdicos.
A intervenção do Estado, naturalmente, gerindo e propiciando o
fornecimento de força de trabalho ao capital, contribuiu decisivamente
para uma maior rendabilidade deste. Sucintamente, o Estado-nação
assumiu-se como capitalista colectivo, com um papel nivelador,

16
transversal, fornecedor dos capitalistas privados e amenizando os
impactos do capitalismo junto dos trabalhadores e da população em geral,
num contexto de guerra fria e da ameaça ideológica proveniente do
chamado bloco socialista;
Disse-se atrás que os Estados-nação surgiram como uma cartelização de
vários capitalistas para o controlo dos trabalhadores dentro das suas
fronteiras; estes, colectivamente foram, como que objecto de uma OPA
pelos capitalistas das redondezas, através da instituição e
endogeneização do conceito de pátria. A criação dos Estados
plurinacionais manifesta-se através do alargamento territorial, como da
homogeneização de regras de funcionamento da economia
(desarmamento aduaneiro interno, política agrícola comum no caso do
Mercado Comum). Em paralelo, alterações profundas na hierarquização
do capital global correspondem ao esforço de reorganização do capital
em busca de maior concentração de recursos e um consequente aumento
da rendabilidade.
O esforço ideológico que se vem observando para a aceitação de uma
“pátria europeia” enquadra-se no esforço de criação de estados
plurinacionais, federados mas, com um poder central cada vez mais forte.
O papel do BCE, do Tratado chamado de Lisboa, Shengen e as
xenófobas leis da emigração evidenciam a construção acelerada de uma
área territorial alargada, baseada em instituições cada vez mais
distanciadas da multidão de trabalhadores europeus. Como se pode
observar, nada há, conceptualmente, hoje, de novo, face à construção
dos Estados-nação do século XVIII e XIX para além do enorme
alargamento dessa escala inicial e do papel desempenhado pelo Estado.
O aumento da dimensão das empresas, o alargamento do mercado
mundial, afrouxados os controlos coloniais (transformados em
neocoloniais) constitui outro factor dessa reorganização, que prossegue
na agenda do capital, como se vem verificando.
Na Ásia (Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura), o capitalismo
assentou também numa enorme intervenção do Estado mas, com um
conteúdo mais autoritário, adequado ao maior atraso do desenvolvimento
económico de partida e protagonizado por uma diligente burocracia
estatal. A assunção de um desenvolvimentismo tecnocrático fez-se com a
manutenção, em paralelo, do conservadorismo patriarcal na integração
das mulheres no trabalho.
O quadro completa-se com a utilização da repressão, o extensivo
financiamento público, a limitação de gastos militares assumidos pelos
EUA, no quadro da sua suserania regional, o apoio à centralização do
capital nacional, salários baixos e estáveis e apoios sociais como, por
exemplo, em Singapura, na construção de um extenso plano de
construção de habitações. Contrariamente ao que se passou na Europa,
na Ásia o desenvolvimento capitalista efectuou-se num quadro
estritamente nacional, com fronteiras muito defendidas, por entraves

17
enormes à importação e subsídios à exportação.
A integração da esquerda europeia (com relevo para os partidos
socialistas e comunistas como para o grosso do movimento sindical) na
construção do modelo atrás sumariamente descrito foi um contributo
fundamental para a retoma económica e a renovação da respeitabilidade
do capitalismo. Essa aceitação do capitalismo, da falsa neutralidade do
Estado, do jogo eleitoral, cristalizou em rotina a actuação daquelas
instituições de enquadramento de grandes massas de trabalhadores.
Bem instalada como assessoria do capital, a esquerda europeia nem
sequer procedeu à crítica e repúdio do capitalismo de Estado vigente na
URSS, considerado até como “estado operário degenerado” pelos
impagáveis trotskistas, como que aceitando, com um incómodo benévolo
a situação política e social nos países ditos socialistas. Renunciando ao
pensamento, não assumindo a iniciativa estratégica, essa esquerda abriu
caminho ao vazio ideológico e político a que se assiste, pese embora a
efervescência ideológica protagonizada pelo Maio de 1968, pelas lutas
em França e Itália ou pela revolução cultural na China, o surgimento da
crítica ambientalista, a descolonização e até os episódios seguintes à
queda do fascismo português. Essa acção política burocratizante veio a
contribuir fortemente para a relativa passividade da multidão face ao
desnorte actual do capitalismo global.
Essa esquerda burocrática e conformista espalhou implicitamente a ideia
de que essa colaboração entre capital e trabalho seria duradoura (senão
eterna) como modelo de repartição dos resultados das empresas,
possibilitados pelo elevado crescimento económico, por sua vez,
alicerçado na reconstrução do aparelho produtivo e na reorganização do
mundo neocolonial. Nesse contexto, a esquerda europeia antecipou
Fukuyama aceitando que o capitalismo iria prescindir do aumento do seu
poder e da acumulação de capital encontrando-se assim, o fim da
História; estariam encontrados o capitalismo bom e os capitalistas de
rosto humano e aberta uma via celestial para o bem-estar colectivo. O
Estado seria o eterno fiel de uma balança em equilíbrio, acima do capital,
com vocação social, arguto defensor de uma lei e de uma ordem que
permitiria emprego seguro e automóvel à porta.
4.4 - O Estado no contexto do neoliberalismo

A reconstrução das destruições da guerra e a subsequente reorganização


da economia mundial permitiu a existência de bons negócios e elevadas
taxas de crescimento económico e de lucro até ao princípio da década de
70 do último século. Esse crescimento económico permitiu, como atrás se
disse, uma lógica de alguma redistribuição a favor dos trabalhadores dos
países ocidentais, da qual se encarregava o Estado. A lógica mercantil
assente na troca desigual, na política da canhoneira (militar ou financeira)

18
face aos países neocoloniais definia, claramente, quem eram os excluídos
desse processo de crescimento. A energia barata constituía a cereja no
cimo do bolo da relativa harmonia universal do capital.
A actuação neoliberal
A redução das taxas de crescimento obrigou o capitalismo a rever a sua
estratégia, para continuar a assegurar lucros vultuosos, cada vez mais
difíceis de conseguir. As principais formas de o tentar foram:
o assalto aos bens e recursos do Estado, tornado mero regulador passivo
do funcionamento do “mercado”;
as deslocalizações da actividade produtiva e a financiarização da
economia;
a pressão para a precarização e desvalorização do trabalho, o abandono
do objectivo do pleno emprego, o desmantelamento de qualquer
veleidade de Estado social.
O gasto público passou a ser o responsável pela inflação e a exigir
medidas de fundo como o alijar das responsabilidades de gestão nas
empresas, para o qual a “iniciativa privada” estava axiomaticamente mais
bem dotada. Abre-se a época do desmantelamento dos sectores públicos
empresariais, da abertura de sectores tradicionalmente públicos ao capital
privado, da redução de gastos sociais. O objectivo é a total domesticação
do Estado pelo capital, com o abandono de todas as funções que possam
ser fonte de lucro privado ou concorrer com os (prioritários) apoios ao
sector privado.
Procede-se a uma extensa segmentação das fases de produção
deslocando-se muitas dessas fases para locais de baixos salários, baixas
exigências quanto a condições de trabalho e de deficit democrático, para
assim se embaratecer o custo final da produção e acrescer as margens
de lucro. Nesse contexto, o impacto ambiental resultante do enorme
crescimento do aparelho logístico e de transporte foi completamente
negligenciado. E a mobilidade do capital torna os países e os Estados
protagonistas de ofertas enormes de pacotes fiscais, terrenos e infra-
estruturas para captarem o “investimento externo” das multinacionais.
Acelera-se o desenvolvimento da especulação dirigida a títulos e moedas,
em busca de lucros rápidos e fáceis, desviando-se assim capitais dos
sectores produtivos para a bolsa, para as operações de titularização, para
a participação em fundos e fundos de fundos, com a aposta irracional na
crença do crescimento das cotações e da realização futura de lucros,
muito para além do possibilitado pela evolução real da actividade
económica.
Para essa actividade parasitária concorrem lucros dos potentados da
energia, o dinheiro dos fundos de pensões e o capital mafioso, num
volume astronómico e de mobilidade extrema. Essa mobilidade é a causa
primária do aumento corrente do preço do petróleo e dos bens

19
alimentares, tornados instrumentos de especulação, com preços
inflacionados para garantir a desejada rendabilidade aos fundos e ao
sistema financeiro em geral.
A financiarização da economia torna a produção de bens e serviços
concretos menos interessante do ponto de vista do capital e a
determinação dos lucros deixa de ter qualquer relação com a chamada
economia real. Abre-se a época das fusões e aquisições seguidas de
“downsizings” agressivos e anti-sociais em que os trabalhadores são as
grandes vítimas.
Ideologicamente, procede-se à deificação do lucro, do mercado, da “mão
invisível” que dispensa a intervenção do Estado, da concorrência e da
empresa. Os empresários são objecto de todas as atenções, facilidades e
venerações enquanto o trabalho quase é criminalizado e os trabalhadores
se tornam sinónimos de custo e desperdício. Vive-se o tempo de
panaceias como o empreendorismo ou as ciências empresariais
Ao Estado cabe apenas a criação de condições externas para a
frutificação do capital. Hayek e Friedman serviram de arautos teóricos
desta ideologia, rapidamente gerando escola entre gestores globais ou de
pacotilha e mandarins em trânsito para a administração de grupos
económicos ou financeiros, únicos beneficiários da aplicação dessa nova
patrística.
O Chile de Pinochet tornou-se o primeiro laboratório de ensaio dessas
novas teses, (na realidade postulados de uma velha teologia) aplicadas
diligentemente por Thatcher e Reagan, até se tornarem como que uma
imagem de marca do mandarinato. A redução do peso do Estado, a
abertura dos mercados, as contenções salariais e o esmagamento do
bem-estar social dos povos (muitas vezes, já muito parco) tornou-se a
cartilha do FMI durante décadas enquanto a OMC impõe o comércio livre
e olha para o lado face aos subsídios agrícolas e outros proteccionismos
dos países dominantes.
.
A integração dos antigos países de capitalismo de Estado no quadro global
constituiu uma nova janela, muito temporária, de oportunidades mas, sem
alterar o quadro global, de redução das taxas de lucro; o mesmo vem
sucedendo com os entusiasmos relativamente aos “booms” do imobiliário, as
novas tecnologias ou as chamadas “dotcom” elementos em que se pretendeu
alicerçar uma nova era de prosperidade. Curiosamente, é nomeadamente a
China com o seu Estado poderoso, a sua imensa população e os seus
excedentes comerciais e financeiros que determina o nível global da actividade
económica global levantando implicitamente a questão de se saber se o Estado
minimalista defendido pelos neoliberais continuará a ser tão virtuoso como
apregoado, face aos resultados conseguidos pela China.
No âmbito da paróquia lusa, é sintomático que na actual reestruturação do
aparelho de Estado se segmentem os trabalhadores em dois grupos: um, o das
funções nucleares – militares, polícias, tribunais e assuntos externos e o das

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restantes funções. Essa segmentação visa, a médio prazo e, nomeadamente
no que respeita aos sectores da saúde e da educação, privatizar ou
contratualizar a gestão com empresas privadas, como aliás se acha bem
expresso no programa recente de Manuela Ferreira Leite e cujas diferenças
face a Sócrates são marginais. As funções de regulação são objecto da criação
de institutos públicos com os postos dirigentes bem remunerados, a preencher
pelo mandarinato e, em regra, benevolentes com os “regulados” como se tem
visto através do papel da Anacom ou da Autoridade da Concorrência
relativamente à conduta das petrolíferas.
A estratégia das esquerdas institucionais e as alternativas anti-capitalistas
Perante este quadro devastador a esquerda tradicional, mais ou menos fóssil,
utiliza uma linguagem anti-capitalista mas, mantém-se fiel a axiomas sem
aderência com a realidade, quando não eivados por um linear reaccionarismo:
Acredita num retorno ou na travagem do desmantelamento do Estado social
sem curar de observar e, mais grave que isso, querendo fazer acreditar, na
possibilidade de ressuscitar um pacto social-democrata entre capital e trabalho;
Acredita num Estado interventor em benefício da multidão, desde que ocupado
por dirigentes políticos sérios e devotados à causa do povo; parece acreditar
no mito rousseauniano da bondade original do Homem ou em parvoíces como
as emanadas por um Cavaco qualquer sobre a nomeação de um conselho de
sábios virtuosos para gerir a questão do deficit;
Aceita placidamente a manutenção de um quadro essencialmente nacional
para o desenvolvimento da luta anti-capitalista, instituindo um ente
presumidamente unificador que mais parece um fantasma (o Partido das
Esquerdas Europeias);
Acredita na possibilidade de romper o rotativismo bipartidário em que se
consubstancia a alternância política em democracia de mercado e, nas virtudes
da infiltração no aparelho estatal como nos media, enquanto repete ano após
ano, a via sacra de rituais e manifestações contra um painel de agressões cada
vez mais graves contra a multidão;
Parece divertir-se no seu seio com uma feroz concorrência pelo controlo de
influências partidárias nas organizações de trabalhadores ou populares,
infiltrando os seus membros, cooptando os lideres naturais, procurando
subordinar as lutas específicas aos calendários eleitorais, ao jogo político
institucional, revelando assim uma desconfiança típica face às iniciativas
autónomas da multidão;
Com tanta fé, a esquerda tradicional, ainda esperará o dia em que a Nossa
Senhora de Fátima ditará numa conferência de imprensa o fim do capitalismo?
O capitalismo nesta sua versão neoliberal vem mostrando que também com
essa nova roupagem não consegue coadunar as taxas de crescimento com as
suas necessidades de aumento da taxa média de lucro. E, simultaneamente,
não conseguindo adequar a oferta de bens e serviços às necessidades
humanas, vem adoptando uma certa agenda secreta de limitação da procura,

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impondo restrições e sacrifícios à Humanidade. Essa agenda secreta traduz-se
na prática objectiva do genocídio lento e programado deteriorando as
condições de vida, a segurança, a saúde da multidão, com relevo para os mais
pobres, os velhos, as crianças. Por isso, lutar contra o capitalismo é lutar pela
sobrevivência; extirpar o capitalismo é garantir a sobrevivência da vida humana
no planeta, para que nos não aconteça o que vem acontecendo a muitas
espécies animais e vegetais.
A construção de alternativas é, portanto, necessária.
O grau de qualificação à escala mundial obtido pelos trabalhadores, a
complexidade do processo produtivo que obriga à especialização produtiva das
funções, a enorme diversidade de bens e serviços, finais ou intermédios, a sua
dependência de transacções electrónicas de informação, são factores que
evidenciam tanto o carácter social da produção mundial, mandando para o
arquivo da História o estado- nação, como a inutilidade do capitalista.
Em cada empresa, o colectivo dos seus trabalhadores sabe, muito
objectivamente e com todo o detalhe, as características da produção técnica e
da gestão dos recursos, pelo que a presença do capitalista é um desperdício
que afecta a rendabilidade e a produtividade da empresa. Torna-se claro que o
colectivo dos trabalhadores, organizado democraticamente, constitui a única
fonte de legitimidade social e técnica para gerir as empresas.
O que atrás foi referido é totalmente aplicável às necessidades colectivas
desempenhadas pelo Estado, podendo os colectivos dos trabalhadores que
exercem essas funções proceder ao seu exercício sem a interferência corrupta
e bastas vezes incompetente dos mandarins de nomeação governamental ou
partidária. O princípio da decisão sobre as necessidades colectivas assentar ao
nível dos seus beneficiários é de uma meridiana transparência.
(*) http://esquerda_desalinhada.blogs.sapo.pt/

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Cadernos “LUTA SOCIAL” - Critérios para Publicação

1. O conteúdo dos Cadernos deve inserir-se no âmbito dos estatutos do


colectivo LUTASOCIAL.

1.1. Os Cadernos visam constituir uma expressão da secular luta de classes


e do combate anti-autoritário, contribuindo para a reflexão e o debate
sobre os mesmos, dando relevo à divulgação da voz de quem não tem
voz;

2. A colaboração nos Cadernos está aberta a quem neles queira intervir, dentro
dos seguintes procedimentos:

2.1. Qualquer texto proposto para publicação será objecto de análise pelo
colectivo LUTA SOCIAL

2.2. Aspectos que estejam em contradição com os princípios que enformam


os estatutos do colectivo serão objecto de diálogo com o autor do texto
proposto;
2.3. O colectivo LUTA SOCIAL poderá fazer acompanhar a publicação desse
texto dos comentários que entender necessários, frisando assim os
objectivos de debate e reflexão do colectivo;
2.4. Em caso de recusa de publicação, o colectivo LUTA SOCIAL não
deixará de expor ao autor do texto os motivos dessa recusa.

3. Os artigos não assinados são da responsabilidade do colectivo LUTA


SOCIAL; os que forem assinados são da responsabilidade do seu autor.

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