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Colegdo Cultura Negra e Identidades * Luiz Alberto Oliveira Gongalves Petronilha Beatriz Goncalves e Silva O JOGO DAS DIFERENCAS fe setie Ae Omulticulturalismo e seus contextos 4 edigao | a. Autentica € Petronilha Beatriz, Gongalves e Silva Cootidenadors da colegio Cultura Negra © Identidades: Nima Lino Gomes Conselho Editorial: Marta Araujo (Universidade de Coimbra); Ptronitha Beatriz Gongalves ¢ Sea (UFSCAR); Renato Emerson dos Santos (UERD; Maria Nazareth Soares Fonseca (PUCMINAS); Kabongele Munanga (USP) Projeto grafico: Jatro Alvarenga Fonseca a eer ae to da capa: Mirella Spinel Copytigh © 1998 by Liz Alberto Olive Gonelves | eletrOnica: Carolina Rocha ~ Revisio: Rosa Maria Drumond Costa Gongalves, Luiz. Alberto Oliveira 6635} jogo das diferengas: o muiticulturalismo e seus ccontextos / Luiz Alberto Oliveira Goncalves, Petronilha [ Beatriz Gongalves e Silva. - 4, ed. ~ Belo Horizonte: | ‘Auténtica, 2006. 112p. (Cultura Negra e identidades) ISBN: 85-86583-19-7 imentos a Wilton 1, Sociologia da Educagio. 2. Silva, Petronitha Nossos sinceros agradecimentos a Wiltor Beatriz Goncalves e, 1. Titulo. Il Série | Soares Ribeiro pelo importante suporte téc- | nico que ajudou a dar forma a este trabalho, enol ae L a0 auxiliar de pesquisa Zoroastro Costa 2006 Goulart, ¢& amiga Eliane Marta, pela forca e pelo estimulo constante. 3 reservados pela Auténtica Editora 7 publicagao poderd ser rep recdnicos, eletrOnicas, seja cc6pia xerogrifica sem a autorizaglo prévia da editora. Editora 30140071 ~ Belo Horizonte ~ MG i : PABX: 55 (31) 3222 6819 = ro Notas sobre o afrocentrismo e ‘outros estudos étnicos Educagio multicultural ‘Appedagogia da eqtiidade: sucesso escolar € combate aos preconceitos Formagio de professores: aptendizado da diversidade aiticas a educagao multicultural O MULTICULTURALISMO NA AMERICA BRASILERA Fatores exsgenos Fatores endégenos O laborat6rio de novas subjetividades ‘Um didlogo em branco e preto Multiculturalismo e diversidade EsTUDOS CULTURAIS E PESQUISA EM. EDUCAGAO NO BRasit RerenéNcias APRESENTACAO Falar do_multiculturalismo é falar do jogo das,dife- —fencas, cujas regras So definidas nas_lutas sociais por ‘atores que, por uma razio ou outra, expefimentam o gosto amargo da discriminacio e do, preconceito no inte- rior das sociedades em que vivem. om Isso significa dizer que € muito dificil, se nao impos- i esmnnpeer seine Cette POO Fo contextos Sécio-historicos nos quais os sujeitos agem, no- ima politica de significados em tomo da qual dao inteligibilidade a suas proprias experiéncias, construindo-se enquanto atores- ‘As mulheres exigem que se eliminem do vocabulario esteredtipos que as inferiorizem ou que «s descrevam de forma desrespeitosa. Entretanto, nem tudo que é intolera- vel para as feministas nos Estados Unidos, aplica-se para as militantes de outros paises. ",, 9 ’ Em relagio aos negros, podemos fazer as mesmas ob- servagoes. Batendo-se contra as imagens negativas embuti- das nos termos “black” e “negro”, consideram como “politicamente comreto” serem definidos como “afro-ameri- canos”. Nao percebem que incorporam a ideologia etnocéntrica de seus adversirios brancos, que créem ser os Xinicos.americanos das tés Américas, excluindo 0 restante do continente. Afro-americanos somos nés também, os negros brasi- leiros e, ainda, os cubanos, os venezuelanos, os peruanos e assim por diante. Em outros termos, aquilo que os afro- estadunidenses chamam de “politicamente correto”, do lido a partir de nosso contexto hist6rico, representa quinta-esséncia da incomegio. Como se pode ver, 0 contexto de onde se fala é de importancia capital itendermos os sentidos e signi- ficados do multicultu 0 no mundo contemporaineo. fato de que hoje ele tenha se transmutagao, pois, s vvisa mudangas nos mecanismos produtores de sentido na sociedade, a escola e suas priticas didrias nao poderiam ficar de fora dessa critica. Além disso, parece-nos urgente recuperar as hist6ri- as do multiculturalismo, para indicar que elas remontam ao século passado, e retratam muito mais a luta de povos oprimidos do que a preocupagio de educadores pés- modernos bem-comportados. presente ensaio tem 0 objetivo de refletir sobre algu- mas dessas questoes. ta de defender esta ou aque- la definigao de m ralismo, mas de mostrar que seus significados so mutiveis. Mudam a cada momento em que novos sujeitos invadem a cena social, modifican- do as regras do jogo. Couche Cures Nice € loess 10 “ O MULTICULTURALISMO E SEUS SIGNIFICADOS ‘A idéia de escrever este pequeno ensaio surge de questées que nos sao feitas em sucessivos encontros de docentes do ensino fundamental que, preocupados com ‘0s rumos das atuais reformas educacionais, tém nos de- mandado maior esclarecimento quanto ao sentido e sig- nificado do termo *multiculturalismo"y Afinal de contas, © que isso quer dizer? ‘Acreditivamos, entretanto, que escrever sobre 0 ‘multiculturalismo seria tarefa simples para quem se su- poe estar familiarizado com experiéncias, nas quais a diversidade do género humano se constitui em paradigma dg convivéncia. Mas essa simplicidade, como veremos mais adiante, € apenas aparente, pois quem escreve sobre experiéncias ‘multiculturais estd, tanto quanto dg, grupos que as vive, oporiam a toda forma de culturais, ou seja, de etnocentrismos. Em outros termos, seu ponto de parti da € a pluralidade de experiéncias culturais, que moldam_ as interagdes sociais por inteito. Entretanto a proposta multiculturalista € apenas uma das possibilidades, e ndo a tinica, que as politicas cultu- rais no mundo contemporaneo podem vir a ter, pois é obrigada a coexistir (e a confrontar-se) com outros pro- jetos que, como ela, colocam a diversidade cultural no centro de suas preocupacées. 40 é sendio um estimulo a fragmentagao_ da vida social, que leva, conseqilentemente, a desintegra- ‘@o nacional? vel. Certos grupos advogam a idéia de que o mul turalismo deve ser entendido como uma estratégia politica * DSoua, 1991; Buoos, 1967. » Scussmonn, 1992. valores, por consideri-los centrados em algum tipo de cultura que se julga superior a outras. Para esses tltimos? no havera politica multicultural enquanto houver qual- quer forma de etnocentrism¢ Comg no campo multiculturalista misturam-se atores politicos de variadas coloragdes ideolégicas, militantes de diferentes organizacdes e pesquisadores vinculados a instituigdes universitarias, € de se esperar que, em termos conceituais, encontremos definigdes bastante diferencia- das, uma$ das outras, para designa-to. .dicamos, anteriormente, uma das for- lturalismo se apresenta para 0 con- junto da sociedade, a saber: enquanto estratégia politica. Mas tem sido entendido, também, como uma espécie de ico, que deve auxiliar ou orientar a produgio do conhecimento. O raciocinio ali empregado € sim- ples. Parte-se de uma visio critica do proprio conheci- mento transmitido pelas instituigdes organizadoras da cultura. Aqui, incluem-se nao apenas as escolas, as uni- versidades, os museus, as salas de exposigdes artistica, etc., mas também a grande midia e todos os veiculos de comunicagio, tais como: livros, filmes, videos € outros. © papel de dos meios de comunicagdo na construgao de conhecimentos relativos 2 1: 7a € etnicidade nao tem sido suficientemente enfatizado. Investigacoes, entretanto, demonstram 0 impacto sobre os leitores, telespectadores, ouvintes da etnia dés apresentadores personagens, levando-os a reforcar ou negar valores, a construir relag6es in-terétnicas positivas, ou nio. Isso tem sérias repercuss6es na escola € nos propésitos de educagio multicultural, pois alunos e pais, professores € outros profissionais em exercicio nas escolas estio e&postos 4 midia. Necessario se faz conhecer melhor € explorar as possibilidades contidas em todos meios de comunicagéo para a construgao, de conhecimentos, de percepcoes, de atitudes relatival a raga e etnicidade, © maxncarnuino € sts SeANCADOS 3 envolvendo todo o pensamento divulgado sobre essas ques- tes, bem como sobre relagdes interétnicas, interculturais.* Entendendo-se que esse conhecimento transmitido pri- vilegia arbitrariamente a cultura euro-ocidental (branca, mas- culina, crista, capitalista, cientificista, predat6ria, racionalista tc.), silenciando outras culturas, ou tratando-as como infe- riores, 0 multiculturalismo é reivindicado como um antidoto contra 0 eurocentrismo. ‘Ao mudarem 0 foco dos pesquisadores, as categorias te6ricas construidas na experiénci# multiculturalista per- ‘mitem uma leitura do mundo a partir de procedimentos légicos inerentes as culturas dominadas, produzindo, as- ‘um novo conhecimento e, por conseqiiéncia, uma subjetividade descentrada e emancipada dos valores supostamente superiores. ‘Como a transmissio de conhecimentos nas sociedades modemas conta com 0 poderoso suporte dos sistemas Nao €, porém, na escola, que se deve buscar a ori- gem do movimento multicultural. Ele tem raizes muito mais profundas que ultrapassam qualquer reformulagio curricular; ou, para sermos mais a propria pri- tica de condici dentais, contra as muito, vem lutando. Em todo caso, nada impede que se comece a refletir fecuncios entre as teorias sociol6- educagio. Estas aprendem com aquelas como a diversidade cultural foi se constituindo em problema central das sociedades contemporineas. Inicialmente, os confrontos culturais, por vezes dra- mifticos, se davam nas ruas, nos quarteirbes € nos bairros dos centros urbanos’ Em geral, essas relagdes conflitivas tinham offgem nos preconceitos € nas discriminagdes cul- turais e sociais. Pouco a pouco essas tensdes penetram as instituigées da sociedade, que, s6 muito recentemente, pas- sam a ser pensadas em uma perspectiva multicultural. E o caso, por.exemplo, da escola € das instituigdes juridicas. ara finalizar a descriglio de fatores que tomam proble- ‘mitico © significado do fenémeno “multiculturalismo", res- saltamos 0 contexto s6cio-hist6rico no qual ele emerge. Estamos nos referindo as sociedades que hoje véem-se as voltas com a “onda” mulkiculturalista. ‘Temos nos interrogado quanto ao sentido do ‘multiculturalismo em nagbes como a Franga, a Inglaterra, a Espanha, Austrilia, Alemanha, Canada® e outros paises do oeste europeu. Por exemplo, teria ele o mesmo signi- ficado que os paises latino-americanos Ihe atribuem? Basta Jembrarmos que boa parte das criticas cuntra a suposta superioridade de uma cultura em relagao a outras foram dirigidas aos ditos valores euro-ocidentais. Na América Latina, os grupos que reivindicam o re- conhecimento de seu patriménio cultural sao justamente aqueles que construfram as nagdes nas quais vivem. Pare- ce-nos, pois, diferente da situagio daqueles que, por um motivo ou outro, tiveram de imigrar para os pafses euro- peus, tendo de acomodar-se ou adaptar-se a nagdes con- solidadas nas quais se sentiam estrangeiros. As observagdes até aqui feitas alertam-nos para 0 fato 5 Come © Wusoar (Org), 1986. Has & Hu, In: Boas & Bons (Ong), 1993; p.76877 15 hist6rico-sociol6gico rigoroso dos contextos aos quais ele se refere. Os atores falam de lugares diferentes, escrevem, sobre situagdes que, por vezes, niio tém similaridade com nenhuma outra no mundo. ‘Ao lermos a literatura sobre movimentos multicultu- ralistas, pudemos perceber, sem muita dificuldade, as dife- rengas. de que acabamos de falar. Pesquisadores europeus, em alguns casos, hipereriticos em relagio ao etnocentrismo de sua civilizagao, podem escrever ensaios brilhantes em defesa do multiculturalismo sem se afastarem um milimetro sequer de seus valores culturais’” Por exemplo, encontramos obras de autores da pe- ninsula ibérica que analisam, de forma contundente, 0 quanto os valores da cultura latina, transmitidos nas esco- las de ensino fundamental, tém sido “massacrantes" para as crianga iundas dos dido reformas curriculares que reconhecam ciganos de preservarem seu patriménio cultural. Entre- tanto nenhum deles buscou elaborar seus argumentos de- fensivos, na légica da vida cigana, mas sim na de seu proprio universo cultural.® Esse tipo de paradoxo tem dividido, como veremos mais & frente, 0s opositores do multiculturalismo. Alguns, dentre eles, advogam a seguinte idéia: para reconhecer a alteridade € 0 direito & diferenca como certos grupos vem insistentemente reivindicando, nao ha necessidade de aban- ‘donar os valores humanistas ociclentais, pois esses sto de tal forma universais que pressupdem os povos néo-ocidentais, mesmo que esses tltimos se sintam, deles, excluidos? uma lei- , com D'Souza, op. cit; Broom. op. ct. Coucho Cures Nice ¢ leone 16 preciso, € uma tarefa bastante arriscada, fadada a0 insucesso. Por isso pareceu-nos que seria mais pertinente apre-™ sentar as condigdes sociohistoricas nas quais o fendmeno ‘multicultural desponta como um dos principios norteadores de politics culturais. Politicas essas que tém visado, em alguns paises, interferir nas relagdes de poder, que exclu- fem dos centros de decisio imensas parcelas da popula- ‘Go em quase todas as sociedades modernas. A origem do fendémeno multicultural contemporaneo Embora o multiculturalismo tenha se transformado, com apoio da midia e das redes informacionais, em um fendmeno globalizado, ele teve inicio em paises nos quais a diversidade cultural é vista come um problema para a construcio da unidade nacional. Esta tem sido efetuada por intermédio de processos autoritérios, pela imposigaio de uma cultura, dita superior, a todos os mem- bros da sociedade. smo desde sua origem io ético que tem orientado a acao_ almente dominados, aos quais foi ne- de preservarem suas caracteristicas cul- turais. Esta €, portanto, uma das condigdes que favoreceu a emergéncia de movimentos ‘multiculturalistas. No ini- cio, esses expressavam, exclusivamenfe a reivindicagao de grupos étnicos. A partir da segunda metade de nosso século abarcam um universo cultural mais amplo. Con- tam com @ alianga de outras minorias ou de outros gru- pos culturalmente dominados 's, reagem por meio de suas organizagées pol ; ‘serem reconheci- ARs € respeitados quanto aos seus direitos civis.” © Goncats, 197. : % 0 mancRnusno ss SMNEADOS 7 Contudo resta saber porque os movimentos étnicos antecedem outras formas de protesto cultural [As obras de influentes cientistas sociais, algumas de- las escritas no inicio do século XX, podem nos ajudar a responder essa questo. Como suas pesquisas refletem, em grande parte, os condicionantes hist6ricos relativos 0s Contextos nas quais sio produzidas, € possivel en- contrar nessas producdes os motives que levaram os pes- quisadores a pensar 0s conflits interétnicos como conflitos centrais de suas respectivas sociedades. ‘Nessa linha de raciocinio, enquadram-se as obras pro- duzidas, principalmente em paises das Américas do Nor- i, desde sua constituigo, os se deram em termos de confrontos étnicos, religiosos, lingisticos; enfim, culturais. , quantidade de natives, compostos por indios de troncos ¢ linguagens diferenciados, dava prova de uio diverso era o género humano. A complexidade de suas obras e de seus sistemas simbolicos testemu- hava a existéncia de civilizagdes milenares." Como i relatado em varios estudos, o primeiro comta- to com os euro-ocidentais foi dramitico para os amerindios. lugar ao movimento de con- tra-aculturacdo. Este, reitera Bastide, traduz “o desejo de restabelecer 0 equilibrio destruido pelo choque das civli- zagbes, por meio do retorno a um passado, no qual as tensdes ainda eram suportiveis’.3 E nesse retomo a0 * Basmoe, 1989 (1960). ® Basnoe, op. cit, p.221 Basne, op. cit, p22) Couscho Curia Nicaa 18 passado que 0s grupos culturalmente dominados conse- guem reconstituir parte de sua tradicao cultural. ve (© contato cultural prolongado produz aquilo que Bastide chama de “interpenetrag4o das civilizagdes”. H4, pois esta se mantém dominante pela forca fisica ¢ pela persuasao. OS colonizados, por sua vez, estabelecem uma coexisténcia mais ou menos equilibrada, aceitando seleti- vamente parte dos tipos culturais impostos a eles. Entre~ tanto, como sua aculturag’o se realiza sob o exercicio da forca e da persuasio, acabam se aculturat.4o tendo como teferéncia a cultura do dominador. O cenirio pluriétnico do continente americano como tum todo fica mais complexo com a entrada de povos africanos. Oriundos das mais diversas etnias, sto forca- dos a se integrarem no mundo colonial, na condicao de ‘escravos. Com eles chegam experiéncias culturais que, embora arrancadas violentamente de seus contextos his- toricos de origem, vio sendo aos poucos (re)elaboradas nas Américas por meio do contato com outros grupos nao-africanos, dando inicio a novas formas culturais. * Todavia 0 processo de aculturagio dos africanos, no Novo Mundo, foi radicalmente diferente do processo dos amerindios. Abruptamente separados de seus contextos de origem, a eles restavam apenas seus valores espiri- tuais ou, como diria Bastide, sua religiao e seus deuses. ‘Aos poucos, conforme estudos realizados na regito do Caribe e em alguns paises da América Latina, destacan- do-se © Brasil, vao criando formas de revitalizar suas tradigdes religiosas preparando, assim, 0 suporte ideol6- gico de suas revoltas. tu: Apés longo periodo de aparente acomodacao, os afti canos, tal qual os amerindios, resistem ao modelo de dominagio. Nessa fase, aparecem, no Brasil, organizagdes de luta, amplamente estudadas jas pesquisas hist6ricas 0 murcurueauawo sus BomcAoOS 19 como, por exemplo, os quilombos." Esses foram inter pretados, por muitos autores, como verdadeiras socieda- des guerreiras. Eimbora tenham, de fato, desempenhado esse papel muito interessantes que se processava. no Bastide, obra de aftica- nos que nao do e guardavam, dentro de si, “um sentimento césmico”, uma nostalgia profunda = 0 banzo ~ “provocada pela auséncia de um lugar de origem, que engloba: os mitos locais, a divisto das tri- bos, os locais reserva Mesmo sendo ol foram. encontrados em cos ao lado de outros, Alguns abrigavam brancos € mestigos que se opunham ao regime colonial Sendo, pois, destrufdos os focos de resisténcia dos afticanos (embora alguns tenham permanecido), o proces- so de aculturagio, a que sao submetidos, ef tido de garantir a supremacia da cultura qual os aftodescendentes sio forgado |; com a chegada de novas levas de imigrant peus € asidticos." Ainda que os contatos prolongados entre diferentes ‘etnias tenham gerado, em alguns paises mais que em ou- tros, um significative processo de miscigenagio, o proprio desenvolvimento dessas sociedades, com forte 2\\ escravista, no consegue eliminar as barreiras sociais, nega os preconceitos raciais. (Os grupos etnicamente dominados acabam tendo maior dificuldade para serem aceitos pelas elites brancas, Alguns s® muito recentemente conseguiram seus di civis. No processo de formacsio das sociedades de classe em nosso continente, 0 preconceito e 1 discriminacao Gtnica funcionaram como um dos mecanismos de exclu- sto do sistema capitalista. Varios estudos jé ressaltaram que muitos dos movimentos de protesto, encabecados por grupos culturalmente dominados, tinham como obje- tivo atingir 0 ceme da estrutura econémica excludente: = Embora os conflitos étnicos tenham marcado a hist6- ria do continente americano ao longo de quatro séculos, cles assumem a forma de movimentos politicos, no senti- do modero do termo, apenas na primeira metade do século XX. . Exemplos desses movimentos podem ser encontra- dos em varios patses do continente. O protesto dos afrodescendentes nos Estados Unidos e no Brasil. Con- fronto entre a elite mulata e a massa negra, no Haiti, ou ‘mesmo 0 conflito entre trabalhadores haitianos e domi- rnicanos. Movimentos politicos com forte apelo étnico no ‘México, na Nicaragua, no Peru, enfim, em varias nacdes, da América Latina ou, como sugeriu a antropéloga Elisa L. Nascimento, da América Afro-amerindi Breve, de certa forma, a propria onstituiglo das na- ‘soes americanas explica, por si s6, as razdes pelas quais o ‘multiculturalismo tem, inicialmente, uma conotacao étnica Esta, portanto, vai perdendo a centralidade do movimento tendo de conviver com outras formas de protesto cultural Falaremos, a seguir, sobre aquilo que, a nosso ver, favoreceu essa abertura do movimento multiculturalista. Nascar, EL 1981. (© mannan ¢ 28 senncn00s 21 \ descoftinuidades na forma como as Ciéncias Sociais repre- sentam a sociedade a qual estudam, As ihagens unitdrias da sociedade no jogo das diferengas Nao se pode perder de vista que"as préprias sociedades criam, por meio de poderosos inismos de produgao de imagens, representagdes de mas. Nesse sentido, podemios encontrar paises com Unidos ¢ 0 Brasil que, apesar criaremn uma unidade nacional em seus respectivos tertit6- rios, sempre tiveram, de si, uma imagem de sociedades pluriétnicas; contrariamente a paises como, por exemplo, a Franga, que s6 recentemente foi obrigada a reconhecer a referida pluralidade no interior de sua sociedade Esses exemplos mostram como se da a relacio de interdependencia entre agio coletiva, produgio cientifica ¢ contexto sécio-hist6rico. No caso especifico, vimos que os Cientistas sociais buscam compreender 0s problemas pos- ides. A diversidade cultural ‘onde a convivéncia hu- preconceitos e discriminagdes étnicas, de género, de pre- feréncias sexuais, de geragdes e outros. Quanto mais os conflitos se adensam, mais eles exigem dos grupos em questo uma agio coletiva com vistas a interferir nos pa- dies de dominagio, mais os atores sociais interferem na realidade social, mais questOes sio colocadas aos cientis- tas sociais. O ciclo tem-se renovado a cada década. Isso, talvez, explique porque nos dois primeiros exemplos a reflexto sobre a diversidade cultural se torna, j@ no inicio do século XX, um tema crucial para as Couglo Conve Neck leone 22 Gééncias Sociais, enquanto que, s6 a partir dos anos 70, passa a preocupar os cientistas sociais franceses."” “ Em todo caso, 0 olhar da Antropologia sobre a diver- ficuas correntes de pesquisa chamadas, pejorativamente, de culturdlistas. Embora nao concordando com todas as ctiticas que so feitas ao culturalismo, deixaremos para um proximo ensaio nossos comentirios sobre as mes- mas. Por ora, ressaltamos apenas o quanto esses antrop6- logos ajudaram o multiculturalismo a abrir-se a outras formas de protesto cultural. Ajudar, nesse contexto, tem um sentido muito especial. Para evitar qualquer interpretacao mecanicista, escla- recemos que a contribuigio dada pelos antropdlogos culturalistas deve ser buscada no Ambito da produgao do conhecimento, ou seja, na maneira como constroem seu objeto e criam métodos préprios de investigacio. © fato de buscarem compreender diferentes formas de vida humana habilitou-os a distinguirem fenomenos, que derivam da natureza daqueles que advém da cultura, Na contramao das explicagdes naturalistas dominan- tes no final do século XIX, os culturalistas vao insistir no fato de que aquilo que chamamos de matureza depende de uma interpretagio que varia de uma cultura a outra. Para eles, “a cultura interpreta a natureza e a transforma. mer, dormir, copular, dar 3 luz (., defgcar, urinar ‘Todas essas priticas do corpo, absolutamente naturais, si0 profundamente determinadas em cada cultura particular”.” ‘Nessa linha de raciocinio, um dos primeiros alvos da critica culturalista foi a nogo naturalista de raca®, usada para designar e classificar grupos humanos a partir de Se es * Cua, 1956, p31 cua, op. cit, 2 r > Sobre a implcagbes do conceit, cf, Bary, 197 © manoxrunusio € 50s READIES 23 um critério qui tureza. Por mei eiam-se, ra Oes-européias mados por racas diferentes), al superioridade de acordo com as Em suma, a Antropologi junto de conhecime humano, no qual todas a nao, uma lei qual- de paradigma, provocada 1970, pode-se dizer minagio cultural vigentes. Foi a partir daf que neg de mulheres, em varias partes do mundo, contra a suposta supremacia natural dos homens. O mesmo vai ocorrer com ‘0s homossexuais, que passam a produzir novas imagens de si mesmos e a combater, pot ;, preconceitos em relagao a seu comportame i dos por uma leitura mais questionadora da di humana, os grupos culturalmente dominados buscam con- quistar, paulatinamente, sua emancipagio, abandonando 6s valores culturais que os oprimem. Pouco a pouco, 0 cariter étnico do multiculturalismo vai cedendo espago para outros aspectos de dominagio cultural. ‘Sem perder o potencial politico desses movimentos, & preciso reconhecer que multiculturalismo, antes de mais nada, tem contribuido para produzir novas subjetividades. ContcAo Cuuta Nacan # loomonees 24 Ele representa 0 trabalho dos atores na construgao dos individuos e de suas imagens no mundo. a Em linhas gerais, pode-se dizer que, com a adesio de outras formas de protesto cultural, o multiculturalismo tem de enfrentar um novo desafio, a saber: a fragmenta- ao queso ameaca por dentro. Hoje, por exemplo, 0 mo- vimento de mulheres nao pode desconhecer que ha diferengas entre mulheres brancas, negras © mesticas € que, por isso, deve modular seu discurso em fungao dessa diversidade. Pode-se dizer 0 mesmo dos chamados movi- ‘mentos étnicos. Além das questoes de género, eles tém de levar em consideragao as demandas das geragdes mais novas. Alids, é a juventude quem mais tem impulsionado 0 multiculturalismo, em todos os sentidos. ‘A literatura sobre o tema mostra que uma imensa parcela de jovens constr6i sua identidade por meio de movimentos culturais de amplas redes de comunica¢ao, tendo como suporte a midia e todo sistema informacional disponivel no mercado globalizado.” Nesse caso, 0 ‘multiculturalismo gera identidades que extrapolam as fron- teiras nacionais, criando novas linguagens e imagens en- tre a juventude de forma geral. Para efeito de ilustragao, vejamos, a seguir, como essas identidades tém sido produzidas e reproduzidas ‘em um impressionante jogo de representagdes, que pro- poe regras novas, quando os atores se sentem ameaga- dos por algum tipo de dominagao cultural. Se admitirmos que tanto a Engaate © potencial critico do multiculturalismo reside nds formas de expres- ‘io que seus adeptos utilizam na esfera publica, somos levados a aceitar que foram as artes as responsiveis pela ripida difusio desse movimento. Ofereceram uma lin- ‘guagem mais que adequada. ~~ 2 SincezJaxowsn, 1997, p-180198; Huon. In: McCamer © Canon (Org): 1993. 2 Bau © Game, 1995; Cos, 1993, Amu 1994 0 manana € sus Sones 25 Os estetas do multiculturalismo Seria praticame pularidade do jovens sem considerar o papel da m io. Alguns estudos que analisam do a emergéncia d pequeno detalhe: Contudo nao em, esse género mus clos musicélogos, impossivel querer entender a po- ‘outras influencias plo, citamos a mt ou se preferirmos, miscigenado. Ele pode, por exemplo, ter sua origem na Jamaica, em Kingston e migrar para So Paulo, Paris, S30 Luiz do Maranhao, Nova lorque e Lisboa. Em cada lugar que se instala, impregna-se de ‘outras formas musicais. Nao teria sido esse 0 caso do rap e do reggae Ambos nascem na Jamaica, Onde chegam, aglutinam, prioritariamente, jovens negros, 0 que Ihes confere um cariter eminentemente étnico. Mas sio imediatamente transformados. Basta lembrar que, em algumas cidades brasileiras, 0 reggae virou samba-reggae e, em outras, incorporou elementos da tradico afro-brasileira. O rap tem servido de veiculo de protesto e dentincia contra as formas de dominagio e de repressio. Diferente da etno- miisica, o fendmeno musical do multiculturalismo tem contagiado um grande ntimero de jovens das periferias dos grandes centros urbanos, bem como os de classe média. Entretanto essa massificago nao se deu inocentemente. Ela * Rooucus os Sua, 1995, Cotcho Corns Nicer ¢loemonnes 26 foi produto da indistria cultural em expanstio no merca- do globalizado. 3 Em termos de imagem, o multiculturalismo ganha um espaco consideravel na inddstria cinematogrifica. O tema é, em geral, tratado de forma critica, em que se ressaltammsituacdes dramAticas. Um bom exemplo é 0 do personagem homossexual do filme Philadelphia que, aps ter sido demitido do emprego por ser portador de Aids, vé-se as voltas com a justica e tem muita dificuldade para convencer um advogado negro, anti-homossexual, a defendé-lo. Este s6 aceita pegar 0 caso, porque se di conta que é, também, vitima de discriminagao da mesma sociedade que exclui seu cliente. O cinema, pelo fato de poder combinar informagdes que nem sempre sio possiveis de seem combinadas em outras formas artisticas, acaba servindo de veiculo privi- legiado na difusto de certas idéias. Nas mAos de cineastas sensiveis ao multiculturalismo, ele constitui instrumento extraordinario de combinagées seja entre os diferentes tipos de protesto cultural, ou entre atitudes de dentincia e de cautela quanto as condutas radicais. Examinemos dois casos exemplares. © primeito € 0 resultado a que chegou o filme de Spike Lee, Faca a Goisa Certa, Ali, ele mostra 0 quanto 0 racismo da sociedade americana estimula os jovens ne- ‘gros a cair na delingiéncia. Por outro lado, ele ressalta o papel do movimento rap no sentido de ajudar os jovens a recuperarem sua auto-estima. Entretafito, aponta os tis- cos a que se pode chegar. A mensagem dirigida aos ne- gros estimula a violencia. Um dos persor agens do filme, impulsionado por atitudes extremas, participa da devas- tagio de um bar. O resultado foi o confronto com a policia que nao hesita em elimind-lo sumariamente. te: © segundo € Os Jovens Rebeldes do Soul, do cineas- a ‘inglés Isaac Julien. O filme explora a alianga entre jovens negros e jovens homossexuais (negros e brancos), nos anos 70, em Londres, que sk, reuniam em tomo do 0 muxrcumiantano € Us SRNCADOS 27 vem negro homossexual. hostilidade dos negros em ‘0 nilo € tratar 0 assunto exaustivamente e, sim, discutir as condigdes sécio-hist6ricas que, a nosso ver, favorecem os movimentos multiculturalistas. A educacao multicultu Os novos sujeitos das pol adas em diferengas de le género, de preferéncia sexual, de geragao € etc. Considerando que as politicas sociais, em especial, as referentes & Educago, tém como alvo um ptblico definido a partir de critérios de eqiiidade, ou seja, critéri- 108 relativos aos direitos de cidadania, a pluralidade cultu- ral se coloca como um problema quando as sociedades nao se representam enquanto plurais, mas como monoculturais, a partir de um referencial etnocéntrico. E Coucho Cas Ne ainda quando as categorias pelas quais elas se definem mio dio conta da diversidade interna. te Por exemplo, no Brasil, 0s ‘sujeitos” das polticas pu- blicas foram sempre definidos por categorias que nto fazi ‘am qualquer distingio de genero ou de raga, So sempre designados em termos genéricos tais como: camadas popu- lates, classe operiria, dasse trabalhadora. Mesmo quando se referiam a projetos educacionais no se conservam 0s tr- ‘os culturais ou étnicos dos sujeitos, ‘mas sim sua condicio de classe, como bem o mostra a expresso “Jovens das classes ttabalhadoras’. ‘A partir dai podemos nos perguntar: seria possivel pensar as politicas pablicas em consondncia com 0s pro- blemas étnicos da sociedade? Ao se buscar reduzit as desi- gualdades sociais, ou combater as injustigas por meio de politicas sociais estaria 0 Estado atendendo as reivindica- Goes especificas dos negros, dos indios, das mulheres, Gos homossexuais, dos deficientes fisicos € assim por dliante? E se assim fosse, ao atender as demandas desses grupos, estaria o Estado praticando a justiga social? Subjacente a cada uma dessas questOes, existe um elemento problemitico a ser refletido, a saber: © multiculmralismo nao interessa sociedade como um todo, e sim a certos grupos sociais que, de uma forma ‘ou de outra, stio excluidos dos centros de decisto por {questdes econdmicas e, sobretudo, por questoes cultura. Isso, talvez, explique, como seri npostrado neste € no proximo capitulo, que tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos os primeiros proponentes e os mais antigos de- fensores do multiculturalismo foram os afrodescendentes. Em ambos os casos, o movimento foi liderado por aque- les que dentro de suas comunidades conseguiram, apesar dos preconceitos, atingir um certo nivel de escolaridade. ** Discorendo sobre o multiculturalismo nos Estados Unidos, 0 socidlogo Nathan Glazer assinala, em um de seus artigos publicado em 19725, que esse movimento 0 mxncunmuisio € sus SoNMEADOS 29 corresponde niio somente ao aumento dos niveis de es- colaridade dos jovens negros, como também ao fim do sistema de segregaco, que permitiu em 1968 a absorgao de 434.000 estuclantes negros em universidades freqiienta- das, exclusivamente, por alunos brancos. A partir desse periodo, os negros passam a reivindicar a incluso, no curricylo, dos programas de estudos negros ou afro-ame- ricanos e ainda a exigit sua participacao, tanto no con- trole dos cursos quanto na escolha dos professores.* Justificando “o dilema racial na

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