Você está na página 1de 14
PROFESSOR, ESCOLA E ASSOCIACOES DOCENTES* Antonio Candide A minha finalidade principal é dizer alguma coisa so- bre o papel das associagdes de docentes no momento atual, mas como entendo que para isso é preciso fazer antes certos comen térios sobre a posicio do professor e a fungdo da escola, fa- rei uma exposigao mais ampla, dividida em trés partes. 1. O professor As vezes eu.me pergunto se o professor nao é uma espé cie em extinc3o; pelo menos como era concebido no meu tempo de aluno e de docente. Alias, nao seria o primeiro caso,pois houve um outro tipo que se extinguiu antes. da minha ~ geracao e de que sé vi os restos: o professor figurado hos livros de leitura, mestre bondoso, espécie de pai dos alunos, que ‘ele devia acarinhar, castigar e formar, como convinha num tempo cuja educacdo tinha forte tonalidade paternalista. Hoje’ fala- se mal do, paternalismo, mas nas sociedades regidas pelo seu modelo, o bom pai e o bom professor, dedicados, absorventes e manddes, podiam ser funcionais. No meu tempo estava surgindo outro tipo: 0 professor profissionalizado, racionalizado, dotado de uma formacgdo espe cifica mais exigente, com base na psicologia educacional e tendendo a ser um técnico (creio, alias, que foi quando apare ceu ou se generalizou o “técnico em educagdo"). Este é o ti po que me parece em extincio; e nao consigo discernir bem co- mo serd o proximo. * Palestra. na Associagdo de Professores de Lingua e Literatu- ra em § de dezembro de 1979. Linha d'Xgua, 2. margo 1981 Ha outros aspectos que parecem confirmar esta impres- s&0, cuja validade posso analisar sobretudo do adngulo da uni-~ versidade, onde fiz praticamente toda a minha carreira. Ora, na universidade o professor € hoje uma figura que tende a ser devorada pelo proprio curriculo. Facamos uma pergunta: no consenso geral ele € um transmissor de conhecimento , forman- do por meio dele (em sentido amplo) os seus alunos, ~ ou @ um produtor de conhecimento, cuja tarefa central fosse o pro gresso do saber?. Sabemos que o ideal € a unido das duas coi- sas, mas se tivesse de optar, creio que a maior parte da po-~ pulagado universitadria indicaria a segunda alternativa. E isso mostra que ha uma acentuada desqualificacgdo do ato. docente , em beneficio da configuracao de um intelectual ou cientista pesquisador. 0 ato docente pressupoe um trabalho em cujo desenvol- vimento um ser humano se dirige a outro para estabelecer uma relacao que torne possivel a transmiss&o/incorporacgdo satisfa toria do conhecimento, nao apenas para que o educando o pos- sua, mas pata que através dele se oriente melhor na socieda- de e, em geral, na vida. E & isto que caracteriza o verda- deiro professor, sem prejuizo de uma capacidade produtora even tual. No eéntanto, hoje nas escolas superiores, e em parte também nas. secunddrias, professor mais apreciado é 0 que cada ano acrescenta uma pagina nova ao curriculo, porque se antes estava interessado em formar os outros, hoje freqtientemente se interessa mais em formar a propria carreira. O mais grave & que ‘os seus escritos nio significam necessariamente contribuigdo original, que justificasse o desvio de atengao do trabalho docente; mas simples reduplicagao, tributo ao enorme rodar em falso que constitui grande parte das publi- cagdes contemporaneas, estimuladas pela indistria do papel im presso e o frenesi da novidade. Ora, se o professor se demo- Ta resolvendo o problema de um aluno, ov “perde tempo" melho- rando a qualidade das suas aulas, isto nio aparece na sua £6 de oficio. Mas pesardo trés artigos ou duas, palestras. Todos sabem que o ideal seria o docente perfeito, que fosse também pesquisador perfeito e produtor de. conhecimento, como se requer nas formulagdes vazias relativas 4 carreira uni versitaria; nem € impossivel as duas coisas ocorrerem juntas na mesma pessoa. Mas aqui estou pensando na avaliacgao que predomina em caso de escolha ‘alternativa, e que cohdiciona a vida dos professores, obrigados a juntar titulos sob pena de ficarem para tras na carreira, que se entende cada vez mais como sinénimo de corrida. Nao é segredo: a maneira por que.os curriculos podem ser inflados mediante técnicas de apresenta- ¢Zo a que ninguém escapa. O resultado & que se os. formos. es- premer, nado sobra quase nada como contribuicdo efetiva e. ori- ginal. : A universidade admite um docente que seja. cientista ou intelectual. de certo valor, mesmo sendo- professor relapso e ineficaz. Mas nao admite o contradrio, isto é, um professor de boa qualidade, um mestre que inspira e enriquece os alu- nos, mas nao produz curriculo. No Brasil essas coisas sao devidas em parte ao abando no do padrao francés inicial pelo padrao americano, que pre- vé curriculos quilométricos como arma decisiva na competigdo, porque satisfaz também as necessidades publicitaérias das ins- tituigdes. Dizia um antigo professor francés da Universida- de de So Paulo que ficava espantado quando, voltando ao Bra- sil, via os curriculos dos seus antigos alunos, muito mais ri cos e brilhantes que o dele... E acrescentava que nao sabia como éramos capazes de fazer, tanta coisa em tao pouco tempo, pois segundo os padroes que nortearam a sua formagaéo, ninguém € capaz de escrever mais do que um.bom estudo por ano. O professor: Richard Morse, atualmente na Universida de de Stanford, apresentou a certo congresso de Histéria uma Linha d'Agua, 2, marco, 1981. comunicagdo satirica sobre a carreira de um “latino-america- nista" ficticio, que quando estudante apresentou um’ ttaba- iho considerado muito bom sobre um ditador paraguaio (também ficticio). Isto lhe valew uma bolsa para mestrado e depois doutorado, nas quais désenvolveu o mesmo assunto, que conti nuou explorando pela vida afora em livros,.comunicagdes, ar tigos, até morrer famoso. No fim, tudo somado, sé mesmo ° trabalho inicial de estudante tinha originalidade e merecia divulgagao... . Quando se pensa que isto é uma caricatura do que ocor re de fato nas universidades, conclui~se que o professor pro- priamente dito, nao o fabricador de curriculo, parece as ve- zes uma espécie em extingdo. Por isso, na Comissao Paritadria de professores e alu nos para estudar a reforma universitdria. em 1968 (memoravel comissao nascida de um momento renovador de‘luta pela cultu-~ ra), propus que ao lado da carreira chamada cientifica, com base no mestrado, doutorado e dai para outros titulos, se previsse uma carreira paralela, sem estes titulos, tendo co- mo critério de acesso a demonstracao, a longo prazo, de uma capacidade real de ensinar. Na ocasido eu pensava em certos colegas que ensinavam linguas, extremamente capazes, informa dos e eficientes, que se angustiavam e nao faziam teses, por que nao era esta a sua vocacio. Pois bem: os meus companhei ros de subcomissao, alunos e professores, acataram o meu ponto de vista em siléncio amistoso, e na redagdo final do projeto, na parte relativa a titulos e carreira, vi que a mi mha proposta tinha sido delicadamente ignorada... Por ai, ava liei até que ponto a consciéncia universitdria ja ndo esta preparada para aceitar a figura do professor enquanto tal. Este quadro foi agravado pelo estabelecimento genera lizado da pés-graduacdo, que, apesar de sua utilidade e méri tos, incrementou a super-estima da "carreira cientifica" e 10 a corrida aos titulos. Vejam como agora os jovens.docentes se sentem diminuidos se nao ensinam neste nivel, como risco de esquecerem a mentalidade especifica do professor em beneficio da do cientista que nem-sempre estd ao seu alcance. E como..os docentes mais velhos tendem a largar a graduacao.em favor ‘de uma atividade que lhes parece mais alta. Como.sempre fui pata dino da pds-graduacio, a partir de certo momento passei a atuar apenas nela. Mas afinal vi o érro que havia nesta ati- tude, além do mau exemplo para os mais mogos; e a fim de subli nhar a importancia fundamental da graduacdo, voltei a ensi- nar apenas nela, nos periodos diurno e noturno. Assim, termi nei uma carreira de 36 anos na universidade procurando ( tal vez em vio) desenvolver 0 ato docente. 7 Portanto, incentivemos a pesquisa e a produgao inte lectual, condigdes do progresso do conhecimento, mas restaure mos o "ser docente", no sentido ontolégico e ético,, configu rando profissionais que queiram ser professores’e nado sé aca- nhem disto. Convém os jovens se compenetrarem de que nas esco las, ser professor € tao ou mais importante do que ser produ- tor de conhecimento. As condigées ‘materiais do mgistério atual mente sao péssimas e vao de mal a pior, constituindo uma~cau- sa de fuga ou escamoteagao das atividade: 3 mas nado se. pode ne gar que ha também uma fuga ao "ser professor", e eu observei que um grande niimero de jovens licenciados teria. preferide ser outra coisa. Uma Gitima palavra, como reiteracgao algo pessimista.:: a produgdo intelectual que tanto obseda a vida universitéria pode ser em média irrelevante, se comparada ao rendimento de um professor realmente capaz. Mesmo transmitindo conhecimen- to que nado produziu, este poderd ser de grande utilidade pare os educandos. E quem escreve em série, j4 vimos que.pode es- tar na maioria das vezes fazendo apenas “um trabalho a mais", repetindo a si mesmo. ou-chovendo no molhado. Seria o caso de voltar 4 concepcao européia mais antiga — de valorizacao dc Linha d'Agua, 2, margo, 1981. 1l ato docente em si mesmo e da producao de trabalhos pouco nume’ rosos, feitos com 0 maior cuidado, de maneira’a resultar mais ou menos significativo e Gtil. Com isso se reabriria espaco para o ato docente e ele poderia reconquistar uma qualidade e um alcance que permitiriam ao professor realizar plenamente a sua personalidade, para poder ajudar os outros a realizar a deles. 2. A Escola e a Instrucao Se nao encontramos mais hoje de maneira generalizada o docente formador, isto-€, 0 que se empenha como ser e como profissional no processo pedagégico, o que acontece com a Es- cola? Ela se torna o lugar onde os docentes passam correndo para cumprir a obrigacao mal paga. Hoje sao raros os ambien- tes que podemos chamar formadores e que antes, bons ou maus, eram a regra, bastando pensar nos colégios religiosos ou nos internatos onde todos conviviam em fung%o do ensino de manei- ra prolongada, dando lugar a uma intensa sociabilidade. Em conseqliéncia, o processo educativo nao se configura plenamen- te, ou se deteriora. E a escola, em vez de orientar-se por um projeto formador de homens, € entregue aos poderes burocra ticos, 0 que acaba por reduzir o proprio docente a burocrata, como os funcionarios administrativos. A situacgao resultante, é€ de franco constrangimento, porque todos estao de certo modo deslocados das suas fungcoes — o burocrata se projetando nas do docente e vice-versa. Isto gera a atmosfera de ressentimen to que hoje predomina em todos os niveis de ensino. Em nossos dias, a universidade (que conheco melhor)es ta ficando uma organizagao onde certo niimero de burocratas e de docentes burocratizados detém praticamente o poder decisé- rio, com risco para a integridade da fungdo educacional. Isso 12 mao quer dizer que-os burocratas sejam pessoas perversas, inca pazes ou.mal intencionadas, mas apenas que preenchem o espaco abandonado pelos professores e, sem querer ou querendo, contri buem para desvirtuar as finalidades da escola, camo grupo so- cial.com vida propria, feita da ‘inter-relagio dos. diferentes sub grupos internos, organizados para a finalidade superior da transmissao do conhecimento e da formagao humana. E. o docente se burocratiza, vendo na sua atividade o cumprimento das nor- mas, antes de mais nada, com todas as conseqliéncias negativas que isto acarreta, inclusive a importancia maior dada 4. forma legal dos Atos. Talvez isso tudo seja devido em parte 4 relativa des- crenga no poder da instrugdo, nao quanto 4 sua utilidade espe- cifica, mas quanto ao seu papel genérico de formadora e sobre- tudo transformadora do-homem em sociedade, num sentido otimis- ta, como acontecia antes. A partir do século XVIII‘as ideologias do progresso. fox jaram'a imagem de um homem perfectivél ao infinito gracas 4 fa culdade redentora do saber. Era como se a mancha do pecado original pudesse ser lavada e o paraiso; em vez de ter existi- do no passado, passasse a ser uma.certeza gloriosa do futuro.¢ século XIX se embalou da-ilusio de que quando a instruc3o fos se geral acabariam os “males da sociedade’ — como se ela - pu- desse substituir as reformas essenciais na estrutura’ econémi- ca e social.que, estas sim, sao requisito para se tentar a me- lhoria da sociedade e, portanto, dos: homens. Essa visaéo liberal (que se comunicou ao socialismo € ao anarquismo) permeava toda a educagado e enformava a ‘ idéiz de escola. Ha meio século, nds ainda decordvamos no curso ‘pri- mario um poema de Valentim Magalhaes, onde um velho criminoso empedernido, olhando pelas grades de sua prisio, vé sairem a: criangas alegres de uma escola em frente e murmura "Eu nunc: soube ler". Chamava-se "Os dois edificios'e exprimia de manei Linha d'Agua, 2, marco, 1981 13 ra exemplar a utopia educacional do periodo histérico que vai da Revolugao Francesa até a Primeira Grande Guerra, e€ mesmo um pouco mais tarde. No Brasil, a idéia dominante dos liberais, entre as duas guerras, era que a instrucdo universal e obrigatéria am- pliaria ao méximo o corpo de votantes e que, uma vez institui do o voto secreto, ele estaria livre das manipulacées oligar- quicas e poderia, instruido e independente, levaro pais a grandes destinos. Esta teoria generosa e ingénua _pressupu- nha uma populagdo homogénea redimida por aquelas panacéias.Bla teve verdadeiro apdstolos, como em Sdo Paulo, o esforgado Ma- rio Pinto Serva, que publicava quase diariamente artigos de propaganda dos seus ideais. No.entanto, houve paises onde a instrugao se tornou geral, onde o voto secreto se instituiu, e onde continuaram a existir a violéncia, a espoliacio, a guerra e muitas aliena goes destruidoras (como nao podia deixar dé ser em virtude da permanéncia das estruturas fundamentais na econonia). Foi quan do se difundiu uma espécie de ideologia oposta, de descren-~ ga no poder humanizador da instrucgao, que deve ter influido ma crise da escola e da fungdo docente. Nos Gltimos 50 ou 60 anos temos assistido a uma de- nincia-crescente (incrementada de 1968 para ca) do autorita- rismo dos professores, do carater de classe social da instru- ¢ao, da mistificagao em torno dos valores educacionais, da fungdo mecanicamente servil da escola com relacdo aos poderes deste mundo. Em tudo isso hi muita verdade; hd o que se pode ria chamar uma forca desmascaradora bastante salutar. Mas de cambulhada, desacreditou-se em parte a proépria validade das instituigdes de ensino, fazendo o que os alemaes chamam com muita gracga "jogar fora a crianga junto com a agua do banho". Ora, a deniincia das ideologias elaboradas em torno da educagdo escolar, que a poem a servico da classes dominantes 14 e seus interesses, nao pode nem deve levar ao sew _ descredi, to como poderosa forga social. Nao deve levar. a substituir o otimismo mecanico dos liberais, socialistas e anarquistas do século XIX pelo pessimismo da negagao, que resulta .. tremenda mente reacionario. De fato, nés sabemos que o homem é capaz (de resolver muitos dos seus problemas e que o progresso exis- te. Nao o progresso automatico, unilinear, irreversivel.. dos sonhadores ilustrados; mas aquele que o homem precisa ~ con truir a cada instante, estabelecendo as condigées -politicas, econdmicas e sociais indispensiveis para isto, porqué o ‘pro- gresso & feito, no dado pot algum determinismo _ inelutavel. Além disso, ele corre o.perigo constante da barbarie que amea ga retornar a cada instante em cada momento da histéria em qualquer tipo de sociedadeou civilizacao, como uma’ -espécie . de monstruoso memento dalgum pecado original das sociedades. E preciso também lembrar.que, ao contrario do que pres supunha a ideologia ilustrada, a instrugao por si sd nao re- solve os problemas sociais; mas é requisito indispensdvel pa- ra os resolver. 0 progresso requer, para se realizar de fato e nao num aparente "desenvolvimento", as reformas de estrutu ra econémica e social, das quais a instrucao é ingrediente, po dendo-se até observar o contrario da posicao ilustrada: em vez da instrugdo fazer as transformagoes, freqtlentemente as transformagées politicas e sociais & que tornam possivel o de senvolvimento de instrugéo, como ocorreu na Unido Soviética a partir de 1917, e a partir de 1958, em Cuba, que reduziu o in dice local de analfabetos a 2%,-— fato quase inacreditavel num pais do Terceiro Mundo e ‘inexplicdvel sem a alteracao pro funda na estrutura econdmico-social e no regime politico. Em resumo, a instrugao por si sd é incapaz das grandes transformagdes do progresso; mas.sem ela entdo nao se poder efetivar. Daf ser preciso reavaliar e revalorizar a escola, a fungio do professor -e a filosofia da educagdo. Linha d'Agua, 2, ma:-:0, 1981 is 3..As AsSociagées Docentes Como a escola em todos os niveis esta eivada pela bu- rocratizacao enfraquecida pela degradacdo salarial, desnortea da pela crise dos ideais pedagégicos e a propria divida em torno da validade humana e social do’ saber, — € preciso esta belecer esforcos paralelos de agdo e reflexado. Isto é: esfor- gos que partam de fora da organizacao das escolas mas visem principalmente ao que se passa dentro delas. Entre tais es~ forgos, avultam as associacgdes docentes. Se os educadores enquanto tais, nao podem transformar a sociedade, eles podem sem diivida contribuir- para a sua transformagado, na medida em que influem para definir 0 seu préprio papel-e orientar corretamente a escola. Uma coisa e outra estao ligadas de modo intimo as formas de sociabilida- de, isto 6, 4s maneiras segundo as quais os homens se rela- cionam, porque € este o canal por onde flui o processo de transmitir e receber conhecimento. Uma concep¢ao adequada a respeito de como deve ser a atuaca’o do professor depende da maneira segundo a qual se concebe o seu relacionamento com os outros proféssores, os alunos ea comunidade. Por isso, a so- ciabilidade ligada ao ensino é fundamental e em nosso tempo seria possivel orientad-la segundo padroes muito nais favora- veis do que antes, — porque antes a normal ideal era paterna lista, refletindo o que se passava na ‘sociedade com base na autoridade do mais velho sobre o mais mo¢go, do homem sobre a mulher, do rico sobre o pobre. Hoje tende-se para um tipo de norma que se poderia chamar fraterna, isto 6, pressupondo a. reciprocidade de influéncia entre todos, como se todos fossem ligados por uma solidariedade de irmao, e nao de pai para fi- lho. A escola € um grupo complexo, cuja sociabilidade cons titui elemento basico no processo de aprendizagem. Qualquer reorientagao pedagégica tera de partir de uma reorientagéo das relagées intra-escolares, redefinindo a atuagaéo do professor 16 e transformando a escola num ambiente favoravel 4 humanizacao e & aquisigao do saber. Como as solucées unilateralmente.:admi nistrativas tém-se revelado incapazes disto, devemos buscar. no esforgo proprio dos docentes a.construgdo do que & ° preci- so: ‘Lideranca democratica, espirito de colaboracio e respei- to pelo outro, senso das necessidades sociais, — como condi- goes de uma sociabilidade escolar adequada. Ora, as associagées docentes sao, de um.lado, a possi bilidade de estabelecer e praticar estas coisas; de outro., sao instrumentos eficazes de pressao sobre o governo e a socieda- de, para levar 4 transformag&o da escola e 4 defini¢ao adequa da das fungées docentes. Nos <imos anos, temos assistido a uma renovacao. das associagées docentes no secundario, e ao comeco.de movimen- tos andlogos no magistério, superior. E ja se coméga-a . perce~ ber a necessidade de articular todos os niveis, para defesa sindical da classe.e para atuacgao construtiva na transforma ¢ao do ensino. Essencial para isto € superar as barreiras ideoldgi- cas e psicolégicas que por vezes separam os trés niveis. 0 en sino superior, por exemplo, sempre tendeu a se fechar numa visao aristocratica bastante arcaica, olhando de cima para baixo o secundario e o primario, quando a posigao socialmente correta € a que se baseia na consciéncia de uma diversidade de fungdes, nao de uma superposigao de estratos. Mas essa atitude, em grande parte defensiva, vai se tornando inviadvel por causa da verdadeira proletarizagao do magistério supe- rior, ~ que pelo menos tem a vantagem de por todos no mesmo saco. Est& acabando o tempo em que os docentes universita~ rios, poucos e altamente prestigiados, se fechavam em verda- deiras confrarias cooptativas, providas inclusive de associa gdes_secretas para manipular influéncias e atuar na_politi- ca. Hoje somos uma massa, e, como costumo dizer, massa faz assembléia, faz comicio, faz greve, sai em passeata; nado deci Linha d'Agua, 2, marco, 1981 17 deem saleta fechada. Por isso, hoje a nossa vocacio € 0 sin dicato, nao o "bachelor's club". Tendo consciéncia desse estado de Coisas, as dssocia gdes poderao contribuir.de modo’ decisivo para redefinir a fun Gio do professor e ao mesmo tempo regenerar a escola. Largan do as antigas utopias de redengdo pelo saber, como advento de um futuro paraiso na terra, temos de voltar a atencdo para © quotidiano e construi-lo passo a passo na agao modesta das tarefas. renovadoras, com base num paradoxo aparente: @ na as- sociagao fora da escola, nao prevista na sua estrutura, por- que abrange a populagao docente de todas as escolas, que ° professor poderé encontrar razdes humanas para redefini-la, e assim modificd~la.- N3o & a norma burocratica em si que pode~ ri operar qualquer transformacdo valida; e sim‘ a conscién cia dos préprios professores, pressionada pela yontade coleti va do seu grupo-através.das associagdes de classe. E em face da consciéncia profissional, da opinido dos colegas, do senti mento dé estar trabalhando no’fumo certo que um: professor con- segue dar o melhor de si e torna-se agente capaz no processo de, humanizacgao do aluno e portanto da sociedade. $6 isto o fa ra sair desta espécie. de vasta operagao tartaruga, desta gre- ve branca permanente e involuntdria que tem sido o ensino pa- ra, docentes mal pagos, desestimulados, sujeitos ao arbitrio administrativo numa escola sem sociabilidade enriquecedora ¢ sem projeto social coerente. A filosofia e a ética da profis sdo térdo de ser refeitas de fora para dentro da escola, for- jando-se nas associacgées livremente constituidas, para se tor narem fermento em cada um. Insistindo nesse papel das associagées como possibili dade de estabelécer formas renovadas de convivéncia, que atua rao num professor e numa escola igualmente refeitos pela so-~ ciabilidade interna orientada pelos ideais corretos, € claro que para mim tais associacdes nao devem ser apenas grupos rei vindicatérios. 18 Hd nelasS um aspecto propriamente sindical. da maior im portancia, que ndo deve todavia ser exclusivo, porque pode acabar incrementando a mentalidade burocratica, ao concentrar © interesse apenas nos direitos e saldrios. Elas devem ‘com- portar uma dimensao politica em sentido largo, de projeto cul tural e luta pelos interesses do ensino e da investigacao,bem como pelas formas de relacionamento com a sociedade ~. global. N&o bastam’bons salarios, estatuto condigno e mecanismos de defesa, — que sao meios para o professor desenvolver a sua tarefa com o maximo de consciéncia e eficdcia. As associa ~ goes podem atuar como grupo dotado de uma sociabilidade pro-- pria que educa os seus membros, e também como unidade de luta externa, pressionando o goverho, esclarecendo a sociedade, de finindo uma posigao nas campanhas humanizadoras da cultura .. Dévem,:.numa palavra, ser auto-educativas e militantes, forjan do a sua prépria politica, que ndo é a dos partidos _ embora possa coincidir com eles em pontos diversos. Termino evocando a experiéncia recente da - Associa- ¢ao dos Docentes da Universidade de Sao Paulo (ADUSP), em cu- jos quadros milito. Foi ela que, pela primeira vez, criou nos seus conselhos e assembléias um ambiente onde os docen tes de todas as categorias se encontraram, discutiram, concor daram, divergiram, decidiram em pé de igualdade, coisas ine- xistentes na vida universitaria reconhecida pelos regulamen- tos internos. Com isso, ela deu expresso ao que €.a realida de atual do ensino e da pesquisa, feitos igualmente por do- centes de todas as categorias, e nao por titulares aos quais se reconhece lugar privilegiado nas deliberagoes. Foi a ADUSP que promoveu com éxito o primeiro movimento de docentes: que conseguiu sustar uma reforma inconveniente de regimento, quan do ela jd estava a pique de ser votada, como de costume, -pe- los organismos restritos de cipula, mais ou menos automa- ticamente. Foi a ADUSP que desencadeou e liderou: a primei- ra greve geral de docentes universitarios em Sao Paulo, abrin do uma nova era na estratégia e na tatica da luta pela cultu- Linha d'Agua, 2, margo, 1981 19 ra. Os resultados —praticos nao corresponderam 4 expectativa e pode-se mesmo falar em derrota. Masa grande vitoria foi esta. fundacao:-de um modo novo de conceber a atividade docen- te, seus:deveres, sua capacidade de agdo, seu futuro regene rador ao lado dos colegas de outros niveis, dos funciona- rios, dos alunos. Estes. resultados devem ser incorporados 4 vida interna das escolas. 20

Você também pode gostar