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(60 teeta DEsTERRITORIALIZACAO E FORMA LITERARIA. LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORANEA E EXPERIENCIA URBANA’ Fioza Sisseano casa de Ral Barbost Resuo Pelacas Marlene Fel, Madhrs de Tacopapo, 2d, Sa Fale, Editors 38,1992 * Matceline Frei, Angu de sange, Sto Palo tee Edi, 2000, 2 tea Sects de Fertez? escrito em linguagem propositadamente de gueto, com material auto Diogrfico, por um ex-padeir,filho de um matorista de 6nibus, morador do bairro Capio Redondo, da zona sul de Sta Pal ots como a8 hitérias de presiidtios reunidas, em 2000, no volume Letras de iberdade* as memérias de rua, como © livro Por que nao dancei, de uma ex-menina de rua, Esmeralda do Carmo Ortiz; ou 08 itinerdrios homoeroticos, como os de José Carlos Hon6rio. Todos esses textos, de algum modo, evidenclando o neodecumentalismo intensificado na fieglo br sileira contemportnea, marcada ora por uma especie de imbricagao entre 0 ‘emografico & ficcional (de que sto exemplares tanto um romance como Cidade de Drus, de Paulo Lins? quanto 0 conjunto de relatos ¢ tramas fragmentarias do cotidiano de rua de que se compoe Vozes do meto-fo, dos antropslogos Hélio RS. Silva e Claudia Milito?), ora por um tegistro duplo, no qual se espelham fotos € relatos, dando lugar a uma sucess4o de livos ilustrados, que se converteriam, nos ‘limos anos, quase em genero-modelo dessa imposicdo representacional, Reterritorializagdes ¢ desterritorializagdes Exemplares desse espelhamento muituo entre o fotogrifico ¢ o narraivo, entre ailustagdoe as tramastestemunhais sto lives como Capao pecado, cujo relato se faz acompanhar de dois caderaos de fotos profisionais e easeiras que parecer rmaterializar a geografa comanesca, e Estado Carandiru,testemunho de Dréuzio ‘Varella™ sobre o sev trabalho valuntario como médico na Casa de Detencao de Sao Paulo, ao qual se anexou um vasto arquiva iconogrifice,tirado do seu acerva pessoal, de colecces particulares e dos arquivos de joral,& guisa de suplemento, Ae referenda forojornalistico 20 registro narratvo, (Os dois livros, de importancia documenta inegsvel tem estrutura semelhante, baseada na producto de uma relagio de similaridade entee as imagens fotogrlicas de um segmento da periferia urbana, em Capao pecado,e de um presidio brasileiro, fem Estagao Carandivu, e wm texto enxuto, com frases eurtas, diecio paradoxal ‘mente leve, de cronica, cheio de apelidos, expressoes de gueto,ditados ¢exemplos de violencia verbal, muitos didlogos e um verdadeiro exercici tipolégico, tendo por base, de um lado, a populacio carceriria, de outro, os destinas e 0 cotidiano dos moradores de uma das regioes mais pobres de Sto Paulo. Nos doi casos parece ‘aber 8 fotogralia ofornecimento de prova de evidéneia 20 narrado, © que, se. por um lado, emprestaa ele visibilidadee econhecimento imediatos; por outro, produz ‘uma relagio de dependéncia discursiva evidente do modo narrativo com relagao & sua contraparte visual > errr, Cop pce, Sto Palo, Labonte Eto, 200, ‘Vito nee, Leas de Wberdade, Si Pala Madras, 200, * Eumeralda do Carmo Ors, For qe no dene, ng Cbeo Diente, So Fle, Sent, 2000, " Palo Lins, Cidade de Deus, So Palo, Compan ds Letras, 1997, " Helo Rs Cauda Nato, exes do mcf, io de Jee, Kelme: Damar, 1995 " Detsio Varel, Exacta Caran, io Paul, Compania das Leta, 1999, fn Siseon Dein re lebia tcivn basin catenin ¢eperncio ubora 63 Basa grin entre oe relat Se, & prime vi, pce prods uma sproxmati ete oltre ari utuna cla, ma rte tora ita adn, gn sn di ganda Seater ques operas tuedaenta nese restos isado, seta Clog ene parece desreersosnaratos como possible de spa, lost peo cadres de fos por ua esta orale do eae de visbidad cone A neutnlizapo do proce anv, en rol de imentas agen eae ‘pose documenta ee, oda, unos reroduiodeiplogere cee coz coments, ladarans" com ela ess populist s0 co gelato da prpectiva (h priciest, aponinad) de obese naa Presets ret, ext, fundamen no modeled clr 80 ‘Speen hte propramerte a Tsaimposiasepreenainal ade se perbids, mas de mado dvs, les como Ang ds tng de Marcin Free, no qual ss mages optics propesadamente dexeahzadescumpre,no cnt, fn lusts oom Tear de Neon de Olvera stra com fos extn do aque de ge ‘tosdzadmisode umhespi store nls Nestle abc sesso ou gotesc das agen seve tan de eps de dupes pes versio fl peer Pa develo mo pret aoe plo desea Wstieo da seri de estas cents lads om Tees soieado tendo ct sizes quads eps banos nse ma coins, ess sas Oreterado movimento de eplicroente texto eager elt eth: «too ad de ua expe de eign de dapabiiade pela a es bustles) fancona, em geal, ao con, nes ies Tusa (oto de eres Driusio Vel), ets vor eae potencas (Cidade deus pot ‘xenplo, come fimacto da pra edgar metodo dort a ‘tengo do er do proces arava em ceo sages que apse Comovis dicta de acess contents aver eneshriodests tenes those fee Maso que se obser unas spre capuuradacoent do "lerest urbane pra prosinld leon com etusnca quand se oben Cer magers, veins que oem ct chs, com ene de um epee tio pensiel de irs esteacie tatnn qu, o conrad que sare primera vita nesses brs cet emer ecclissi 8 demacadss, com preciso, o esto, A ampli da sea de Wide tram, a conto do que augers no go + iclust do calogo fto fico, arese comesponder em et estes cso» un es nara cayatma refried dtl core cbsaradore mati documeniad conte una imabizagi d perspestna hist io & prope o gus ot en Tear, como js asia, pos ao simples fa de secon aruivo fps spar teria ate "© qe exc em pan quail de semanas de permandnc ner de tao Carma nce bescler a evsas jr ses de mr creer "!Nekon Olea, Ie Sto Pal, Gta do Acne 19 We» Seals tensto evidence entre imagem fotogrfica anacronica e conto atua. Nao ¢ também ‘que scontece em “Minha histéria dele", outro texto ilustrado, dessa vez de Valencio ‘Xavier e que foi publicado originalmence no primero numero da revista Fiegoes, ‘em 1998, Ai, a rigor, s6 se dispoem mesmo de quatro imagens de um homer coreano, morador de rua em Curitiba, que, & maneira de um homem-sanduiche, raz a propria historia manuscritae pendurada no corpo. [Nesse caso,a teduplicacao entre texto e imagem parece chegar a um al extremo que mesmo 0 relato e a escrta a mio nele empregads sto elementos extrados dos cartazes pendurados 20 corpo do andarilho citadino, achando-se o telato propria- mente dito aparentemente inscrito nas fotos. E alternancia entre proximidade e distancia, perceptivel no contraste interno a cada um dos dois pares de fotos, a rigor quase idénticas, que constituem 0 conto, temporalizando a absereacio do pedinte eassinalando, por meio de um jogo pronominal irdnico (“Minka histéria ele") presente no titulo, a ligacio entre observador e morador de rus. (© conto de Valencio Xavier aproxima-se, nesse sentido, de umm dos topei de maior expansio no imaginério urbano brasileiro ~ 0 dos “encontros inesperados” centre pessoas dispates~, definidos por Ismail Xavier como “experiéncias pontusis, rarcadas por cera singularidade”, oferecidas pela “migragio" ou pelo “espago da cidade” E que teriam exemploscinematogrficos recentes, como assinala 0 critica paulista, no encontro fcticio da atriz Sarah Bernhardt com as trés matutas do interior de Minas Gerais no filme Amelia de Ana Carolina; do menino Josué cor a exprofessora Dora em Central do Brasil, de Walter Salles Junior; de meninos ppobres, por acaso armados, com um americano e sua familia em Como nascem os anjos, de Murilo Salles; do foragido da cadeia com a moca de clase média na noite de Reveillon em O primeiro dia, de Walter Salles e Daniela Thomas. Encontros que, ‘em dislogo com os quadros urbanos baudelairianos que muitas vezesIhes servern de fonte, se manifestariam igualmente na poesia brasileira contemporanea, Eo caso de “Spiritus ubi vult pirat", poema de Sebastito Uchoa Leite no qual ‘o sujito,atravessando a Av. Presidente Vargas, depara “com uma sabrevivente™ de stia erguida enquanto todos 05 demais passam,indiferentes. Ou do encontro cor ‘© morador de rua em “031197", de Régis Bonvicino, de que se fala, a certa altura ‘Ele poderia subitamente ter sacado a faca, na caleada, disseram”, Ha registro se- melhante no poema "Em sua cidade”, de Duda Machado, no qual, em meio & palsagem baiana, meninos e mendigos eirculam entre vendedores cestas de fru- tas, enquanto, da perspectiva do sujeito do poema, “um dispositiva intimo/desti= nado a anular/toda presenga ncercepiava 6 contatoeo retrta, ainda tento/aralz do panico”, Tras das anos 50" Centres) In Pago, Estidoe Mares 19, Sa Pano, Hucte, 2000, p- 1101, p 1167, Ve, tmben, Misi Sego Cont “Encontes Inesperado" (Entei com mall Xavie), Mat, Fol de Saul, 69, des. 3, 3000. Fou Sesmo Serio em ia, Uno lee cmtempnsegito utane 65 ‘Mas do retraimento se passa, no poema de Duda Machado, &respiracio, « um ‘volar asi” que *reerguia 0 mundo” para ‘alem de qualquer tentativa/de fuga ou dominio”. E, voltzndo ao conto "Minha historia dele”, de Valéncio Xavier, aio extremo realismo das fotos, assim como sua reduplicagio, ao lado do fato de se apresentar 0 texto como parte dos dizeres das tabuletas penduradas no pedinte, ‘também sio elementos que parecem destravar 0 contato nesse registro de encontro) uurbono, E que parecem funcionar como recurso quase imediato de desperspec- Livizsefo, de tinsito ~ e nao separagio — entre sujeito e objeto, enttenarrador invisvele imagem fotogrfica de um morador de rua. O que provoca o apagamento tantode possivel rettagao subjetiva quanto de uma relacto meramence iustraiva entre texto e foto, pois « propria sucessio de imagens (\ncluindo as textuais) € que € predutora de uma narratividade conflituosa, desconfortivel, movida pelo en- contto com o semteto € pelos recortes e acréscimos visuals impostos ao texto- tabuleta que o cobre.E pelos exercicios de aastamento ¢ sproximaco com relagdo a esse quadto urbano cuja violencia implicita, a0 conttatio da segregagio domi. nate na experigncia citadina cotidiana, resultaria, ai, numa espécie de desdobra- ‘mento da apreensio visual, na produgio de uma perspectiva dupla (tminha/dele) parao relato, Pois, nesse caso, 0 sem-teto também parece observaro seu observador textual além de a reprodugao em bruto da sua tabuleta escrita a mao também atribuir ‘aterialmente a ele funcao narrativa, Trinsito que se tornariaestrutural no traba- lho de um escritor como Jodo Gilberto Noll,” cujos narradores invariavelmente sdeamulatorios, desabrigados, refiguram ficcionalmente a experiéneia urbana des sem-teto, as diversas estratégias de sobrevivencia na rua, Endo € toa que um dos titnlos de suas novelas envolveria uma especie de autoclassificagio natratorial cerratica ~ “quieto animal da esquina" ~ que parece sinteiizar esse trnsito entre cexperiéncia ficcional e urbana, entre modes de deambulagao, Mas o mais habitual mesmo ness literatura urbana no éo desdobramento de perspectiva, ¢ sim a catalogugio patclégico-criminal (ironizada na colegao de fisionomias de Tieze) de lugares ¢ tipos humanos, o temor da heterogencidade social, a reiterada criminalizagio das divisdes sociais, 0 teforgo a uma especie de parandia urbana endémicaa que tespondem as classes médias eas elites financeitas ‘corn movimentos de auto-segregagio em enclaves habitacionais, shopping centers « centros empresariais de frequéncia controlada, ¢ com o investment em formas de seguranca particular, garda-cosis, vigias, alarmes, cercamentos, rivatizagoes de ruas e pracas.Explicando-se, assim, em parte em sintonia com essa inseguran- 2 generalizada, a popularizasio das histérias de crime e da literatura polcial no Brasil dos anos 1980-1990, de que & exemplar a fico de Rubem Fonseca Pois éfundamentalmente um imagindrio do medo eda violéncia que organiza a Paisagem urbana dominante na literatura brasileira contempordnea. O que état ‘bem parcialmente explicdvel em relagio direta com o crescimento das taxas de eric "Jogo Gibeto Nal, Romances econos mando, Si Plo, Companhis da Letras, 1997 6 tie Sioade se ilento mas grandes cidade o ais nos nos 1980-1980, com foralsienta Go crime ogmnisdo, coma ineicncia da plc edo stema jude ete ici da seguraga pla eda justi, como aumento de visbiidade do con fentepopulacional em sag de prea sola que permbla pels grandes Ses re tn es or etd del mai comurna eSpce de pacrafzao da vices, que abrange do taste avomobt isco a rages falas, dos eos de fteol sos ustcetos matadoes pralissonaise ao exes privad da segranga eda vinganssO qu por ress, n9 nian apoviza enema eo pil do dctsosdowedo™ da proleesto as faa do crite" para emprepr express wilradas por Test Caleta em Cia devon ic ce rn, png cnn oo Fs for rico dos quis eorganiam snblcroete nao #6 ox pinicoe bene vas iguainente oe temorer de pea de posto socal ¢ propiedad, a nstabiidade ances, demas ntermose quests souls erutune sociedad basi, Psa ciminalago do socal parece we e acento enatamenteno periods de redemocratzaao police do pas F prec open dseursiramente por meio de clasiieages iis, esterespo, segegaoer,ecrrents nao spenge no tc poi jomalisico, nas hess india sobre asalos, pitas vata das ce vlenci, homies, ra, gunmen, a prodagao era doe utimes decries, que retertoriaie, em voeabulro ciinlconkecdo, um novo pe diode onganizagno das difeenca socis no espe urbano"” um proceso dseseilzante de mudang socal que afta lagbes stables de poder 6 -hlerargla soca eee da cdadans ‘Naz imitar oo entanto operates terrae territorial tog fica tial eas tematzaoesurbnas na produto cultural ecente do pis. Fancinando, nese eto, como ieriacutres patnlmente creas ea cxperncla clad delenit esegregatongurs dos procesos derdestiguaso e destestorlalaco,* estas 4 erature Past conte crinen ques passa amar em sega Perio glee desiguato arin xcs de dilog cro ene formate « expertnca urbana no Bell ootemporinte. Basan lembrar, nese sentido, come mais um contreexemplo, oir Sab ne face, de Casto Azevedo ™ ‘Nese cso, na imagem urbana em espe ~a do lino espalhado pelo Rio de Jneito~converte-seem indeagioprvieyiada de ture. Deseo poema inci do io, no ql seaman li Yo da area” apart do feo da esquina, “Tere Pts do Ro Caldas, Cidade de mao, Crime, segs eciadania em Si Pole, ‘io Paul, Editors 34, Edosp, 2000, 0.9 "dem, de, pH ' Emprego aq expesiocurhada, como se sabe, por Giles Deleae e Félix Gusta ex 0 ‘i-Ep,ereuabalhads por Fred Jameson em Te Curl Tan, mas sabres a desdob ‘estos bastante ditines« a um conentopatcula, das relaches ence imagine Weta ‘tbano e process cull no Bra contemporines, " calto Azevedo, Sob note fice, Rl de ene, ete Leta, 1996, Fou Siswoo Dates ele ai Ueto besa cempne een won 67 pasando pelos textos inciats de quase todas as segdes, com suas referencias a “de- sito de lino", "ao lati de lxo daesquina’alatas de lixo que, “no brew convulso™, se assemelham a vultes, “dor no entressonho" que, “com seu grio de lixo, se ‘nfiltea’ no corpo. Transformando-se o externo em interno, 0 lixo, a rigor aspecto do espaco fisico citadino, em quase habitante, vulto animado, emi elemento ‘constitutivo do eu lirica. Incorporasao por meio da qual um aspecto da paisagem nnolurna empresia materalidade fisica dolorosa &figuracio corporal do sueito. Mas se, no caso do livro de 1996 de Carlito Azevedo, a tematizagio do urban se faz, nessas imagens do lixo, por aproximagio, por incorporacio, esse movimento parece apontarsimultaneamente, no entanto, pars um “formigamento", uma expe- riensia corporal dolorosa prOxima dos mecanismos de desfiguracio, das exposigdes ‘eruentas dle corpos, por meio dos quais se tem constituido, com lrequéncia via hor. ‘or, asubjetividade na producio cultural brasileira sobretudo dese os anos 1986, Subjetividade e horror Nao €, de fato, dificil pereeber um rastro de Guignol na vida cultural brasileira dlastimas décadas. assando das minuciosas descrigdes dos corpos esssassinatos de mulheres em Acqua Taffana de Patricia Melo.” & exumacio dos cadaveres do pai ede um mio relatada no conto A carne c 0s 08303", de O buraco na parede, de uber Fonseca.* Da exposicio de um corpo de criangaatravessado por uma estaca de madeira, presente numa das fotos de C. A. Silva, exibidas na Galeria da Funarte ‘em 1996, a *menina de rua morta nua” do relat, cheio de retratos e registros policias, de Valencio Xavier. Ow aos “dentes do apodrecimento” que “engolem 0 corpo” num dos poemas de Cheiro forte, de Silviano Santiago,” aos vivos vorazcs, «do prema “Os vvos” de Ferreira Gulla, que, “glutées ferozes",“devoram os outros vivos" ¢ “até dos mortos comem/carnes os505 vezes”, Da perna amputada do narrador do romance Hotel Atlantic, de Joo Gilberto Noll, ao sujeito ~ “todo ex figs" preso a uma cama de hospital na se;8o “Incertezas” do livro A ficedo vida, de Sebastido Uchoa Leite” Referencia guignolesca também particularmente acentuada, e, a0 que parece, metélica, na producto teatral recente. Passando de O Livro de Jo e Apocalipse. de AntCnio Araujo e do grupo “Teatro da Vertigem”, de As bacante, na versio de José Celso Martine Correia, as describes ¢ exposigoes de tortura que constituem, Bugiara, ce Moacir Chaves, as espeticulos de Gerald Thomas dos anos 1990 de ‘mod geral, Nowhere Man, por exemplo, deste limo, ji se iniciava com 0 sett Fausio em trajes meio ensangacntados, tendo um pseudocadverfeminino como ‘interlocutor E, na sua segunda montagem do Quartet, de Heiner Muller, os dois DPetsonagens, também com roupasefacdes sujos de sangue, circulavam entre enor, Preis Melo, Aqua Tf, So Palo, Compo as Lees. 1994. " Rubem Fonseca, O ure ma pated, Sto Foul, Companhia des Less, 1995, 2 Strano Santa, Che forte, Rode Jani, Roce. 1993, Setasuso Ucn Leite, A fe vid, So Palo, Eitora 34, 1953, 8 eat 2 Secedle mes pedagos de carne suspensos e um cenério em que escorriam manchas sangoi- rnolentas por todos os lades. Dada de horror que tem estado presente regularmente ‘no seu eatto, Basta lembrar ainda os pedagos de corpos espalhads pelo chio em ‘Matogrosso, ou 0 coracio e a cabega arrancados és duas figuras femininas de The Flash and Crash Days (© que parece ter ocorrido, porém, se nos fixamos, por eiemplo, em algumas das montagens de Gerald Thomas dos anos 1990, foi um aumento de énlase nesses sinais de sangue, mutilagio, tormento fisico, acompanhado da explicitagio auto- irénica de se estar trabalhando, ai, muita vezes, com alguns dos teuques mais caractersticos do genero “Grand Guignol”. Desde as facas com pontas resrteis a zmesas que ocultam corpos, das gradagdes de core vatiagées de composiclo €tex- tura do sangueficticio ao despedacamento fisco da atriz Fernanda Torces em The Flash and Crash Days, a sua cabeca arrancada do corpo em O império das meias- verdades, ou aos compos atravessados por setas (como 0 de Fernanda Montenegro em The Flash and Crash Days) facoes (como na abertuta de Nowhere Man) Se o teatro do “Grand Guignol", de grande popularidade de fins do século XIX até o periodo entre-gueris, ancotava seu efeito cénico no fait divers médica o criminal e num misto de interpretacao e habil exerccio de magica, o que parece totnd-lo especialmente curioso é, de um lado, a sua transformacao de inovagdes tcnicas (dos truques de iluminagdo e audio 20 telefones, automéveis e novidades ‘medicas) em elementos dramiticos, e, de outto, a apresentacdo de uma espécie de pastiche de horror nao apenas da experiéncis moderna do corpo e da propria subjetividade como instives, fragmentados, mas, sobrenyo, da figuracao do corpo como “corpo em pedacos’, dominante, mas com variagoes de sentido, na arte ‘moderna e pos-moderna.E hd, sem duvida, nesse sentido, nesse Guignol brasileico recente, um didlogo com a extrema crueldade com 0 corpo presente em alguns cexemplos da body ae contemporaiea, coma figeracio atormentada a fragenentacio paradigmatica e polivalente ma producio antistica do século XX, das bocas de Bruce Nauman ou Francis Bacon, 20s olios imensos, pedacos de pernas, mios, 205 ddesmembramentos diversos operados por Louise Bourgeos, das fotos de fragmentos de cadaveres de Andres Serrano as supressbes corporais na obra de Samuel Beckett Talvez, no entento,haja outras fontes,ndo exclusivamente plstcas ou atisticas, para esse rasto guignolesco. E algumas delas talvez possam ser sugeridas, como no teatro do “Grand Guignol” propriamente dito, por ums simples consulta a0 noticidio jomalistico do pats em fins dos anos 1990, Por exemplo, a sucessio de fotos de ossadas ¢ imagens de arquivo de antigos retratos ede corpos executados dos militantes de esquerda, dos desaparecidos politicos brasleizos dos anos de autoritarismo milter, que invadiram 3s paginas de jornal, no ultimo decenio do século XX, por conta do aparecimento de novas informagées, da lecalizacdo de ‘ossos € restos humanos e dos processos das familias as voltas com o reconhect- ‘mento dos seus mortos. Ao lado dessa iconografia politica do periodo da ditadura ‘lle no pas, nao ¢ difiel perceber tamnbem, no entanto, a qUase exaceraeao de um cotidiano mareado pela banalizagao da violencia, da brutalizagao, expasto dia- rlamente nas paginas policais da imprensa brasileira, E com repercussio intens- ficada no caso de chacinas praticedas a mando dos grupos que dominam otrifico Osetia fms ire, atom besa earangrnn epee whan 69 e drogas nas grandes cidades brasileiras, Ou pexpetradas pelas proprias Forgas policais, como a de onze jovens em Acar, na Baixada Fluminense, em 1990, a de ‘dez adolescentes assassinados no Morro de Séo Carlos em 1992, como o massacre dde 111 detentos no presidio do Carandima, em Sap Pala, mo mesmo ano, como a ‘execugao de 21 pessoas em Vi em 1993, de oite meninos de rua na igreja da Candelaria, no Rio de Janeiro, também em 1995, de dezenove trabalha- dores sem-terta no municipio de Eldorado dos Caras, no Pard, em 1996, 08 como o assassinato de onze pessoas no Bar Ponto de Encontro, em Francisco Morato, em Séo Paulo, em 1998, Ocorrencias que padronizam, va fotojomnalismo, um tipo peculiar de iconografia corporal dolorosa, sublinhando a disseminagio da violén- ia, 0 aspecto cruento da historia brasleitacontempordnea, Parecem combinarse, enti, desse ponto de vista, na refiguracio em pedacos, fem agonia, de personagens, retratos enarradores, na producio cultural brasileira recente, rés ordens de latorescontextuais. De um lado, o dislogo com a fragmen- ‘acto corporal caracterstca & arte moderna e a um de seus pastiches, o Guignal; de outro, registto indireto da experiéncia da tortura, das execucbes, eda vivencia politica das anos 1970. E, de outro lado, ainda, a convivencia com o aumento do «rime violento, das zonas de dominio do trafio, eda violencia também por parte das forgas de seguranca publica, durante as décadas de 1980 e 1990 no Brac ‘Chamando a atengéo, no entanto, ofato de, nesas tentaivas de dentificagéocruenta dos sueitos fiecionas, sua exposiclo nao se ancorar em idealizacdes subjetivas, imagens corporaiscoesas, de o processo mesmo de igurasao e subjetvacio envolver luma espécie de conscitncia necessria de sua instabilidade, um impulso conco- ‘mitante, impositive, de desfiguracao, de guignolizago. ‘Trata-se,no entanto, de uma desfiguracdo ambivalente. Pois se, por vers, aponta ‘pata vitimizagoes, por vezes sobrepoem-se mascaras de agentes da violencia a per- sonagens, natradores e sujeits poéticos, mantendo-se, com frequéncia,igualmente, uma espécie de registro hibrido, no qual um misto de vitima e perseguidor ¢ que rmoveo processo de subjetivacio lersria, Dat, inclusive, aproiferagio de hibridos, aberragdes, figuras autodefinidas como monsiros na literatura brasileita recente. E que, se em didlogo direto com um contexto particularmente eruento, apontam, via figuraeio monstruosa, para uma lacuna epistemolégica, uma desestabilizagdo Fabiano Calate, Fabre, Sato Ande, Alpharabl, 2000 Ronald Plo Seo, Ro de Jano Sete Lets. 1996 > Anglia fs ae domorac: 0 paradox Basle, S90 Fat, Pa er, 200, p22, 59.64, 80 Fm iso Deis ofoma Ua. ts es nega epee whom 75 “cariter dsjuntiv da democracia brasileira” como elementos nucleases de uma experiéncia urbana segregacionista relacionando a criminalidade violenta ndo s6 A transformacao das “confguragdes tradicionais de poder”, masa “deslegitimacio do sistema judicario como mediador de conilitos", 4 *prvatizagao dos processes de vinganca”, 2 “legalizagio das formas de abuso e vielagio de direitos”. Ou, como enfatiza Lutz Eduardo Soares, a uma duplicidade consttutiva a organizagio social brasileira, a de uma sociedade orientada por elementos de um “modelo cul- tural hierdrquico” e"socializada de acordo com a modelo cultural préprio ao indt- ‘vidualismo igualtiio liberal’, ade um “projeto liberal-democratico” no contexto “de uma forte tradicdo nacional autoritériae excludente’.® Pois quando "sto in- ‘ensos 0s padroes de exclusio politica e grande parte da populagto no se reco- ‘hece como participe de uma trajerdriacoletva", como observa Maria Alice Rezende. de Carvalho, “a cidade se torna objeto da apropriagio privaisa, da predacao e da ‘spinagem, lugar onde prosperam o ressentimento e a desconfianga sociais” esse modo, torna-se problemética a percepcio da cidade, e de suas figuragoes liveritias, como unidades espaciaisdefinidas, como espacos comuns de socializacio, ‘Orv expandindo-se “sabitos/espacos", como em “Neste fio”, de Regis Bonvicino, ‘oraassistindo-sea sua iniensa compressio, como nas “quatro paredes rentes", no “casulo/eompacto, nulo”, no “espaco esparso" sugerido no livro Solo, de Ronald Polit, ora desdobrando-se do urbano o deserto, como €0 caso do "quase sertio” de Italo Moriconi, ou da “cidade deserts” mencionada em “Gio”, de Duda Macha- do, ora privilegiando-seos “espapos-ente”, as zonas de transiga0, como em Angela ‘Melim, Com diferencade, no caso dessas destettoralizagdes lterrias, estar em ‘pauta no apenas a forma urbana, mas um processo interne de formalizacio mo do a orientagbes contraditsrias. Apontanda a indeterminacéo espacial, o geogral camente “informe”, para a exposigio de uma experiéncia formal marcada pela exacerbagdo das tens0es entre horizonte e deriva, liguragio e instabilizagio, per- sisténciae dissipagto, italo Moriconi ea cidade como sertao A simples sobreposigio do titulo Quase serio na reprodug fotogrfica de pl- sagem nitidamente ciadina, na capa da coletinea de poemas de 1996 de lilo Moriconi, tind, via nomeasio, a dominnca de uma vsuaidade urbana, as ‘expos a partir de um seu avesso potencial. Sem que, no entanto, o movimento protic, # condensagdo das duas Imagens, de fto se lev, Dai 0 adverbio, 0 “quase",responsével pela persstincia das duasreferéncas geografica, da dispar dade evocada pr eas, por esa conjugngo de cidade esertfo acurnulagioedeseta ‘As imagen esruturas ao lv apontando simultaneamente para uma intesegao de 2 Teresa Pires do Rio Cie, Cidade de mato, op. ci, p34. Le Eduardo Sores, “Uns inerreiio do Beal pra eontenusit a vill, C Albeno Meseder Perce al. (Org) Linguges da velo, Reo de Jaci, Roe, 2000 34-6, "Maria Alie Resende de Carvalho, "Vieknca no Rio de Jani ua elle ptr ‘Alen Perera etal (Org) Lingagen dl ili, Ro de Janel, Roe, 2000, p36 6 Wore Secedde ambigncias e pera a impossbilidade de sua conciliagto metafrica, A diferenga, a confitualidade latente entre elas, sugerindo uma amorfa metodica, um limite pro positado —"palavta que fala", "meias-plavres” nessa liguragio urbana pelo avesso E evidente que as imagens do desertico, da silencio, da aspero, da “vegetacao cesdrixula, cheia de espinhos", de uma violencia potencial, em meio a deriva, ras, “camavais", uma *maltidao sem face", uma “chuva de figuras", “bra50s" "quadris", "caros retardataros","prédios apagadae", “caleadas", ea uma sucessio de cagadas amorosas andnimas ~ “ciscando no asalto”-, emprestam a evocacio do “sertio",nessec2so, a possibilidade de exposicao das trilhas homoerSticas da cida- de, da outra cidade embutida na cidade usual, na Avenida Rio Branco, na Copa cabana, na praia, nas esquinas de todos os dias. F de uma tensio recorrente entre 0 ‘mais inuimo © 0 mais publco, o sertao “mals pra dentro” e o “excessivamente urbano”. Entre 0s ginglios ‘mplodindo o pescoco e 2 lanchonete McDonalds em. *(QNotiia da AIDS)", “entre 1ma esquina eantigas angustas” em “Noturno”,e uum “meu espaco", “ineuolharinsolvel”, maa subjetividade e uma serie de formas andnimas transitdras, “curvas fundas",“supesicies”,“abismos", "vagas". Acom- ppanhada de uma tensto de classe entre “o homem maduto e o rapaz das Tuas referencias cultas espalhadas nos poemas eos objetos de busca amorosa, definidos ‘como “gente simples do povo".E entre uma espacialidade marcada pelo acdimulo “de tantos corpos”, de ruas, prédios, esquinas, ea reteragéo de imagens de umm “esquema agreste", de um desert “Imagindria platano”, “tetra oca, sem hmites” ‘A referencia a0 sertio nio se restringe, porém, nos poemas de Italo Moticoni, so rastto de uma experignci urbana homoerdtica,E patece apontar também para \dualidades perststentes na vida liceravia brasileina, para as oposigées mediagdes entre cosmopolitismo e dade local, entre universalizacio e temtica regional, ltoral e interior. Dualidade latente, de modo quase irdnico, na cidade que se dé a ler como agreste eno sertio emaranhado a fermas urbanas; no sero, imagem paradig- cade brasilidade, de uma geografiaacéu aberto, com luz inclemente, pova. ds, em geral, por jagungos e sobreviventes, mas convertido em oco ds noite, paisagem privilegiada da desiva amorosa solitaria de Quase sertao. Um “oco" que define simultaneamente o tinsito pela cidade (°Nos dois ea ua, Nos dois, oco da noite") ¢ pelos corpas (“Flor do aco, broto espesso, lsura sem pélos"), num dese dobramento metaforico de um dos pjlos da dualidade espacial que organiza todo 6 livro Quase serio. Espaco bifronte que serve de principio de estruturacao, pot ‘exemplo, 2 “Brinde”, poemaem didlogo com 0 "Boi morto” de Manuel Bandera, € ‘no qual se opdern imagens do seriao-deserto (“ha Nilo algum, planicie ou deserto, sé/extenso como um trago que do siléncio lui"), e de uma pessivel configuracio ‘spacial definida, a uma deriva enumerativa (arrastando no escurofcortentes, martes, pedagos de pau podre /espelhos e vidro partido e o resto"), uma “sada de cega/em mar aberto, desconbecido, abandonado das esquinas E se o sertto ja costuma se dar a ver simultaneamente tanto como vastiddo, dlesero, horizonte amplo, quanto como marcado por subitos ematanttados veges, formas asperas,rara, intrincadas,cacto, cerrado, sugerindo certa conflitualidade fguraiva potencal, nao é de estranhar que enha servido de referéncia, na poesia de Italo Moriconi, para a exposigio de imagens avessas, conflivas, nio apenas da plsagem urbana, mas da forma poéticae do processo mesmo de composica0. Pois Fen Sesto Desi em nein actus bsincanengeon cpr ubena 77 € por meio de uma imagem cindida (“Tudo ¢ conflito de figura no jardim de forcas dara sacistca"), que é, deum lado, figura abstrata desejo de “forma pura indivisa", *a forma, a forma das formas, o desert", de outo,*deslocada em trancos,bartan os", “chuva de figuras, cidade, que se definem, em Quase sera, essas figuragoes cspaziais, em disjuno interna, da experiencia urbana e da forma poética. Conflte imagético que, ligado a experiéncia histSria e as eondlicoes de pro- dducio literiria no Brasil contemporéneo, envolveria, na poesia de Angela Melim, sobreiudo desdobramentos e desfiguracoes do horizonte e uma enfase metédica nas margens de indeterminacio do espaco figurado, e que, no trabalho de Duda Machado, imbricaria deriva e forma, desejo construtivo e dissipacio. Angela Melim e a dramatizacto do horizonte Se a teproducio de todas as eapas dos seus livis anteriores, reunidos, em 1996, por Angela Melim™ em Mais dia menos dia, funciona como marco divisorio, ‘modo de datar ¢ singularizar as diferentes seqdes do volume, acaba apontando, ‘gualmente, se observadas, com atencio, essa ilustragbes, para uma das imagens priv legiadas da sua poesia ~ a do horizonte, Da linha horizontal iregulay que suravessa 0 espaco inferior da eapa de O vidio 0 nome (1974), ao corte reto que separa em dois. titulo Das tripascoracao (1978), 20 corpo feminino que, deitado, parece duplicar 0 recorte des montanhas, 20 fundo, na iustracto de capa de AS ‘mulheres gostam mui (1979), 20 titulo em letras minimas, quase imperceptivel, dlisposto horizontalmente em meio a um vazio propositade de qualquer epresen- tagdo em Valo esrito (1981), aos barcos solios na agus, com apenas. sugestio de tum limite possivel, que quase se confunde com o recorte superior do papel mais _grosto da capa em Os caminkos do conecer (1981), no espaca vazio, mais adiante, pparao qual parece apontara figura feminina estampada em Poemas (1987), ow, por im, 4 ilustragao de Nelson Augusto para Mais dia menos dia (1996), na qual dduas linhas ¢ uma pequena mancha escura evocam a relagdo entre sujeto € paisa .gem,experigncia poetic e tematizacio do horizonte, e espacializam, numa linha- Timite, a duragéo e a imagem de um tempo por vir sugerido no futuro potencial, quase proximo, do titule. ‘Estou procutando a palavra certa/para partes superposias de duas esferas/ Intersecqi07/E solidi" «indagacto expressa em "Rabo de alo", do livro de 1996, sublinha a preocupagdo de Angela Melim com os espagos limitrofes, transicionais, 0s “aro engates", os hugaresentre, meio caminho, os horizontes, E hi, na ver. dade, uma vasiasucessao de mares ¢ céus na sua poesia. A égua que “brilha, tran- ail, 20 melo-dia",“azuis profundos versus altos mares", -azuis tsgados/grandes paisegens/claras’, “um e outro coqueito roxo contra o céu cor de rosa", “as linhas dle agua brilhante eas montanhas azuis um tanto esfumacadas”. Sucessio de hori zontes atmosféricos ¢ marinhos que, tendendo ao iimitado, a espelhamento dos “estados de alma", e parecendo reprodusir uma versio romantico-pitoresca da paisagem carioca, apontariam, no caso de Angela Melim, noutta ditecio, © Angela Mel, Mais is menor dl, Rio de Jano, Sete Letras, 1996 78 Us» Scede Funcionam, de cara, como forma de recoriar, nem que seja, as vezes, como fundo, a presenca do mundo — "campo/verde/minado”, "montana de cadaver", ouvido violado, timpano rompida/brages cormades, cabecas" — como elemento “constitutive da experiéncia poélica. Tensionando-se, assim, via paisagismo, 0 mo- -delo auco-reerente,expressivo, dominante na podugao poética brasileira dos anos 1970, contempordnea aos primeiros livos de Angela Melim. E, como sugere um texto como "Minha terra", marcado pela visio em negatvo da terra "raizes no at” edo tema da “volta a casa’, do enraizaments ~ "Nada é natal”, trata-se de um palsagismo em contrastediteto com o descritivismmo de molde romantico, que dei- aria astro na literatura brasileira subsequente, Desse modelo descriivo se elimina, com frequéncia,na porsia de Angela Melim, a fxidez do ponto de mira, exerctan= do-se formas diversas de objetivacto e de distancizmento irco, como em “Assim ‘uma linba verde da janela ~ um dia": “Assim uma links verde da janela ~ um diay timo, repente ~“cortende/paralelo 20 que é veloxeolina/lantcieestilete fino de retaVno fundo*. 0 “estlete fino” discreto, quaseimperceptivel, cumprindo fungéo semelhante & do “campo/minado" do poema “Fogos junines” em termos de um desdabramento cruento de algo se assermelha a umm simples quadro deseritiv. -Ensatamse, igualmente, desdobramentes contrastantes de voz. Como entre @ casualidade do sujeito que presta informagoes para o viajante ext "Roteiro", € 0 corte sistemtico de sus fala por parénteses descritivos, impessoais e minuciosis- simos. Duplicidade que atinge também as figurardes do espaco. Dai as transforena- oes ~ de disfano, gaze, nuver, a rosa bobo, barato ~ por que passa a idéla mesma eum céu corde-rosa em "No céu cor-de-rosa” oua definicéo mavel,em suspenso, de paisagem contida em "A duna vira nuvem, se quiser. : ‘Nao €, pols, exatamente como extenso, iafinito aberto ao olhar, ot limite fixo, contorno, que 2 imagem do horizonte parece orientar a escrita postica de Angela Melim, Esobretudo como espago-ente, zona de deslocamento,“exploracio ‘dos pontos cegos, das margens de indeterminaco na linguagem e na paisagem" como assinala Michel Collot em Zhorizon fabulus, que ela tematia ¢transporta, [pata.o espaco podtica, a nogio de horizonte.O que, do ponto de vista da organizagio Srifico-sinttiea do poera explica a quantidade de brancos, intervalos,parente- ses, ravestoes, estruturaisnos seus textos, ou 0 gosto acentuado pelo verso isolado. solfo,atrayessando a pégina, corando ou fechando alguns dos poemas & maneira dde uma divisor, de uma linha interna do horizonte, muitas vezes intensificando Jum desdobramento ou um conflito de liminardades. Como na frase longa que, fem “O mar nto exist, depois de cinco versos curtos, internaiza um mar de suséncia e impossibilidade numa espécie de herizante orginico em corrosto: “A acide: € um fogo comendo o tubo escuro que atravesss o corpo". Como no caso de “Ronea um motor”, de Mais dia menos dia, o verso "E o ver8o que se abre", que, _separado dos demais por dois espacos em branco, parecendo sintetizar, via destaque _grifico, as imagens anteriores de barco, mar, calor, efigurer uma extensao paisa _gistico-temporal ‘a céu aberto”, se faz acompaniar, no entanto, de umn outra hori- “ Michel Colt, Chron fabulews Il, XX" Stl, Pac, Libra Joue Cos, 1968, , 17 Fess Suze Ostia era in Use ble opie wpe wore 79 zonte, confitante, que inverte ni 86 0 seu movimento de ampliaglo, mas a rele- ‘éncia temporal a um periodo que comeca, transformando-se a genese de um ve- "20 em imagem de um passado proximo &dissolugto: “Tarde, orvete, amor/varanda/ em tacas do passado/a derreter", A consciénela do horizonte na poesia de Angela Melim, em vez de suporte «spaco-temporal ou ponto de orientacio da perspectiva subjetiva, aponta, portan- {o, para um movimento de sistematico redimensionamento mutuo do sujito e da paisagem, de que € exemplar arellexio sobre a morte contida em “Limdo irméo”, ra verdade o simples registro de uma fruta que cai e rola pela terra, “que agora traga/a carne aberta/desesperada/do limo”. E de que ¢ exemplar, igualmente, sv preferéncia pelo intervalar, pelas linhas que figuram e desfiguram o espaco e a escrita, por uma espécie de dramatizagao do horizonte, desdobrado em formas diversas, mas obrigatsrias, de confico e indecerminac, “°E ela gostaria", l-se em “Os caminhos do conhecer", “de pintar as unhas de vyermelho. Enquanto esctevesse as palavras no caderno ia prestaratengto nos de- dos de pontas brlhantes segurando a esfereogralica e sentir prazeresconflitantes.” Movimento semethante ao que, entre um *lé dentro” e wm “pé de jasmimn”, em *Mulheres", entre um “a flor da pele” e um “fosso fundo", em *Faca na égua”, ‘entre “cistas suspensas/pedras de sa/tapos de mat” e "seu fundo longinguo/an ‘orafos leitos de areise seus lengois impissimos", em "Um navio", figura “jane- las", “lagos no peito”,“navio", imagens de fronteira, espécies de no-lugares. A ‘quese poderiam acrescentar a bainha, o vara, heira-ma, a fresta,aaresta,o vio, as grades, abeira, de tantos outros poemas seus, nos quals se tensionam e convi- ‘vem essas diregdes conflitantes. Ou que, em melo a uma sucessio de marinhas © paisagens & primeira vista poueo habitedas, quase desistoricizadas, ativara uma especie de conilito surdo, quase imperceptvel, entre quadro natural e horizonte historico. Entre um exereci lrico em torno de sol, lars e perda, como “Corajo- so como a beleza”, sua sucessio de imagens bélicas:disparos, bala, dor, estron- dos, combate. Entre “os ladrilhos/o verde baco do cloro/a piscina” e 0 “arame” que a resguarda, em “Album, 0 “cheirofdo jasmim” e um “sangue vivo‘ pena conti- ddo®, 0 "céu azul e limpo" e “granadas”, “Togo, fumaca", em “Fags juninos". Ou entre o horizonte da cidade e o da escrita, em "Trilha", com a mediacao de um terceiro horizonte blico, de “cerca, baixas, barranco, armas”, que parece redimen- sionéslos historicamente. Duda Machado e a deriva metédica Jos poemas de Duda Machado, se iguslmente mareados por uma exposicio conftiva do espago, parecem movides por um principio de conta-orgenzacio, por uma indeterminagto metédica, mas variada, que, de dentro, os desdobra © reengendea, apontando para uma forma poctica propostadamenteinstavel, et fuga oa toa igurada, repetidas vezes, por imagens marcadas exatamente pelo movimento, pla tansparénciae pela tendenca ao informe, a desterritoralizeio, come as do vento e da onda, fandamentais auto-expliciagdo de una postica ppauada pels modulagto ("quem reina?/uma medulagdo/cpas de afinanf enten- imento"), na tensio entre desgarree condensagio, deriva e desejo de fxagao 0 Use Seite (Cbrisa/sinda hd pouco formada/a confluéncia/entre passagem ¢ morada"), domi- nantes em Margem de wma onda seu livro mais recente. His, uo eitanto, desde Zil, uma recorvéncin dessas imagens aéreas, aquaticas, rmoveis. Da associacio do livro a0 rio, no texto inicial desse volume de 1977, a0 “mar/na ponta dos cascos" de “Verao", as vogais “iquidas, cascateantes, enchen- tes", ou as imagens de voo, 08 mandacarus revoando, em "Ari, oo poema-per- -panla sobre o que soaria mals alto, se “o vo ou o canto do passaro". Imagens em ‘movimento dominantes igualmente no seu segundo livro, Um outro (1990). Come nos seus diversos percursos, alvos em movimento, na multidao definida como “moinhos de bracos", na chuva que segue 2 moca, na ciclista que passa, e na ‘coloeacio er roda até mesmo das “idéis fas”, exemplo quase paradoxal da poe ticaedlia, instivel, de Duda Machado, ‘Ventos, voos, moto-continua se acham contrastados, porém, em Um outro, @ uma indagacio, também recorrente, sobre a margem, © horizonte, o limite, do acontecimento, da linguagem, ou entre "contemplador, e£u ¢ mat", *céu e asf (0, “jrdim e tarde”, “morte-vida", Entre um desejo de contomo, recore, forma- Tizacio,e por uma espécie de hesitago das formas, de desmateializagio inevitiveis. “A vida/sem medida isto igor", lé-se no segundo poema de Um outro. °O hori- zonte", expée a primera estrofe de "Juntos", “é a Tuz/que em cor tao unanime/ apaga as superficies/de que vive". Assim como, no turvo espelho interior, é-se em. “Tanto ser", “desfiguram-se 08 at0s"e o corpo Se mostra “itapalpavel,careaga/que ‘© espirito nao aha’ Em Margem de uma onda, essa tensto entre movitnento de formalizagio e de dissipacao, de figuracio e iminente desfiguracto, tematizada, de modos diversos, ‘em todo o livro, daria lugar a poética singular exposta em “Fibula do vento e da forma”, "Mana piscina” e *Margem de uma onda", em parte em didlogo com "Imitagao da égua", de Joao Cabral de Melo Neto. Nela estabelecendo-se,a prinefpio ‘por negacio, uma analogia entreo vento a forma, elementosa rigor incompativeis, em irredutivel desacordo, de urn lado, pelo deseo de persisténcia proprio & forma, de outto, pelo aspecto passageiro proprio 20 vento, Em ambos 9s casos, porém, ppercurso diversosinalzaria no sentido de uma correspondencia, elo avesso, entre essas diferencas, que seriam levadas 4 propria mutus negacao, Do lado da forma, uwvando-se um processo de multiplo desdabramento em metamorloses. Do lado ddo vento, por conta da possibilidade de subitamente tomar forma, caso 0 seu mo~ vimento se opere, por exemplo, “sobre a harpa eslia/ou nos mébiles de Calder", ‘como sublinham os dois ultimes versos do poems. © curioso, no caso dessa [zbula, esti nao s6 no “desacordo unissono” em que clase basela, mas no fato mesmo de as duas imagens se encaminharem necessarig- mente para 0 proprio esgotamento, a mancira do que se dé com voz que “se ‘ecolhe” em “Interferéncia",acor que “ca sobre si mesma” em “Aventura da cor”, (os detalhes “moldados pela desagregacio” em “Postica do desaste”, a “fadiga”™ que “a cada coisadesdobra e dissipa” em “Dentro do espelho”, © quarto que, “de- ‘Duds Machado, Margen de wma ada, So Plo, atora 34,1997 FemSeseo Users era in Uses besa energie omg ese 8) pols de condensar/tempo e espaco", se concentra na janela e encontra 0 wicuo € "os limites da calad/ernbalxo™ ern "Resumo quaseabstrato”, Nao sendo de esra- ser, ainda, cm meio a esa ucessto de dssluyies ea arncaye de autoanulagao éemutdas mas imagens dominantes de ants desses poemas, que alguns delesse convertam, a0 contério, em genealogias da forma, coma “Trago e movimento", *Fragmentos para Novalis", “Condigio" ou “A noite na esttada". Ou que forma ¢ deriva se apresentem explictamente geminadas num pacma como “Trevo™ “uma imagem a derivatio densafem seu ensimesmamento/a ponto de exctarfo deseo de lormaaté esgoti-lofe elirmar sua deriva/vals oitaas acim E, dado fundamental ao método pettico de Duda Machado, nfo se trata, no set ‘aso, simplesmente de urna reflexto sobre a indeterminagéo, mas de urn pocesso de composico tensionado intemamtente, le mesmo, eno apenas suas imagens, or ngatvidade resistencia estroturaisuniearao formal. Tensionamento inter ‘no manifesto tanto por meio do recurso recortente as enumeragdes (de que sto cxerplaesos seus dois “Almanaques") ou a imagens contraditories ("ea 40°-uma ‘oisteza de inverno"), quanto via recortes repentinos do poeta, uma outta vor (como na tereirestofe de “Fala” ou na metade de "Conte e costa"), un pont {aco (comoem “Album”, um intervalo (como entre “Psi” eo resto de “Fantasma

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