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vi Prenuncios e anuncios de uma “nova era da curiosidade” 1. Foucault: “Eu sonho com uma nova era da curiosidade” Ha mais de vinte anos, na fase final da sua vida, o famoso fil6- sofo francés Michel Foucault (1926-1984) frisou, em diversas oportunidades, nos EUA, que ele nutria um sonho intenso acerca do que designou como “uma nova era da curiosidade” — ¢ aludir, com tal énfase, & metéfora de um sonho em contexto-americano significa evocar ressonancia imediata do famoso dito de Martin Luther King “I have a dream about America”. Essa formulagio — como, de resto, toda a vasta obra de Foucault — supée que ja hou- ve, especialmente na modernidade, um tipo de valorizagio da curiosidade, que gerou modelos (cientfficos, filos6ficos, sociais), cuja crise radical estamos vivendo na atualidade. Desde o seu campo de visio pés-moderno, Foucault descortinava um panora- ma profundamente novo a nossa frente. Mesmo sem uma pesqui- sa exaustiva em seus muitos livros, foi possivel localizar vers6es variadas de um mesmo foco de raciocinio, sempre expressado de forma contundente e apaixonada. Acrescentamos exemplos da ressonancia dessa espécie de manifesto de Foucault. Ha anos leio textos de e sobre Foucault sem nunca ter depa- rado com essa posigao dele sobre uma nova era da curiosidade. Comentei 0 assunto com colegas assiduos leitores de Foucault e 186 Curiosidade e prazer de aprender nenhum se dera conta ou sequer sabia desse pronunciamento. r aqui um texto mais longo: Por isso insisto em conden: {(1984) Referindo-se & quantidade enorme de idéias que desafiam nosso conhecimento e nossa imagi- nagao, Foucault afirma] Existe aqui uma supera- bundancia de coisas que precisam ser conhecidas: fundamentais, terriveis, maravilhosas, divertidas, insignificantes e, ao mesmo tempo, cruciais. E exis- te uma enorme curiosidade, uma necessidade, um desejo de conhecer... Por outro lado, a curiosidade foi estigmatizada como vicio pelo cristianismo, pela ‘filosofia, ¢ até por uma certa concepgao da ciéncia. Eu sonho com uma nova era da curiosidade. Temos os meios técnicos; o desejo esta ai; hd um sem-fim de coisas para conhecer; ¢ existem as pessoas capa- zes de enfrentar esse trabalho. Qual é, entéo, nosso problema? Acanhado demais: canais de comunica- Gao estreitos demais, quase monopolisticos, inade- quados, Nao se trata de adotar uma atitude protecio- nista, para evitar que a informagao “ruim” invada e abafe a “boa”. Devemos, isso sim, intensificar a possibilidade de um ir e vir (da informagao). Isso nao levaria, como alguns temem, a uma uniformi- dade e um nivelamento por baixo, mas, ao contra- rio, d existéncia simultdnea e @ diferenciagdo des- sas vdrias redes'. E significativo que Foucault tenha voltado diversas vezes ao assunto. Confira textos pesquisando no www.google.com a frase age of curiosity e cruze com Foucault. Por exemplo: 1. Foucault, Michel. The masked philosopher (Translation by Alan Sheri- dan). In: L.D. Kritzman (ed.). Michel Foucault: Politics, philosophy, culture (Interviews and other writings: 1977-1984). New York: Routledge, 1984, p. 323-330, citagio: p. 328. VI. Prenuncios e antincios de uma “nova era da curiosidade” 187 Outras condensagées e comentarios: Foucault nos recordava: “Nao creio no refrdo da decadéncia, da auséncia de escritores, da esterilidade do pensamento... ao con- trario, existe uma pletora, uma profusdo. Nao sofre- mos de um vazio [...] existe uma imensa curiosida- de, uma necessidade, um desejo de saber. Queixas acerca dos meios sempre existem [...] A curiosidade é um vicio, sempre foi um vicio estigmatizado pelo cristianismo, pela filosofia, inclusive por uma certa concepgao da ciéncia, Curiosidade era tida como futilidade, Contudo eu gosto da palavra. Ela me evoca uma preocupagdo, recorda o cuidado pelo que existe e pelo que poderia existir... sonho com uma nova era da curiosidade... sofremos pela es- treiteza dos canais, por sua insuficiéncia. Nao faz sentido adotar atitudes protecionistas para preve- nir a md informagao e separd-la da boa. Ao contré- rio deveriamos multiplicar as idas e vindas™. “Foucault... foi um apaixonado pelas idéias. Numa das suas entrevistas mais interessantes, ele afirma que ele sonha ‘com uma nova era da curiosidade’. Se o cuidado, a disponibilidade, a paixdo e a curio- sidade sao os sonhos e as linhas mestras que inspi- raram a carreira de Foucault, entdo essas sdo, tal- vez, as chaves para entender seu lugar na teoria so- cial contempordnea”. 2. Apud: Antelo, Estanislao, Cambio tecnoldgico y dispepsia pedagégica - http:/Avww.mundolatino.org/pedagogicas/camtecno.htm, acesso 4/2004. Tra- dugao do autor. 3. Katz, Stephen, Michel Foucault (Internet, abril 2003; comentério similar em Lorraine Daston and Katharine Park, Wonders and the Order of Nature. New York: Zone Books, 1998, p. 9. Tradugio do autor 188 Curiosidade e prazer de aprender As referéncias ao assunto em portugués ainda so raras, mas existem, por exemplo: Tem-se, segundo Foucault, a presenca de uma “nova era da curiosidade”, em que se exploram as imen- sas potencialidades das novas técnicas na diregéo da transformagao, do agucamento dos sentidos, do conhecimento. Foucault procura se afastar de um tipo de discurso, que diz que tudo esté mal, que vi- vemos um total vazio sem futuro: “Ao contrério, acredito que hé uma pletora. Nao estamos sofrendo de um vazio, mas de meios inadequados para pen- sar sobre tudo o que esté acontecendo”* 2. A curiosidade — uma insisténcia explicita de Paulo Freire Managua 1980. Hugo, Paulo Freire, Prof. Ornellas (OFA), Ministro da Educagio Carlos Tunnermann, Femando Cardenal (Coord. da Alfabetizacio). 4. Caiata, Janice. Nosso século XXI: notas sobre arte, técnica e poderes. Rio de Janeiro: Relume-Dumaré, 2000, p. 61] VI. Prentincios e anuincios de uma “nova era da curiosidade” 189 Genebra 1976, Conselho Mundial de Igrejas. Hugo, Paulo Freire. Queria ser lembrado como alguém profundamente curioso O titulo acima pode parecer estranho a muitos admiradores do grande mestre da educacio, Paulo Freire (1921-1997). Mas foi ele mesmo que foi enfitico a esse respeito. Na densa compilagio das muitas conversagées mantidas ao longo de 15 anos entre o educador brasileiro Paulo Freire e 0 Professor Carlos Alberto Torres ha um trecho muito explicito sobre isso: Carlos Torres — Quando vocé se refere @ busca, vocé quer dizer a busca pelo conhecimento. Essa busca por conhecimento é baseada na curiosidade, nas sementes epistemolégicas da ciéncia? Paulo Freire — Sim, curiosidade. E isso que eu res- pondi numa de nossas entrevistas, quando vocé perguntou: “E quando Paulo Freire morrer, o que ficaré como seu legado?”, e eu disse: “O legado para mim é fundamental. Nao se trata do que eu fiz de um ponto de vista intelectual, e sim o testemu- nho de minha existéncia. Dever-se-ia dizer que Paulo Freire amava intensamente, e queria saber e compreender. Isso significa dizer: sua sede de co- 190 Curiosidade e prazer de aprender nhecimento é resultado do fato de que ele sempre foi uma pessoa muito curiosa”. [Disponivel na Internet, sob 0 titulo O homem que amava intensa- mente — http:/Avww.abrae.com.br/entrevistas/entr_ pfhtm, acesso 4/2004.] Outro texto — parecido, mas ainda mais enfatico — provém de um didlogo por ocasiaio de sua despedida da Secretaria de Educa- cio de Sao Paulo. Carlos Torres: [..] Qual éaheranga de Paulo Freire paranés, educadores latino-americanos ¢ de outras partes do mundo? [...] Paulo Freire: Qual a heranga que posso deixar? Exa- tamente uma. Penso que poderé ser dito, quando ja néo esteja no mundo: Paulo Freire foi um homem que amou. Ele nao podia compreender a vida e a existén- cia humana sem amor e sem a busca de conhecimen- to. Paulo Freire viveu, amou e tentou saber. Por isso mesmo foi um ser constantemente curioso. [Freire, Paulo. A educagdo na cidade. Sao Paulo: Cortez, 1991, p. 139-140]. Existem varias tentativas de resumir, em texto breve, o mais fundamental do pensamento pedagégico de Paulo Freire. Seme- lhantes tentativas em geral deixam um tanto frustrados aos que admiramos a enorme versatilidade criativa desse grande educa- dor. Por exemplo, num assim chamado “Quadro — Levantamento de Conceitos / Termos / Expressdes na Obra de Paulo Freire” — www.puesp.br/paulofreire/—o termo curiosidade, estranhamen- te, nem sequer é registrado. Sintoma provavel de que ele nao fi- gurava entre os “termos importantes” no quadro; quadratura mental dos elaboradores desse esquema. Nisso a “maquina de busca” do www.google.com é bem mais fiel. Cruzando Paulo Freire no campo de “frase”, com curiosidade, no campo seguinte do formulario de busca, registrava como ocor- VI. Prentincios e antincios de uma “nova era da curiosidade” 191 réncias em paginas da Internet, em 22.7.2003, a impressionante safra: curiosidade = 873; curiosity = 784; curiosidad = 307. Como todo usuario da Internet sabe, trata-se de mera pista de ocorréncia literal. Referéncias mais longas ao tema requerem busca mais de- talhada, que pode iniciar-se com esse patamar inicial. A consulta atenta a vasta bibliografia de e sobre Paulo Freire revela que ele, especialmente nos tiltimos 15 anos de sua laborio- sa vida, sentou balizas contra leituras estreitas, e quiga até um tanto sectarias, do seu fecundo pensamento. Isso fica patente até em titulos como Pedagogia da esperanga, Pedagogia da autono- mia (com a seco Ensinar exige curiosidade) e outros. As eventu- ais distorgdes do conceito de conscientizagdo 0 preocupavam desde muito antes. O tema “curiosidade” em Paulo Freire® O que se quer apresentar aqui nao é nada mais que uma breve amostragem indicativa de como Paulo Freire dava importancia pedagégica central ao tema da curiosidade. Muitas afirmagées freireanas sobre a curiosidade se inscrevem num horizonte peda- gogico amplo. Outras entram em ponderagées teéricas ou prati- cas mais especificas. Creio que nao se deve forgar nenhum es- quematismo rigido quanto a esse tipo de distingdes. Mas talvez convenha manter niveis de distingéo, para nao jogar tudo num tinico tipo de questionamento. No plano pedagégico amplo eu situaria, por exem- plo, a aguda percepeao de Paulo Freire de que exis- te uma espécie de relagao congénita entre duas ini- 5. Para sentir 0 peso do tema curiosidade na obra de Paulo Freire, sugiro re- colher resumo de idéias e destaques em textos sintetizadores do Prof. Moacir Gadotti na Internet. Coloque curiosidade na janela de frase inteira do www.google.com pesquisa avangada e cruze com Moacir Gadotti na linha se- guinte. Boa pesquisal 192 Curiosidade e prazer de aprender bigées da curiosidade: quem inibe a curiosidade do educando sempre acaba tolhendo também a pré- pria curiosidade. E é isso que acontece, quase fatal- mente, nas pedagogias meramente transmissivas ¢ paternalistas. E que o educador que, entregue a procedimentos au- toritérios ou paternalistas, que impedem ou dificul- tam o exercicio da curiosidade do educando, termina por tolher igualmente sua prépria curiosidade. No nhuma curiosidade se sustenta eticamente no exerci- cio da negagao da outra curiosidade (1996, p. 85). Movem-se no mesmo plano amplo as frases contundentes sobre oexercicio do direito & curiosidade como uma espécie de pré-condi- Gio, para poder aprender e ensinar e até para “ser gente”. Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, nao aprendo nem ensino, Exercer a minha curiosidade de forma correta é um direito que te- nho como gente e a que corresponde o dever de lu- tar por ele, 0 direito & curiosidade (1996, p. 85). Antes que qualquer tentativa de discussdo de técni- cas, de materiais, de métodos para uma aula dind- mica, € preciso, indispensdvel mesmo, que o profes- sor se ache “repousado” no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano. Eela que me faz perguntar, conhecer, atuar, mais-per- guntar, re-conhecer (1996, p. 86). Quanto a questionamentos mais especfficos, para quem co- nhece um pouco a trajetéria de lutas de Paulo Freire, era de es- perar que ele se detivesse, com certa freqiiéncia, sobre - a pare usar suas palavras — promogdo da curiosidade esponténea para a curiosidade epistemoldgica. Essa é uma ques! basica em todo o debate sério sobre a curiosidade, desde os gregos. Mas, essa VI. Prentincios e anuncios de uma “nova era da curiosidade” 193 questao, especifica e exigente, sé faz sentido, se ja se pressupde como aceita, uma valorizacao positiva geral da curiosidade, da necessidade do seu exercicio constante e do dircito a ela. Tra- ta-se, pois, de uma questao segunda, séria e fundamental, que ad- quire sentido com base na primeira. Quando se invertem as coi- sas, como acontece as vezes, corre-se o risco de deslegitimar, em nome de uma criticidade exacerbada, a espontaneidade natural da curiosidade. Paulo Freire prefere, se nao o entendo mal, evitar cuidadosa- mente qualquer contraposigao, rispida e/ou reciprocamente anu- ladora, entre a curiosidade espontdnea e o nivel amadurecido dessa, a curiosidade epistemoldgica. Ele nao as contrapée, mas as enxerga como interligadas num tnico processo de amadureci- mento. Por isso a chama de epistemoldgica, como quem diz “acres- cida em conhecimento”, e n&o simplesmente critica. Essas consideragoes ja se movem num terreno, onde podem surgir variagoes de énfase e até discrepancias. Muita coisa vai de- pender de como se manejem as nogées de sujeito e consciéncia. Por um lado, nao tenho diivida de que Paulo Freire sabia que muitos equivocos se cometeram na América Latina em nome de altissonancias ideol6gicas acerca do sujeito histérico, e que o de- bate se havia re-acendido por varias razGes tedricas e praticas. Por outra parte, suas linguagens se inscreviam, mas s6 até certo ponto, no discurso da modernidade e da esquerda. Por isso penso que seria uma falta de respeito a tio eximio mestre querer exa- cerbar seus conceitos e linguagens em polémicas, que ele sabia muito bem serem pouco alavancadoras da esperanga, na qual tanto se empenhou. Feitas essas ponderagées, considero valioso e apreciavel, em- bora de enfoque recortado, o levantamento de citagées freireanas (comentadas) da Prof Ana Liicia Souza de Freitas. Transcrevo (com o devido reconhecimento) alguns trechos ilustrativos: 194 Curiosidade e prazer de aprender Curiosidade epistemolégica: um legado de Paulo Freire a formagio de professores Paulo Freire considera a curiosidade enquanto uma necessi- dade ontoldégica do ser humano; caracteristica fundamental em sua busca permanente de saberes que lhe possibilitem a criag4o e recriagéo de sua prépria existéncia; uma espécie de abertura & compreensdo do que se acha na 6rbita do ser desafi- ado (1995, p. 76). Para ele, essa curiosidade, ao ultrapassar os limites que lhe sao peculiares do dominio vital, se torna fun- dante da produgao do conhecimento (1996, p. 61). {...] Propée, nessa perspectiva critica de conhecer, em oposigéo & concepgdo de educagdo bancaria, castradora da curiosidade dos educandos, uma concep¢do problematizadora e libertadora de educagao, a partir da qual seja a capacidade de conhecer as- sociada & curiosidade em torno do objeto, constituindo-se numa vivéncia permanente do desafio @ curiosidade ingénua do edu- cando para, com ele, partejar a criticidade (1995, p. 79) e ir for- jando a constituigao da curiosidade epistemoldgica. Acuriosidade epistemol6gica €, pois, para Freire, aquela que, ao viabilizar a tomada de distancia do objeto, transcende os li- mites da cotidianeidade na qual nossa mente ndo opera epis- temologicamente. Prépria da consciéncia critica, aquela que ndo se satisfaz com as aparéncias (1979b, p. 40) e busca acom- preensio dos problemas com maior profundidade, a curiosi- dade epistemoldgica nao é qualquer curiosidade, mas é a curi- osidade que esta ligada ao tao dificil quanto prazeroso ato de estudar. Assim, ao destacar sua compreensao do conhecimen- to enquanto produgio social, considera-o resultante da agdo e reflexdo, da curiosidade em constante movimento de procura (Freire, 1993, p. 9-10, grifo do autor). Analisa como o homem foi, ao longo de sua histéria, aprimorando sua capacidade de conhecer ao aperfeigoar seus métodos de aproximacao dos objetos para melhor compreendé-los, para ultrapassar o nivel meramente opinativo (ibid., p. 11), transformando sua curiosi- VI. Prentincios e antincios de uma “nova era da curiosidade” 195 dade ingénua numa curiosidade exigente, metodizada com gor, que procura achados com maior exatidao (ibid.). Por isso preocupa-se também com uma pratica formadora fun- dada no estimulo e no desenvolvimento da curiosidade episte- mologica (1994, p. 130), dando énfase a necessidade de uma educagiio que se comprometa em promover essa passagem da curiosidade ingénua & curiosidade epistemolégica, que estimu- le criticamente a capacidade de aprender, de aventurar-se e ar- riscar-se no exercicio fundamental da inteligibilidade critica do mundo. Justifica sua preocupagéo com uma educacao que construa a superagao da curiosidade ingénua, a partir de seu entendimento de que a mesma nao se dé automaticamente, se dé. na medida em que a curiosidade ingénua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrério, continuando a ser curiosidade, se criticiza (1996, p. 34). Segundo ele, para que se dé esse proces- so de criticizagdo da curiosidade, faz-se necessaria a criagdo e 0 desenvolvimento de uma rigorosidade metédica que amplie as possibilidades de nossas buscas epistemolégicas, pois essa ri- gorosidade metédica é que faz a passagem do conhecimento ao nivel do senso comum para o do conhecimento cientifico (1995, p. 78 — grifo do autor). O que nao significa, alerta-nos também, que nos deixemos levar pela tentagao de supervalorizar a cién- cia ¢ menosprezar o senso comum (1993, p. 11). Desprezar 0 sa- ber de experiéncia feito seria uma forma de elitizar a educagio e absolutizar a ciéncia. FE a partir da exigéncia que o prprio processo de conheci- mento vai pondo 4 curiosidade que, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade (1996, p. 32) para a criticidade, que constitui a curiosidade epistemol6gica. Uma séria disciplina intelectual ira sendo forjada no exercicio desta rigorosidade metédica, no sentido da vivéncia do signi- ficado préprio que Freire atribui ao rigor. Para ele, trata-se de um rigor criativo [...], aquele pelo qual vocé faz mais do que observar — vocé interpreta a realidade [...] comego a notar cada vez mais, na minha observacdo, que 0 objeto ndo é algo 196 Curiosidade e prazer de aprender em si mesmo, mas estd dialeticamente se relacionando com ou- tros que constituem uma totalidade (1986, p. 104). Ao conside- rar que, sem o exercicio da curiosidade epistemolégica, dete- riora-se a pratica educativa progressista (1995, p. 79), preocu- pa-se com o desenvolvimento da mesma no espago escolar, propondo que este possa ser vivido enquanto um contexto aberto ao exercicio da curiosidade epistemolégica (ibid., p. 78) e considerando que esta deveria ser uma preocupagao de todo projeto educativo sério (ibid.). Tal proposta integra seu sonho de reinvengao da escola, o qual, segundo ele, nao se realizara sem um grande investimento na formagao permanente de professores(as), pois é preciso que se reinvente a escola, a par- tir da reflexdo feita na propria escola. Nessa perspectiva, os espacos de formagio permanente na escola poderao ser rein- ventados, para constituir-se em espacos privilegiados de de- senvolvimento da curiosidade epistemolégica. A partir destes, de modo intencionalmente organizados e planejados para tal, o didlogo sobre o ato de ensinar e aprender poder assumir um carater desafiador desta curiosidade epistemolégica, que impele o professor na busca de ser sujeito da produgio do co- nhecimento, para construir a superagao da pedagogia da res- posta pela pedagogia da pergunta. Sera possivel criar uma pe- dagogia da curiosidade em que o professor, vivenciando per- manentemente a curiosidade de aprender, seja provocado a recrié-la na relagdo com seus alunos? Avivéncia da curiosidade epistemolégica no cotidiano escolar serd uma possibilidade de expressio do prazer de ensinar e aprender, pois quanto mais metodicamente rigoroso me torno na minha busca e na minha docéncia, tanto mais alegre me sin- to e esperangoso também (1996, p. 160). Este é, no meu enten- dimento, nao apenas um importante legado de Paulo Freire & formagio de professores, mas, sobretudo, um desafio a ser perseguido e concretizado na escola. Urge que 0 educador vi- vencie tais possibilidades em seu processo de formagio inici- al, a fim de que possa recria-las no cotidiano de seu trabalho. VI. Prendincios e antincios de uma “nova era da curiosidade” 197 ... processo miituo e permanente de construgao do conheci- mento, em que a alegria nao se opée ao rigor e a seriedade inerentes ao ato critico de estudar. Pelo contrario, quanto mais metodicamente rigoroso me tor- no na minha busca e na minha docéncia, tanto mais alegre me sinto e esperangoso também. A alegria nao chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender nio podem se dar fora da procura, fora da boniteza e da alegria (1996, p. 160). [Ana Lticia Souza de Frei- tas, Relatérios de aula: um desafio a curiosidade epistemol6gi- ca — cf. www.pesquisa.unilasalle.edu.br/analucia_endipe.PDF, acesso 4/2004, Texto produzido enquanto doutoranda do Pro- grama de Pés-Graduagiio em Educ., PucRS]. Paulo Freire sobre computador e curiosidade Embora apenas de relance, e sem perceber ainda a répida universalizagao das novas tecnologias da informagao e da comu- nicagio, Paulo Freire deixou claro que percebia que elas tinham tudo a ver com novos desafios para a curiosidade. Nao tenho dtwvida nenhuma do enorme potencial de estimulos e desafios a curiosidade que a tecnologia poe a servico das criancas e dos adolescentes das classes sociais chamadas favorecidas. Nao foi por outra razdo que, enquanto Secretdrio de Educagao da cidade de Sao Paulo, fiz chegar a rede das esco- las municipais 0 computador. Ninguém melhor do que meus netos ¢ minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com os quais convivem (1996, p. 88). 198 Curiosidade e prazer de aprender / Referéncias i | Freire, Ana Maria Aratijo. Notas. In: Freire, Paulo. Pedagogia da | Esperanga: Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de | Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 205-245. ' | | — Conscientizagao: Teoria e pratica da libertagdo — uma introdu- | do ao pensamento de Paulo Freire. Sio Paulo: Cortez & Moraes, , 1979a. — Educagéo e mudanga. 20. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, | | 1979b. | | — A educagao na cidade. Sao Paulo: Cortez, 1991. | — Pedagogia da Esperanga: Um reencontro com a pedagogia do | oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. ' | — Politica e Educagéo: ensaios. Sao Paulo: Cortez, 1993. (3. ed. | brasileira -1997). | — Cartas a Cristina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. — Pedagogia da autonomia: Saberes necessdrios @ pratica educa-_ | tiva. Sao Paulo: Paz e Terra, 1996. | | —A sombra desta mangueira. S40 Paulo: Olho D’Agua, 1995. Freire, Paulo & Shor, Ira. Medo e ousadia: 0 cotidiano do profes- | | sor. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 1986. | Os contatos com a “Pedagogia da Curiosidade” de Gottfried Hausmann Por ocasiéo do cingiientendrio de criagéo do Instituto de Educagio da Unesco, com sede em Hamburgo, Alemanha, edi- tou-se um livro-mem6ria. Neste o entao Diretor do Instituto evo- caa influéncia de varios grandes pensadores da educagio, entre os quais Paulo Freire, nas atividades e programas do referido Instituto. Nessa evocacao de influéncias ele destaca as seguintes: VI. Prentincios e anuncios de uma “nova era da curiosidade” 199 ... apedagogia da pergunta, como a promovia Paul Legrand, contrdria a certezas ingénuas e crédulas; ... apedagogia do tragico de Bogdan Suchodolski, preocupada em manter vivo o humanismo e 0 oti- mismo; ... a pedagogia do oprimido, de Paulo Frei- re, que insiste na conscientizagdo critica em con- traste com uma educagdo “bancdria”; e, ainda, a pedagogia da curiosidade e da alegria criativa de Gottfried Hausmann. [Unesco. Towards an Open Learning World - 50 Years Unesco Institute for Education. Hamburgo, Alemanha, 2002. [© 2002 Unesco Institute for Education — Feldbrunnenstrasse 58. 20148 Ham- burg, Germany — uie@unesco.org http:/Avww. unesco.org/education/uie — Cf. Prélogo de Adama Ouane, Diretor do Instituto, p. 7-8.] De Gottfried Hausmann e sua pedagogia da curiosidade e da alegria criativa houve pouca noticia no Brasil. Soube que, quan- do dirigia 0 citado Instituto da Unesco, travou amizade pessoal com Paulo Freire. Pode-se, portanto, conjeturar que esse amigo de alguma forma tenha influido no interesse de Paulo Freire pelo tema curiosidade. O citado livro-meméria o recorda como ex-di- retor “sempre jovial e surpreendente”, “um pensador contra a corrente”, “um educador e pesquisador incansavel”. Cultivava nexos variados com meios artisticos. A Unesco publicou um optis- culo em sua homenagem ao erigir-se a lépide em seu sepulcro, na qual consta um de seus lemas acerca do papel dos educadores: “inclinant, sed non necessitant” (inclinam, mas nao forgam). {Gottfried Hausmann, “ein fréhlicher Unruhestifter”: eine Ge- denkschrift anlaBlich der Grabsteinsetzung am 18. September 1998 /zsgest. und hrsg. von Marianne Petersitzke... - Hamburg: Unesco-Institut, 1998. - IV, 43 p.] 200 Curiosidade e prazer de aprender Lembrangas pessoais de Paulo Freire Tive a felicidade de viver alguns encontros marcantes com Paulo Freire. Minha familia e eu ganhamos muito coma sua ami- zade. Tudo comegou quando, no inicio dos anos 60, fui um dos fundadores do Centro de Cultura Popular em Porto Alegre, que infelizmente durou pouco. Ele veio para a sessao de fundagio. Naqueles anos eu viajava muito pelo Brasil, como consultor da CNBB, e nos reencontramos diversas vezes. Mais tarde, jé no exilio, cumpri uma pequena tarefa, que me ligou ainda mais a ele. Passo a palavra a biégrafos de Paulo Freire (Moacir Gadotti, Prof, Trivifios): “Pedagogia do oprimido nao foi publicado imediatamente no Brasil. A primeira versio em espa- nhol foi realizada em Montevidéu, em 1968, devido & gestéo do educador brasileiro Hugo Assmann”. Isto é verdade, mas s6 em parte. Paulo achava que o texto devia ser ainda retocado, mas um grupo de amigos obtivemos uma copia. Ajudei a rever a tradugio ao espanhol e escrevi um texto curto de anexo, que servisse de apresentacao de Paulo Freire e sua obra até entao aos leitores do seu texto nesse idioma. Este breve texto continua até hoje nas mais de sessenta edigdes do livro pela Editora Siglo XI (edita- das em Buenos Aires, México e Madri), além de estar em intimc- ras edigdes piratas e em varias traducées. Voltamos a encontrar-nos em congressos da Unesco, da qual ele foi assessor, e do Conselho Mundial de Igrejas, do qual foi Se- cretario de Educacao. Numa dessas oportunidades, num painel conjunto com palestrantes asiaticos e africanos, Paulo falou da importincia da curiosidade para a solidariedade. Reconheceu em publico: “Nos latino-americanos somos praticamente analfa- betos no que se refere a Asia e Africa”. E confessou-se maravilha- do com algo que acabava de descobrir numa conversa, no inter- valo do eafezinho. O resumo que lembro — ¢ jé publiquei em ou- tro lado — € 0 seguinte: Amigos africanos me asseguraram que, em varios idiomas nativos da Africa, hd um montdo de termos

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