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A ARVORE DO CONHECIMENTO As Bases Biolégicas da Compreensio Humana Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela Traducao Humberto Mariotti e Lia Diskin Palas Athena Sumario ‘Titulo Titulo original: El drbol del conocimiento Copyright © 1984 by Behincke, Maturna, Varela Coordenagio editorial: Emilio Moufarige Revisio de provas: Lucia Brands Saf Mnfarige sn we aes preaatastl Prefacio: Humberto Mariotti... - 07 Capa: Maurie Zabtto : ee Corio | Impressio e Acabamento: Crom Conhecer 0 conhecer ...... 21 ‘Coriruto Ih A organizagio do vivo 39. ‘Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Beat) Cariruto Ill - Hist6ria, reproducio e hereditariedade ... 65 Matron, Hnber R. sos hana) Carirwo IV se bcm is orn haan / A vida dos metacelulares.........0.... 85 Dai tne Caos Vl End Orta, Punic Ole Meese Caro V Mass Monte Sho Pe Pal Aten, 20 ; A deriva natural dos seres VivOS ....... 108 288 pls 6x28 Carino VI ISBN 97885.72020527 Dominios comportamentais.........., 135 Cavirto Vil |, Teoria do conbecimento. 1. Tilo, Sistema nervoso e conhecimento seve 157 = Castro Vill i Os fenémenos sociais . . 199 9* Edigio— outubro 2011 Caviruio IX Dominios © consciéncia humana . ‘Capiruto X A arvore do conhecimento . ‘Toxios os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 19 de fevereito de 1998, proibida a reproducao total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorizacio prévia, por escrito, da editora. Direitos adguiridos para a lingua portuguesa, pela PALAS ATHENA EDITORA Rua Ledncio de Carvalho, 99 - Paraiso (04003-010 - Sio Paulo - SP - Brasil Foone-fax: (11) 3289,5426 ~ (11) 3266,6188 ‘wuwpalasathensorgbr editora@palasathena.orgbe Glassdrio , : Fonte das ilustragoes Outro olhar, outra visdo © ponto de partida desta obra é surpreendente- mente simples: a vida € um processo de conhe: mento; assim, se o objetivo € compreendé-la, é necessitio entender como os seres vivos conhe- cem 0 mundo. Eis © que Humberto Maturana e Francisco Varela chamam de biologia da cognicao. © modo como se da © conhecimento é um dos assuntos que ha séculos instiga a curiosidade humana. Desde o Renascimento, © conhecimen- to em suas diversas formas tem sido visto como a representacao fiel de uma realidade independen- %€ do conhecedor. Ou seja, as produgdes artist cas © os saberes nao eram considerados constru- G0es da mente humana. Com alguns intervalos de contestagdo (como aconteceu logo no inicio do século 20, por exemplo), a ideia de que o mundo € pré-dado em relagio a experiencia hu- mana € hoje predominante - ¢ isso talvez mais Por motivos filosdficos, politicos e econémicos do que propriamente por causa de descobertas ientificas de laboratério. Segundo essa teoria, nosso cérebro recebe Passivamente informacdes vindas j4 prontas de fora. Num dos modelos te6ticos mais conhec dos, 0 conhecimento € apresentado como 0 re= sultado do processamento (computagao) de tais 8 A Arvorr po ConieciMENTO informacoes, Em conseqiiéncia, quando se inves- tiga 0 modo como ele ocorre (isto é, quando se faz ciéncia cognitiva), a objetividade € privilegia- da e a subjetividade é descartada como algo que poderia comprometer a exatidio cientifica. Tal ‘modo de pensar se chama representacionismo, ¢ constitui 0 marco epistemolégico prevalente na atualidade em nossa cultura. Sua proposta cen- tral € a de que o conhecimento é um fendmeno baseado em representagdes mentais que fazemos do mundo, A mente seria, entio, um espelho da natureza. © mundo conteria “informagdes” € nossa tarefa seria extrai-las dele por meio da cognicao. Como aconteceu com muitas outras, essa po- sig4o tedrica também produziu conseqiiéncias praticas € éticas. Veio, por exemplo, reforcar a crenga de que © mundo € um objeto a ser explo- rado pelo homem em busca de beneficios. Essa conviceao constitui a base da mentalidade extra- tivista — e com muita freqiiéncia predatoria = do- minante entre nds. A idéia de extrair recursos de um mundo-coisa, descartando em massa os subprodutos do proceso, estendeu-se As pessoas, que assim passaram a ser utilizadas e, quando se revelam “inuteis”, so também descartadas. Como todos sabem, a exclustio social alcanga hoje em muitos paises proporgdes espantosas, em espe- cial no continente africano € na América Latina. Ao nos convencer de que cada um de nés é se~ parado do mundo (e, em conseqiiéncia, das ou- tras pessoas), a visio representacionista em mui- tos casos terminou desencadeando graves distor- des de comportamento, tanto em relagdo ao am- biente quanto no que diz respeito & alteridade. 9 O representacionismo é um dos fundamentos da cultura patriarcal sob a qual vive hoje boa parte do mundo, inclusive as Américas. A esse respei- to, lembremos um dado hist6rico comentado por Hannah Arendt! em relagio aos béeres, europeus em sua maioria descendentes de holandeses que iniciaram a colonizagio da Africa do Sul no sé culo 17. O contato com os natives sempre os cho- cava, diz Arendt. Para aqueles homens brancos, © que tornava os negros diferentes nao era pro- priamente a cor da pele, mas o fato de que eles se comportavam como se fizessem parte da natu- reza, Nao haviam, como os europeus, criado um Ambito humano separado do mundo natural. Do ponto de vista dos béeres, essa ligacao tao intima com 0 ambiente transformava os nativos em seres estranhos. Era como se eles nao perten- cessem A espécie humana. Por serem parte da natureza, eram vistos como mais um “recurso” a ser explorado. Por isso, er “justo” que fossem *amplamente utilizados como produtores de energia mecinica no trabalho escravo, ou entio simplesmente massacrados. Eis um exemplo do tipo de alteridade gerado pelo modelo mental fragmentador. A fiagmentagao traduz a separa- sujeito-objeto, principal caracteristica da con- cep¢ao representacionista. Hoje, mais do que nunca, 0 representacionismo pretende que con- tinuemos convencidos de que somos separados do mundo e que ele existe independentemente de nossa experiéncia. Foi exatamente para mostrar que as coisas no Slo Ho esquemiticas assim que surgiu A Arvore do Conhecimento. Bis a sua tese central: bal no mundo e por isso fazemos parte dele; vive~ Mos COM Os outros seres VivOs, € portanto Com- Ppartilhamos com eles o processo vital. Construi- ‘mos 9 mundo em que vivemos durante as nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constr6i a0 longo dessa viagem comum. Assim, se vivemos € nos comportamos de um modo que torna insatis- fatoria a nossa qualidade de vida, a responsabili- dade cabe a nés. Ao contrario das tentativas anteriores de con- testar pura e simplesmente o representacionismo, as idéias de Maturana e Varela tém nuangas que hes proporcionam uma leveza © uma perspica- cia que constituem a esséncia de sua originalida- de. Para eles, 0 mundo nao é anterior A nossa experiéncia, Nossa trajetdria de vida nos faz cons- truir nosso conhecimento do mundo ~ mas este também constréi seu proprio conhecimento a nosso respeito. Mesmo que de imediato nao 0 percebamos, somos sempre influenciados ¢ mo- dificados pelo que vemos ¢ sentimos. Quando damos um passeio pela praia, por exemplo, ao fim do trajeto estaremos diferentes do que esti- vamos antes. Por sua vez, a praia também nos percebe. Estard diferente depois da nossa passa- gem: teri registrado nossas pegadas na areia — ou tera de lidar também com o lixo com 0 qual porventura a tenhamos poluido. Do mesmo modo, as éguas de um rio vo abrin- do © seu tfajeto por entre os acidentes © as inre- gularidades do terreno, Mas estes também aju- dam a moldar 0 itinerario, pois nem a correnteza nem a geografia das margens determinam isola damente © curso fluvial: ele se estrutura de um 10 A Anvore vo Consecimento n modo interativo, 0 que nos revela como as coisas se determinam e se constréem umas as outras. Por serem assim, a cada momento elas nos sur- Preendem, revelando-nos que aquilo que pensi- vamos ser repeticao sempre foi diferenga, ¢ 0 que julgdvamos ser monotonia nunca deixou de ser criatividade. ‘Tomemos ainda outra metifora: nao sao $6 os timoneiros que dirigem os navios. O meio am- biente também pilota as embarcagdes, por meio das correntes maritimas, dos ventos, dos aciden- tes de percurso, das tempestades e assim por dian- te. Dessa forma os pilotos guiam, mas também sao guiados. Nao ha velejador experiente que Ao saiba disso, Portanto, pode-se dizer que cons- truimos 0 mundo ¢, a0 mesmo tempo, somos construidos por ele. Como em todo esse proces- 0 entram sempre as outras pessoas ¢ os demais seres vivos, tal construgio € necessariamente compartilhada. Para mentes condicionadas como as nossas niio € nada ficil aceitar esse ponto de vista, porque cle nos obriga a sair do conforto e da passividade de receber informagdes vindas de um mundo ja Pronto ¢ acabado ~ tal como um produto recém- ido de uma linha de montagem industrial e ofe- recido 20 consumo. Pelo contririo, a idéia de que 0 mundo € construido por nés, num proces- 0 incessante ¢ interativo, € um convite & partic Paco ativa nessa construgdo. Mais ainda, é um convite & assungio das responsabilidades que ela implica. Nao se trata, porém, de uma escolha re- torica, e sim do cumprimento de determina- sdes que derivam da nossa propria condigio de 12 A Anvors po Connecimento viventes. Maturana € Varela mostram que a idéia de que © mundo nio pré-dado, € que 0 cons- truimos ao longo de nossa interagio com ele, nao € apenas te6rica: apia-se em evideéncias concre- tas. Varias delas esto expostas — com a freqtien- te utilizagaio de exemplos e relatos de experimen- tos ~ nas paginas deste livro, Em suma: se a vida € um proceso de conhe- cimento, os seres vivos constréem esse conhe\ mento nao a partir de uma atitude passiva e sim pela interagio, Aprendem vivendo e vivem apren- dlendo. Essa posigo, como jé vimos, é estranha a quase tudo 0 que nos chega por meio da educ: a0 formal As teorias de Maturana e Varela constituem uma concep¢io original e desafiadora, cujas conse- qiléncias éticas agora comegam a ser percebidas com crescente nitidez, Nos tltimos anos, por exemplo, tal compreensio vem se ampliando de modo significativo e tem influenciado muitas areas do pensamento e atividade humanos. 4 Arvore do Conbecimento tornou-se um classico, ou me- hor, recebeu 0 justo reconhecimento de seu clas- sicismo inato. Por isso, é importante contar aqui as linhas gerais de sua hist6ria.* Tudo comegou na década de 1960, quando Maturana, professor da Universidade do Chile, intuiu que a abordagem convencional da biolo- gia - que basicamente estuda os seres vivos a partir de seus processos internos — podia ser fertilizada por outro modo de ver. Tal aborda- gem os concebe em termos de suas interagoes Um pouco de historia 1B com 0 ambiente, no qual, € claro, estao os demais seres vivos. Em meados dos anos 60, Varela tornou-se aluno de Maturana. A seguir, j tam- bém professor, continuou « tabalhar com ele na Universidade do Chile. Juntos escreveram um. primeiro livro: De Maquinas y Seres Vivos: Una Teoria de la Organizacion Biolégica® ‘Tempos depois, a instauragio do regime militar no pais, a partir de 1973, fez com que os dois autores fos- sem para o exterior, onde continuaram a traba- Ihar separacamente, Em 1980, de volta ao Chile, retomaram a cola- boragio. Por essa Epoca, a organizacao dos Esta- dos Americanos (OEA) buscava novas formas de abordar a comunicacao entre as pessoas eo modo como ocorre 0 conhecimento, Por intermédio de Rolf Behneke, também chileno e ligado a essa instituicdo, Maturana € Varela comecaram a ex- Por os resultados de suas pesquisas em uma série ue palestras, assistidas por pessoas de formagio heterogénea. A transcrigio e edigao dessas apre- sentagdes resultou num livro, publicado em 1985 em edico nao-comercial para a OEA. Essa obra constitui, com algumas modificagoes, o que € hoje A Arvore do Conbecimento, Desde a sua primeira edigio destinada ao piiblico — em 1987 =, ela ja- mais deixou de despertar atencio, gerando co- mentrios, resenhas, andlises, pesquisas, outros livros. Tudo isso compe hoje uma ampla biblio- grafia, espalhada por areas tio diversas como a biologia, a administragiio de empresas, a filoso- fia, as ci€ncias sociais, a educagio, as neurocién- cias © a imunologia. 14 A Anvore po ConHECIMENTO centro da argumentagio de Maturana e Varela € constituido por duas vertentes. A primeira, como vimos, sustenta que 0 conhecimento nao se limi- ta ao processamento de informagdes oriundas de um mundo anterior a experiéncia do observador, © qual se apropria dele para fragmenti-lo e explorilo. A segunda grande linha afirma que 08 seres Vivos so autOnomos, isto é, autoprodu- tores ~ capazes de produzir seus proprios com- ponentes ao interagir com 0 meio: vivem no co- nhecimento e conhecem no viver. A autonomia dos seres vivos € uma alternativa 2 posigo representacionista. Por serem auténo- mos, eles no podem se limitar a receber passi- vamente informagdes e comandos vindos de fora. Nao “funcionam” unicamente segundo instrugdes extemas. Concluise, entio, que se os conside- rarmos isoladamente eles so autOnomos. Mas se (65 virmos em seu relacionamento com o meio, tomna-se claro que dependem de recursos exter nos para viver. Desse modo, autonomia e depen- déncia deixam de ser opostos inconcilidveis: uma complementa a outra. Uma constr6i a outra ¢ por ela € construida, numa dinamica circular. Mas © que fazer para que 0 ser humano se veja também como parte do mundo natural? Para tanto, é preciso que ele observe a si mesmo en- quanto observa 0 mundo. Esse passo € funda- mental, pois permite compreender que entre 0 observador e o observado (entre o ser humano € ‘© mundo) no hi hierarquia nem separacio, mas sim cooperatividade na circularidade. Na verda- de, Maturana e Varela do — nao apenas com este livro, mas com 0 conjunto de suas respectivas Desdobramentos PREKACIO O agora e o futuro 15 obras ~ uma contribuigio relevante & compreen- sto daquilo que talvez seja 0 maior problema epistemolégico de nossa cultura: a extrema dif culdade que temos de lidar com tudo aquilo que € subjetivo e qualitative. Mas temos outta limitago. Para nés, nao é facil aceitar que 0 subjetivo e 0 qualitative nao se propdem a ser superiores ao objetivo ¢ ao quan- que no pretendem descarté-los e subs- i-los, mas sim manter com eles uma relacao complementar. Nao entendemos que todas essas instincias sito necessdrias, e que € essencial que entre elas haja um relacionamento transacional, uma citcularidade produtiva, Tal situago tem produzido, como foi dito, conseqiigncias éticas importantes. Parece incrivel, mas muitas pessoas (inclusive cientistas e filésofos) imaginam que o trabalho cientifico deve afastar de suas preocupa- es a subjetividade e a dimensio qualitativa — como se a ciéncia nao fosse um trabalho feito “por seres humanos. Maturana e Varela mostram, com abundancia de exemplos e constatagies, que a subjetividade (tanto quanto a objetividade), € a qualidade (tanto quanto a quantidade), sto na verdade indispensdveis ao conhecimento ¢, por- tanto, & ciéncia, Hoje, os dois autores seguem caminhos diferen- tes. No entanto, a diversidade de suas linhas de trabalho atuais no elimina um traco biisico do idedtio original: © que sustenta que os seres vi- Vos € © mundo esto interligados, de modo que nao podem ser compreendidos em separado. 16 A Arvore po ConiEcIMENTO Outro ponto de convergéncia € © que diz que, se © conhecimento nao € passivo ~ € sim construido pelo ser vivo em suas interagdes com o mundo, postura de s6 levar em conta o que é observa do deixa de ter sentido. A transacionalidade en- tre 0 observador € aquilo que ele observa, além de mostrar que um nao € separado do outro, tor- na indispensavel a consideragio da subjetividade do primeiro, isto é, a compreensio de como ele experiencia 0 que observa Maturana permanece no Chile, de onde sai periodicamente para cursos, conferéncias © se- mindrios em varios paises do mundo, inclusive 0 Brasil. Aprofunda seu pensamento sobre a biolo- gia do conhecimento e a respeito de sua concep- ‘lo de alteridade, que chama de biologia do amor. A transacionalidade da biologia do conhecimen- to com a biologia do amor compoe a base do que ele denomina de Matriz, Biol6gica da. Exis- téncia Humana. ‘Varela trabalha em Paris, onde desenvolve duas linhas complementares de pesquisa. A primeira consta de estudos experimentais sobre a integra- ‘¢20 neuronal durante os processos cognitivos. A ‘outra consiste em investigagdes sobre a conscién- cia humana Tais pesquiss proporcionam contri- buigdes 2 sua escola de estudos cognitivos ~ a ciéncia cognitiva enativa (teoria da atuagio). Em linhas gerais, essa teoria sustenta que € preciso levar em conta nao apenas a objetividade, mas também a subjetividade do observador, que ha- via sido preterida pelos modelos teéricos repre~ sentacionistas de ciéncia cognitiva. Ou seja, pre~ tende lancar uma ponte sobre o fosso que separa Prercio Humberto Mariotti 7 a Ciencia (o universo da objetividade) da expe- ’ncia humana (o dominio da subjetividade), HA anos que a Associagao Palas Athena, por meio de sua Editora, pretende langar uma tradu- Slo d'A Arvore do Conbecimento, Esse desejo sem- re traduziu a certeza nao apenas da importancia da obra, mas também da afinidade entre as idéias dos cientistas chilenos e os principios da Asso- Ciagao. Eis por que agora a concretizacao do proje- to € para todos nés um acontecimento da maior importincia, que queremos compartilhat, Humberto Mariotti P:S. Este livro jf estava traduzido e seu texto pre- Parado quando recebemos « noticia do falecimen- to de Francisco Varela. E com pesar que registra- ‘mos essa imensa perda. Que esta tradugo se in- Corpore &s muitas homenagens que a sua memé- ria merece e certamente receberd. A elas soma- mos também a nossa gratidio, pelo privilégio de ter convivido com seus ensinamentos e de poder continuar aprendendo com eles, E meédico, psicoterapeuta e coordenado », Psicoterapeuta © coordenador do Grupo de Estudos ‘le Complexidade e Pensamento Sistémico da. Associtco Palas AAtheria, em So Paulo. E-nuil ~ homariotuol com br [Rerenencias 1. ARENDT, Hannah. Origens do Totatitarismo, Sto Pau- lo: Companhia das Letras, 1998, pags. 222, 223. 2, MATURANA, Humberto R., VARELA, Francisco J. Preface. The Tree of Knowledge: The Biological Roots of Human Understanding. Boston ¢ Londres: Shambhala, 1998, pigs. 11-13. 3. MATURANA, Humberto, VARELA, Francisco, De Md- quinas y Seres Vivos: Una Teoria de la Organtzacion Biolégica, Santiago: Editorial Universitaria, 1973. A grande tentacao ig. 1. Cristo coroado de espi- hnhos, de Hieronimus Bosch, Museu do Prado, Mads. Na Fig. 1 admiramos o Cristo Coroado com Espi- nbos, do mestre Hertogen-bosch, mais conheci- do como Bosch. Essa representacao tio pouco tradicional da coroacio com espinhos pinta a cena quase em plano tinico, com grandes cabecas e, mais do que retratar um incidente da Paixdo, aponta para um sentido universal do demoniaco em contraste com © reino dos céus. No centro, Cristo expressa uma imensa paciéncia ¢ aceitagio, Entretanto, seus torturadores nao foram pintados aqui como em tantas outras composigdes da época e do proprio Bosch, com figuras extraterrenas que o agridem diretamente, puxando seus cabelos, ferindo a sua carne. Os verdugos do Cristo aparecem com qua- tro tipos humanos que, na mente medieval, re- presentavam uma visio total da humanidade, Cada tum desses tipos € como que uma grande tenta- Ao para a amplitude e a paciéncia da expressao de Cristo. So quatro estilos de alienagao e perda da equanimidade interior. Ha muito 0 que contemplar ¢ refletir sobre essas quatro tentacdes. Para nés, porém, no inicio do longo itineririo que sera este livro, o persona- gem do canto inferior direito € particularmente importante, Segura Jesus pelo manto. Firma-o 2 A Arvorr po ConneciMeNto Connecer © ConHECER contra 0 solo. Segura-o e restringe sua liberdade fixando sua perspectiva. Parece estar dizendo: Mas eu sei, ji 0 sei”. Eis a tentagao da certeza. Tendemos a viver num mundo de certezas, de solide perceptiva niio contestada, em que nos- sas conviccdes provam que as coisas sao somen- te como as vemos € nio existe altemativa para aquilo que nos parece certo. Essa € nossa situa- 40 cotidiana, nossa condi modo habitual de ser humanos. Pois bem, todo este livro pode ser visto como tum convite a suspensio de nosso habito de cair nna tentago da certeza. Isso € duplamente neces- sirio. Por um lado, porque se 0 leitor nao sus- pender suas certezas, ndlo poderemos comunicar aqui nada que fique incorporado a sua experién- cia como uma compreensio efetiva do fendme: no do conhecimento. Por outra parte, porque aquilo que este livro precisamente ir mostrar, a0 estudar de perto o fendmeno do conhecimento € nossas agdes dele sungicdas, é que toda experién- cia cognitiva inclui modo pessoal, enraizado em sua estrutura biold- gi toda experiéncia de certe- za € um fendmeno individual cego em relacio ao ato cognitivo do outro, numa solidao que (como veremos) s6 6 transcendida no mundo que cria- ‘mos junto com ele Jo cultural, nosso quele que conhece de um , motivo pelo qua Nada do que vamos dizer seri compreendido de maneira verdadeiramente efi leitor se sinta pessoalmente envolvido, a menos ‘az, a menos que © que tenha uma experiéncia direta que ultrapasse a simples descricao. As surpresas do olho B Fig. 2. Experiéncla do onto ceo, 4 A Anvorr po ConHecimENro. Portanto, em vez de falar sobre como a apa- rente solidez de nosso mundo experiencial se mente suspeita quando © observa- torna rapi¢ mos de perto, iremos demonstrar esse fato. por meio de duas situagdes simples. Ambas corres- pondem ao Ambito de nossa experiéncia visual cotidiana. Primeira situagio: cubra seu olho esquerdo olhe fixamente para a cruz desenhada na pégina 23, mantendo-a a uma distincia de cerca de qua- renta centimetros. Vocé observar entao que o ponto negro da figura, de tamanho nada despre- zivel, desaparece de repente! Experimente girar um pouco a pagina ou abrir o outro olho. E tam- bém interessante copiar o mesmo desenho em outra folha de papel e aumentar gradualmente 0 ponto negro, até ver qual o tamanho maximo necessirio para o seu desaparecimento, Em se~ guida, gire a pagina, de modo que 0 ponto B ocupe © lugar que antes ocupava A, € repita a observacio. O que aconteceu com a linha que cruza © ponto? Com efeito, essa mesma situacao pode ser ob- servada sem nenhum desenho em papel: basta substituir a cruz € 0 ponto pelos polegares, 0 dedo aparece como que sem sua ultima falange (experimente!). Por falar nisso, foi assim que essa observagio se tornou popular: Marriot, um cien- tista da corte de um dos Luises, mostrou ao rei mediante esse procedimento, como ficariam seus stiditos sem cabeca antes de decapita-los A explicagio normalmente aceita para es nomeno € que, nessa posiclo especifica, a ima- gem do ponto (ou do dedo, ou do stidito) cai ma se fe- Fig. 3. Os dois cirulos desta pagina foram impressos com a mesma tinta, No entanto, © de baixo. parece rosido, por causa de seu entorno verde Moral da historia: a cor no € ‘uma propriedade das coiss cla ¢ insepardvel de como es: tamos estruturados para vé-a Conncer © ConnEcER Fig. 4. Sombras coloridas 25 zona da retina de onde sai o nervo Gptico, que portanto nao tem sensibilidade & luz. Eo chi do ponto cego. Entretanto, o que muito raramen- te se destaca quando se ¢ essa explicagio €: por que nao andamos pelo mundo com um buraco desses 0 tempo todo? Nossa experiéncia visual corresponde a um espago continuo que facamos essas engenhosas manipulagdes, no percebemos que de fato ha uma descontinuidade que deveria aparecer. Nesse experimento do pon: (0 cego, o fascinante é que no vemos que no vemos. Segunda situac a menos tome dois focos de luz e disponha-os como na Fig. 4 (isso pode ser feito simplesmente com um cilindro de cartolina, do tamanho de uma pequena kimpada potente, ¢ usando um papel celofane vermelho como filtro). A seguir, interponha um objeto ~ sua mio, por exemplo ~ ¢ olhe para as sombras sprojetadas sobre a parede. Uma delas parecer azul-esverdeada! O leitor pode experimentar di- ferentes papéis transparentes de cores diversas diante das kimpadas, bem como diferentes inten- sidades de luz. Aqui, a situaglo € to surpreendente quanto no caso do pomto cego. De onde vem a cor azul- esverdeada, quando 0 que se espera é a branca, avermelha ou misturas das duas (rosadoy? Estamos acostumados a pensar que a cor é uma qualidade dos objetos e da luz que deles se reflete. Assim, se vejo verde deve ser porque uma luz verde chega até meus olhos, ou seja, uma luz com um certo comprimento de onda. Agora, se usarmos um aparelho para medir a composicao da luz 26 A Anvore po CoNHECIMENTO nessa situagio, descobriremos que nao ha ne- nhum predominio de comprimentos de onda cha- mados verdes ou azuis na sombra que vemos. como azul-esverdeada, e sim apenas a distribui- ‘20 propria da luz branca. No entanto, a expe- riéncia de azulesverdeado é, para cada um de 16s, inegavel Esse belo fendmeno das chamadas sombras coloridas foi descrito pela primeira vez por Otto von Guericke em 1672, quando ele notou que seu dedo se tornava azul na sombra entre uma vela € © sol nascente. Em geral, diante desse fe- némeno (€ de outros semelhantes) as pessoas dizem: “Bem, mas qual é realmente a cor”, como se os dados fornecidos pelos instrumentos de medigio de comprimento de onda fossem a tilti- ma résposta. Na verdade, esse experimento sim- ples nao nos revela uma situagdo isolada, que ossa (com se faz. com frequiéncia) ser considera- da marginal ou ilusGria. Nossa experiéncia de um mundo feito de objetos coloridos é literalmente independente da composicao dos comprimentos de onda da luz que vem de cada cena que obser- ‘vamos. Com efeito, se levo uma laranja de dentro de casa até 0 patio, ela continua sendo da mesma cor. No entanto, no interior da casa ela era ilumi- nada por, digamos, uma luz fluorescente, que tem uma grande quantidade de comprimentos de onda chamados azuis (ou curtos), enquanto que no sol predominam comprimentos de onda chama- dos vermelhos (ou longos). Nao ha maneiras de estabelecer uma correspondéncia entre a tremen- da estabilidade das cores com as quais vemos os objetos do mundo e a luz que deles provém. A CONHECER © CoNHECER 27 explicagao de como vemos as cores nado é sim- ples © nao tentaremos fornecé-la com detalhes aqui. Contudo, 0 essencial 6 que para entender 0 fendmeno devemos deixar de pensar que a cor dos objetos que vemos é determinada pelas ca- racteristicas da luz que nos chega a partir deles. Em vez disso, precisamos nos concentrar em com- preender como a experiéncia de uma cor corres ponde a uma configuragao especifica de estados de atividade no sistema nervoso, determinados por sua estrutura. Com efeito, embora nao o fa- ‘amos neste momento, é possivel demonstrar que, como tais estados de atividade neuronal (como a visto do verde) podem ser desencadeados por uma variedade de perturbagdes luminosas (como as que tornam possivel ver as sombras colori- das), € possivel correlacionar 0 nomear das cores com estados de atividade neuronal, porém nao ‘com comprimentos de onda, Os estados de ativi- dade neuronal deflagrados por diferentes pertur- ‘bagdes estio determinados em cada pessoa por sua estrutura individual, ¢ nao pelas caracteristi- cas do agente perturbador. © que foi dito é valido para todas as dimen- ses da experiéncia visual (movimento, textura, forma etc.), bem como para qualquer outra mo- dalidade perceptiva. Poderfamos falar de situa- ses similares, que nos revelam, de um s6 golpe, que aquilo que tomavamos como uma simples captagao de algo (tal como espaco ou cor) traz a marca indelével de nossa propria estrutura, Por enquanto, teremos de nos contentar somente com as observacdes e experiéncias acima, confiar em que 0 leitor de fato as tenha feito & que, 28 A Agvort portanto, estejam frescas em sua memoria as evi- déncias de como € escorregadio © que ele estava habituado a considerar como muito sélido, Na verdade tais experimentos — ou muitos ou: tos similares ~ contém de maneira capsular 0 encia do que queremos dizer. Ele: nos mostram como nossa experiéncia esta indissoluvelmente atrelada A nossa estrutura, Nao vemos 0 “espago” do mundo, vivemos nos- so campo visual; naio vemos as “cores” do mun- do, vivemos nosso espaco cromatico. Sem di da nenhuma — e como de alguma forma desco- briremos ao longo destas paginas -, estamos num mundo. No entanto, quando examinarmos mais de perto como chegamos a conhecer e: do, descobriremos sempre que nao podemos se- parar nossa hist6ria das aces — biol6gicas € so- ciais ~ a partir das quais ele aparece para nés. O mais Obvio € 0 mais préximo so sempre dificeis de perceber. sabor da ess ¢ mun- No zoolégico do Bronx, em Nova York, ha um grande pavilh’o especialmente dedicado 08 primatas. La € possivel ver os chimpanzés, gorilas, gibées e muitos mac velho mundo. Chama a ateng’o, porém, que no fundo existe uma jaula separada, com fortes gra- des. Quando nos aproximamos, vemos uma ins- crigdo que diz: “O primata mais perigoso do planeta’, Ao olhar por entre as grades, vemos com surpresa nossa propria cara: o letreiro es- clarece que © homem ja matou mais espécies no planeta que qualquer outra espécie conhecida. cas do nove edo grande escéndalo po ConHEciMENTO Contecer 0 CoNHECER Fig. 5. Maas que desenbam, de MLC. Escher, 29 De observadores, passamos a observados (por ns mesmos). Mas 0 que vemos? © momento de reflexiio diante de um espclho € sempre muito peculiar, porque nele podemos tomar consciéncia do que, sobre nés mesmos, nao € possivel ver de nenhuma outra maneira: como quando revelamos 0 ponto cego, que nos mostra a nossa propria estrutura, e como quando suprimimos a cegueira que ela ocasiona, preen- chendo 0 vazio. A reflexto é um processo de conhecer como conhecemos, um ato de voltar a 30 A Arvore po ConneciMENto Contttcer 0 Contticer 7 nds mesmos, a tinica oportunidade que temos de descobrir nossas cegueiras € reconhecer que as certezas € os conhecimentos dos outros so, res- pectivamente, to aflitivos € to tnues quanto (05 nossos. Essa situacio especial de conhecer como se conhece € tradicionalmente esquiva para nossa cultura ocidental, centrada na agio € nao na re- flexdo, de modo que nossa vida pessoal &, geral- mente, cega para si mesma. Parece que em algu- ‘ma parte hé um tabu que nos diz: “E proibido ‘conhecer 0 conhecer". Na verdade, € um escin- dalo que nao saibamos como € constituido 0 nosso mundo experiencial, que € de fato o mais proximo da nossa existéncia, HA muitos escindalos no mundo, mas essa ignorincia é um dos piores. Talvez uma das razdes pelas quais tendemos a evitar tocar as bases de nosso conhecer, é que isso nos dé uma sensacdo um pouco vertiginosa, dada a circularidade resultante da utilizagio do instrumento de andlise para analisar 0 proprio instrument de anilise: € como se pretendésse- ‘mos que um olho visse a si mesmo. Na figura 5, que € um desenho do artista holandés M.C. Escher, essa vertigem esta representada com muita nit dez, por meio das mos que se desenham mu- tuamente, de tal modo que nunca se sabe onde est 0 fundamento de todo o processo: qual é a mio “verdadeira”? De modo semelhante, embora tenhamos visto } que os processos envolvides em nossas ativida- des, em nossa constituiga0, em nossa atuag’io como seres vivos, formam © nosso conhecer, Propomo-nos a investigar como conhecemos olhando para essas coisas por meio desses pro- cessos. Nao temos outra alternativa, pois ha uma inseparabilidade entre o que fazemos € nossa experiéncia do mundo, com suas regulatidades: seus lugares paiblicos, suas criangas e suas guer- ras atomicas. © que podemos tentar ~ ¢ que o leitor deve tomar como uma tarefa pessoal ~ é perceber tudo ‘© que implica essa coincidéncia continua de nos- SO ser, nosso fazer € nosso conhecer, deixando de lado nossa atitude cotidiana de por sobre nos- sa experiéncia um selo de inquestionabilidade, como se ela refletisse um mundo absoluto, Por isso, na base de tudo © que iremos dizer estard esse constante dar-se conta de que nao se pode tomar o fendmeno do conhecer como se houvesse “fatos’ ou objetos Ii fora, que alguém capta introduz na cabega. A experigncia de qualquer coisa lé fora é validada de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna pos- sivel “a coisa” que surge na descrigao. Essa circularidade, esse encadeamento entre agao e experiéncia, essa inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o mundo nos parece set, nos diz que todo ato de conhecer 32 faz surgir um mundo. Essa caract conhecer seri inevitavelmente um problema nos- so, nosso ponto de vista e o fio condutor de tudo ‘© que apresentaremos nas paginas seguintes. Tudo isso pode ser englobado no aforismo: todo fazer €um conhecer € todo conhecer é um fazer. Quando falamos aqui em agio e experiéncia, nao nos referimos somente Aquilo que acontece em relacao ao mundo que nos rodeia no plano Puramente “fisico”. Essa caracteristica do fazer hu- mano se aplica a todas as dimensdes do nosso viver, Aplica-se, em particular, ao que estamos fazendo aqui € agora, os leitores ¢ nds. E 0 que estamos fazendo? Estamos na linguagem, moven- do-nos nela, numa forma peculiar de conversa- a0 - num didlogo imaginado, Toda reflexao, clusive a que se faz sobre os fundamentos do conhecer humano, ocorre necessariamente na lin- guagem, que € nossa maneira particular de ser humanos e estar no fazer humano. Por isso, a linguagem é também nosso ponto de partida, ‘nosso instrumento cognitivo e nosso problema. O fato de nao esquecer que a circularidade entre acho e experiéncia se aplica também aquilo que estamos fazendo aqui e agora, é muito importan- te € tem conseqiiéncias-chave, como o leitor vera mais adiante. Esse ponto nao deve ser jamais es- ‘quecido. Para tanto, resumiremos tudo o que foi dito num segundo aforismo, que devemos ter em mente ao longo deste livro: tudo 0 que é dito dito por alguém. Toda reflexao faz surgir um mundo. Assim, a reflexto € um fazer humano, realizado por alguém em particular num deter- minado lugar. Do CoNHECIMENTO ConHeCER 0 CoNHECER Explicacao 33 Esses dois aforismos deveriam ser como fa- a lembrar-nos permanentemente de onde viemos € para onde vamos. Costuma-se imaginar que esse fazer surgir 0 conhecimento seja algo dificil, um erro ou res luo explicativo que precisa ser erradicado. Dai, por exemplo, dizer-se que a sombra colorida uma “ilustio de 6tica” e que “na realidade” nao existe cor. O que estamos dizendo é justamente © oposto: esse cariter do conhecer é a chave mestra para entendé-lo, nao um residuo incémo- do ou um obstéculo, Fazer surgir um mundo é a dimensio palpitante do conhecimento e estar as- sociado as raizes mais fundas de nosso ser cogni- tivo, por mais solida que seja a nossa experién- cia. E, pelo fato dessas raizes se estenderem até a propria base biolégica ~ como veremos -, esse fazer surgit se manifesta em todas as nossas ages © em todo 0 nosso ser. Nao ha divida de que ele se manifesta em todas as agdes da vida social Tumana nas quais costuma ser evidente, como no caso dos valores e das preferéncias. Nao ha descontinuidade entre 0 social, 0 humano e suas raizes biol6gicas. O fendmeno do conhecer é um todo integraco ¢ est fundamentado da mesma forma em todos os seus Ambitos. Nosso objetivo, portanto, esta claro: queremos examinar 0 fendmeno do conhecer tomando a universalidade do fazer no conhecer (esse fazer surgit um mundo), como problema e ponto de partida para que possamos revelar seu fundamen to. E qual serii nosso critério para dizer que obti- vemos éxito em nosso exame? 34 A Anvorr po ConntrcimeNro Uma explicagao é sempre uma proposigao que reformula ou rectia as observagdes de um fend- meno, num sistema de conceitos aceitaveis para um grupo de pessoas que compartilham um cri- tério de validagao. A magia, por exemplo, € tao explicativa para os que a aceitam como a ciéncia © € para os que a adotam, A diferenca especifica entre a explicagio magica e a cientifica esti no modo como se gera um sistema explicitivo cien- Uifico, o que constitui de fato © seu critério de validacio. Dessa maneira, podemos distinguir essencialmente quatro condigoes que devem ser satisfeitas na proposicao de uma explicacio eien- tifica, as quais no necessariamente ocorrem de modo seqtiencial, mas sim de maneira imbricada: a. Descrigao do fendmeno ou fendmenos a ex- plicar, de maneira aceitével para a comunida- de de observadores; b. proposi¢io de um sistema conceitual capaz de gerar o fendmeno a explicar de modo acei- tivel part a comunidade de observadores (hi- potese explicativa); c. dedugao, a partir de b., de outros fendmenos nao explicitamente considersdos em sua pro- posigo, bem como a descrigao de suas con- digdes de obsetvagau na Comunidade de ob- servadores; d. observagio desses outros fendmenos, dedu- zidos a partir de b. Somente quando esse critério de validagio satisfeito uma explicagio € considerada cientifi- ca. E uma afirmacao s6 € cientifica quando se fundamenta em explicagoes cientificas. <— Conttecer 0 Convecer Esse ciclo de quatro componentes nao € estra- nho ao nosso modo cotidiano de pensar. Com freqéncia, nés o usamos para dar explicagdes de fendmenos tio variados como 0 enguigo do automével ou as eleigoes presidenciais, © que os «cientistas fazem € tentar ser plenamente consis- tentes ¢ explicitos em relagdo a cada uma das ‘tapas, ¢ deixar um registro documentado, de tal forma que se crie uma tradigao que va além de uma pessoa ou geracao. ‘Nossa situago é exatamente a mesma. Tanto © leitor como nés proprio estamos transforma- dos em observadores que fazem descrigdes. Como observadlores, escolhemos precisamente 0 conhe- cet como fendmeno a ser explicado. Além disso, ‘© que dissemos torna evidente qual seri nossa descrigao inicial do fendmeno do conhecer: ja que todo conhecer faz surgir um mundo, nosso ponto de partida sera necessariamente a efetivi dade operacional do ser vive em seu dominio de 36 A Anvore po Connrcimenro existéncia, Em outras palavras, nosso marco ini- cial, para getar uma explicagao cientificamente validavel, é entender o conhecer como ago efe- tiva, acio que permita a um ser vivo continuar sua existéncia em um determinado meio 20 fazer surgir 0 seu mundo, Nem mais, nem menos. E como saberemos quando tivermos chegado a uma explicagao satisfat6ria do fenémeno do conhecer? Bem, a esta altura o leitor poder ima- ginar a resposta: quando tivermos proposto um sistema conceitual capaz de gerar o fendmeno cognitive como resultado da ago do ser vivo. E, também, quanto tivermos mostrado que esse pro- cesso pode resultar em seres vivos como nds pr6- prios, capazes de produzir descrigdes ¢ refletir sobre elas, como conseqtiéncia de sua realizagio como seres vivos, ao funcionar efetivamente em seus dominios de existéncia. A partir dessa pro- Posicdo explicativa, perceberemos de que modo podem ser geradas todas as dimensoes do co- nhecer que nos sio familiares, Eis 0 itinerario que propomos ao leitor nestas piiginas. Ao longo dos capitulos que se seguirao, desenvolveremos tanto essa proposicao explica- tiva, quanto sua conexio com varios fendmenos adicionais, tais como a comunicagao e a lingua gem. No final dessa viagem, o leitor poderd reler estas paginas ¢ avaliar 0 proveito de ter aceitado nosso convite para observar de outra maneira 0 fenémeno do conhecer. ; 10 2} |p enieade a cc te a cots — = tentenis enter) ||| i | cai | o expliagio * ered | | ee sea 3 Labi conservagio — variagho: -consciénda reflexiva 8 4 perurogder | fenémenos culturais t | Li cciae rissaeteeeste stn wae de tea nt nds een a aaa dperaonal 7 5 _atos cognitivos pee T | SS erct r—_| 6 dara __nitta de aml to do sistema ca | | W easel ane Conta Hai) ecinagso estrtual represertagto / ; ‘solipsismo irate? 40 A Anvore po ConnEcIMENTO Nosso ponto de partida foi tomar consciéneia de que todo conhecer é um fazer daquele que co- nhece, ou seja, que todo conhecer depende da estrutura daquele que conhece. Esse ponto de partida fornece a pista do que seri nosso itineri- rio conceitual ao longo destas paginas: como ocor- re esse fazer surgir 0 conhecer por meio do fa- zet? Quais sto as rafzes © os mecanismos desse modo de operar? Diante de tais perguntas, o primeiro passo de nosso percurso € © seguinte: © fato de que o conhecer seja 0 fazer daquele que conhece esti enraizado na propria maneira de seu ser vivo, em sua organizagao, Sustentamos que as bases biol6gicas do conhecer nao podem ser enten- didas somente por meio do exame do sistema nervoso. Parece-nos necessirio compreender como esses processos se enraizam na totalidade do ser vivo. Em consequéncia, neste capitulo discutiremos alguns aspectos ligados & organizagao do ser vivo. Notemos que essa discussie nao € um adorno biologico, nem uma espécie de recheio academi- camente necessitio para os que nao tém forma- lo em biologia. Neste livro, ela é uma pega fun- damental para 2 compreensio do fendmeno do conhecimento em toda a sua dimensio. Para dar os primeiros passos no que se refere a compreensio da organizagio do ser vivo, veremos primeiro como sua materialidade po- de servir-nos como guia para o entendimento de qual € sua chave fundamental. Fagamos uma Breve historia da Terra ‘A ORGANIZAGAO DO SER Vivo 4 Fig. 7. Distincias na Via Lica € localiziga0 do nosso Sol em seu dimbito. viagem por alguns marcos da transformagio ma- terial que tornaram possivel o aparecimento dos seres vivos. Na figura 6, pode-se admirar a galixia chama- da M104, da constelagao de Virgem, popularmente conhecida como galaxia-chapéu. Além de sua beleza, ela tem para nds um interesse especial: nossa propria galaxia, a Via Lactea, nos pareceria ter uma forma muito semelhante, se pudéssemos véla de longe. Como nao podemos, devemos nos contentar com um diagrama como o da figu ra 7, que inclui algumas dimensdes do espago estelar € das estrelas. Elas fazem com que nos sintamos humildes, quando as comparamos com as nossas. As unidades da escala esto em quilo- parsecs, € cada um deles equivale a 3.260 anos- luz. Dentro da Via Lictea, nosso sistema solar ocupa uma posicao bem mais periférica, esta a cerca de 8 quiloparsecs do centro. 2 A Arvort po Co A Oncantzacho po Sex Vivo 43 Nosso Sol é uma entre varios milhoes de ou- tras estrelas que compdem essas estruturas multifacetadas que sio as galaxias. Como surgi ram as estrelas? Uma proposta de reconstrugio para essa historia é a que se segue. espago interestelar contém enormes quanti dades de hidrogénio. Turbulencias nessas mas sas gasosas produzem verdadeiros bolsdes de gases em alta densidade, que esto ilustrados na primeira etapa da Fig. 8. Nesse estado, algo mui- to interessante comega a acontecer: produz-se um equilibrio entre a tendéncia a coesao pela Jiacdo, fruto de reacdes termonucleares no interior da estrel dade e a propensio 2 irr em forma: (io. Essa itradiaglo, visivel do exterior, permite nos perceber as estrelas tal como as vemos no céu, mesmo a grandes distncias, Quando os dois processos se equilibram, a trela entra no que se cha na “sequiéncia princi- pal” (Fig, 8), ou seja, em seu curso de vida como estrela individual. Durante esse periodo, a maté- ria que se condensou é gradualmente consumida em reagdes termonucle: po de cerca de 8 bilhdes de anos. Quando uma fraglo do hidrogénio condensado € consumida, es ao longo de um tem- a seqiiéncia principal termina num proceso de trela se transforma num gigante vermelho, em seguida numa estrela pulsante e, finalmente, numa supernova, quando entao explode num verda deiro espirro césmico, no qual se formam os ele- mentos pesados. © que resta de matéria no cen tro da estrela entra em co apso ¢ se fora uma estrela menor, de densidade muito alta, chamada de “ana branca Nosso Sol est num ponto mais ou menos in termedirio de sua sequéncia principal, e espera- se que continue irradiando durante pelo menos trés bilhdes de anos antes de se consumir. Pois bem: em muitos casos, durante essa transforma Ao, uma estrela agrupa ao seu redor um halo de matéria que capta do espaco interestelar. Esse halo gira em torno dela, mas depende energeticamente do curso de transformagées da estrela. A Terra € 44 A Arvort outros planetas de nosso sistema planetirio sio desse tipo, e devem ter sido captados como re- manescentes da explosio de uma supernova, julgar por sua riqueza de étomos muito pesados. Segundo os geofisicos, a Terra tem pelo menos cinco bilhdes de anos © uma hist6ria de inces- sante transformagao, Se a tivéssemos visitado ha quatro bilhes de anos € passeado por sua su- perficie, terfamos encontrado uma atmosfera cons- tituida por gases como metano, aménia, hidrogé- nio € hélio. Com certeza, uma atmosfera muito diferente da que conhecemos hoje. Distinta, en- tre outras coisas, por estar constantemente sub- metida a um bombardeio energético de radiagdes ultravioletas, raios gama, descargas elétricas, im- Pactos metedricos e explosoes vulcinicas. Todos esses aportes de energia produziram (e continuam produzindo), na Terra primitiva e em sua atmos- fera, uma continua diversificagao das espécies moleculares. No comego da historia da estrela havia, fundamentalmente, homogeneidade mo- lecular. Depois da formacao dos planetas, um continuo proceso de transformagao quimica pro- duziu uma grande diversidade de espécies mole- culares, tanto na atmosfera quanto na superficie da crosta terrestre. No entanto, dentro dessa complexa € conti- nua historia de transformag6es moleculares, para nds € particularmente interessante 0 momento em que se acumulam e se diversificam as molé- culas formadas por cadeias de carbono, ou mo- léculas orginicas. Dado que os étomos de car- bono podem formar, sozinhos e com a participa- ao de muitas outras espé ies de tomo, uma bo CoxHecimENto A OxcANIZA¢A0 Do SER Vivo 45 Fig. 9. Comparagio. em escala de modelos rmoleculares d gua (na paste superior); um. smminoscido (isin) no meio; e uma proteina 1 enzima ribonuclease) na parte inferior. A>} 46 A Anvort po Conwecimento quantidade ilimitada de cadeias distintas em ta- manho, ramificacto, dobradura © composigao, a diversidade morfol6gica € quimica das moléculas organicas é, a principio, infinita. E precisamente a diversidade morfoldgica e quimica dessas mo- leculas que torna possivel a existéncia de seres vivos, a0 permitir a diversidade de reagdes mole- culares envolvidas nos processos que os produ- zem. Voltaremos 4o assunto. Por enquanto, po- demos dizer que quem passeasse pela Terra pri- mitiva veria a continua producao abiogénica (sem a participacio de seres vivos) de moléculas orgit- nicas, tanto na atmosfera quanto em mares agi dos, como verdadeiras sopas de reagdes mole- culares. A Fig. 9 mostra um pouco dessa diversi- dade, Nela se vé uma molécula de agua, que tem apenas formas muito limitadas de associagao, em comparagao com algumas moléculas orginicas. Quando, nos mares da Terra primitiva, as trans- formacdes moleculares chegaram a esse ponto, chegou-se também & situagao na qual era possi- vel a formagao de sistemas de reagdes molecula- res cle um tipo peculiar. Isto é: devido a diversifi- cago e plasticidade possiveis na familia das mo- léculas organicas, tornou-se por sua vez possivel a formagao de redes de reagdes moleculares, que produzem os mesmos tipos de molécula que as integram e, também, limitam o entorno espacial rno qual se realizam, Essas redes € interagdes mo- leculares, que produzem a si mesmas e especifi- cam seus proprios limites sio, como veremos adiante, seres vivos O aparecimento dos seres vivos ‘A Orcanizacho po Sex Vivo 47 A Fig, 10. mostra fotos tiradas em microscopio eletrOnico, nas quais aparece esse tipo de agru- pamento molecular, formado ha mais de 3,4 bi- Ihdes de anos. Poucos casos dessa espécie foram encontrados, mas eles existem. Hil outros exem- plos encontrados em depésitos fésseis mais re- centes do ponto de vista geolégico, com menos de dois bilhdes de anos. Os pesquisadores classi- ficaram esses agrupamentos moleculares como © primeiros seres vivos fosseis, na verdade como fsseis de seres vivos que ainda hoje existem: as bactérias € as algas. 48 A Anvore Pois bem: essa afirmativa — “isso € um ser vivo fossil" — la de perto. O que permite que um pesquisador diga algo assim? Sigamos paso a passo. Em pri- meiro lugar, foi necessdrio fazer uma obser € dizer que aqui existe alguma coisa, pequenos glébulos que podem ser vistos de perfil ao mi- crosc6pio. Em segundo lugar, observa-se que es- sas unidades assim apontadas se parecem, em sua morfologia, com seres vivos atualmente exis- tentes. Como hi evidéncias convincentes de que essa aparéncia € peculiar aos seres vivos ~ e que esses dep6sitos datam de uma era compativel com a historia de transformagdes da crosta eda at- mosfera terrestre, ligadas a processos proprios aos seres vivos que conhecemos -, a conclusiio € que slo seres vivos fésseis Em outros termos, no fundo o pesquisador est propondo um critério que diz: os seres vivos que existiam anteriormente tém de parecer (neste caso, em sta morfologia) com os atuais. Isso implica que devemos dispor, mesmo de modo implicito, de algum critério para saber e classificar quando um ente ou sistema atual é um ser vivo e quando muito interessante © convém examind- nao 0 é Essa situacdo nos deixa diante de um proble- ma dificil: como saber quando um ser é vivo? Quais s40 05 nossos critérios? Ao longo da hist6- ria da biologia, foram propostos muitos critérios € todos eles apresentam dificuldades. Por exem- plo, alguns propuseram que o critério fosse a com- posicao quimica, Ou a capacidade de movimen- to, Ou, ainda, a reprodugio. Ou, por fim, alguma combinacio desses critérios, ou seja, uma lista de bo CoNHECIMENTO Fésseis do que se presume que tenham sido bactérias encon- tradas em depeisios de mais dle tés bilhbes de anos. Aba xo: fotografias dle bactérias vivas atuals,cuja forma 6 con parvel a dos fosseis reprodu idos a esquerda INIZAGAO DO SER Vivo 49 propriedades. Porém, como s esti iber quando a lista completa? Por exemplo, se construirmos uma maquina capaz de se reproduzir ~ mas que é€ feita de ferro € plastico, nao de moléculas orgi- picas -, podemos dizer que ela esta viva? Queremos propor uma resposta para essa per- gunta, de uma maneira radicalmente diferente dessa tradicional enumeragao de propriedades ¢ que simplifica muito o problema. Para entender essa mudanga de visio, temos de nos dar conta de que © proprio fato de perguntarmos como se reconhece um ser vivo jé indica que temos uma idéia, mesmo que implicita, de qual € a sua or- ganizacao. F essa a idéia que determinara se aceitaremos ou nao a resposta que nos for pro- posta, Para evitar que tal idéia implicita seja uma armadilha que nos ofusque, devemos estar conscientes dela a0 considerarmos a resposta seguinte, a A Anvont. po Contivcimento A Onaastzacdo D0 Sex Vino 7 organizacio de algo? £ alguma coi Fig 11. © experimento. de Miler como metifori dos eve tos «a aimosfera primitva O queé sa ao mesmo tempo muito simples e potencial- se daquelas relagoes que mente complicada. 1 tém de existir, ou tem de ocorrer, para que esse algo seja. Para que eu julgue esse objeto como sendo uma cadeira, é necessirio que reconheca que certas relagdes acontecem entre as partes que chamo de pés, espaldar, assento, de tal maneira que é possivel sentar nela. Que seja feita de ma- deira, com pregos, ou de pkistico e parafusos, é inteiramente irrelevante para que eu a qualifique ou classifique como cadeira. Essa situagio ~ na itamente a qual reconhecemos implicita ou expli organizacio de um objeto ao indicé-lo ou distin- guilo -, € universal, no sentido de que € algo que fazemos constantemente como um ato cog- fe consiste em nada mais nada nitivo basico, menos que gerar classes de qualquer tipo. Assim, a classe das cadeiras ficaré definida pelas rela- ‘gOes que devem ser satisfeitas para que eu classi- fique algo como cadeira, A classe das boas agoes ficara definida pelos critérios que eu estabelecer que devam ocorrer entre as ages realizadas € suas conseqiiéncias, para que as considere boas. £ simples apontar para uma determinada or- Banizagao ao indicar os objetos que formam uma classe. Mas pode ser complexo e dificil descrever com exatidao € de modo explicito as relagoes que constituem tal organizagio. Assim, na classe das cadeiras parece cl descrever a organizagao “cadeira”, mas 0 mesmo nao acontece com a cl: das boas agoe: s, a0 menos que se compartilhe uma quantidade imensa de bases culturais. 52 A Aavort po ConnecimEnto Quando falamos dos seres vivos, jf estamos supondo que ha algo em comum entre eles, do contririo nao os colocarfamos na mesma classe que designamos com 0 termo “vivo”. O que nao esti dito, porém, € qual é a organizagio que os define como classe. Nossa proposta & que os se- res vivos se caracterizam por — literalmente ~ pro duzirem de modo continuo a si préprios, o que indicamos quando chamamos a organizaclo que 0 define de organizagio autopoiética, Funda- mentalmente, essa organizagio € proporcionada por certas relagdes que passamos agora a deta- Ihar € que perceberemos mais facilmente no pla- no celular: Em primeiro lugar, os componentes molecula- res de uma unidade autopoiética celular deverao ‘estar dinamicamente relacionados numa rede con- tinua de interagdes. Atualmente se conhecem muitas transformagdes quimicas concretas dessa rede € © bioquimico as chama, coletivamente, de metabolismo celular. Pois bem: o que é peculiar a essa dinimica celular, em comparagio com qualquer outro con- junto de transformagdes moleculares nos proces- ‘sos naturais? E muito interessante: esse metabo- lismo celular produz componentes ¢ todos eles integram a rede de transformagoes que os pro- duzem. Alguns formam uma fronteira, um limi- te para essa rede de transformagoes. Em termos morfoldgicos, podemos considerar a estrutura que Possibilita essa clivagem no espago como uma membrana, No entanto, essa fronteira membra- nosa nao é um produto do metabolismo celular tal como o tecido é o produto de um tear, porque A ORGANIZAGAO DO SER Vivo 53 essa membrana ndo apenas limita a extensao da rede de transformacdes que produz seus compo- nentes, como também participa dela. Se nao hou- vesse essa arquitetura espacial, 0 metabolismo celular se desintegraria numa sopa molecular, que se espalharia por toda parte e no constituiria uma unidade separada como a célula O que temos entao € uma situagao muito es- Pecial, no que se refere as relacdes de transfor- ‘magao quimica: por um lado, é possivel perceber eae Fee ine 54 A Arvore po Connrcimento uma rede de transformagdes dindmicas, que pro- duz seus préprios componentes € € a condigao de possibilidade de uma fronteira; de outra parte vemos uma fronteira, que € a condigio de possi- bilidade para a operagao da rede de transforma- des que a produziu como uma unidade: Dinamica Frontira (metabolismo) (membrana) £ importante notar que nao se trata de proces- sos seqiienciais, mas sim de dois aspectos de um fenémeno unitario. Nao € que primeiro haja a fronteira, a seguir a dindmica, depois a fronteira etc. Estamos falando de um tipo de fendmeno no qual a possibilidade de distinguir algo do todo (alguma coisa que posso ver ao microscépio, por A OncANIZACAO DO SER Vivo 55 Autonomia e autopoiese exempla) depende da integricade dos processos que © tornam possivel, Se interrompermos (em algum ponto) a rede metabélica celular, depois de algum tempo observaremos que nao existe ‘mais nenhuma unidade a observat! A caracterist ca mais peculiar de um sistema autopoiético que ele se levanta por seus proprios cordoes, € se constitui como diferente do meio por sta pré- pria dindmica, de tal maneira que ambas as coi- sas sao insepardveis, © que caracteriza 0 ser vivo é sua organizacio autopoiética, Seres vivos diferentes se distinguem Porque tém estruturas distintas, mas so iguais em organizacio, O reconhecimento de que aquilo que caracte- tiza 0s seres vivos é sua organizacio autopoiética, permite relacionar uma grande quantidade de dados empiticos a respeito do funcionamento celular e sua bioquimica, A nogio de autopoiese, Portanto, nio esti em contradi¢ao com esse cor- po de dados. Ao contririo, apoia-se neles ¢ se propoe, explicitamente, a interpretar esses dados 4 partir de um ponto de vista especifico, que des- taca 0 fato de que os seres vivos sto unidades auténomas. Utilizamos a palavra autonomia em seu senti- do corrente. Vale dizer, um sistema é auténomo se € capaz de especificar sua propria legalidade, aquilo que Ihe € proprio, Nao estamos propondo que 08 setes vivos si0 0s tinicos entes auténo- ‘mos; certamente ndo o sio. Porém, & evidente que uma das propriedades mais imediatas do ser 56 A Aavort po ConHECIMENTO vivo é sua autonomia, Propomos que © modo, ‘© mecanismo que faz dos seres vivos sistemas autdnomos, € a autopoiese, que os caracteriza como tal. A indagagao sobre a autonomia do ser vivo € 180 velha quanto a pergunta sobre a condicao de estar vivo. $6 0s bidlogos contemporineos se sen- tem incomodados diante da questao: como € possivel compreender a autonomia do ser vivo? De nosso ponto de vista, porém, essa pergunta se transforma em um fio condutor, que nos per- mite perceber que para compreender @ autono- mia do ser vivo devemos entender a organizagio que 0 define como unidade. Perceber os seres vives como unidades auténomas permite mos- trar como sua autonomia — em geral vista como algo misterioso € esquivo ~ se torna explicita ao que os define como unidades € a sua organizacdo autopoiética, e que é nela que eles, a0 mesmo tempo, realizam e especifi- cam a si préprios. Nossa abordagem, entdo, corresponde a pro- ceder de modo cientifico: se no podemos for- necer uma lista que caracterize 0 ser vivo, pot que enta io ndo propor um sistema que, ao fun- cionar, gere toda a sua fenomenologia? A evi- déncia de que uma unidade autopoiética tem exatamente essas caracteristicas pode ser en- contrada olhando-se para tudo 0 que sabemos sobre metabolismo e estrutura celular em sua interdependéncia. E claro que o fato de que os seres vivos tem uma organizaglo nao é exclusivo deles, mas sim comum a todas as coisas que podem ser A Oncanizacho Do Sex Vivo 57 investigadas como sistemas. Entretanto, o que Ihes € peculiar € que sua organizagdo é tal que seu Unico produto sao eles mesmos. Donde se con- clui que nao ha separacao entre produtor e pro- duto, O sere 0 fazer de uma unidade autopoiética Sio insepariveis, e isso constitui seu modo espe- cifico de organizagao. ‘Como toda organizagao, a autopoiética pode ser obtida por meio de muitas espécies diversas de componentes. No entanto, devemos tomar consciéncia de que no ambito molecular de ori- gem dos seres vivos terrestres, apenas algumas espécies moleculares devem ter tido as caracte- risticas que permitiram a constituiclo de unida- des autopoiéticas, dando inicio & historia estrutu- ral A qual nés préprios pertencemos. Por exem- plo, foi necessario contar com moléculas capazes de formar membranas suficientemente estaveis plsticas para serem, por sua vez, barreiras efica- 2es ¢ de propriedades mutantes que permitissem a difusto de moléculas e fons por longos perio- dos, em relacio as velocidades moleculares. As moléculas que formam as liminas de mica, por exemplo, formam barreiras de propriedades de- masiadamente rigidas para permitir que elas par- icipem de unidades dindmicas (células), em ra- pidas e continuas trocas moleculares com 0 meio. Somente quando, na hist6ria da Terra, ocorre- ram as condigdes para a formagio de moléculas orgiinicas como as proteinas ~ cuja flexibilidade € possibilidade de complexificacao € praticamente ilimitada -, foi que aconteceram as circunstincias que tornaram possivel a formacao de unidades autopoiéticas. Com efeito, podemos supor que A Axvorr po Connecimento A ORGANIZACAO DO SER Vivo A membrana celular desempenha um Papel muito mais rico e diversificado do ‘que uma simples linha de demareacao es- pacial de um conjunto de transformagdes 8, Porque: participa da célula tal ‘como os demais componentes. © interior dda célula contém uma magnifies aquitent- i composta de grandes blocos moleculi- res, alravés dos quals tanstam miliplas expécies orginicas em continua mudani Do ponto de vista operacional a imemibya 1 fz pane desse interior, © que € coreto ‘nto para as membranas que limitam os cespagos celulares adjacentes 20 meio exte- sor, quanto. para as que limitam cida am As células e suas membranas dos diversos espagos internos da eélula, E fo que se pode ver nas figuras que acompa- snham este texto, Essa arquitetura interior © a dinsimica celular constivuem, como jf destacamos, faces de um mesmo fendmeno de autoprodugao. Assim, por exemplo, den {10 das células existem onganelas especili- zaas como as mitocOndeas, em eujas pa reds se situam, em seqhéneks espaciais precisa, enzimas que, na membrana imitocondrial, se comportam como verde dirs cadeias transportadoras de elétrons. Exe processo constitul a base da respiny- ‘g10 celular quando ocorreram, na hist6ria da Terra, todas as condigSes suficientes, a formagado dos sistemas autopoiéticos se deu de forma inevitavel. Esse momento € o ponto que pode ser indica- qo como a origem da vida, Isso nao quer dizer que cle ocorreu num s6 instante e num tnico lugar, nem que possamos atribuirlhe uma data Tudo nos faz. pensar que, dadas as condigdes para a origem dos sistemas vivos, estes se originaram muitas vezes, ou seja, muitas unidades autopoi ti muitos locais da Ter ‘as com muitas Variantes estruturais surgiram em| a0 longo de talver. muitos milhdes de anos. Fig. 12, Fotografia tinda a0 aparecimento de unidades autopoicticas microsc6pio eleténico, mos dalichina ina Sates Bia trando um come de uma célu- sobre a superficie da Tes 4 a de singuessuga, na qual hist6ria do nosso sistema solar. E pre aparecem membranas e com seja bem compreendido. A formagao de uma uni- Ponentes fotracelulares (em Gade determina sempre uma série de fenémenos aumento aproximado de 20.000 vere) associados as caracteristicas que a definem, 0 que » que isso 60 A Anvort po Connecimento A Oxcaniza¢Ao o Sex Vivo ol nos permite dizer que cada classe de unidades cespecifica uma fenomenologia particular. Assim, as unidades autopoiéticas especificam a fenome- nologia biolégica como uma fenomenologia que Ihes é propria, e que tem caracteristicas diferen- tes da fenomenologia fisica. Isso se di nao por- que as unidades autopoiéticas violem nenhum aspecto da fenomenologia fisica — ja que, por te- tem componentes moleculares, devem satisfazer as leis fisicas -, mas porque os fendmenos que geram, em seu funcionamento como unidades autopoiéticas, dependem de sua organizacao € de como esta se realiza, € no do cariter fisico de Seus componentes. Estes apenas determinam seu espaco de existéncia, Assim, se uma célula interage com uma molé- cula X, incorporando-a a seus processos, 0 que acontece como conseqiiéncia da interagio nao esti determinado pelas propriedades dessa mo- légula, ¢ sim pela maneira como ela é “vista” ou tomada pela célula, a0 incorporé-la & sua dinami- ca autopoiética. As mudangas que possam ocor- rer nela, em conseqiiéncia dessa interagio, serao as determinadas por sua propria estrutura como unidade celular. Portanto, na medida em que a onganizacdo autopoiética determina a fenumneno- logia biol6gica —a0 configurar os seres vivos como unidades auténomas -, sera chamado de biolégi- co todo fendmeno que implique a autopoiese de pelo menos um ser vivo. Fig, 13. Diagrama dos princi- pais perfis da cétula de san- _guessugt mostrada na Fig. 12 membrana nuclear, mitocon- das, reticulo endoplasmati co, ribossomos a membra- na celular. Notar o eshoica hie _potético da projego widimen- sional do que poderia estar sob a superficie do espécime. ill HISTORIA: REPRODUCAO E HEREDITARIEDADE i [ i | ampliaggo do dominio de interacies) plasticidade eae = shay 66 A Anvont Do ConneciMeNto Hisronia, Rerkopugao & Hereprtariepape 07 Neste capitulo, falaremos de reprodugio € here- ditariedade. Duas raz6es 0 tornam necessitio. Uma delas € que nés, como seres vivos ~¢, como veremos, como seres sociais -, temos uma hist6- ria; somos descendentes por reprodugao nao apenas de nossos antepassados humanos, mas também de ancestrais muito diferentes, que re- trocedem no tempo mais de és bilhoes de anos. ‘A outra razi0 € que, como organismos, somos seres multicelulares e todas as nossas células so descendentes ~ por reprodugiio ~ da célula parti- cular que se formou quando um 6vulo se unit com um espermatoz6ide © nos deu origem. Por- tanto, a reprodugio esti inserida em nossa hist6- ria como seres humanos € em relaglo com nos- sos componentes celulares individuais ~ 0 que, curiosamente, faz. de nds ¢ de nossas células se- res da mesma idade ancestral. Além disso, do Ponto de vista hist6rico © mesmo vale para todos 08 seres vivos e todas as células contempori- neas: compartilhamos a mesma idade ancestral. ‘Assim, para compreender os seres vivos em to- das as suas dimensdes — € com isso entender a 1nés mesmos ~, torna-se necessario entender os ‘mecanismos que fazem do ser vivo um ser hist6- rico. Com essa finalidade, examinaremos primei- 10 0 fendmeno da reprodugio. A biologia estudou © processo da reprodugio a partir de muitos pontos de vista e, em particular, no plano celular. Mostrou, h4 muito tempo, que uma célula pode dar origem a outra por meio de uma divisto, ¢ entao se fala em divisio (ou mitose) Reprodugao: como ela acontece? ‘como um proceso complexo de reordenacao de elementos celulares, que resulta na determina- 20 de um plano de divistio. O que acontece nes- se proceso? Em geral, 0 fendmeno da reprodu- 0 consiste em que a partir de uma unidade ~ e por meio de um determinado processo ~ origina- se outra da mesma classe. Ou seja: origina-se outra unidade, que um observador pode reco- nhecer como definida pela mesma organizagio que original vE evidente, pois, que para que haja reprodu- do tém que ocorrer duas condigdes basica: unidade original e o processo que a reproduz. No caso das seres vivos, a unidade original é um vivente, uma unidade autopoiética. E 0 pro- cesso — que veremos adiante ~ tem de terminar com a formagio de pelo menos outra unidade autopoiética, distinguivel da que se considera ‘como a primeira Oleitor atento tera percebido a esta altura que, a0 ver assim o fendmeno da reprodugio, estamos afirmando que ele no € constitutivo do ser vivo, © que portanto ~ e como ja deveria ser evidente ~ no faz parte de sua organizacdo. Estamos tio acostumados a ver os seres vivos como uma lista de propriedades (ea considerar a reprodugio uma delas), que isso pode parecer chocante a primei- ra vista. No entanto, © que estamos dizendo & simples: a reprodugio nao pode ser parte da or- ganizacao do ser vivo, porque para que algo se reproduza € necessirio primeiramente que ele esteja constituido como uma unidade e tenha uma organizagao que o defina. Essa é a légica simples que usamos no cotidiano. Dessa maneira, levan- do as tiltimas conseqiiéncias essa l6gica trivial, seremos obrigados a concluir que, se falarmos da reprodugio dos seres vivos, estamos implicando que eles devem poder existir sem se reproduzir. Basta pensar nas mulas, para perceber isso. Pois bem, 0 que estamos discutindo neste capitulo é como a dindmica autopoiética no processo da A Axvort po Connrcimento Modos de gerar Histonia, Rerropugao & HEREDITARIEDADE 0 reprodugio se torna complicada, ¢ que conse- qiléncias esse fato traz para a hist6ria dos seres vivos. Entretanto, acrescentar algo a uma dina mica estrutural € muito diferente de modificar as caracteristicas essenciais de uma unidade, 0 que implica mudar a sua organizagao. Para compreender 0 que acontece na reprodu- ‘40 celular, vejamos varias situagdes que dio ori- gem a unidades de uma mesma classe e procure- mos, ao distingui-las, perceber o que € proprio da reprodugio celular. Réplica: Falamos de réplica (ou, as vezes, de produgio) cada vez que temos um mecanismo que, em seu funcionamento, pode gerar repeti- damente unidades da mesma classe, Por exem- plo, uma fabrica é um grande mecanismo produ- tivo que, por meio da aplicagao repetida de um mesmo procedimento, produz em série réplicas de unidades da mesma classe: tecidos, automé- veis, pneumaticos (Fig. 15), ‘© mesmo ocorre com os componentes celu- lares. Isso pode ser visto com muita clareza na produgao de proteinas. Nela os ribossomos, os Acidos nucléicos mensageiros e de tansferéncia, € outras moléculas constituem em conjunto a maquinaria produtiva — e as proteinas constituem © produto. © fundamental no fendmeno de réplica esta em que © mecanismo produtive ¢ o replicado io sistemas operacionalmente diferentes: 0 me- canismo produtor gera elementos independentes Fig. 15, Um caso de replica A Aavorr po CoNHECIMENTO Histoaia, RePropugso & HEREDITARIEDADE a dele mesmo. E importante notar que, em conse- qiiéncia de como ocorre o fendmeno da réplica, as unidades produzidas sio historicamente inde- pendentes umas das outras. O que acontece qualquer delas em sua hist6ria individual nao afeta as que Ihes sucedem na série de producao. © que acontecer a0 meu Toyota, depois que eu © comprar, em nada afetard a fitbrica Toyota, que continuaré produzindo imperturbavelmente os seus carros, Em suma; as unidades produzidas Por réplicas nao constituem entre elas um siste- ma hist6rico. Cépia: Falamos de c6pia cada vez que temos uma unidade modelo e um procedimento de pro- jecdo para gerar outra que the € idéntica. Por exemplo, esta folha de papel, se passada por uma maquina reprodutora produziré uma e6pia, como se diz. na linguagem cotidiana. A unidade mode- 1g € esta pagina, ¢ 0 procedimento é 0 modo de funcionar com projecao éptica da maquina reprodutora. Agora podemos distinguir, nessa situagio, dois casos essencialmente diferentes. Se 0 mesmo modelo € utilizado para fazer, de modo sucessi- Vo, muitas c6pias, tem-se uma série de c6pias historicamente independentes umas das outras, Por outro lado, se © resultado de uma cépia é usado como modelo para fazer a seguinte, pro- dluz-se uma série de unidades conectadas, por- que 0 que acontece a cada uma delas durante seu futuro individual, antes que cOpia seguinte. Assim, se uma c6pia desta pagina 72 A Anvort po ConneciMENto € por sua vez copiada pela mesma maquina, é evidente que o original e as outras duas c6pias diferem ligeiramente entre si. Se repetirmos esse mesmo procedimento, é dbvio que depois de mui- tas cOpias alguém poderi notar a progressiva trans- formagao delas, numa linhagem ou sucessio his- t6rica de unidades copiadas. Um uso criative dese fendmeno historico € aquilo que, em arte, se co- nhece como anamorfose (Fig. 16), que constitui um excelente exemplo de deriva historica. Reprodugio: Falamos de reprodugao quan- do uma unidade sofre uma fratura que resulta em duas unidades da mesma classe. Isso aconte- ce, por exemplo, quando um pedago de giz € quebrado por presstio, dando origem a dois frag- mentos. Ou quando se parte em dois um cacho de uvas. As unidades que resultam dessas fraturas nlio so idénticas a original nem entre si, mas perten- Hisrowa, Rerropugso & HEREDIARIEDADE 73 Fig. 16. Um caso de copia com substiuiclo de modelo, cem a mesma classe da original, isto é, tém a mesma onganizagao que ela. O mesmo nao acon- tece com a fratura de outras unidacles, como um radio ou uma cédula de dinh Nesses casos, fratura da unidade original a destr6i: deixa dois fragmentos e ndo duas unidades da mesma clas- se que ela. Para que na fratura de uma dada unidade ocor- ra o fendmeno da reprodugao, sua estrutura tem de se organizar de uma maneira distribuida, nao ‘compartimentalizada. Dessa maneira, © plano de fratura pode separar fragmentos com estruturas capazes de configurar de modo independente a organizagao original. O giz ou o cacho de uvas tém esse tipo de estrutura, e admitem numerosos planos de fratura, porque os componentes que configuram suas respectivas organizagdes se re- petem de forma distribuida e no compartimen- talizada em toda a sua extensio (cristais de cél- cio, no caso do giz, e uvas no cacho). 74 A Arvort po ConieciMENTO Ha muitos sistemas que preenchem esses re- quisitos, € por isso 0 fendmeno da reproducdo € muito freqdente na natureza, Exemplos: cristais, madeiras, comunidades, estradas (Fig. 17). De outa parte, um ridio ou uma moeda nao admi- tem reproducio, porque as relagdes que os defi- nem nao se repetem a0 longo de suas extensdes. H4 muitos sistemas dessa classe, como xicaras pessoas, canetas-tinteiro, a declaragao dos direi tos humanos... A incapacidade de admitir repro- ducao é também um fendmeno muito freqiiente no Universo. O interessante € que a reprodugio como fendmeno no se restringe a um determina do espago nem a um grupo particular de sistemas. © fundamental no processo reprodutivo (dife- rentemente da réplica ou da c6pia) é que tudo ocorre na unidade como parte dela, e nao hi separagio entre os sistemas reprodutor e repro- duzido. Tampouco se pode dizer que as unida- des que resultam da reproducao preexistam, ou estejam em formagio, antes que acontega a fratu- fa reprodutiva: elas simplesmente nao existe. Além disso, embora as unidades resultantes da fratura reprodutiva tenham a mesma organizagao que @ unidade original € tenham, portanto, as- pectos estruturais semelhantes a essa organizacio, tém também aspectos estruturais diferentes, tan- to dela quanto entre si, Isso acontece no apenas porque sio menores, mas também porque suas estruturas derivam diretamente da estrutura da unidade original no momento da reprodugio, € recebem, ao formar-se, componentes diferentes dela, que no esti uniformemente distribuidos Historia, RePropucho & HeREDITARIEDADE 75 Fig. 17. Um caso de reprodu- (20 por fratura 76 A Anvore po ContiecimEnto e que sio fungdo de sua hist6ria individual de mudanga estrutural Por causa dessas caracteristicas, o fendmeno da reprodugio gera necessariamente unidades historicamente conectadas, que por sua vez. so- frem fraturas reprodutivas e formam, em conjun- to, um sistema hist6 Em todo esse processo, 0 que acontece com as células? Se tomarmos qualquer uma delas no que se chama de estado de interfase, isto é, quando ndo esté em proceso de reprodugio, e a fratu- rarmos, nao obteremos duas células. Durante a interfase, uma célula é um sistema compartimen- talizado, ou seja, hd componentes seus que esto segregados do resto ou se apresentam em quan- tidades Gnicas, o que impossibilita um plano de fratura reprodutiva, Isso acontece em particular com o8 Acidos desoxirribonucléicos (DNA), que fazem parte dos cromossomos, ¢ que na interfase estio recolhidos ao mticleo e separados do resto da célula por uma membrana nuclear (Fig. 18 a). A reproducao celular Histon, Repropucdo & Hereprranrenane 7 Fig. 18, Mitose ou reproxducio por fratura em uma célula animal. O diagrama mostra as clferentes etapas de descom- partimentalizagio, que tornam possivel a fratura reprodutiva. Durante a mitose, ou divisto celular, todos os Processos que ocorrem (b+) consistem em uma descompartimentalizagao celular. Tal é facilmen- te perceptivel na figura, em que se vé a dissolu- ¢20 da membrana nuclear (com uma réplica das dluas grandes hélices duplas de DNA), ¢ no des- locamento de cromossomes e outros componen- tes, 0 que possibilita um plano de fratura. Tudo isso acontece sem interrupeo da autopoiese ce- lular e como resultado dela. Assim, como parte da dinamica da célula, produzem-se modificagdes estruturais, como a formago de um fuso mitstico (a-h), que tornam possivel uma clivagem da cé- lula assim disposta, Visto dessa maneira, 0 proceso de reprodu- ao celular é simples: uma fratura em um. plano, que gera duas unidades da mesma classe. Nas células eucaristicas (com nticleo), mais recentes, © estabelecimento desse plano € a mecanica da figtura € um delicado e complexo mecanismo de coreografia molecular, No entanto, nas células mais antigas (ou procariéticas) — que nao tém a mesma compartimentalizagao mostrada na 78 A Anvore po Conntecimento Fig. 18 -, 0 processo € de fato mais simples. Em todo caso, & evidente que a reproducio celular ocorre como se discutiu acima, ¢ nao € uma ré- plica ou c6pia de unidades. Entretanto, ao contririo dos exemplos de re- produgio antes mencionados, na reprodugio ce- lular ocome um fenémeno peculiar: & a propria dinimica autopoiética que torna efetiva a fratura num plano adequado. Nao é necessirio nenhum agente ou forga externa. Podemos imaginar que nas primeiras unidades autopoiéticas isso nao ocorreu assim, € que na verdade sua primeira reprodugao foi uma fragmentagio resultante de choques com outros entes exteriores. Na rede hist6rica assim produzida, algumas variantes che- garam 2 fratura como resultado de sua propria dinimica interna, ¢ dispuscram de um mecanis- mo de divisio que produziu uma linhagem ou sucessio hist6rica estavel. Estamos longe de sa- ber como tudo isso aconteceu, € provavelmente essas origens estejam perdidas para sempre. Tal circunstincia, porém, nio invalida o fato de que a divisio celular € um caso particular de repro dugio que podemos, legitimamente, chamar de auto-reprodugao, Hereditariedade Hisrowia, Repropugso & HEREDITARIEDADE. 79 Independentemente de como ela se gera, toda vez que ocorre uma série hist6rica acontece 0 fendmeno hereditario. Isto é, encontramos o reaparecimento de configuragdes estruturais pro- prias de um membro de uma série na série se- guinte. Isso se evidencia tanto na realizagao da organizacio propria & classe como em outras ca- racteristicas individuais. Se pensarmos, mais uma vez, no caso da série hist6rica de sucessivas c6- pias de papel feitas em miquina, teremos que, pot mais que as primeiras c6pias sejam diferen- tes das tiltimas, certas relagdes de preto e branco das letras permanecerio invariantes. Tal fato per- mite a leitura ¢ possibilita dizer que uma é c6pia da outra. Precisamente no momento em que a c6pia se torne to difusa que nao seja possivel Ie- la, essa linhagem hist6rica terd terminado. Da mesma maneira, nos sistemas que se re- produzem a hereditariedade acontece em cada iistancia reprodutiva como um fendmeno cons- titutivo dela, 20 produzir duas unidades da mes- ma classe. Exatamente porque a reprodugao ocor- re quando surge um plano de fratura numa uni- dade de estrutura distribuida, haverd necessaria- mente uma certa permanéncia de configuragdes cstruturais de uma geraclo para outa. Assim, como o resultado da fratura reproduti- va € a separagao de duas unidades com a mesma organizacdo — mas com estruturas diferentes da unidade original -, a fratura reprodutiva produz a variago estrutural. Ao mesmo tempo mantém constante a organizagao. O fenémeno da repro dugao implica, necessariamente, a geracdo tanto de semelhangas quanto de differeneas estruturais 80 A Arvorr po ConnEciMENTO entre “pais”, “filhos” € “irmaos’. Chamamos de hereditarios aos aspectos da estrutura inicial da nova unidade que avaliamos como idénticos aos da unidade original. Aos aspectos da estrutura inicial na nova unidade que julgamos diferentes dla unidade original, chamamos de variag&o re- produtiva. Fm conseqiiéncia, cada nova unida- de comega obrigatoriamente sua histéria i ual com semethangas e diferengas estruturais em relaglo as suas antecessoras. Tais diferencas se- ro conservadas ou perdidas de acordo com as circunstiincias de suas respectivas ontogenias, ‘como veremos em detalhes adiante, Por enquan- to, © que nos interessa € ressaltar que o fendme- no da hereditariedade ~ e a produgao de diferen- as estruturais nos descendentes ~ € proprio do fendmeno da reprodugio e, certamente, nao é menos valido na reproduglo dos seres vivos. Na reprodugio celular, ha muitas instincias nas quais € possivel detectar com precisio as cir~ cunstincias estruturais que determinam tanto a variaglo quanto a conservagio da semelhanga. Assim, ha alguns componentes que admitem pou- cas variagdes em seu modo de patticipago na autopoiese, mas admitem muitas peculiaridades nna maneira como se realiza essa participaclo. Tais, componente participam de configuragdes estru- turais fundamentais, que se mantém de geraco a geracio (do conirario, nao haveria reproducao) com apenas ligeiras variagoes. Os mais conhecidos st0 os DNAs (cidos nu- cléicos) ou genes, cuja estrutura fundamental & replicada na reprodugio com pouca variagao. Co- mo resultado, encontram-se grandes invariincias Histowa, Rerropucdo & HEREDITARIEDADE 81 centre individuos de uma linhagem e, 2 mesmo tempo, ha aspectos estruturais que variam conti- ‘nuamente € nao permanecem constantes por mais de uma ou duas geragdes. Assim, por exemplo, 0 modo de sintese das proteinas com a participa- «0 do DNA permaneceu invariante em muitas linhagens, mas © tipo de proteinas sintetizadas mudou muito na hist6ria dessas linhagens. © modo de distribuicao da varidincia ou inva- riancia estrutural, ao longo de uma drvore de linhagens histéricas, determina as diferentes maneiras segundo as quais a hereditariedade se ‘Com freqiéncia, ouviias que os genes ‘ontém a “informagaio" que especifica um ser vivo. Trata-se de um erro, por diias dor 3 constituigdo politica é um compo- razdes fundamentais. Primeiro, porque _nente essencial qualquer que seja 2 his- confunde o fendmeno dla hereditarieda- _t6ria, mas mo contém a “informacio” que de com 0 mecanismo de réplica de cer- specifica ess histéra, A Se . 82 A Anvore po ConnecimEnto distribui de gerago em geragio, que percebe- ‘mos como sistemas genéticos (hereditdrios) dife- rentes. O modemo estudo da genética se con- centrou especialmente na genética dos dicidos nu- cléicos. Contudo, ha outros sistemas genéticos (he- reditérios) que apenas comegamos a compreen- der. Estes permaneceram ocultos sob o brilho da genética desses dcidos. Um exemplo sio os liga- dos a outros compartimentos celulares, como as mitoc6ndrias e¢ as membranas. 10 — conhecer @ conhecer 2 9 dominios linguisticos linguagem——— consciénciareflexiva, 8 ao ‘cache as = eae a [wate ne [Adel eral cap po cauore characonat —_! 7 | | 5 ogee piste Seatac | 6 eben wlan _| Ba Sa — rc aia aaa ee | dominio de interagies | ‘nerose --]| conservagio__seldgio. a ea tha eee eee i ‘enant mf determinagio esttural ihe solipsismo nidade organtzacio sea autopoiese fenomenologia blol6gica fenomenos historicos —|| conservacio — vatiagho eprodusa IV A VIDA DOS METACELULARES | 86 A ontogenia € a historia de mudancas estrutu- rais de uma unidade, sem que esta perca a sua organizagao. Essa continua modificagao estrutu- ral ocorre na unidade a cada momento, ou como uma alteragao desencadeada por interagdes pro- venientes do meio onde ela se encontra ou como resultado de sua dinamica interna, A unidade celular classifica € vé a cada instante suas conti- nas interagdes com o meio segundo a sua estru- tura. Esta, por sua vez, estd em constante mu- danga devido a sua dindmica interna, O resulta- do geral é que a transformacao ontogenética de uma unidade niio cessa até que ela se desintegre. Para abreviar toda essa situacao, quando nos referirmos a unidades autopoiéticas usaremos 0 diagrama: tt annem Mas 0 que acontece, quando no considera- mos a ontogenia de uma unidade e sim a de duas ou mais delas, vizinhas em seu meio de intera ges? Podemos abreviar essa circunstancia do seguinte modo: OFO , F weeeeeaernr> A Anvorr po ConteciMENTO A Vipa pos MetaceLutaris 87, Acoplamento estrutural F evidente que essa situagio seri simétrica, se a olharmos do ponto de vista de qualquer das duas unidades. Isto é: para a célula da esquerda, a da direita € apenas mais uma fonte de interagdes, € como tal indistinguiveis daquelas que nds, como observadotes, classificamos como provenientes do meio “inerte”. De modo inverso, para a célula da direita a outra é uma fonte a mais de interagées, que perceberé segundo sua propria estrutura. Isso significa que duas (ou mais) unidades autopoiéticas podem estar acopladas em sua on- togenia, quando suas interagoes adquirem um carater recorrente ou muito estivel. Toda onto- genia ocorre em um meio que nés, como obser- vadores, podemos descrever como tendo uma estrutura particular, tal como radiagio, velocida- de, densidade etc. Dado que também descreve- mos a unidade autopoiética como tendo uma estrutura particular, ficard claro que as interagdes —se forem recorrentes entre unidade € meio - constituirao perturbacGes reciprocas. Nessas in- teragdes, a estrutura do meio apenas desenca- deia as modificagdes estruturais das unidades autopoiéticas (nao as determina nem as informa). A reciproca é verdadeira em relagio ao meio. O resultado sera uma historia de mudangas estrutu- rais mtituas e concordantes, até que a unidade © © meio se desintegrem: haveri acoplamento estrutural. Enite todas as interagdes possiveis, podemos encontrar algumas que sao particularmente re- correntes ou repetitivas. Por exemplo, se obser- varmos a membrana de uma célula, veremos que hd um constante € ativo transporte de certos fons 88 A Anvore po ConHEciMENTO (como 0 sédio ou © calcio) através dela, de tal maneira que, na presenga desses fons, a célula reage incorporindo-os 2 sua rede metab6lica. Esse transporte iOnico ativo acontece de forma muito regular, e um observador poder dizer que 0 aco- plamento estrutural das células em seu meio per- mite as interagdes recorrentes delas com os fons nele contidos. © acoplamento estrutural das cé- lulas permite que essas interagdes ocorram so- mente em certos fons, pois se outros fons (como césio ou litio, por exemplo) forem introduzidos no meio, as mudangas estruturais que eles de- sencadearao na célula nao serio conciliéveis com a realizagao da autopoiese dessa célula. Mas por que, em cada tipo celular, a autopoiese se dé com a participagio de uma certa classe de interagdes regulares e recorrentes, ¢ ndio de ou- tras? Essa pergunta s6 tem resposta na filogenia ou hist6ria da estirpe celular comespondente e é: © tipo de acoplamento estrutural atual de cada Célula € o estado presente da hist6ria de transfor- magdes estruturais da filogenia a que ela perten- ce. Ou seja: € um momento na deriva natural dessa linhagem, que resulta da continua conser- vagio do acoplamento estrutural de cada célula no meio em que ele se realiza. Assim, no presen- te da deriva celular natural do exemplo acima, as membranas funcionam transportando fons de s6dio e calcio € nao outros. © acoplamento estrutural com 0 meio como condigao de existéncia, abrange todas as dimen- s6es das interagées celulares e, portanto, também as que tém a ver com outras células. As células dos sistemas multicelulares normalmente existem A Via Dos METACELULARES 89 cell J Fig. 20. Ciclo da vida dos Poysarwm, com formagao de plsmédio por fusto celular em estreita jun¢do com outras células, como meio de realizacao de sua autopoiese. Tais sistemas sio © resultado da deriva natural de linhagens nas quais se manteve essa juncao. Um grupo de animais unicelulares, chamados mixomicetos, representa uma excelente fonte de exemplos que mostram com clareza esse proces- so. Assim, nos Physarum, um esporo germina € dé origem a uma célula (ver Fig. 20). Se o am- biente é timido, a ontogenia dessa célula resulta no crescimento de um flagelo e na capacidade dle movimento. Se o ambiente é mais seco, a on- togenia resulta em células do tipo amebéide. O acoplamento estrutural entre essas células leva a uma jungao to intima que elas acabam se fun- dindo. Forma-se entio um plasmédio, que por sua vez leva a formagio de um corpo frutifero macroscépico que produz esporos. (Note-se que 90 A Arvore po ConnrciMENTo no desenho a parte de cima corresponde a um grande aumento no microsc6pio; a de baixo re~ fere-se a um aumento muito menor). Nesses cucariontes filogeneticamente primiti- vos, 0 agregamento celular estreito culmina na construgio de uma nova unidade. Forma-se en- to 0 corpo frutifero, como resultado da fusto celular. Esse corpo frutifero constitui de fato uma unidade metacelular, cuja existéncia & historica- mente complementada pelas células que Ihe dio origem na realizagio do ciclo vital da unidade orginica a que pertence (€ que € definida por esse ciclo vital). Nesse ponto, € preciso prestar atengio: a formagio de unidades metacelulares Fig. 21. Ciclo de vida do ‘Dycosteltm (Fungo de limo), ‘com corpe frutifero forrade ‘A VIDA Dos METACELULARES a1 logia das células que as integram, Essa unidade de segunda ordem, ou metacelular, teri um aco- plamento estrutural € uma ontogenia adequados A sua estrutura como unidade composta. Em par- ticular, como se vé no exemplo recém-descrito, (5 sistemas metacelulares terlo um dominio de ‘ontogenia macrosc6pico, e no microsc6pico co- mo o de suas células. Um exemplo mais complexo € 0 de outro mixomiceto, 0 Dycostelium (Fig, 21). Nesse gru- po, quando o meio tem certas caracteristicas mui- to especiais, os individuos amebéides slo capa- zes de se agregar para formar um corpo frutifero como o do exemplo anterior, porém sem fusio celular. No entanto, aqui também encontramos, capazes de dar origem a linhagens - como resul- - tado de sua reprodugdo no plano celular ~ pro- My aupamento da cies 12.4. Bonne duz uma fenomenologia diferente da fenomeno- uma célula-esporo fundadora. Proc. Natl. fa unidade de segunda ordem, uma clara diver- Acad, Sci. USA 45: 379, 1959. — sificagdo dos tipos celulares. Assim, as células da 92 A Anvorr po Connecimento ponta serdo capazes de gerar esporos, enquanto as da base no 0 sao, ¢ se enchem de vactiolos & paredes, o que proporciona um apoio meciinico a todo o sistema metacelular. Aqui percebemos que no dinamismo dessa intima jungao celular, como parte de um ciclo de vida, as mudancas estruturais experimentadas em cada célula ~ em sua historia de interagdes com outras células — sio necessariamente complementares entre si e limitadas por sua participagio na constituicio da unidade metacelular que integram. Em conse- qliéncia, as modificagdes estruturais ontogenéticas de cada célula sto necessariamente diferentes — € dependem de como elas participam da consti- uigio da referida unidade e do futuro de suas interagdes e relagdes de vizinhanga, Insistamos: a intima jungao entre as células que descendem de uma tinica célula ~ e que resulta numa unidade metacelular — é uma condigao in- teiramente consistente com a continuacio da autopoiese dessas células. Mas certamente nao é imprescindivel, na medida em que na filogenia dos seres vivos muitos permaneceram como unicelulares. Nas linhagens em que se estabe- Jece um agregamento celular que resulta num metacelular, as conseqiiéncias para as respecti- vas hist6rias de transformagdes estruturais slo profundas. Vejamos mais de perto essa situagao, E evidente que a ontogenia de um metacelular seri determinada pelo dominio de interagdes que ele especifica como unidade total, e nao pelas in- teragées individuais de suas célukas componentes. Ciclos de vida A Vina pos METACELULARES 93 Em outras palavras, a vida de um individuo mul- ticelular como unidade transcorre no operar de seus Componentes, mas nao esta determinada pelas propriedades destes. Entretanto, cada um desses individuos pluricelulares é 0 resultado da divisto e da segregacao de uma linhagem de cé- lulas que se originam no momento da fecunda- 40 de uma Unica célula ~ ou zigoto -, que é produzida por alguns 6rgios ou por partes do organismo multicelular. Se nao houver geracao_ de novos individuos, nao haver‘ continuidade da linhagem. E, para que haja novos individuos, ¢ preciso que sua formagio comece a partir de uma célula. F tio simples assim: € a légica de sua cons- tituigo que exige que cada organismo metacelu- lar seja parte de um ciclo no qual ha uma etapa unicelular necessdria. Contudo, é na fase unicelular de um organis- mo multicelular, durante a reprodugao, que acon- tecem as variagdes geracionais. Portanto, nao ha diferenga no modo de estabelecimento das linha- ‘gens dos seres vivos multicelulares e unicelulares. Em outros termos, o ciclo de vida de um metace- lular constitui uma unidade na qual a ontogenia do organismo se dé em sua transformagio de unicelular a multicelular até a reprodugao. Mas a reprodug’o © as variagdes reprodutivas aconte- cem passando pela etapa unicelular. E preciso entender que todos os seres vivos multicelulares conhecidos sao variagdes elabo- radas sobre © mesmo tema — a organizagio e a filogenia da célula, Cada individu multicelular representa um momento elaborado da ontoge- nia de uma linhagem, cujas variagdes continuam 94 A Axvort po ConneciMEnto sendo celulares. Nesse sentido, 0 aparecimento da multicelularidade nao introduz, basicamente, nada de novo, Sua grande novidade consiste em que torna possivel muitas classes diferentes de individuos, ao possibilitar muitas linhagens di- versas como distintos modos de conservagio do acoplamento estrutural ontogenico com © meio. A riqueza € a variedade dos seres vivos sobre a ‘Terra se devem ao aparecimento dessa variante ou desvio multicelular das linhagens celulares que continuam até hoje, na qual nés mesmos estamos incluidos. Notemos, porém, que a reprodugio sexuada de organismos multicelulares nao faz excegaio a caracterizacto fundamental de reprodugio que vimos no capitulo anterior. Com efeito, a repro- dugio sexuada requer que uma das células do organismo multicelular adquira uma dindmica operacional independente (como 0 espermato- 26ide). A seguir, ela deve fundir-se com outra célula de outro organismo da mesma classe para formar 0 zigoto, que constitui a fase unicelular desse ser vivo. H4 alguns organismos multicelu- lares que podem, além disso ~ ou exclusivamen- te — reproduzir-se por simples fratura. Quando isso acontece, a unidade de variacho na linha gem nao € celular: € constitufda por um organismo, As conseqiiéncias da reprodugio sexual resi- dem na rica recombinacao estrutural que dela resulta. Por um lado, isso permite o entrecruza- mento de linhagens reprodutivas. Por outro, per mite um aumento muito grande nas varia estruturais possiveis em cada instincia reproduti- va. Dessa maneira, a genética e a hereditariedade A Viva Dos METACELULARES 95 Tempo de transformacoes aQ J. Bonner, Size and ity se enriquecem com os efeitos combinatérios das alternativas estruturais de um grupo de seres vi- vos, Esse efeito de aumentar a variabilidade - que por sua vez torna possivel a deriva filogené- tica, como veremos no préximo capitulo -, expli- ca por que a sexualidade € praticamente univer- sal entre os seres vivos, por facilitar a multiplica- ao das linhagens, Uma forma elegante de ver esse fendmeno vital dos metacelulares e seus ciclos de vida, € compa- rar 0 tempo que eles levam para cobrir um ciclo vital completo de acordo com o seu tamanho. A figura 22-a, por exemplo, mostra um diagrama do mesmo ciclo que discutimos antes ~ 0 de um mixomiceto, Coloca num eixo 0 tempo que cada etapa leva para se completar € em outro o tama- nho atingido. Assim, a formagao de um corpo frutifero de 1 cm demora mais ou menos um dia. O esporo, que mede cerca de 10 milionésimos de metro, forma-se em aproximadamente um minuto. Na figura 22-b observa-se a mesma hist6ria, desta vez em relag2o a ri. O zigoto, que da ot gem a um adulto, forma-se em mais on menos um minuto, enquanto que um adulto formado leva quase um ano para crescer varios centime- tros. O mesmo € vilido para a maior 4rvore do mundo ~ a sequéia -, que alcanga 100 metros de altura com um tempo de formacio de mil anos (Fig. 22-c), ou para o maior animal do mundo - a baleia azul -, que atinge até 40 metros em 10 anos (Fig. 22-<). 96 10cm 1mm 100. lo. 1 in oom A Arvort po Connicimento Fig. 22. Exemplos das relagdea entre 0 tamanho aleangado € © tempo necessario para alcangi-o, nas diferen tro organismos, A Vipa pos METACELUTARES 97 Tmin Ihr 1 day 1 mo 1 yr 10 yrs100 yrst000 100 m wm 1m oan 1mm 100 1 Tmin the 1day timo Lye 10 yrs 98, A Anvorr po Coxiecimenro Independentemente do tamanho € do aspecto externo, em todos esses casos ats etapas so sem- pre as mesmas: a partir de uma célula inicial, o Processo de divisto ¢ diferenciagao celular gera um individuo de segunda ordem pelo acoplamen- to entre as células resultantes dessas divisoes celulares, © individuo assim formado tem uma ontogenia de extensio variada, que conduz a Fig. 23. Tempo de transforma do em uni e metacelulares. A Vina pos METACELULARES 99, etapa reprodutiva seguinte, com a formagao de um novo zigoto. Dessa maneira, o ciclo geracional € uma unidade fundamental que se transforma no tempo. Uma forma de tornar isso evidente & por, num grifico, a relacao entre tempo de re- produgao e tamanho (Fig. 23). Uma bactéria que nao est4 acoplada a outras tem uma reprodugio muito ripida e, portanto, seu ritmo de transfor- magdes € igualmente acelerado. Um efeito ne- cessirio da formagao de individuos de segunda ordem por agregagio celular € a necessidade de tempo para o crescimento ¢ a diferenciagio das células. Portanto, a freqdéncia de geragées sera muito menor. Essa visio torna claro para nés que ha uma grande semelhanga entre os metacelulares, tal como ha entre as células. Apesar de sua assom- brosa diversidade aparente, todos eles conservam a reprodugio por meio de uma etapa unicelular como caracteristica central de sua identidade como sistemas biol6gicos. O fato de haver esse elemento comum entre a organizagao de todos os organis- ‘mos nao interfere na riqueza de sua diversidade, ja que esta ocorre na variagao estrutural. Por ou- tro lado, ela nos permite perceber que toda essa variagao acontece em torno de um tipo funda- mental, 0 que resulta em modos diferentes de dimensionar universos de interagao por parte de diferentes unidades com a mesma organizagao. Isto é: toda variagao ontogénica resulta em uma forma diferente de ser no mundo, porque € a estrutura da unidade que determina como ela interage com o meio € que mundo configura. 100 A Arvorr po Coniecimento Falamos de metacelulares para nos referirmos a toda unidade em cuja estrutura € possivel distin- guir agregados celulares intimamente acoptados. ‘A metacelularidade apareceu em todos os reinos (as grandes divisbes dos seres vivos): procariontes, eucariontes, animais, plantas e fungos. E uma possibilidade estrutural desde o infcio da hist6ria mais precoce dos seres vivos. Entretanto, o que € comum a todos os meta- celulares dos cinco reinos € que eles incluem células como componentes de sua estrutura. Por , diremos que os metacelulares sio sis- temas autopoiéticos de segunda ordem. Cabe en- to a pergunta: qual é a organizacao dos metace- lulares? Ja que as células componentes podem estar relacionadas de muitos modos diversos, € evidente que 0s metacelulares admitem distintos tipos de organizagao, como organismos, colbnias e sociedades, Contudo, seriam alguns metacelula- res unidades autopoiéticas? Ou seja, os sistemas A organizagéo dos metacelulares DL. Margulis, Five Kingdoms, Freeman, 5 io Francisco, 1982. A Vipa bos METACELULARES 101 autopoiéticos de segunda ordem sao também sis- temas autopoiéticos de primeira ordem? © corpo frutifero de um mixomiceto é€ uma unidade autopoiética? E a baleia? Estas nao sio perguntas faceis. Nao temos cl rteza sobre como descrever as relagdes entre com- ponentes de um organismo, de modo a que sua organizagao se reyele como uma autopoiese molecular como corre na célula, circunstincia que conhecemos com muitos detalhes. No caso dos metacelulares, temos hoje em dia um conhe- cimento muito menos preciso dos processos moleculares que os constituiriam como unidades autopoiéticas compariveis as células. as finalidades deste livro, vamos deixar em aberto a questio de se os metacelulares si0 ou nao sistemas autopoiéticos de primeira ordem, © que podemos dizer é que eles tem uma clausura operacional em sua organizagio: sua identidade esta especificada por uma rede de processos dinamicos, cujos efeitos nao saem des- sa rede. Porém, quanto a forma explicita de tal organizagao, nao diremos mais nada. Essa atitu- de nao constitui uma limitagdo de nossos propé- sitos no momento: como ja dissemos, qualquer que seja a organizacio dos metacelulares, eles so compostos por sistemas autopoiéticos de pri- meira ordem, e formam linhagens por meio da reprodugio no plano celular, Trata-se de duas condigées suficientes para assegurarmos que tudo © que acontece neles ~ na qualidade de unidades auténoma autopoiese das células componentes, bem como com a manuteng’o de sua prépria organizagao, = ocorre com a conservagio da po CoNHECIMENTO Em conseqiiéncia, tudo © que diremos a seguir se aplica tanto aos sistemas autopoiéticos de pri- meira ordem quanto aos de segunda ordem. Nao faremos distingdo entre eles, a menos que i880 gy seja estritamente necessario. DL. Margulis, Symbiosis. Coll Evolution. Freeman, Francisco, 1980, 10 comer @ onnecer — E ética iS sens uss nae f ‘consciénca reflexiva fenémenos eulturais. f socials _experiéncia cotidiana —— fenémeno do conhecer explcagio fobservador | ago. 106 A Arvorr po ConHEciMENTO Nos trés capitulos anteriores, formamos uma idéia de trés aspectos fundamentais dos seres vivos, Em primeiro lugar, entendemos como eles se constituem como unidades, como sua unidade fica definida pela organizacio autopoiética que Ihe € peculiar. Em segundo lugar, explicamos de que maneira essa identidade autopoiética pode adquirir complexidade reprodutiva, e assim ge- rar uma rede historica de linhagens produzidas pela reproduco seqiiencial de unidades. Por til- timo, vimos de que maneira os organismos celu- lares ~ como nés proprios ~ nascem do acopla- mento entre células descendentes de uma tinica, Vimos ainda que todos os organismos, como unidades metacelulares intercaladas em ciclos geracionais que sempre passam pelo estado unicelular, nao sto mais do que variagdes funda- mentais do mesmo tema. Tudo isso resulta em que hd ontogenias de seres vivos que sito capazes de se reproduzir € filogenias de cliferentes linhagens reprodutivas que se entretecem em uma gigantesca rede histérica que, por sua vez, representa uma assombrosa va- Fiaglo, Podemos constatar isso no mundo orgi- nico que nos rodcia, composto de plantas, ani mais, fungos e bactérias, bem como nas diferen- aS que observamos entre nds, como seres hu- ‘manos, € outros seres vivos. Essa grande rede de transformacoes hist6ricas dos seres vivos é a tra- ma de sua existéncia como seres hist6ricos. Nes- te capitulo, retomaremos varios dos temas dos anteriores, para compreender essa evolugao orginica de maneira global ¢ geral, jé que sem uma compreensio adequada dos mecanismos A Drniva Naruaat. pos Seres Vivos 107 Determinismo e acoplamento. estrutural hist6ricos de transformagio estrutural nao pode haver entendimento do fendmeno do conhecer. Na realidade, a chave da compreensio da ofi- gem da evolugao repousa sobre algo que ja nota- mos nos capitulos anteriores: a associagao ine- ente que ha entre diferengas e semelhangas em cada etapa reprodutiva, a conservacao da organi- zaco a mudanga estrutural. Porque ha seme- Ihangas, existe a possibilidade de uma série his- rica ou linhagem ininterrupta. Porque ha dife- rencas estruturais, existe a possibilidade de varia- es hist6ricas nessas linhagens. No entanto, para sermos mais precisos, por que se produzem e se estabelecem certas linhagens € no outras? Por que, quando othamos em torno, nos parece que © peixe € to naturaimente aquitico € o cavalo € tao adequado a planicie? Para responder a essas petguntas, precisamos primeiro examinar mais de perto € mais explicitamente como ocorrem as interacoes entre os seres vivos ¢ © ambiente que 08 Todeia. A historia das mudangas estruturais de um dado set vivo € sua ontogenia, Nessa historia todo ser vivo comega com uma estrutura inicial, que condiciona 0 curso de suas interagdes e delimita as modificagdes estruturais que estas desenca- deiam nele. Ao mesmo tempo, o ser vivo nasce num determinado lugar, num meio que constitui © entorno no qual ele se realiza e em que ele interage, meio esse que também vemos como dotado de uma dinimica estrutural propria, ope- racionalmente distinta daquela do ser vivo. 1880 € crucial. Como observadores, distinguimos a unidade que é o ser vivo de seu pano de fundo, € 0 caracterizamos com uma determinada orga- nizagao. Com isso, optamos por distinguir duas estruturas, que serio consideradas operacional- _ mente independentes entre si — 0 ser vivo e 0 meio ~ € entre as quais ocorre uma congruéncia -estrutural necessiria (caso contrario, a unidade - desaparece), Nessa congruéncia estrutural, uma _ perturbacao do meio nao contém em si uma especificagdo de seus efeitos sobre 0 ser vivo. Este, por meio de sua estrutura, € que determina quais as mudangas que ocorrerio em resposta. Essa interagio nao é instrutiva, porque nao de- termina quais serao seus efeitos. Por isso, usa- mos a expressio desencadear um efeito, e com ela queremos dizer que as mudangas que resul- tam da interagdo entre 0 ser vivo e 0 meio sao desencadeadas pelo agente perturbador e deter- ‘minadas pela estrutura do sistema perturbado. © mesmo vale para 0 meio ambiente: o ser vivo é uma fonte de perturbagdes, € nao de instrugdes. Pode ser que o leitor, a esta altura, esteja pen= sando que tudo isso parece muito complicado e que, além do mais, é proprio apenas dos seres vivos. Exatamente como no caso da reprodugio, trata-se de um fendmeno absolutamente corren- te, cotidiano. Assim, nao percebé-lo em toda a sua obviedade € uma fonte de complicagdes. Dessa maneira, vamos nos deter mais um pouco no exa- me daquilo que ocorre toda vez que distingui- Mos uma unidade ¢ o meio no qual ela interage. Na verdade, a chave para a compreensio de tudo isso € simples: como cientistas, s6 podemos 108 A Agvore po ConnecimENto A Deniva Natura. pos Stris Vivos 109 tratar com unidades estruturalmente determina- das. \st0 €: 86 podemos liclar com sistemas nos quais todas as modificagdes esto determinadas Por sua estrutura ~ seja ela qual for -, e nos quais essas_modificagdes estruturais ocorram como resultado de sua propria dindmica, ou sejam de- sencadeadas por suas interagdes. Com efeito, em nossa vida cotidiana atuamos como se tudo 0 que encontramos fossem unida- des estruturalmente determinadas. © automével, © gravador, a maquina de costura ou 0 computa- dor, sd sistemas com os quais lidamos como se tivessem uma determinag2o estrutural. Se assim nao fosse, como explicar que, quando surge um. defeito tentamos modificar-Ihes a estrutura € nao outra coisa? Se, quando pisamos no acelerador do carro, descobrimos que ele nao avanca, ne- nhum de nés imagina que algo esta errado com © pé que pisa. Supomos que o problema esti no acoplamento entre o acelerador eo sistema de injecao de combustivel, ou seja, na estrutura do veiculo. Assim, os defeitos das maquinas cons- truidas pelo homem sao mais reveladores de seu efetivo funcionamento do que as descrigdes que deles fazemos quando nao acontecem. Na au- séncia de falhas de funcionamento, abreviamos nossa descrigio dizendo que demos “instrugdes” a0 computador para que ele nos dé o saldo de nossa conta corrente, Essa atitude cotidiana (que apenas se torna mais sistematica e explicita na ciéncia, com a aplica- ‘io rigorosa do critério de validago das afirma- ‘Ges cientificas) nao é adequada somente aos sis- temas artificiais, mas também aos seres vivos & no A Anvone Se assim fosse, jamais iriamos ao médico quando nos sentissemos mal, nem mu- dariamos a administragao de uma empresa que niio estivesse funcionando a contento. Nada dis- so contradiz «t possibilidade de que optemos por nao explicar muitos fendmenos de nossa expe- riéncia humana. Entretanto, se decidimos propor uma explicagao cientifica, teremos de considerar as unidades que estudamos como estruturalmen- te determinadas. Tudo isso se torna explicito pela distingao de quatro dominios (ou ambitos, ou classes) espe- cificados pela estrutura de uma unidade especifica a) Dominio das mudangas de estado: isto mudangas estruturais que uma unidade pode sofrer sem que mude a sua organizagio, ou seja, mantendo a sua identidade de classe; Dominio das mudangas destrutivas: todas as modificagdes estruturais que resultam na per- dla da organizagio da unidade e, portanto, em seu desaparecimento como unidade de uma certa classe; ©) Dominio das perturbagées: ou seja, todas as interagdes que desencadeiam mudangas de estado; Dominio de interagdes destrutivas: toda perturbagdes que resultam numa modificagio destruti b) @ Assim, supomos, com alguma razio, que as balas de chumbo disparadas a cunta distinc getal desencadeiam em quem as recebe mudan- cas destrutivas especificadas pela estrutura dos em bo CONHECIMENTO ‘A Deniva Natura pos Seres Vivos uM Fig. 25. A cometa, como toda unidade, tem seus quatto do: minios: a) de mudangas de estado; b) de mudangas des trutivas; ©) de perturbagdes; 4) de imteragoes destruts seres humanos. Mas, como € bem sabido, as mesmas balas sio meras perturbagdes para a es- trutura dos vampiros, que precisam de estacas de madeira no coragdo para sofrer uma alteragio destrutiva. Ou, ainda, € Sbvio que um choque grave contra um poste € uma interagao destrutiva para uma motocicleta, mas é uma simples pertur- bacio para um tanque etc. (Fig. 25), 12 A Arvore po ConneciMEnro, A Deaiva Narurat. pos Seres Vivos 3 Num sistema dindmico estruturalmente deter- minado, jf que a estrutura esté em continua mu- danga, seus dominios estruturais também sofre- fio variaclo, mas a cada momento sempre esta- 10 especificados por sua estrutura presente, Essa incessante modificagio de seus dominios estru- hh ase Hp ed turais serd um trago proprio da ontogenia de cada bel Meus unidade dindmica, seja ela um toca-fitas ou um ris at) Beleadioes leopardo, Enquanto uma unidade nao entrar numa interagdo destrutiva com © seu meio, nés, obser vadores, necessariamente veremos que entre a estrutura do meio ¢ a da unidade ha uma compa- tibilidade ou comensurabilidade. Enquanto exis- tir essa comensurabilidade, meio e unidade atua- Ho como fontes de perturbagdes muituas e de- sencadeario mutuamente mudangas de estado, A esse processo continuado, demos 0 nome de acoplamento estrutural. Por exemplo, na historia do acoplamento estrutural entre as linhagens de automéveis e as cidades, hi modificagdes dra- maticas em ambos os lados, mas em cada um elas ocorrem como expresso de sua propria di- namica estrutural, provocadas pelas interagdes se- letivas com 0 outro. Tudo © que foi dito anteriormente € vilido para Ontogenia e selecao qualquer sistema e portanto para os seres vivos. Estes nfio So tinicos, nem em sua determinagio hem em seu acoplamento estrutural. O que Ihes € proprio é que neles a determinagio € 0 acopla- ‘mento estrutural se dio na continua conservagio da autopoiese que os define, seja ela de primeira 4 A Arvore po Conneciento ou de segunda ordem, ¢ tudo fica subordinado a essa conservagio. Assim, a autopoiese das célu- las que compoem um metacelular também se subordina & sua autopoiese como sistema auto- poiético de segunda ordem. Portanto, toda mu- danga estrutural acontece num ser vivo necessa- riamente demarcada pela conservagio de sua autopoiese. As interagdes que desencadeiem nele mudangas estruturais compativeis com essa con- servacio serio perturbadoras. Do contririo, se- fo interagdes destrutivas. A continua mudanca estrutural dos seres vivos com conservagio de sua autopoiese acontece a cada instante, inces- santemente e de muitas maneiras simultineas. & o palpitar da vida. Agora notemos uma coisa interessante: quan- do nés, como observadores, falamos do que acon- tece com um organismo numa interagio especifi- ca, estamos numa situagio peculiar. Por um lado, temos acesso a estrutura do meio, por outro 3 estrutura do organismo, Assim, podemos consi- derar as muitas maneiras pelas quais ambas po- deriam ter mudado ao se encontrar, caso houves- sem ocorrido outras circunstincias de interagio que podemos imaginar em conjunto com as que de fato ocotrem, Dessa maneira, podemos imagi- nar como seria o mundo se Cleépatra tivesse sido feia. Ou, numa linha mais séria, como seria esse menino que nos pede esmola, se tivesse sido ali- mentado adequadamente quando bebé. Sob essa perspectiva, as mudancas estruturais que de fato ‘ocorrem numa unidade aparecem como “selecio- nadas” pelo meio, mediante o continuo jogo das interacdes. Assim, 0 meio pode ser visto como ‘A Deriva Narurat. pos Seres Vivos 1s um continuo “seletor” das mudancas estruturais, ‘que 0 organismo experimenta em sua ontogenia Num sentido estrito, acontece exatamente o mesmo com o meio. Em sua propria hist6ria, ele (u 0s seres vivos que com ele interagem operam como seletores de suas mudangas estruturais. Por exemplo, 0 fato de que, entre todos os gases possiveis, foi o oxigénio que as células dissipa- ram durante 6s primeiros milhdes de anos apés a origem dos seres vivos, teria determinade modi- ficagdes estruturais na atmosfera terrestre. De modo que hoje esse gis existe em porcentagem importante como resultado dessa hist6ria, Por sua vez, a presenca de oxigénio na atmosfera teria selecionado variagdes estruturais em muitas linha- gens de seres vivos que, ao longo de sua filogenia, levaram a estabilizacao de formas que funcionam como seres que respiram oxigénio. O acoplamen- to estrutural € sempre miituo; organismo € meio sofrem transformacoes. Wessas circunstincias — e diante desse fend- ‘meno de acoplamento estrutural entre os orga- nismos € 0 meio como sistemas operacionalmen- te independentes ~, a manutengio dos onganis- mos como sistemas dinimicos em seu meio apa- rece como centracla em uma compatibilidade or- ganismo/meio. Eo que chamamos de adapta- $40, Por outro lado, se as interagdes do ser vivo em seu meio se tornam destrutivas, de modo que ele se desintegra pela interrupgao de sua auto- poiese, diremos que o ser vivo perdeu a sua adap- ago. Portanto, a adaptago de uma unidade a um meio € uma conseqiiéncia necessiria do aco- plamento estrutural dessa unidade nesse meio, 116 A Arvort po Connecimento © que nao € de admirar. Em outras palavras: 4 ontogenia de um individuo é uma deriva de modificacdes estruturais com invariancia da organizagao e, portanto, com conservagdo da adaptacao, Repitamos: a conservagio da autopoiese e a manutengio da adaptagao sio condigdes neces- sérias para a existéncia dos seres vivos; a mudan- a estrutural ontogenética de um ser vivo num meio sera sempre uma deriva estrutural congruen- te deste com 0 meio. Essa deriva parecera ao observador “selecionada” pelo meio, ao longo da historia de interagdes do ser vivo enquanto ele viver. A esta altura, j4 temos & mao todos os elementos necessarios para entender em seu conjunto a gran- de série de transformagdes dos seres vivos du- rante a sua hist6ria, e para responder as questOes com que comegamos este capitulo. O leitor aten- to tera percebido que, para nos aprofundarmos mais nesse fendmeno, o que fizemos foi obser- var, com um microscépio conceitual, o que acon- tece na hist6ria das interagdes individuais. Com- preendendo como isso acontece em cada caso, ¢ sabendo que haveré modificagdes em cada etapa reprodutiva, poderemos projetar-nos em uma escala de tempo de varios milhdes de anos. As- sim, sera possivel ver os resultados de um nime- Fo muito (mas muito!) grande de repeticoes do mesmo fenémeno de ontogenia individual, se- guida de mudangas reprodutivas. Na Fig. 26, te- ‘mos um visio global da hist6ria dos seres vivos, Filogenia e evolucao A Denava Natural. pos Sires Vivos 7 desde a Suas origens até os nossos dias, em todo © seu esplendor. Essa figura se parece naturalmente com uma Arvore, e por isso é chamada de hist6ria filogené- tica das espécies. Uma filogenia € uma sucessio de formas orginicas geradas seqiiencialmente por relacoes reprodutivas. As mudangas experimen- tadas ao longo da filogenia constituem a altera- ‘io filogenética ou evolutiva. ‘Na Fig. 27, por exemplo, temos uma recons- trugao da deriva de um grupo particular de meta- celulares, invertebrados marinhos muito antigos, conhecidos como trilobites. As variagdes em cada etapa reprodutiva na fase unicelular do animal geram, como se vé em cada momento da historia dos trilobites, uma grande diversidade de tipos dentro desse grupo. Cada uma dessas variacdes tem um acoplamento com o meio que representa uma variante de um tema central. Durante essa Jenga seqiiéncia, houve, na Terra, draméticas va- tiagdes geolégicas, como as que ocorreram no final do periodo conhecido como tridssico, hi cerca de 200 milhdes de anos. O registro fossil nos revela que, durante esse tempo, a maioria das linhagens de trilobites desapareceu. Ou seja, durante esses momentos do devir estrutural dos Uilobites © de seu meio, as variagdes estruturais produzidas nessas linhagens nao foram comple- mentares as variagdes estruturais contempord- neas do meio. Em conseqiiéncia, os organismos que constitufam essas linhagens nao conserva- ram sua adaptaglo, ndo se reproduziram, e assim foram interrompidas. As linhagens nas quais isso aconteceu mantiveram-se por muitos milhdes de us A Anvort D0 ConnecimENto 4 it orang ba Ba fs a Nai ion sag Atte i Wii NC ‘in | NN NH vA cy \ Ah . anos mais. Por fim, novas, repetidas e dri mudangas no meio dos trilobites acabaram fa zendo com que eles niio conservassem a sua adap- tagdo. Dessa maneira, todas as linhagens se ex- tinguiram. O estudo dos restos fasseis & da paleontologia permite construir hist6rias semelhantes @ dos A Deniva Naturat. bos Seres Vivos ng. Fig. 26, As grandes linhas da evolugio onginica, desde as origens prociriontes até nos: sos dias, com toda a varied de de unicelulares, plantas, animais € funges, que surgem das ramifieagoes © enttelaca mentos por simbiose de mul tas linhagens originarias trilobites para plantas hoje conhecidos. Nao ha um historia estrutural dos seres vivos que que cada lin: Je variagdes sobre um tema fundamental, que acontece numa seqiiéncia ininterrupta de etapas reprodutivas, com manutengio da autopoiese ¢ da adaptagio. Notemos que esse caso, como todos, revela a que slo capazes de produzir individuos vidveis num Ja um dos tipos de animais & aso da 6 io revele m € uma circunsti cia espectfi- que hi muitas variagdes de uma estrun determinado meio. ‘Todas elas sao igualmen- te adaptadas — como ja vimos — e capazes de 120 A Anyone po Conniteimenro Teen] Philocerida Lytocerida Teretirio Greticeo, Juissico ‘Tnidssico, Permiano| Cabonito| continuar a linhagem a que pertencem no meio em que ocorrem, seja este mutante ou no, pelo ‘menos durante alguns milhares de anos. Esse caso, entretanto, também revela que as diferentes li- nhagens que originam as distintas variagdes es- truturais — ao longo da historia de um grupo ~ diferem na oportunidade que tém de manter ininterrupta a sua contribuigto a variedade do grupo num meio em mutacdo. Isso se observa Fig. 27, Expansio e extinglo cm linhagens de um grapo de trilobites, animais que existi- ram entre 500 € 300 milhoes de anos passados. A Deniva NATURAL bos SeRes Vivos 1a Deriva natural numa visio retrospectiva, que mostra que ha li nhagens que desaparecem, revelando que as con- figuragdes estruturais que as caracterizam nao thes permiitiram conservar sua organizacio, bem como a adaptacdo que assegurava a sua continuidade. No processo da evolugio orginica, uma vez cum- Prido 0 requisito ontogénico essencial da repro- dugao, tudo € permitido. Seu no-cumprimento esta proibido, pois leva 2 extinglo. Veremos adian- te como isso condiciona de maneira importante a historia cognitiva dos seres vivos. Vejamos essa deslumbrante drvore da evolucao onginica a partir de uma analogia. Imaginemos ‘uma colina de cume agudo. Figuremos que a partir desse pico jogamos encosta abaixo gotas d’4gua, sempre na mesma diregio, embora pela mecani- ca do lancamento haja variagdes no seu modo de cir. Imaginemos, por fim, que as gotas sucessi- vamente langadas deixem uma trilha sobre o ter- reno, que constitui a marca de sua descida, Como é evidente, se repetirmos muitas vezes ‘© nosso experiment, teremos resultados ligeira- mente diversos. Algumas gotas descerio direta- mente para a direcao escolhida; outras encontra- ro obsticulos, que contornaraio de maneiras di- versas, por causa de suas pequenas diferencas de peso € impulso, ¢ se desviario para um lado ou para 0 outro; talvez haja leves mudangas nas cor- rentes de vento, que levem outras gotas por ca- minhos muito sinuosos, ou que as facam distan- ciar-se bem mais da diregao inicial. E assim inde- finidamente. A Aavort po Contircimento A Denia Narurat os Sees Vivos 124 A Anvort po Conntecimento ‘Tomemos agora essa série de experimentos e, seguindo as trilhas de cada gota, superponhamos todos os caminhos conseguidos. Com isso, pode- remos de fato imaginar que as tivéssemos langa- do todas juntas. O que obteremos sera algo como 6 ilustrado na Fig. 28. Essa figura pode, adequadamente, ser chama- da de representagao das multiplas derivas natu- rais das gotas d'agua sobre a colina, o resultado de seus diferentes modos individuais de interagao com as irregularidades do terreno, os ventos ¢ tudo 0 mais. As analogias com os seres vivos S80 bvias. O cue € a diregio inicial escolhida equi- valem ao organismo ancestral comum, que dit origem a descendentes com ligeiras variagdes estruturais. A repeti¢io mltipla equivale as mui- tas linhagens que surgem desses descendentes. A colina é, com certeza, todo 0 meio circundante dlos seres vivos, que muda segundo 0 devir, que em parte € independente do devir dos seres vi- vos ¢ em parte depende deles, e que aqui asso- ciamos com a diminuigao da altitude. Ao mesmo tempo, a continua descida das gotas agua, com incessante conservagio da diminuicao da ener- gia potencial, associa-se & conservacio da adap- taco, Nessa analogia pulamos as etapas repro- dutivas, porque © que nela representamos € 0 devir das linhagens, no o seu modo de formagao, No entanto, ainda assim essa analogia nos mostra que @ deriva natural ocorrer seguindo os cursos possiveis a cada instante, muitas vezes sem grandes variagdes na aparéncia dos organismos (fenotipo) € freqiientemente com miiltiplas ramificagdes, a depender das relagdes organismo-meio que A Deniva Narurat. pos SeRES Vivos 125 Fig, 29. Deriva natural dos setes vivos como distincias de complexidade em relagdo & sua origem comum, sejam mantidas. Organismos e meio variam de modo independente; os organismos variam em cada etapa reprodutiva e © meio segundo uma dinimica diferente. Do encontro dessas duas va- riagdes surgirio a estabilizacio e a diversificagao fenotipicas, como resultado do mesmo processu de conservacio da adaptagao € da autopoiese, a depender dos momentos desse encontro: estabi- lizacio, quando 0 meio muda lentamente; diver- sificacao € extensio quando ele o faz de modo abrupto. A constancia e variagio das linhagens dependerao, portanto, do jogo entre as condi ‘ces histéricas em que elas ocorrem e as proprie- 10 10" Fig. 39, Relagdes de tamanho velocidade rea natureza {em por sexundo) 1 10 10 10 10" 10 1 107 1 10 10> Velocidade (cenimetos por segundo) mento esti, essencialmente, ausente como modo de ser. E presumivel que isso esteja relacionado com © fato de que as plantas se mantém pela fotossintese, desde que para tanto disponham de um aporte local constante de nutrients e Agua no solo, e de gases e luz na atmesfers: Isso per- mite a conservagao da adaptagao sen desloca- mentos grandes € ripidos. Mas também € certo io séssil € perfeitamente possivel sem fotossintese, como podemos ver nos miilti- plos exemplos de linhagens de animais como os picorocos. Estes moluscos, embora descendentes de ancestrais com motilidade, adotaram esse modo lot de vida ao encontrar condigdes locais de nutri- ‘cao que Ihes permitem a conservagio da adapta- ao = como ocorre nas plantas -, sem desloca- mentos durante a maior parte de sua ontogenia. Para um observador, € evidente que no movi- mento ha miltiplas possibilidades, muitas das quais aparecem realizadas nos seres vivos como resultados de sua deriva natural. Assim, os orga- niio s6 baseiam sua reprodugio no movimento, como também sua alimentagio e modos de interag’o com o meio. £ em referéncia a esses seres vivos, nos quais a deriva natural levou ao estabelecimento da motilidade, que 0 sistema nervoso adquire importincia. Veremos agora, com mais detalhes, esse aspecto. nismos move Voltemos um pouco a ameba que esti a ponto de engolir um protozoario. O que acontece nes- seqtiéncia pode ser resumido assim: a presen- a do protozoario gera uma concentracio de subs- Ancias no meio que sto capazes de interagir com a membrana da ameba, desencadeando mudan- as de consisténcia protoplasmatica que resultam na formagao de um pseud6podo. Este, por sua vez, produz alteragdcs na posigSo do animal, que se desloca, modificando assim a quantidade de moléculas do meio que interagem com sua mem- brana. Esse ciclo se repete, ¢ a seqiiéncia de des- locamento da ameba, portanto, produz-se por meio da manutengio de uma correlagao inter- na entre 0 grau de modificagio de sua membra- na e as mudangas protoplasmidticas que percebe- mos como pseud6podos. Ou seja, estabelece-se A Arvorr po Connrcimenr jE Fig. 40, Correlagio sensério- motora na natagio de um protozodrio, Coordenagéo sensdrio-motora unicelular Sista NeRVOSO F CONHECIMENTO 165 uma correlagao recorrente ou invariante entre uma rea perturbada — ou sensorial ~ do organismo © uma ‘rea capaz de produzir movimento ~ ou motora =, que mantém invariante um conjunto de relagdes internas na ameba. Outro exemplo pode tornar essa idéia mais clara. A Fig. 40 mostra um protozoario que tem uma estrutura muito especializada chamada flagelo, que ao bater € capaz de desloci-lo em seu meio aquoso, Nesse caso especifico, 0 flagelo bate de tal forma que arrasta a célula por tris dele. Ao nadar assim As vezes 0 protozoario se encontra com um obsticulo, com o qual colide. © que acontece nessa situagio? H4 um compor- tamento interessante de mudanga de orientagio: 6 flagelo se dobra ao topar com 0 obsticulo. Essa dobradura desencadeia modificagbes em sua base inserida na célula, 0 que por sua vez deflagra mudangas no citoplasma que o fazem girar um pauico, de modo que ao reiniciar seus batimentos © flagelo leva a célula para uma diregio diferen- te. Como resultado, vemos que o protozoatio toca © obsticulo e depois se torce e foge dele. Outra vez, como no caso da ameba, © que ocorre € que esti sendo mantida uma certa correlagio interna entre tuma estrutura (sensorial) capaz de admitir certas perturbagdes € uma estrutura (motora) ca- paz de gerar um deslocamento. O interessante desse exemplo € que as superticies sensorial € motora sio a mesma e, portanto, seu acopla- mento € imediato. Vejamos ainda outro exemplo desse acopla- mento entre superficies sensoriais € motoras. Ha bactérias (unicelulares) que tém, como alguns 166 A Anvorr po ConneciMeNto protozodrios, flagelos de aparéncia semethante. No entanto, como se vé na Fig. 41, esses flagelos funcionam de forma muito diferente. Em vez de bater, como no caso anterior, simplesmente gi- ram fixos sobre sua base, de maneira a constituir uma verdadeira hélice propulsora para a bacté- ria, Além disso, os giros tornam possiveis ambas. as diregoes. Contudo, ha uma delas em que a coordenagio das rotagdes resulta num nitido des- locamento da bactéria, enquanto que na diregio posta essa coordenagio faz com que a bactéria simplesmente balance aos solavancos, sem sair do lugar. £ possivel seguir os movimentos de uma dessas bactérias sob 0 microseépio, e observar suas mudangas em condigdes diferentes © con- troladas. Se a pomos, por exemplo, num meio em que num canto tenhamos colocado um gro de agticar, observa-se que ela logo deixa de ficar aos solavancos, muda a diregio de giro dos flagelos e se dirige para a zona de maior concen- tragao de agticar, seguindo o seu gradiente de concentragio. Como isso ocorre? Acontece que na membrana da bactéria ha moléculas especial zadas, capazes de interagir especificamente com os agticares, Assim, quando ha uma diferenga de concentraco em seu pequeno entorno, produ- zem-se alteragdes no interior, que determinam a mudanga na diregio de giro do flagelo. Portanto, a cada momento se estabelece de novo uma rela Ao estivel entre a superficie sensorial da bacté- ria sua superficie motora. Isso Ihe possibilita 0 comportamento nitidamente discriminat6rio de dirigir-se para as zonas de maior concentragao de cemtas substincias, Esse fendmeno € conhecido Fig. 42. Um pequeno ccelenteradox @ hidra Fig. 41. Propulsio flagelar bacteria C1 i. ter, Sor Amer 36, 1975 rEMA NERVOSO E CONHECIMENTO. 167 como quimiotaxia, € € um caso de conduta de nivel unicelular, do qual se conhecem muitos de- talhes moleculares. Ao contritio dessas bactérias, a sagitiria de que falamos — bem como outras plantas — nio tém uma superficie motora que as dote de movi- mento. De fato, encontramos entre as bactérias casos que silo, por assim dizer, um meio-termo entre a capacidade de movimento ¢ a rentincia a ele. © Caulobacter, por exemplo, quando esta num meio de alta umidade, fixa-se ao solo por meio de um pedestal, numa forma do tipo vege- tal, Entretanto, quando acontece um perfodo de 168 A Anvore po Contiecimen: dessecamento, a bactéria se reproduz, e as novas células crescem com um flagelo capaz de trans- porti-las a um ambiente mais timido. ‘Vimos, nos exemplos anteriores, que o movimento dos unicelulares ~ ou conduta de deslocamento —baseia-se numa correlacio muito especifica entre as superficies sensoriais e as superficies respon- saveis pelo movimento, ou motoras. Vimos tam- bém que essa correlagio se faz por meio de pro- cessos no interior da célula, ou seja, mediante transformagdes metabolicas prOprias da unidade celular. O que acontece no caso dos organismos metacelulares? Examinemos novamente essa situacio, por meio de um exemplo. A Fig. 42 mostra a fotogra- fia de uma hidra, como as que podem ser encon- tradas na lagoa do Parque O'Higgins de Santia- g0. Esses metazoarios pertencem a0 grupo dos celenterados, uma linhagem de animais muito antigos e primitivos, formados por uma dupla camada de células em forma de vaso. Em sua borda, alguns tenticulos permitem que o animal se mova na Agua e capture outros animais, que ingere e digere por meio da secrecao de sucos digestivos. Se observarmos a constituigao celular desse animal, veremos uma dupla camada. Uma se volta para o interior € outra para o exterior. Nessas duas superficies encontramos uma certa diversidade de células. Assim, ha células com lan- cetas, que ao serem tocadas langam seus proj teis ao exterior, enquanto outras tém vactiolos capazes de secretar liquidos digestives para o Correlagao sens6ri motora multicelular SISTEMA NERvosO & CONHECIMENTO 169 Fig. 43. Esquema da diversi- dade celular nos tecidos da hdr, com destaque para os interior, Também encontramos nas hidras algu- mas células de carter motor, dotadas de fibrilas contriteis, dispostas tanto longitudinalmente quan- to radialmente na parede do animal (Fig. 43). Ao se contrair em diferentes combinagées, essas cé- lulas musculares produzem toda a diversidade de movimentos do animal evidente que para que ocorra uma ago coor- denada entre, digamos, as células musculares dos 170 A Aavore po ConHeciMENTO: tenticulos ¢ as células secretoras do interior, é preciso que haja algum tipo de acoplamento en- tre elas. Nao basta que estejam simplesmente dis- postas nessa dupla camada. Para entender como se da esse acoplamento, basta observar com mais detathes © que ha entre as duas camadlas celulares. Ali encontramos célu- las de um tipo muito peculiar, com profongamen- tos que se estendem por distincias consideriveis, dentro do animal, A peculiaridade dessas células € que por meio de seus prolongamentos elas pdem em Contato elementos celulares topografi- camente distantes. Trata-se de células nervosas, ou neurénios, em sua forma mais simples e pri- mitiva. A hidra tem uma das formas mais simp! ficadas de sistema nervoso que se conhece, cons- tituido por uma rede que inclui essa classe part cular de células, assim como receptores ¢ efetores. Geralmente, o sistema nervoso desse animal apa- rece como um verdadeiro emaranhado de inter- conexdes, que se estendem para todas as partes de seu corpo através do espaco entre as células. Dessa maneira, ele possibilita a interaglo de ele- mentos sensoriais © motores distantes. Desse modo temos, em todos os detalhes, a mesma situacao existente no caso do comporta- mento unicelular. Uma superficie sensorial (nes te caso, células sensoriais), uma superficie motora (aqui, células musculares e secretoras) e vias de interconexo entre ambas as superficies (a rede neuronal). © comportamento da hidra (alimenta- gao, fuga, reprodugao ete.) resulta das diferentes maneiras como essas duas superficies — a senso- tial e a motora — se relacionam dinamicamente SisteMA NERVosO & Conte Estrutura neuronal ENTO a entre si por meio da rede interneuronal para in- tegrar, em seu conjunto, o sistema nervoso. Os neurdnios se distinguem por terem ramifica- es citoplasmdticas de formas especificas que se estendem por enormes distincias, da ordem de dlezenas de milimetros no caso das maiores. Essa caracteristica neuronal universal, presente em to- dos os organismos dotados de sistema nervoso, determina o modo especifico pelo qual este par- ticipa das unidades de segunda ordem, que inte- gra ao por em contato elementos celulares situa- dos em muitas partes diferentes do corpo. Nao devemos desprezar a delicada série de transfor- mages de crescimento necessirias para que uma célula que — medindo inicialmente uns poucos milionésimos de metro ~ chega a ter ramificacoes de forma especifica que podem atingir dezenas de, milimetros, numa expansio de varias ordens de magnitude (Fig. 44). E por meio de sua presenga fisica que os neurdnios acoplam, de muitos modos distintos, grupos celulares que de outra maneira 86 pode- iam acoplar-se pela circulagio geral dos humo- res internos do organisma. A presenga fisica de ‘um neurénio permite o transporte de substincias entre duas regioes por meio de um caminho muito especifico, que nao afeta as células circundantes e sua entrega local A particularidade das conexdes € interagdes que as formas neuronais tornam possiveis consti- tui a chave mestra do funcionamento do sistema nervoso. 172 A Aryort po ConrecimENto As influéncias reciprocas que ocorrem entre ‘05 neurdnios Sie de muitos tipos. A mais conhe- cida de todas € uma descarga elétrica, que se propaga em alta velocidade pelo prolongamento neuronal chamado ax6nio, como se fosse um ras- tilho de polvora. E por isso que freqiientemente se diz que o sistema nervoso funciona a base de trocas elétricas. Mas isso no é totalmente corre- to, ja que 0s neurdnios nao interagem apenas por meio desse tipo de trocas. Também o fazem —e de modo igualmente constante — por meio de substncias transportadas no interior dos axOnios. SisreMa Nekvoso & CoNHECIMENTO 173 Fig. 44. O neurtnio e sua cextensio, Estas sio liberadas (ou recolhidas) nos terminais e desencadeiam mudangas de diferenciago e cres- cimento nos neurdnios, nos efetores ¢ nos Sensores com os quais eles se conectam. Com que tipos de célula os neurdnios se co- nectam? Na realidade, eles se ligam a quase to- dos 0s tipos celulares de um dado organismo, Pporém o mais comum é que cheguem, com suas expansdes, a outros neurdnios. Essas expansdes nervosas — conhecidas como dendritos ¢ termi- ais ax6nicos ~ sio por sua vez muito especial zadas. Entre essas zonas e os corpos celulares

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