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DAVID BOHM A Totalidade e a Ordem Implicada Tradueto MAURO DE CAMPOS SILVA Revisio Técnica NEWTON ROBERVAL EICHENBERG a EDITORA CULTRIX ‘Sto Paulo 1 Fragmentacao e totalidade O titulo deste capitulo 6 “Fragmentacdo e totalidade”. F de especial importancia considerar esta questio nos dias de hoje, pois agora a fragmentacdo seré muito difundida, nao apenas por toda a sociedade, mas também em cada individuo; ¢ isto leva a uma espécie de confusio geral na mente, criando uma séric intermindvel de problemas ¢ interferindo tho seriamente com a clareza da nossa percepcdo que nos impede de resolver a maior parte deles. ‘Assim, a arte, a citncia, a tecnologia ¢ 0 trabalho humano em geral sfo divididos em especialidades, sendo cada uma delas considerada como essencialmente separada das outras. No sa- tisfeitos com esse estado de coisas, os homens propusetam as- suntos interdisciplinares adicionais, com a intencio de unir es- sas especialidades. Mas esses novos temas, em tiltima andlise, serviram principalmente para acrescentar outros fragmentos se- parados. Portanto, a sociedade como um todo tem-se desenvolvi- do de forma tal que se encontra fracionada em nagdes ¢ em diferentes grupos religiosos, politicos, econdmicos, raciais, etc. Em correspondéncia, o ambiente natural do homem tem sido vis- to como um agregado de partes existentes separadamente, a s- rem exploradas por diferentes grupos de pessoas. Da mesma for- ma, cada ser humano individual foi feagmentado num grande ndmero de compartimentos separados e conflitantes, conforme seus diferentes desejos, metas, ambigées, lealdades, caracteristi- cas psicolégicas, etc., a tal ponto que em geral se admite que certo grau de neurose é inevitvel, enquanto que muitos indi- viduos, que vio além dos limites “normais” da fragmentagio, sio classificados como parandides, esquizdides, psicdticos, etc. 19 F evidente que 6 ilustria a nogio de que todos esses fragmen- tos existe sepor. inte, ¢ ess ilusio ndo faz outa coisa senio evar «um conthte © a uma confusin infindaveis. De fato, a ten tativa de viver de acordo com a nogie de que os fragmentos es tao realmente separados é, em esséncia, o que tem levado A série crescente de crises extremamente urgentes, com as quais, hoje, nos defrontamos. Assim, como bem se sabe agora, esse modo de vida 6 0 que vem ocasionando a poluigio, a destruigio do equilforio da natureza, a superpopulagio, a desordem politica ¢ econdmica em escala mundial, ¢ a criagio de um ambiente global que nao é saudavel, seja fisica ou mentalmente, para a maioria das pessoas que nele tém de viver. Individualmente, desenvolveu-se um senti- mento muito difundido de impoténcia e desespero em face do que Parece ser uma massa avassaladora de forgas sociais desiguais, que esti além do controle, e mesmo da compreensio, dos seres huma- nos por ela envolvidos, De fato, até certo ponto, sempre foi necessario ¢ adequado para o homem, em seu pensamento, dividir ¢ separar as coisas, de modo a reduzir os problemas a proporgoes controlaveis; pois, evidentemente, se em nosso trabalho técnico pritico tentéssemos lidar com © todo da realidade de uma sé vez, ficariamos atola- dos. Logo, de certa forma, a criagdo de matérias especiais de estudo e a diviso do trabalho foram avangos importantes. Mes- mo antigamente, a primeira compreensdo que o homem teve de que nao era idéntico 4 natureza foi um passo crucial, pois tornou possivel uma espécie de autonomia em seu pensamento, que The permitiu ir além dos limites imediatos da natureza, a principio em sua imaginagio e, finalmente, em seu trabalho pritico. No entanto, essa habilidade do homem em separar a si proprio do ambiente, bem como em dividir e distribuir as coi- sas, levou em tiltima instincia a um largo espectro de resulta- dos negativos e destrutivos, pois ele perdeu a consciéncia do que estava fazendo e, deste modo, estendeu o processo de divisao além dos limites dentro dos quais este opera adequadamente. Em esséncia, 0 proceso de divisio 6 uma maneira conveniente e Util de pensar sobre as coisas, principalmente no dominio das atividades praticas, técnicas e funcionais (p. ex., dividir um ter- Teno em diferentes campos onde varias safras serdo cultivadas). 20 Tedavia, quando este modo de pensamento ¢ aplicado de uma forma mais ampla a nogdo do homem a respeito de si mesmo ¢ a respeito do mundo ‘todo em que vive (isto & A sua visio de mundo pessoal), entdo cle deixa de considerar as divisies resultantes como meramente tteis ou convenientes e comega a ver @ a experimentar a si proprio, e a0 seu mundo, como efeti- vamente corstituidos de fragmentos separadamente existentes. Guiado por uma visio pessoal de mundo fragmentaria, 0 homem entao age no sentido de fracionar a si mesmo e ao mun- do, de tal sorte que tudo parece corresponder ao seu modo de pensar. Ele essim obtém uma prova aparente de que é correta a sua visio de mundo fragmentéria, embora, é claro, negligen- cie 0 fato de que é ele proprio, agindo de acordo com 0 seu modo de pensar, a causa da fragmentagdo que agora parece ter uma existénca auténoma, independente da sua vontade e do seu desejo. Desde tempos imemoriais, os homens t¢m consciéncia desse estado de fragmentacao aparentemente autdnomo e projetam mitos de uma “idade de ouro” ainda mais antiga, antes que a ruptura entre 0 homem e a natureza e entre o homem e o seu semelhante tivesse ocorrido. De fato, 0 ser humano sempre bus- cou a totalidade — mental, fisica, social, individual. E instrutivo considerar que a palavra health (satide) em in- glés bascia-se na palavra anglo-saxénica hale, que significa “in- teiro” [whole, em inglés}: isto 6, estar com satide é estar inteiro, ‘0 que é mais ou menos 0 equivalente, penso, da palavra hebraica “shalem”. Igualmente, o inglés holy [sagrado, santo] baseia-se na mesma raiz que whole. Tudo isso indica que o homem sempre sentiu que a integridade ou totalidade ¢ absolutamente necesséria para que a vida valha a pena ser vivida. No entanto, durante eras, ele geralmente viveu em fragmentagio. Certamente, a questéo de por que isso tudo ocorre exige atengao cuidedosa e séria consideragio. ‘Neste capitulo, a atengio ser focalizada no papel sutil, mas crucial, de nossas formas gerais de pensamento em sustentar a fragmentacao e frustrar os nossos mais profundos anscios com vistas & totalidade ou integridade. Com o fim de dar & discussio um conteddo concreto, falaremos até certo ponto, em termos de a pesquisas cientificas correntes, que é um campo relativamente familiar para mim (embora, é claro, também se tenha em men- te a importancia global das questées em exame). O que ser4 enfatizado, em primeiro lugar, na pesquisa cientifica e depois num contexto mais geral, € que a fragmen- tacdo esté sendo continuamente produzida pelo habito quase universal de tomar 0 contetido do nosso pensamento por “uma descrigéo do mundo como ele 6”. Ou entdo, poderiamos dizer que, nesse habito, considera-se 0 pensamento como estando em correspondéncia direta com a realidade objetiva. Uma vez que (© nosso pensamento é permeado por diferencas ¢ distingdes, se- gue-se daf que um tal habito nos leva a enxergé-las como di- visdes reais, de modo que 0 mundo entio é visto e experimen- tado como algo efetivamente dividido em fragmentos. A relacio entre o pensamento e a realidade a qual ele se refere 6, de fato, muito mais complexa do que a de uma mera correspondéncia. Assim, na pesquisa cientifica, boa parte do nos- 50 pensamento esté assentada em termos de-fevrias. A palavra “teoria” deriva do grego theoria, que tem, assim como a pala- vra “teatro” a mesma raiz numa palavra que significa “obser- var” ou “fazer um espetaculo”. Assim, poder-se-ia dizer que uma teoria é, basicamente, uma forma de insight [ou introvisao}, ou seja, um modo de olhar para 0 mundo, e néo uma forma de conhecimento de como ele é. Nos tempos antigos, por exemplo, os homens tinham a teoria de que a matéria celeste era fundamentalmente diferente da matéria terrena, ¢ que era natural os objetos desta dltima cairem, assim como era natural que os objetos celestes, como a Lua, permanecessem 14 em cima no céu. Com 0 advento da era moderna, porém, os cientistas comegaram a amadurecer 0 pon- to de vista segundo 0 qual nao havia qualquer diferenca es- sencial entre a matéria terrena e a matéria celeste. Isto, é claro, implicava que os objetos do céu, como a Lua, deveriam cair, mas por muito tempo nao notaram esta implicagdo. Num stibi- to insight, Newton entao viu que, assim como a mac cai, 0 mes- mo acontece com a Lua, e de fato com todos os objetos. Assim, ele foi levado a teoria da gravitagdo universal, em que todos os objetos eram vistos como caindo em diregdo a varios centros (p. 2 ex., a Terra, 0 Sol, os planetas, etc). Isto constituiu um novo modo de olfar para o céu, modo este em que os movimentos dos planetas ndo eram mais vistos mediante a antiga nocdo de uma diferenga essencial entre matéria celeste ¢ matéria terrena. Em vez disso, considerava-se esses movimentos em termos de velocidade de queda de toda a matéria, celeste e terrena, em diregio a vasios centros, ¢ quando se via que alguma coisa nao era explicada desse modo, procuravam-se, e freqiientemente descobriam-se, planetas novos ¢ até entio invisiveis em direcdo 0s quais caiam os objetos celestes (assim demonstrando a relevancia dessa maneira de olhar). A forma newtoniana de insight funcionou muito bem por varios séculos, mas finalmente (como os antigos insights gregos que vieram antes) Ievou a resultados obscuros quando estendi- da a novos dominios. Descnvolveram-se, nesses novos dominios, novas formas de insight (a teoria da relatividade e a teoria quan- tica). Estas proporcionaram um quadro do mundo radicalmente diferente daquele de Newton (embora se tenha percebido que este tiltimo ainda 6 valido num dominio limitado). Se supu- séssemos que as teorias propiciassem o verdadciro conhecimen- ta, correspondendo a “realidade como cla 6”, entio terfamos de concluir que a teoria newtoniana era verdadcira até por volta de 1900, apés o que, subitamente, tornou-se falsa, enquanto a rélatividade e a teoria quantica tornaram-se a verdade. Uma con- clusdo assim tdo absurda no se apresentaré, contudo, se dis- sermos que todas as teorias sdo insights, que ndo sio nem ver- dadeiros nem falsos, mas, antes, claros em certos dominios ¢ obscuros quando estendidos além destes. Isto significa, porém, que nao igualamos teorias com hipéteses. Como indica a raiz grega da palavra, uma hipdtese € uma suposicao, isto é, uma “colocada sob” 0 nosso raciocinio, como uma base pro- que deve ser testada experimentalmente quanto a sua verdade ou falsidade. No entanto, como se sabe muito bem agora, ndo pode haver nenhuma prova experimental conclusiva sobre a verdade ou falsidade de uma hipstese geral que vise a cobrir 0 tode da realidade. Em vez disso, percebe-se (p. ex., no caso dos epiciclos ptolomaicos ou do fracasso dos conceitos new- tonianos pouco antes do advento da relatividade ¢ da teoria 23 quantica) que as teorias mais antigas tomam-se cada vez mais obs- curas quando se tenta utilizé-las para obter insight em novos dominios. Uma cuidadosa observagio sobre como isso acontece 6, geraimente, o principal indicio na diregdo de novas teorias, que virio a constituir posteriormenic, novas formas de insight. Assim, em vez de supor que as tcorias mais antigas tor- nam+se falsas num determinado momento, dizemos apenas que © homem est desenvolvendo continuamente novas formas de insight, que sdo claras até um determinado ponto ¢ depois ten- dom a ficar obscuras. Nao hé, evidentemente, nesta atividade nenhuma razdo para supor que existe ou existiré uma forma de insight final (correspondente a verdade absoluta), ou mesmo uma série uniforme de aproximagées dessa forma final. Em vez dis- 50, na natureza do caso, pode-se esperar 0 desenvolvimento in- termindvel de novas formas de insight (que, no entanto, assimi- lardo certos aspectos fundamentais das formas mais antigas como simplificagdes, 8 maneira como a teoria da relatividade ( com a teoria newtoniana). Porém, conforme assinalamos antes, isto significa que nossas tcorias devem ser consideradas basicamente como modos de olhar para 0 mundo como um todo (isto como visdes de mundo}, ¢ no como o “conhecimento absolu tamente verdadeiro de como as coisas si0” (ou como uma apro- ximagao progressiva ¢ uniforme desse conhecimento).. Quando olhamos para 0 mundo por intermédio de nossos insights tedricos, 0 conhecimento factual que obtemos serd, evi- dentemente, moldado ¢ formado pelas nossas teorias. Nos tem- pos'antigos, por exemplo, o fato sobre os movimentos dos pla- netas ora descrito em termos da idéia ptolomaica de epiciclos (circulos sobrepostos a circulos). No tempo de Newton, este fato foi descrito em termos de drbitas planetarias determinadas com preciso, analisadas mediante velocidades de queda em diregéo a varios centros. Mais tarde, apresentou-se 0 fato do ponto de vista da relatividade, de acordo com os conccitos de espaco ¢ tempo de Einstein. Ainda mais tarde houve uma especificacao muito diferente do fato em termos da tcoria quantica (que em geral fornece apenas um fato estatistico). Na biologia, 0 fato agora é descrito cm termos da teoria da evolugdo, mas antiga- mente era expresso em termos de espécies fixas de seres vivos. 24 Portanto, de um modo mais geral, uma vez dadas a per- cepsio € a ado, nossos insights tedricos provéem a principal fon- te de organizacio do nosso conhecimento factual. De fato, nos: sa experiencia global ¢ moldada desta mancira. Como Kant pa- rece ter mostrado pela primeira vez, toda experiéncia é orga- nizada segundo as categorias do nosso pensamento, isto é, nos 0s modos de pensar sobre espaco, tempo, matéria, substncia, causalidade, contingéncia, necessidade, universalidade, particu- aridade, etc. Pode-se dizer que essas categorias séo formas gerais de insight ou modos de olhar para todas a5 coisas, de mancira que, num certo sentido, s4o uma espécie de teoria (mas, é dlaro, esse nivel de teoria deve ter-se desenvolvide muito cedo na evolucéo humana). Evidentemente, a clareza de percepgio ¢ de pensamento re- quer que getalmente estejamos conscientes de como a nossa ex- periéncia € moldada pelo insight (nitido ou confuso) proporcio- nado pelas tcorias implicitas ou explicitas em nossos modos gerais de pensar. Com esta finalidade, é itil enfatizar que a ex- perigncia ¢ 0 conhecimento sio um sé proceso, em vez de pen- sar que 0 nosso conhecimhento sobre algum tipo de experiéncia separada. Podemos nos teferir a esse processo unico como ex- periéncia-corhecimento (o hifen indicando que sio dois aspec- tos inseparaveis de um movimento total). Ora, se ndo estivermos conscientes de que nossas teorias sio formas de insight sempre em transformacao, proporcionan- do molde ¢ forma a experiéncia em geral, teremos uma visdo limitada. Isso pode ser expresso assim: a experiéncia com a na- tureza assemelha-se muito 4 experiéncia com seres humanos. Se alguém se aproxima de um outro homem com uma “teoria” fixa a respeito dele, como um “inimigo” contra 0 qual é preciso se defender, esse homem responderé da mesma maneira ¢, portan- to, a “teoria” sera, aparentemente, confirmada pela experiencia. De maneira semelhante, a natureza responderd de acordo com a teoria com a qual for abordada. Assim, antigamente os ho- mens pensavam que as epidemias cram inevitaveis, ¢ este pen- samento ajudou-os a se comportarem de modo tal a reproduzir as condigées responsaveis pela sua disseminagio. Com as mo- dernas formas cientificas de insights, 0 comportamento do 25 homem ¢ tal que elimina os modos de vida insalubres, respon- saveis pela disseminagio das epidemias, fazendo com que elas deixem de ser inevitaveis. que impede os insights tedricos de avancar além das li- mitagdes existentes, transformando-se para ir ao encontro de no- ‘vos fatos, é justamente a crenga de que as teorias proporcionam um verdadeiro conhecimento da realidade (o que implica, é¢ dlaro, que elas nunca precisam mudar). Embora 0 nosso moderno modo de pensar tenha, cvidentemente, mudado muito em re- lagéo ao antigo, os dois tém um aspecto fundamental em co- mum: ambos estio geralmente limitados, como que por “anto- Ihos”, pela nogdo de que as teorias fornecem 0 verdadeiro co- nhecimento sobre a “realidade como ela é”. Assim, ambos si levados a confundir as formas e moldes induzidos em nossas perceps6es pelo insight tedrico com uma realidade independen- te do nosso pensamento e do nosso modo de othar. Essa con- fusio ¢ de crucial importéncia, uma vez que nos leva a abor- dar a natureza, a sociedade e 0 individuo em termos de for- mas de pensamento mais ou menos fixas ¢ limitadas, conti- nuando assim, aparentemente, a confirmar as limitagdes dessas formas de pensamento na experiéncia. Esse tipo de confirmacao interminavel das limitagées em nossos modos de pensar 6 particularmonte significative no que diz respeito A fragmentagio, pois, como foi mostrado anterior- mente, toda forma de insight tedrico introduz as suas préprias diferengas ¢ distingdes essenciais (p. ex., na antigiiidade, uma distingdo essencial era entre a matéria terrena e a celeste, ao pas- 0 que na teoria newtoniana era essencial distinguir os centros em diregdo aos quais toda a matéria estava caindo). Se consi- derarmos essas diferengas e distingdes como modos de olhar, como guias para a percep¢io, isto ndo implica que denotem substancias ou entidades que existam separadamente. Por outro lado, se considerarmos nossas teorias como “descrigoes diretas da realidade como cla 6”, entio inevitavel- mente trataremos essas diferencas e distingdes como divisdes, 0 que implica existéncia separada dos varios termos elementares que aparecem na teoria. Seremos, assim, levados a ilusio de que 0 mundo 6 efetivamente constituide de fragmentos separados e, 26 como jé foi indicado, isto faré com que atuemos de maneira tal que, de fato, produziremos a propria fragmentagio subentendi- da em nossa atitude em relagio a teoria. E importante dar uma certa énfase a este ponto. Por exemplo, alpuns poderiam dizer: "A fragmentagio de cidades, religides, sistemas politicos, conflitos na forma de guerras, vio- lencia geral, fratricidio, etc., sio a realidade. A totalidade & apenas um ideal, em dirego ao qual talvez devamos nos em- har.” Mas nao é isto 0 que esté sendo dito aqui. Antes, 0 que deve ser dito é que a totalidade & aquilo que € real, e que a fragmentacao é a resposta desse todo 4 acdo do homem, guia- do pela percepcao iluséria, que é moldada pelo pensamento frag mentério. Em outras palavras, justamente porque a realidade ¢ um todo, 0 homem, com a sua abordagem fragmentéria, inevi- tavelmente serd atendido com uma resposta correspondente- mente fragmentéria, Portanto, 6 necessario que o ser humano dé atengio ao seu habito de pensamento fragmentario, que tenha consciéncia dele, podendo assim elimind-lo. Entéo, a abordagem da realidade pelo homem poder ser total, e a resposta também © sera, Entretanto, para que isso acontega, é erucial que 0 ser hu- mano esteja consciente da atividade de seu pensamento como tal; isto é, como uma forma de insight, um modo de ver, endo como uma “copia verdadcira da realidade como ela 6”. Esté claro que podemos ter imimeros tipos diferentes de insights. O qae se requer ndo é uma infegracio do pensamento, ou uma espécie de unidade imposta, pois qualquer ponto de vis- ta imposto seria apenas um outro fragmento. Em vez disso, to- dos os nossos diferentes modos de pensar devem ser conside- rados como diferentes modos de olhar para a realidade una, cada um acompanhado de um certo dominio onde ele é nitido e adequado. Pode-se de fato comparar uma teoria com uma de- terminada visio de algum objeto. Cada visio di apenas uma aparéncia do objeto em algum aspecio. O objeto todo nao é per- cebido em nenhuma visio mas, em vez disso, 6 apreendido s6 implicitamente como aquela realidade tnica que € mostrada em todas essas visdes. Quando entendermos plenamente que as nos- sas teorias também funcionam desse modo, entio nao cairemos 27 no hibito de ver a realidade © de atuar na diregao dela como se cla fosse constituida de fragmentos separadamente existentes, © que corresponde ao modo como ela se apresenta ao nosso pen- samento ¢ 4 nossa imaginacdo no momento em que tomamos nossas tcorias por “descrigdes diretas da realidade como cla 6” Além de uma consciéncia geral do papel das teorias con- forme acima indicado, & necessdriv dar especial atengao aquelas teorias que contribuem para a expressdo de nossas visées de mundo pessoais. Isto porque, em grande parte, & nessas visdes de mundo que nossas nogdes gerais sobre a natureza da reali dade e sobre a relagao entre 0 pensamento © a realidade sio implicita ou explicitamente formadas. Quanto a isto, as teorias gerais da fisica desempenham um importante papel, pois con- sidera-se que tratam da natureza universal da matéria da qual tudo ¢ constituido, e do espaco ¢ do tempo em termos dos quais todo movimento material é descrito. Consideremos, por exemplo, a tcoria atomica, proposta pela primeira vez por Demécrito ha mais de 2.000 anos. Em esséncia, essa teoria nos leva a ver 0 mundo como constituide por éto- mos que se movem no vazio. As formas ¢ caracteristicas sem- Pre cambiantes dos objetos de grande escala sv vistos agora como resultados de arranjos cambiantes dos dtomos em movi- mento. Evidentemente, essa visdo foi, de certa forma, um im- portante modo de percepcao da totalidade, pois possibilitou aos homens entender a enorme variedade de todo o mundo em ter- mos dos movimentos de um tinico conjunto de componentes basicos, através de um tinico vazio que permeia toda a existén- cia. No entanto, & medida que a teoria atomica se desenvolveu, acabou por se tornar um grande apoio para uma abordagem fragmentéria da realidade. Pois deixou de ser considerada um insight, uma maneira de olhar, e os homens passaram a ver como uma verdade absoluta a nogdo de que o todo da reali- dade nao é, efetivamente, constitufdo de outra coisa a nao ser “blocos de construcdo atémicos’, todos trabalhando juntos mais ‘ou menos mecanicamente. Evidentemente, tomar qualquer teoria fisica como uma ver- dade absoluta € algo que deve tender a fixar as formas gerais do pensamento em isica e, assim, contriburir para a fragmen- 28 tacdo. Afora isso, porém, 0 conteido especitico da teoria atémi- ca era tal que se mostrou especialmente capaz de conduzir a fragmentacao, pois estava implicito nesse contetido que todo © mundo da natureza, juntamente com o ser humano, inclusive © seu cérebro, o cu sistema nervose, a sua mente, cte., em princi- pio poderia ser entendido completamente em termos de estru- turas ¢ fungdes de agregados de dtomos existentes separada- mente. A confirmacdo dessa visio atémica por experimentos fei- tos pelo homem e por sa experiéncia em geral foi, é claro, to- mada como prova da exatidao e, som diivida, da verdade uni- versal dessa nogio. Assim, quase que todo o peso da ciéncia foi colocado em apoio a uma abordagem fragmentaria da reali- dade. £ importante assinalar, no cntanto, que (como geralmente acontece nesses casos) a confirmagio experimental do ponto de vista atOmico é limitada. De fato, nos dominios abarcados pela teoria quantica ¢ pela relatividade, a nogio de atomismo leva a questdes confusas, que indicam a necessidade de novas formas de insight, tao diferentes do atomismo como este o € de teorias © precederam. we ‘Assim, a tcoria quantica mostra que a tentativa de descre ver e acompanhar uma particula atémica com preciso minuciosa tem pouco significado. (Mais detalhes sobre este ponto sto da- dos no Capitulo 5.) A nogéo de uma trajetéria atomica tem apenas um limitado campo de aplicabilidade. Numa descricao mais detalhada vé-se que o dtomo, sob muitos aspectos, com- porta-se tanto como uma onda quanto como uma particula. Talvez poss ser melhor considerado uma nuvem mal definida, dependendo, em sua forma particular, de todo 0 ambiente, ¢ in- clusive do instrumento de observacéo. Logo, nao se pode mais manter a divisio entre o observador ¢ 0 observado (que esté implicita na viso atomistica que vé cada um deles como agre- gados separados de atomos). Em vez disso, tanto o obscrvador como o observado s4o aspectos que se fundem e se interpene- tram, de uma realidade total, que ¢ indivisivel ¢ nao-analisavel. ‘A relatividade nos leva a um modo de olhar para o mun- do semelhante ao acima descrito em certos aspectos fundamen- tais (ver Capitulo 5 para mais detathes sobre este ponto). A par- 29 tir do fato de que, do ponto de vista de Einstein, no 6 pos- sivel nenhum sinal mais répido que a Iuz, segue-se 0 colapso do conceito de corpo rigido. Mas este conccito € crucial na teo- ria atOmica classica, pois nela os constituintes fundamentais do universo tém de ser pequenos objetos indivisiveis, ¢ isto s6 é possivel se cada parte de um tal objeto estiver rigidamente liga da a todas as outras partes. Numa teoria relativistica, 6 neces- sério abandonar por completo a nogdo de que 0 mundo é cons- tituido de objetos ou “blocos de construgao” fundamentais. Em vez disso, 6 preciso ver 0 mundo em termos de fluxo universal de eventos © processos. Assim, como ¢ indicado por A e B na Figura 1.1, em vez de pensar numa particula, deve-se pensar num “tubo de universo” Figura 1.1 Esse tubo de universo representa um proceso infinitamente complexo de uma estrutura em movimento ¢ em desenvolvimen- to centrada numa regio indicada pelos limites do tubo. Toda- via, mesmo fora dele, cada “particula” possui um campo que se estende através do espace ¢ se funde com os campos de ou- tras partfculas. Uma imagem mais vivida do tipo de coisa que se entende por isso é obtida considerando-se as formas de onda como es- truturas cm vortice num curso fluente. Conforme 6 mostrado na Figura 1.2, dois vortices correspondem a padrées estiveis de fluxo do fluido, centrados aproximadamente em A e em B. Evidentemente, esses vortices devem ser considerados como 30 abstracies, claboradas para se destacarem em nossa percepgio + meio do pensamento. Na verdade, ¢ claro, os dois padrOes ee fluxo abstraidos se fundem ¢ se unem, num tinico movimento total do curso fluente. Ndo ha nenhuma divisio bem-definida entre cles, nem devem ser considerados como entidades exis- tentes separadamente ou independentemente, Figura 1.2 A teoria da relatividade requer esse tipo de modo de olhar para as particulas atOmicas, as quais constituem toda a matéria, incluindo, 6 claro, os seres humanos, com seus cérebros, siste- mas nervoscs € instrumentos de observacdo que constrairam ¢ que utilizam nos laboratérios. Assim, abordando a questéo por diferentes caminhos, a relatividade e a teoria quantica concor- dam no fato de que ambas implicam a necessidade de olhar para 9 mundo como um todo indiviso, no qual todas as partes do uni- verso, incluindo 0 observador e seus instrumentos, se fundem ¢ sé unem muma totalidade. Nesta totalidade, a forma atomisti- ca de insight & uma simplificagio e uma abstragdo, validas so- mente em alguns contextos limitados. ‘A nova forma de insight talvez. possa ser melhor chamada de Totalidade Indivisa em Movimento Fluente, Esta visao implica que esse fluxo, em certo sentido, é anterior ao das “coisas” que podem ser vistas formando-se ¢ dissolvendo-se nesse fluxo. Pode-se talvez ilustrar © que se quer dizer com isso considerando-se 0 “fluxo da consciéncia”, Esta fluidez da conscitncia ndo é definivel de manei- ta precisa, sendo, porém, evidentemente anterior as formas definiveis dos pensamentos ¢ das idéias que podem ser vistos for- mando-se e dissolvendo-se no fluxo, como pequenes encrespamen- tos ou ondulagdes, ondas e vértices num curso fluente. Como 31 acontece com tais padrdes de movimento numa torrente, alguns Pensamentos reaparecem ¢ persistem de um modo mais ou me- nos estivel, enquanto que outros sio evanescentes. . A proposta para uma nova forma geral de insight & que toda matéria scja dessa natureza: isto é, hd um fluxo universal que nao pode ser definido explicitamente, mas que s6 pode ser conhecido implicitamente, conforme indicado pelas formas e con- figuracées explicitamente definiveis, algumas estaveis e outras instaveis, que podem ser abstraidas do fluxo universal. Neste, mente ¢ matéria ndo séo substancias separadas e sim aspectos diferentes de um movimento total ¢ ininterrupto. Deste modo, estamos aptos a olhar para todos os aspectos da existéncia como nao separados uns dos outros e, desse modo, podemos por um fim na fragmentagio implicita na atitude usual em relagio ao ponto de vista atémico, que nos leva a separar tudo de tudo de maneira consumada. No entanto, podemos incluir aquele as- ecto do atomismo que ainda proporciona uma forma valida de insight. Apesar da totalidade indivisa no movimento fluente, 05 varios padrdes que dele podem ser abstraidos possuem uma cer- ta autonomia e¢ estabilidade relativas que, de fato, sio forneci das pela Ici universal do movimento fluente. Agora, porém, te- mos em mente, de forma nitida, os limites dessa autonomia ¢ estabilidade Assim, podemos, em contextos especificos, adotar varias outras formas de insight que nos possibilitem simplificar certas coisas, tratando-as momentancamente, e para certos propésitos limitados, como se fossem auténomas ¢ estaveis, bem como, talvez, existentes separadamente. Porém, nao precisamos cair na armadilha de olharmos para nés mesmos e para o mundo des- sa mancira. Portanto, nosso pensamento nao precisa mais levar A ilusdo de que, efetivamente, a realidade ¢ de natureza frag- mentéria, ¢ a5 agies fragmentarias correspondentes que surgem da percepsao nublada por uma tal ilusio. © ponto de vista discutido acima é similar, em certos as- pectos fundamentais, aqucle sustentado por alguns dos gregos antigos. Esta similaridade pode ser ressaltada ao se considerar a nogdo de causalidade em Arisiételes. O fildsofo distinguia qua- tro tipos de causas: 32 Material Eficiente Formal Final Um bom exemplo em termos do qual se pode entender essa distingdo 6 obtido quando se considera algo vivo, como uma dr- yore ou um animal. A causa material é entéo apenas a matéria, em que operam todas as outras causas, e a partir da qual a coi- sa é constituida. Assim, no caso de uma planta, a causa mate- rial é 0 solo, o ar, a Agua e a luz solar, que constituem a subs- tancia da planta, A causa eficiente é alguma ago, externa a coisa analisada, que permite 0 encaminhamento de todo 0 processo. No caso de uma arvore, por exemplo, o plantio da semente pode ser tomado como a causa eficiente. E de crucial importancia, neste contexto, entender qual o significado de causa formal. Infelizmente, em sua conotagio moderna, a palavra “formal” tende a se referir a uma forma ex: terior no muito significativa (p. ex., como em "roupa formal ou “uma mera formalidade”). Todavia, na antiga filosofia gre- ga, a palavra forma significava, em primeiro lugar, uma atividade formadora interna que & a causa do crescimento das coisas, bem ‘como do desenvolvimento e da diferenciagao das suas varias for- mas essenciais. Por exemplo, no caso de um carvalho, 0 que se indica pelo termo “causa formal” é 0 movimento interno total da seiva, do crescimento das células, da articulagio dos ramos, folhas, etc., que ¢ caracteristico desse tipo de arvore e diferente do que occrre nos outros tipos. Numa linguagem mais moder- na, isto seria melhor descrito como causa formativa, para enfati- zat que 0 que esta envolvido nao 6 uma mera forma imposta de fora, mas, antes, wm movimento interno ordenado ¢ estruturado, essencial para aquilo que as coisas sao. Evidertemente, qualquer causa formativa deve ter um fim ou produto que ao menos esteja implicito. Assim, nao é possivel referir-se ao movimento interno da bolota dando origem a um carvalho, sem se referir simultaneamente ao carvalho que vai re- sultar deste movimento. Portanto, a causa formativa sempre im- plica causa final. E claro que também conhecemos a causa final como desig- 33 nio, mantido em mente por meio do pensamento (nogdo esta es- tendida a Deus, que era considerado como tendo criado 0 uni- verso segundo um grande designio). Eniretanto, 0 designio & apenas um caso especial de causa final. Por exemplo, os homens geralmente almejam determinados fins em seus pensamentos, mas 0 que efetivamente costuma emergir de suas acdes 6, em geral, algo diferente daquilo que estava em scus designios, algo que estava, porém, implicito no que faziam, embora ndo conscien- temente percebido pelos quc tomaram parte. Na visdo antiga, considerava-se a nogdo de causa formati- va como tendo, essencialmente, a mesma natureza tanto para a mente como para a vida e para 0 cosmo como um todo. De fato, Aristételes via 0 universo como um organismo tinico onde cada parte cresce e se desenvolve em sua relagdo com o todo, ¢ onde ela ocupa seu proprio lugar e sua propria funcao. Com respeito 4 mente, podemos entender esse tipo de nogdo em ter- mos mais modernos voltando nossa atengéo para o movimento fluente da consciéncia. Conforme indicado anteriormente, pode- se, em primeiro lugar, discernir varios padrdes de pensamento esse fluxo. Estes seguem-se um ao outro de modo relativamente mecanico, mediante associacdes determinadas por habito e con- dicionamento. Evidentemente, tais mudangas associativas so externas 2 estrutura interna dos pensamentos cm questio, de modo que essas mudangas atuam como uma série de causas efi- cientes. Contudo, ver a razo de algo nao é uma atividade mecanica dessa natureza: em vez disso, tem-se a consciéncia de cada aspecto conforme assimilado num tinico todo, cujas partes estéo todas interiormente relacionadas (assim como, por exem- plo, os érgaos do corpo). Aqui é preciso enfatizar que 0 ato da tazo & essencialmente um tipo de percepcdo intermediado pela mente, em certos aspectos semelhante percepgio artistica, ¢ ndo apenas a repeticdo associativa de razOes ja conhecidas. Assim, pode'se ficar perplexo com um amplo espectra de fatores, coi- a8 que nao se ajustam, até que de repente ha um lampcjo de compreensio e, entdo, vé-se como todos esses fatores se rela- cionam como aspectos de uma tolalidade (considere, p. ex,, 0 insight de Newton sobre a gravitacdo universal). Nao se pode, de maneira adequada, fazer uma anélise ou descrigéo detalha- 34 da de tais atos de percepgao, Em vez disso, eles devem ser con- ‘siderados como aspectos da atividade formadora da mente. Uma determinada estrutura de conceitos & entdo o produto dessa ai vidade, e esses produtos estdo ligados pela série de causas et cientes que operam no pensamento associativo comum — e, como foi assinalado anteriormente, nesta visio a atividade for- madora é considerada tio fundamental na natureza como o € na mente, de modo que as formas-produtos na natureza tam- bém estdo ligadas por causas cficientes. Evidenemente, a nogio de causa formativa é relevante para a visdo da totalidade indivisa no movimento fluente, 0 que se constatou estar implicado nos modernos desenvolvimentos da fisica, notavelmente na tcoria da relatividade € na teoria quan- tica. Logo, como tem sido assinalado, cada estrutura relativa- mente autonoma e estvel (p. ex., uma particula atémica) deve ser entendica ndo como algo que existe de modo indepéndente ¢ permanente, mas, antes, como um produto formado no movi- mento fluente total ¢ que finalmente voltard a dissolver-se nesse movimento. Como ele se forma e mantém a si proprio depende, entio, do seu lugar e da sua funcao no todo. Portanto, vemos que certos desenvolvimnentos na fisica moderna implicam um tipo de insight da natureza que esti relacionado as nogoes de causa formativa e de causa final, essencialmente semelhante aquelas maneiras de olhar comuns na antigitidade. No entanto, na maior parte dos trabalhos que hoje esto sen- do feitos em fisica, as nogdes de causa formativa ¢ de causa final nao so consideradas de importincia fundamental. Em vez disso, geralmente ainda se coneebe a lei como um sistema autodetermi- nado de causas eficientes, operando num conjunto final de consti- tuintes materiais do universo (p. ex., as particulas elementares su- jeitas as forcas de interacdo entre elas). Nao se considera que es- tes constituintes sejam formados num processo global, e sendo as- sim eles nao sio considerados como orgios adaptados ao seu lu- gar e 2 sua fungio no todo (isto é, aos fins a que serviriam nesse todo). Antes, tendem a ser concebidos como elementos mecanicos de natureza fixa, existentes separadamente. ‘A tendéncia predominante na fisica modema contrasta forte- mente com qualquer espécie de visio que da primazia a ati- 35 vidade formativa na totalidade indivisa do movimento fuente. De fato, aqueles aspectos da teoria da relatividade e da tooria quantica que sugerem a necessidade de uma tal visdo tendem a sor desenfatizados e, na verdade, pouco notados pela maioria dos fisicos, pois s4o vistos em grande parte como aspectos dos célculos mateméticos, e ndo como indicagées da natureza real das coisas. Quando, na fisica, se usa a linguagem e 0 modo de pensar informais, que inspiram a imaginagio e provocam o sen- timento do que é real e substancial, a’ maioria dos fisicos ainda fala © pensa, com uma total convicgdo da verdade, em termos da nogio atomistica tradicional de que o universo é constituido de particulas elementares que sio “os blocos de construgio bési- cos”, dos quais tudo é feito. Em outras ciéncias, tais como a bio- logia, a forca dessa conviccdo é ainda maior, pois entre os que trabalham nessas dreas h4 pouca consciéneia do carater revolu- ciondrio do progresso na fisica moderna. Por exemplo, os mo- dernos biélogos moleculares geralmente acreditam que a totali- dade da vida e da mente pode, em iiltima instancia, ser enten- dida em termos mais ou menos mecanicos, por meio de algum tipo de extens4o do trabalho que tem sido feito sobre a estra- tura e a funcgdo das moléculas de ADN. Umia tendéncia seme- Thante j4 comegou a dominar na psicologia. Chegamos, desse modo, a0 muito estranho resultado de que, no estudo da vida e da mente, que sio justamente os campos onde a causa for- mativa, atuando em movimento flucnte indiviso e ininterrupto, 6 mais evidente a experiéncia © 8 observacio, existe agora a mais forte das crengas na abordagem atomistica fragmentaria da realidade. E claro que a tendéncia, predominante na ciéncia, para pen- sar e perceber em termos de uma visio pessoal de mundo frag- mentiria faz parte de um movimento maior que se tem desen- volvido ao longo das eras e que hoje permeia quase toda a nossa sociedade; mas, por sua vez, um tal modo de pensar e obscr- var, presente na pesquisa cientifica, tende, muito acentuada- mente, a reforcar a abordagem geral fragmentaria, pois di aos homens um quadro do mundo todo como nao sendo constitui- do de outra coisa sendo um agregado de “blocos de construgio atémicos” existentes separadamente, e fornece evidéncias expe- 36 rimentais de onde se tira a conclusdo de que esta visio é necessdria @ inevitavel. Desse modo, as pessoas sao levadas a sentir que a fragmentac3o nada mais ¢ que uma expressdo da “maneira como tudo realmente 6", ¢ que qualquer outra coisa 6 impossivel. Portanto, hd muito pouca disposig’o para buscar evidéncias em contrario. Na verdade, como ja se indicou, mes- mo quando surgem tais evidéncias, a exemplo da fisica moder- na, a tendéncia geral 6 no sentido de minimizar sua importan- cia ou mesmo ignoré-la por completo. Poder-se-ia até dizer que, de fato, no atual estado em que se acha a sociedade, e no modo atual de ensinar ciéncia, que é uma manifestagao desse estado da sociedad, uma espécic de preconceito a favor de uma visio pessoal de mundo fragmentéria 6 fomentado e transmitido (até certo ponto explicita ¢ conscicntemente, mas principalmente de uma mancira implicita e inconsciente). Porém, como jé foi indicado, os homens que sio guiados por uma tal visio de mundo fragmentiria ndo podem, a longo prazo, fazer outra coisa a ndo ser tentar, cm suas acées, que- brar a si préprios e ao mundo em pedagos, em correspondén- cia com 0 sea modo geral de pensar. Uma vez que, em primei- To lugar, a fraginentagdo & uma tentativa de estender a andlise do mundo em partes separadas além do dominio onde fazé-lo 6 adequado, trata-se, na verdade, de uma tentativa de dividir aquilo que na realidade 6 indivisivel. Na proxima etapa, uma tal tentativa também nos levard a tentar unir o que na realidade nio pode ser unido. Isto pode ser reconhecido de maneira par- ticularmente clara em termos de agrupamentos de pessoas na sociedade (grupos politicos, econdmicos, religiosos, ete.). O proprio ato de formar um tal grupo tende a criar um sentido de divisdo e de separagdo dos membros em relacdo ao resto do mundo, mas, uma vez que eles esto, na realidade, ligados com 0 todo, isto ndo pode funcionar. Cada membro tem, de fato, uma conexdo algo diferente, e mais cedo ou mais tarde esta diferenca se revela como uma diferenga entre ele ¢ 05 outros membros do grupo. Toda vez que os homens separam-se do todo da so- ciedade e tertam unir-se por identificagdo dentro de um grupo, 6 claro que este acaba por manifestar disputas internas, o que eva ao colapso de sua unidade. Da mesma maneira, quando os 37 homens, na pratica de seu trabatho tGenico, tentam separar algum aspecto da natureza, poder-se-4 desenvolver um estado seme- Ihante de contradicao ¢ desunido. O mesmo tipo de coisa acon- tecerd ao individuo se ele tentar separar-se da sociedade. A ver- dadeira unidade no individuo e entre 0 homem e a natureza, bem como entre o homem e o homem, s6 pode surgir numa forma de aco que nao tente fragmentar o todo da realidade. Nosso modo fragmentério de pensar, olhar e agir tem, evidentemente, implicagdes em cada aspecto da vida humana. isto é, por uma curiosa ironia, a fragmentacdo parece ser a th a coisa universal na nossa vida, que funciona através do todo sem fronteiras ou limites. Isto ocorre porque as raizes da frag- mentagio sio muito profundas e esto muito difundidas. Como j foi assinalado, tentamos dividir 0 que é uno ¢ indivisivel, isto implica que na prdxima etapa tentaremos identificar 0 que é diferente. Portanto, a fragmentacdo 6, em esséncia, uma confusdo em toro da questo da diferenca e da semelhanga (ou estado de unidade, one-ness), mas a clara percepcdo dessas categorias é necesséria em cada fase da vida. Estar confuso sobre 0 que é dife- rente ¢ 0 que ndo é, é estar confuso sobre tudo. Logo, no & aciden- tal o fato de que nossa forma fragmentaria de pensamento es- teja levando a um espectro tio amplo de crises sociais, politi- cas, econdmicas, ecologicas, psicolégicas, ete., no individuo e na sociedade como um todo. Um tal modo de pensar implica um interminavel desenvolvimento de conflitos cadticos e sem senti- do, onde as energias de todos tendem a se perder em movi- mentos antagénicos ou em desentendimentos. Evidentemente, é importante e, sem diivida, de maxima urgéncia desfazer essa confusio profunda e difundida que pe- netra toda nossa vida, De que adiantam tentativas de ago so- cial, politica, econémica ou de qualquer outro tipo, se a mente esté presa num movimento confuso em que diferencia 0 que ndo é diferente ¢ identifica o que nao é idéntico? Uma tal agao serd, na melhor das hipsteses, ineficaz ¢, na pior, destrutiva. Nem tampouco seré util tentar impor algum tipo fixo de Principio “holistico” integrador ou unificador sobre a nossa visio pessoal de mundo, pois, como indicamos antes, qualquer tipo 38 de visio pessoal de mundo fixa implica que nao estamos mais tratando nossas teorias como insights ou maneiras de othar, mas, antes, como “conhecimento absolutamente verdadeiro das coisas como elas realmente sio”. Assim, quer gostemos, quer nao, as distingdes, que se acham inevitavelmente presentes em qualquer teoria, mesmo “holistica”, serao falsamente tratadas como di- visbes, acarretando a existéncia separada dos termos que sao as- sim distinguidos (de modo que, correspondentemente, 0 que ndo for distinguido desta mancira seré falsamente tratado como ab- solutamente idéntico). Temos, pois, de ficar alertas para considerar scriamente atentar com cuidado para o fato de que nossas teorias ndo sao ‘“descrigbes da realidade como ela 6", mas, sim, formas de insight sempre em transformagdo, que podem indicar ou apontar uma realidade implicita ¢ nao descritivel ou especificdvel em sua to- talidade. Esta necessidade em estar assim atento vale até para © que esta sendo dito aqui neste capitulo, no sentido de que no deve ser visto como “conhecimento absolutamente verda- deiro da natureza das fragmentacoes c da totalidade”. Em vez disso, 6 também uma teoria que proporciona um insight sobre essa questio. Cabe ao leitor ver por si mesmo se 0 insight & claro ou obscuro, e quais s4o os limites de sua validade. Entao, 0 que pode ser feito para por fim ao estado pre- dominante de fragmentagéo? A primeira vista, esta pode pare- cer uma questio razoavel, mas um exame mais cuidadoso nos leva a perguntar se de fato o ¢, pois pode-se verificar que essa questo tem pressuposigSes que nao sao claras. Falando em termos gerais, se alguém pergunta como resol- ver um problema técnico, por exemplo, pressupée-se que, em- bora comecemos por ndo saber a resposta, nossas mentes, no entanto, estéo suficientemente hicidas para descobrir uma res- posta, ou pelo menos para reconhecer a descoberta de uma res- posta por parte de outrem. Mas, se todo 0 nosso modo de pen- sar estiver impregnado pela fragmentagao, isto implica que néo somos capazes de fazé-lo, pois a percepgio fragmentaria 6, em esséncia, um hdbito de confusio, em grande medida inconsciente, em torno da questao do que é diferente e do que ndo é. Por- tanto, no préprio ato em que tentamos descobrir 0 que fazer a 39 respeito da fragmentacao, continuaremos este habito ¢, assim, tenderemos a introduzir ainda outras formas de fragmentacao. Isto nao significa necessariamente, é claro, que ndo ha ne- nhuma saida, mas sim que temos de dar uma pausa, de modo a nao agirmos de acorde com os nossos habituais modos de pensar fragmentérios, enquanto procuramos solugdes que estejam a0 nos- so alcance. A questéo da fragmentagdo ¢ da totalidade 6 sutil e dificil, mais ainda do que aquelas que levam a descobertas funda- mentalmente novas na ciéncia. Perguntar como acabar com a frag- mentagio ¢ esperar uma resposta em alguns minutos faz ainda menos sentido do que indagar como desenvolver uma teoria tio nova quanto foi a de Einstein na época em que a claborava c es- perar que sejamos informados quanto ao que fazer em termos de algum programa expresso em frmulas ou receitas. Um dos pontos mais dificeis e sutis sobre essa questo & justamente o de esclarecer o que se entende pela relagdo entre ‘© contetido do pensamento ¢ 0 processo do pensar que produz esse contetido, Uma das principais fontes de fragmentacao é, sem diivida, a pressuposigao geralmente aceita de que o processo do pensamento € suficientemente separado e indcpendente de seu contetido para nos permitir, em geral, a execugdo de um pen- sar claro, ordenado e racional, que pode julgar adequadamente este contetido como correto ou incorreto, racional ou irracional, fragmentirio ou total, etc. Com efeito, como se tem visto, a frag- mentagio envolvida numa visio pessoal de nvundo nao est apenas no contetido do pensamento, mas na atividade geral da pessoa que “faz 0 pensainento”, encontrando-se, assim, tanto no Proceso do ato de pensar como no contetido. De fato, contet- do e processo nao sio duas coisas que existem separadamente, mas, antes, constituem dois aspectos da visio de um movimen- to total. Logo, contetido fragmentario ¢ processo fragmentario tém de desaparecer juntos. Precisamos tratar aqui da unidade* do processo do pensa- mento e do seu contetido, semelhante, em aspectos fundamen- tais, 4 unidade* do observador e do observado: este fato tem sido discutido em relagéo 4 tcoria da relatividade ¢ a teoria * One-ness, no original, (N. do T.) 40 quantica. Questdes desta natureza nao podem ser conveniente- mente respondidas enquanto estivermos presos, consciente ou inconscientemente a um modo de pensar que tenta analisar a si proprio cm termos de uma suposta separagio entre o proceso do pensamento ¢ 0 conteiido deste, que 6 seu produto. Ao acei- tarmos uma tal presungio, somos levados, na proxima etapa, a buscar alguma fantasia de ado por intermédio de causas efi- Gentes que poriam fim a fragmentagdo no contetido, enquanto que no processo efetivo do pensamento ela permaneceria intac- ta. E necessdrio, porém, apreender de alguma maneira a causa {formatioa global da fragmentagao, onde contetido e processo efe- tivo Sdo vistos juntos, em sua totalidade. Poder-se-ia considerar aqui a imagem de uma multidao tur- bulenta de vortices numa torrente. A estrutura e distribuicao dos vortices, qu2 constituem uma espécie de contetido da descrigdo do movimento, ndo estio separadas da atividade formativa do fluxo da torrente, que cria, mantém e finalmente dissolve a to- talidade das estruturas em vértice. Portanto, tentar eliminar os vortices sem mudar a atividade formativa da torrente seria, evidentemente, um absurdo. Assim que a nossa percepcdo € guiada, pelo insight adequado, para a significacao do movimen- to total, & claro que nao estaremos dispostos a tentar uma abor- dagem to fatil. Em vez disso, observaremos a situagéo como um todo e ficaremos atentos e alertas para nos instruirmos so- bre cla, ¢ portanto para descobrirmos qual seria realmente um tipo de acdo adequado, aplicdvel a esse todo, pondo, dessa ma- neira, fim a turbulenta estrutura de vortices. Analogamente, quando de fato apreendermos a verdade da unidade (one-ness) do proceso de pensamento que estivermos efetivamente reali- zando e do conteddo desse pensamento que é 0 produto desse proceso, entio um tal insight nos possibilitard observar, olhar € aprender a respeito do movimento total do pensamento e, assim, descobrir uma acdo que seja relevante em face desse todo, e que pord fim a “turbuléncia” do movimento que ¢ a esséncia da fragmeniacao em cada fase da vida _ E claro que esse aprendizado ¢ essa descoberta cxigirio uma cuidadosa atengdo e um arduo trabalho. Estamos prepara- dos para dedicar uma tal atenggo e um tal trabalho num amplo 4l espectro de dominios: cientifico, econdmico, sectal, politico, etc. Até agora, porém, poucos ou nenhum deles tém-se dedicado a criacdo de insights no processo do pensamento, de cuja claroza depende 0 valor de tudo o mais. Fundamentalmente, é necessario uma compreensio cada vez maior do extremo peri- g0 de se continuar com um proceso fragmentario de pensamen- to. Tal compreensio nos daria a possibilidade de averiguar como © pensamento de fato opera aquele sentido de urgéncia e de gnergia exigido para se it ao encontro da verdadeira magnitude das diiculdades com as quais a fragmentacdo nos poe hoje em Apéndice: Resumo da discusséo sobre as formas ocidentais e orientais de percepcéo da totalidade Nas primeiras fases do desenvolvimento da civilizagdo, as concepgées do homem eram essencialmente de totalidade em vez de fragmentacao. No Oriente (especialmente na india) essas con- cepgdes ainda sobrevivem, no sentido de que a filosofia e a re- ligido enfatizam a totalidade e sugerem a futilidade da andlise do mundo em partes. Por que, entdo, ndo abandonamos nossa abordagem ocidental fragmentéria e adotamos essas nocdes ori- entais, que incluem nao apenas uma visio pessoal de mundo que nega a divisio ¢ a fragmentagio, mas também técnicas de meditagio que levam nao-verbalmente todo 0 processo de operagdo mental aqucle estado trangililo de fluxo sercno e or- denado necessério para por um fim a fragmentacio, tanto no Proceso efetivo do pensamento quanto em seu contetido? Para responder a essa pergunta, € util comecar familiari- zando-nos com a diferenca entre as nogdes ocidental e oriental de medida. Ora, no Ocidente, a nocdo de medida desempenha desde a antigiidade, um papel fundamental na determinagio da visio geral pessoal de mundo, bem como na do modo de vida implicito nessa visdo. Assim, entre os gregos antigos, de quem derivamos uma grande parte de nossas nogdes fundamentais {por intermédio dos romanos), manter tudo em sua justa medi- 42 da era considerado um dos elementos essenciais para uma boa vida (as tragédias gregas, por excmplo, geralmente retratavam ‘9 sofrimente do homem como conseqiiéncia de ele ir além da medida apropriada das coisas). Com relacdo a isto, a medida ndo'era considerada em scu sentido moderno, como sendo, ba- sicamente, algum tipo de comparagio de um objeto com um pa- dro ou unidade exterior, Ao contrario, este tiltimo procedimen- to era visto como uma espécie de exposicio ou aparecimento ‘ou manifestagio exterior de uma “medida interna” mais profun- da, que desempenhava um papel essencial em todas as coisas. Quando uma coisa ia além da medida que Ihe era propria, isto nao significava meramente uma ndo-conformidade a um padrio exterior do que era certo; muito mais do que isto, significava uma desarmonia interior, de tal sorte que essa coisa estava fada- da a perder sua integridade e partir-se em fragmentos. Pode-se obter algum insight nesse modo de pensar se levarmos em con- sideragdo os antigos significados de certas palavras. Assim, a palavra latina mederi, que significa “curar” (@ raiz da moderna palavra “medicina”) deriva de uma raiz que significa “medir". Isto reflete a visio de que a satide fisica deve ser vista como 0 resultado de um estado de justa medida interna em todas as partes e processes do corpo. De modo semelhante, a palavra “moderagio", que descreve uma das primeiras nogdes antigas de virtude, baseia-se na mesma raiz, e isso mostra que tal vir- tude era considerada como o resultado de uma correta medida interna subjacente as acdes ¢ comportamentos sociais do homem. Por outro Jado, a palavra “meditagio”, derivada da mesma raiz, envolve uma espécie de pesagem, ponderagio, ou medigao de todo o processo do pensamento, que pode levar as atividades internas da mente a um estado de medida harmoniosa. Portan- to, fisica, social € mentalmente, a consciéncia da medida inter- na das coises era vista como a chave essencial para uma vida saudavel, feliz e harmoniosa. F claro que a medida deve ser expressa mais detalhada- mente por meio da proporgdo ou razio. Ratio € a palavra latina da qual deriva nossa moderna palavra “razo”. Na concepcio antiga, a razdo é vista como insight numa totalidade de ratio ou de proporgées, considerada interiormente pertinente a propria 43 natureza das coisas (¢ ndo s6 cxteriormente como uma forma de comparagéo com um padrio ou unidade). Evidentemente, essa ratio ndo 6, necessariamente, uma mera proporgéo numéri- ca (embora, é claro, inclua tal proporgio). Mais precisamente, é em geral um tipo qualitativo de proporgio ou relagio univer- sal. Quando Newton teve o insight da gravitagio universal, o que cle viu pode ser expresso deste modo: “Assim como a magi cai, 0 mesmo acontece com a Lua ¢, de fato, com todas as coisas. Para mostrar a forma da ratio ainda mais explicitamente, pode- se escrever: A:B2C:DsE:F onde A e B representam sucessivas posigdes da maga em suces- sivos momentos do tempo, Ce D, as posigdes da Lua, e Ee F as de qualquer outro objeto. Toda vez que encontramos um motivo tedrico para algu- ma coisa, estamos exemplificando essa nogdo de ratio, no senti- do de sugerir que, assim como os varios aspectos esto relacio- nados em nossa idéia, também o estio na coisa sobre a qual versa a idéia. A razio essencial ou ratio de uma coisa 6 entio a totalidade das proporcées internas em sua cstrutura ¢ no pro- cesso em que ela se forma, mantém a si prépria e finalmente se dissolve. Nessa visio, entender tal ratio é entender o “ser mais intimo” dessa coisa Infere-se, portanto, que a medida 6 uma forma de insight na esséncia de todas as coisas, e que a percepcdo do homem, soguindo os caminhos indicados por tal insight, sera clara, reali- zando assim, geralmente, uma aco ordenada e uma vida har- moniosa. Com relagio a isto, é titil lembrar as nogdes dos gregos antigos sobre medida na mtisica ¢ nas artes visuais. Essas nogdes enfatizavam que o conhecimento das medidas cra uma chave para © entendimento da harmonia.na musica (p. ex. a medida como ritmo, como justa proporcao na intensidade do som, como justa proporgdo na tonalidade, etc.). Da mesma mancira, nas ar- tes visuais, a justa medida era vista como essencial 4 harmonia © a beleza totais (p. ex., considere a “Proporgdo Aurea”, ou seja, a média e extrema razdo). Tudo isso indica 0 quanto a nocdo 44 de medida fei além da nogio de comparagdo com um padrao externo, apontando para um tipo universal de ratio ou proporgio interna, percebida tanto pelos scntides como pela mente. Naturalmente, 2 medida que o tempo passava, essa nogio de medica aos poucos comegou a mudar, a perder sua sutileza ¢ tor- nar-se relatiyamente grosscira e mecanica. E provavel que isso tenha ocorrido porque a noglo humana tornou-se cada vez mais rotineira ¢ habitual, tanto com relacdo a sua exibigio externa e me- didas tomadas por comparagio com uma unidade externa como com relaio a0 seu significado interno, enquanto ratio universal aplicavel a satide fisica, 4 ordem social ¢ & harmonia mental. Os homens comegaram a aprender essas nogies de medida de ma- neira mecénica, conformando-se aos ensinamentos de seus antepas- sados ou de scus mestres, ¢ ndo de modo criativo, por meio de um sentimento ¢ uma compreensdo intimos do significado mais profundo da ratio ou proporgdo sobre a qual estavam aprenden- do. Dessa mancira, gradualmente, a medida passou a ser ensina- da como uma espécic de regra que devia ser imposta a partir de fora sobre o ser humano, que, por sua vez, impunha a medida correspondente, nos niveis fisico, social e mental, em cada contex- to em que estivesse trabalhando. Como resultado, as nogées: pre dominantes de medida nao foram mais vistas como formas de in sight. Em vez disso, afiguravam-se como “verdades absolutas so- bre a realidade como cla 6”, que parecia aos homens uma coisa que cles sempre conheceram, ¢ cuja origem era, com freqiiéncia, mitologicamente explicada como injungées obrigatérias dos Deuses. Haveria perigo ¢ haveria maldade em questioné-las. O pensamen- to sobre a madida tendia assim a cair principalmente no dominio do habito inconsciente ¢, como resultado, a5 formas induzidas na percepcio por esse pensamento passaram entdo a ser vistas como Tealidades objetivas diretamente observadas, que cram essencial- mente independentes de como foram pensadas. Mesmo na época dos gregos antigos, este processo tinha per- corrico um longo caminho e, conforme iam percebendo isso, 05 homens comegaram a questionar a nogdo de medida. Assim, Pro- tagoras disse: “O homem 6 a modida de todas as coisas”, enfati- zando desse modo que a medida ndo é uma realidade exterior aos homens, existindo independentemente dele. Porém, muitos dos que 45 tinham 0 hébito de olhar para tudo externamente também aplica- ram esse modo de observagdo Aquilo que Protagoras dissera. Logo, concluiram que a medida era uma coisa arbitraria, © sujeita a es- colha ou ao gosto caprichoso de cada individuo. E claro que desse modo passaram por cima do fato de que a medida é uma forma de insight que tem de se ajustar a realidade global em que o homem vive, como 6 demonstrado pela clareza de percepgio e har- monia de acdo as quais cle leva. Um tal insight pode surgir ade- quadamente apenas quando um homem trabalha com seriedade ¢ honestidade, colocando cm primeiro lugar a verdade e a factuali- dade, em vez de seus préprios caprichos e desejos. 'A rigidificacdo e a objetivagio gerais da nogio de medida con- tinuaram a desenvolver-se até que, nos tempos modernos, a propria palavra “medida” veio a denotar principalmente um proceso de comparagio de algo com um padrdo externo. Embora o significa- do original ainda sobreviva em alguns contextos (p. ex,, na arte na matemitica), ele é geralmente considerado como tendo apenas uma espécie de importancia secundaria. Ora, no Oriente a nogio de medida ndo desempenhou um papel to fundamental. Em vez disso, na filosofia ai predominante, © imensurdvel (isto 6, aquilo que ndo pode ser nomeado, descrito ou entendido por meio de qualquer forma de razio) é conside- rado como a realidade fundamental. Assim, no sAnscrito (que tem uma origem comum ao grupo lingtiistico indo-europeu) ha uma palavra, matra, que significa “medida”, no sentido musical, ¢ que, evidentemente, esta proxima do grego “‘nelron”. Mas ha uma outra palavra, maya, obtida da mesma raiz, que quer dizer “ilusio”. Este & um ponto extraordinariamente significativo. Enquanto que para a sociedade ocidental, que deriva dos gregos, a medida, com tudo © que esta palavra implica, ¢ a propria esséncia da realidade, ou pelo menos a chave para esta essincia, no Oriente ela veio a ser usualmente considerada como sendo, num certo sentido, falsa e ‘enganosa. Nesta visio, toda a estrutura ¢ a ordem das formas, pro- porgées © ratios que se apresentam & percepgio e a razio* TA palivea Ta7S0, cm portugues, pode significar, entre outras coisas, tanto 2 eapactdale de raiothar, fl ie, Es como “a relagio entre duas Paced ida mesma especie”. Rio ingles, hi duas palavras dlistintas para esses ois significados. A primeira € reason e a segunda, ratio. (N. do T) 46 convencionais sio consideradas uma espécie de véu que cobre a verdadeira realidade. Esta no pode ser percebida pelos sentidos, e sobre ela nada se pode dizer ou pensar. Esta claro que os diferentes caminhos desenvolvides pelas duas sociedades ajustam-se as suas diferentes atitudes em relagdo a medida. Assim, no Ocidente, a sociedade enfatizou principal- mente 0 desenvolvimento da ciéncia e da tecnologia (dependentes da medida), ao passo que no Oriente a énfase recait: na religido € na filosofia (que esto dirigidas fundamentalmente para o imensuravel) Se essa questio for considerada cuidadosamente, constatar- se-4 que, num certo sentido, o Oriente tinha razdo em ver 0 imensurdvel como a realidade fundamental. Pois, como jé foi in- dicado, a medida é um insight criado pelo homem. Uma reali- dade que esteja além dele ¢ que o antecede n3o pode depender de um tal insight. De fato, a tentativa de supor que a medida existe antes do homem e independe dele leva, como jé foi vis- to, a “objetivacdo” do insight, de modo que este se torna rigido e incapaz de mudar, ocasionando eventualmente fragmentacao e confusio geral, conforme é descrito neste capitulo. Pode-se especular que, talvez, na antigitidade, os homens que eram suficientemente sdbios para entender que o imensu- ravel 6 a realidade fundamental, também o fossem para ver que a medida 6 insight num aspecto secundario e dependente, mas nao obstante necessirio, da realidade. Portanto, cles podem ter concordado com os gregos que 0 insight em relagdo a medida é capaz de ajudar e trazer ordem e harmonia para as nossas vi- das, ao mesmo tempo em que, enxergando talvez mais profun- damente, reconhecerem que ele ndo pode ser o que ha de mais fundamental a esse respeito. ‘© que cles podem ter dito além disso é que quando a me- dida € identificada com a propria esséncia da realidade, isto € ilusdo. Mas, entdo quando os homens aprenderam isso confor- mando-se com os ensinamentos da tradigao, seu significado tor- nou-se em grande parte habitual ¢ mecanico. Assim, tanto no Oriente como no Ocidente, 0 verdadeiro insight pode ter-se trans- formado em algo falso e enganoso devido ao procedimento de se aprender mecanicamente por conformidade aos ensinamentos 47 existentes, em vez de fazé-lo por meio de uma apreensio cria- tiva ¢ original dos insights implicitos em tais ensinamentos. Naturalmente, ¢ impossivel voltar a um estado de totali- dade que pode ter imperado antes que se desenvolvesse a rup- tura entre Oriente © Ocidente (pois sabemos pouco, se 6 que sa- bemos alguma coisa, sobre esse estado). E preciso, isto sim, aprender de novo, observar ¢ descobrir por nds mesmos o sig- nificado da totalidade. Evidentemente, precisamos estar cientes desses ensinamentos do passado, tanto ocidentais como orien- tais, mas imité-los ou tentar conformar-nos a eles seria de pou- ca valia. Pois, como tem sido apontado neste capitulo, desen- volver um novo insight sobre a fragmentagdo e a totalidade re- quer um trabalho criativo mais dificil do que aquele necessério para fazer novas descobertas fundamentais na ciéncia, ou obras de arte grandes ¢ originais. Nesse contexto, poder-se-ia dizer que alguém semelhante a Einstein em criatividade ndo é aquele que imita as idéias de Einstein, nem mesmo aquele que aplica essas idéias seguindo novos caminhos, mas sim 6 aquele que apren- de com Einstein ¢ depois prossegue fazendo algo original, que 6 capaz de assimilar 0 que é valido no trabalho de Einstein e, ainda, ir além desse trabalho, percorrendo caminhos qualitati- vamente novos. Portanto, o que temos de fazer com respeito a grande sabedoria do passado, tanto do Oriente como do Oci- dente, 6 assimilé-la ¢ prosseguir com percepgdes novas e origi- nais relacionadas A nossa atual condigao de vida. ‘Ao fazer isso, 6 importante que tenhamos uma clara visio do papel das técnicas, tais como as que séo utilizadas nas varias formas de meditagdo. De certo modo, técnicas de meditacao podem ser consideradas como medidas (agdes ordenadas pelo conhecimento € pela razdo) tomadas pelo homem para tentar al- cangar o imensurdvel, isto é, um estado mental em que ele deixa de sentir uma separacdo entre si proprio ¢ o todo da realidade. Mas, evidentemente, h4 uma contradicdo nessa nocdo, pois o imensuravel €, se é que de fato cle ¢ algo, justamente aquilo que nao pode ser colocado dentro de limites determinados pelo conhecimento e pela razdo do homem. Ora, em certos contextos especificéveis, as medicoes téeni- cas, entendidas no espirito apropriado, podem nos levar a fa- 48 zer coisas das quais podemos obter insight, se estivermos aten. tos. Tais possibilidades, porém, sio limitadas. Seria, pois, uma contradigao em termos pensar na formulagio de ténicas para fazer novas descobertas fundamentais na ciéncia ou obras de arte originais e criativas, pois a propria esstncia de tal agio ¢ uma certa liberdade relativamente 4 sua dependéncia de outras, que seriam necessirias como guias. Como pode essa liberdade ser transmitida numa atividade em que a conformidade ao conhe- cimento de uma outra pessoa ¢ a principal fonte de energia? E se as técnicas ndo s3o capazes de ensinar originalidade e cria~ tividade na arte e na ciéncia, como seria possivel a clas fazer- nos “descobrir o imensurdvel”? Com efeito, nao ha nada, direta e positivamente, que 0 hhomem possa fazer para entrar em contato com o imensuravel, pois este deve estar muitissimo além de qualquer coisa que 0 ser humano possa aprecnder com a mente ou executar com as mAos ou com seus instrumentos. O que o homem pode fazer & dar toda a sua atencdo ¢ dedicar todas as suas energias criati- vas para levar clareza e ordem a totalidade do campo de me- dida. E evidente que isso envolve nao apenas a exibigdo exter- na da medida em termos de unidades externas, mas também a imedida interna, como a satide do corpo, a moderag3o na agao, ea meditacao, que proporciona insight na medida do pensa- mento. Esta tltima é particularmente importante porque, como ja foi visto, a ilusio de que o self e 0 mundo estio divididos em fragmentos origina-se do tipo de pensamento que vai além de sua medida adequada e confunde seu proprio produto com a mesma realidade independent. Para por fim a essa ilusdo & necessitio 0 insight, ndo apenas no mundo como um todo, mas também no modo como opera o instrumento do pensamento, Tal insight implica um ato de percepgao original e criativo em to- dos 0s aspectes da vida, mental e fisica, tanto por meio dos sen- tidos como da mente; e talvez seja este o verdadciro significado da meditagao. Como vimos, a fragmentacdo tem sua origem, em esséncia, na fixagéo dos insights que formam a nossa visio pessoal glo- bal de mundo, o que dé continuidade, ininterruptamente, aos nossos modos habituais, geralmente mecanicos ¢ rotineiros, de 49 pensar sobre esses assuntos. Devido ao fato de a tealidade primdria situar-se além de qualquer coisa que possa estar con- tida nessas formas fixas de medida, esses insights devem final- mente deixar de ser apropriados, dando, assim, origem a varias formas de obscuridade ou confusio. Todavia, quando todo o campo de medida estiver aberto ao insight original e criativo, sem quaisquer limites ou bartciras fixados, entio nossas visdes globais de mundo deixardo de ser rigidas ¢ todo 0 campo de medida entraré em harmonia, enquanto a fragmentacao dentro dele chegard ao fim. Mas o insight original e criativo no ambito de todo 0 campo de medida é a ag4o do imensuravel. Pois quan- do esse insight ocorre, a fonte n3o pode estar no ambito de idéias j4 contidas no campo de medida, mas sim no imensuravel, que contém a causa formativa essencial de tudo 0 que acontece no campo de medida. O mensuravel ¢ o imensuravel estdo, assim, em harmonia e, de fato, pode-se ver que ndo passam de modos diferentes de considerar 0 todo uno e indiviso. Quando predomina uma tal harmonia, 0 homem pode, en- to, ndo somente ter um insight no significado da totalidade, mas, 0 que é muito mais importante, pode perceber a verdade desse insight em cada fase ¢ cada aspecto de sua vida. Como Krishnamurti ressaltou com grande vigor ¢ clarcza, isso exige que 0 homem dedique todas as suas cnergias criati- vas a investigagio de todo 0 campo de medida. Um tal em- prcendimento talvez seja extremamente dificil e arduo, mas uma vez que tudo gira em torno disso, € claro que vale a atengio séria e a maxima consideracdo de cada um de nés. 50

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