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Dossié A vida dos maracas: reflexdes em torno de um instrumento ritual entre os Pumé da Venezuela Gemma Orobitg Canal Universidade de Barceiona, Catalunba, Espanha orbits RESUMO: A partir da apresentagio de alguns episbdios da biografla de um ‘maraci e dos lagos que se estabelecem, no momento da pasiagem para a idade adult, entre cada homem pumé seu maraci, este texto apresenta diferentes ideias para se pensar as relagGes entre os seres humanos € alguns objetos. Neste caso, podemos falar de uma identidade entre um ser humano ¢ um maracé. Esta equivaléncia esté apoiada na ideia de que o corpo é um recipiente oco que deve ser fabricado ¢ sustentado para poder acolher as cessincias vitais que permitem viver, quer 0s homens, os animais, os deuses cspiritos, as plantas e mesmo os objetos. PALAVRAS-CHAVE: Maracis, seres humanos, seres vivos, pessoa, artefatos, ritual, Introdugio ‘Como a maior parte das sociedades de caradores-coletores, os Pumé possuem uma série de ‘objetos muizo limitada. Para além de cxstos, arcos ¢ flechas ou canoas, utiizades, respectivamente, para colheita, aca ou pesca, encontramos entre cles apenas alguns ebjetos Rev. Antropol. So Paulo, Online, $9(1}: 80-200 [abril 2016] 180 GEMMA OROBITG CANAL. A VIDA 00S MARACAS: REFLEXOESEM TORNO. cotidianos como pequenos teares para a fabricagao de redes ou raladores e peneiras para a mandioca, além de alguns objetos rituais. Dentre estes tltimos, 0 maracé € 0 mais valorizado, Cada homem pumé possui um maracé: Meu maracd, eu nio 0 empresto jamais, Ontem, eu o deixei com meu sobrinho Trifon para cantar 0 (ritual do) Tobd, Ele teve medo, é um maracé ‘muito poderoso. Ele me disse: apanhei fortemente durante toda 2 noite com ‘0 seu maracdl (Riecito, Junho de 1992) Assim filou um bomem pumé, Cesar Diaz, aguele que os Pumé reconhecem como possuindo a maior maestria no canto do ritual do Thé, assim como um extraordindtio conhecimento do mundo dos deuses. Cumpre dizer que de foi o mestre dz maioria dos homens adultos que cantam atualmente o Téhé. Através das suas palavras, descobrimos a ideia de uma estreita relagao entre um individuo € um objeto, mas igualmente a de uma intencionalidade prépria ao objeto. A partir das relagées estabelecidas entre cada homem e seu maracd, este texto mostra ahomologia entre um corpo humano ¢ um artefato, entre a construcio de um corpo ea de uum objeto. Mesmo que as operagses sejam hem diferentes, os cuidados dos eorpos da mie e da crianga durante a gravider € 0 nascimento e os processos téenicos seguides para a fabsicagéo do maracd compartilham de um mesmo objetivo: produzit um corpo (ikhard) pronto para acolher as esséncias vitais (pumcthd) que enimam todos os seres, mas que possuem, todavia, a necessidade destes corpos (ikhand) para se manifestarem, As relagSes entre os homens pumé € seus maracés permite igualmeme explorar a identidade © a imbricagio entre processos vitais € processos técaicos. Os corpos dos homens, assim como os maracés, deve ser constantemente sustentados. No momento da passagem a idade adulta — quando cada jovem pumé recebe um maracé — até a morte do individuo, os homens ¢ os maracis estabelecer relagées de responsabilidade e dependéncia miituas. Como se tece a relagéo de cada homem com seu maraci? Como ela se desenvolve 20 longo de toda a vida de um individuo pumé Por que os maracds podem agir sobre aqueles que os detém? Quando e por que o fare? Estas sfo algumas das questées que orientaram a escrita deste texto, tendo em conta esta dupla natureza do maract: a0 mesmo tempo prolongumento do individuo e agente animado instigador de situagées por veuss indesejadas por ele, Ainda que veridica, essa afirmagio deverd ser nuangada 20 levarmos também em Rev. Antropol. 0 Paulo, Online, 59(1}: 180-200 [abril2016] ie GEMMA OROBITG CANAL. A VIDA 00S MARACAS: REFLEXOESEM TORNO. consideragio isto 0 que podemos chamar da “vida dos maracis", isto é a biografia — do nascimento & morte — de cada um destes objetos (Kopytoff, 1986: 66). Ao incorporar cesta perspectiva, 0 que a principio fora pensado como uma relagéo entre um individuo € um objeto torna-se, de fato, uma relagio entre dois seres vivos ‘Tal relagio far todo sentido se nos ativermos & ideia pumé — presente entre outras culturas amerindias—de que no apenas os humanos ¢ os animais, mas também os deuses € ‘outros seres no humanos (indluindo os cbjetos) participam de uma nogio geral da pessoa ‘na qual aquilo o que, na tradigo ocidental, chama-se 0 “corpo humano” &, de fato, um ‘objeto material cuja vitalidade nio esté inscrita na matéria mesma, mas na esséncia que a anima ¢ que néo pode agir senéo através da sua mediagéo, Eduardo Viveitos de Castro aborda 2 questio do corpo amerindio nestes termos; ndo importa que corpo, inclusive 0 corpo humano, stja concebido como sendo o envelope exterior de uma alma, Em algumas Inguas indigenas, sublinha Viveitos de Castro, a palavra “corpo” possui, além disso, © sentido de “envelope” ou “caixa” e serve igualmente para nomear coisas como cestos, chapéus € casas... Todas essas coisas sio 0 “corpo-envelope” de qualquer outre (Viveiros de Castro, 2012: 133). Entre os Pumé, a “caixa”, a “carapaga” ou mesmo 0 “couro” sio ‘também algumas das imagens evocads para se referir ao corpo (ikhard), representado como tum continente fisico o¢o, pronto para ser habitado por diferentes “essincias vitais” (pumeths) que insullam a vida nos seres. Entreanto, essa relagio néo & sistemitica. Na inerodugio do liveo The Occult Life of ‘Thing: Native Theories of Materiality and Personhood (2009), Fernando Santos-Granero se refere, sem pretender ser excustivo, as mileiplas maneiras de ser um objeto no mundo tal ‘como vivido pelos indigenas. Nas ontclogizs amerindias, os diferentes regimes de objetos (object regimes), paca retomarmos a expresso de Stephen Hugh-Jones (2005), estariam ligados aos diferentes graus de competéncia comunicativa, subjetividade “agentividade” atribuidos néo somente aos objetos, mas 2 todos os seres, € que secvem para classificé-los ¢ hierarquizé-los enquanto seres sociais (Santos-Granero, 2009: 8-11). Um exemplo neste sentido nos é fornecido por Felipe Ferreira Vander Velden em seu estudo sobre as flechas para a caga dos Karitiana (T'upi-Arikém, Rondénia). Para estes fndios, as flechas possuiriam uma ‘agentividade” reprimids que deve ser ativada pelo ‘consumo da carne e do sangue dos animais de caca. Do contriri, elas a , mozrem ‘ou, segundo © mito, se transformam em animal pegonhento. Mas itso nio é tudo. Ainda Rev. Antropol. 0 Paulo, Online, 59(1}: 180-200 [abril2016] 2

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