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Kelsen e 0 controle de constitucionalidade no direito brasileiro . Gilmar Ferreira Mendes ¢ Procurador da Repiiblica, Mestre em Direito pela UnB. Doutor em Direito pela Universidade de Munster - RFA. GILMAR FERREIRA MENDES: Poucos sabem que a possibilidade de se ‘outorgar a érgiio do Ministério Piiblico a ini- ciativa do controle de constitucionalidade in abstracto, positivada no direito constitucio- nal brasileiro em 1965 (Emenda Constitucio- nal n.° 16, de 1965; Constituigao de 1967/69, art. 119, I, D, ja havia sido contemplada por Kelsen nas suas meditagdes sobre 0 chama- do processo constitucional. Aqueles que se derem ao trabalho de compulsar 0 texto da conferéncia proferida por Kelsen perante a Associagao dos Profes- sores Alemies de Dircito Publico (Vereini- ‘gung der Deutschen Staatsrecktslehrer), de 1928, hito de se deparar com a seguinte pas- sagem: "Um instituto completamente novo, ‘mas digno de ser experimentado seria a criago de um advogado da Consti- tuigdo. (Verfassungsanwalt) perante a Corte Constitucional, que ~ em analo- gia com promotor piblico no proceso penal — instaurasse de oficio o controle de normas em telagio aos atos que re- putasse inconstitucionais. Evidente- mente, esse advogado da Constituigao deveria ser dotado de todas as garan- tias de independéncia tanto em face do Governo, como em face do Parlamento Eine vollig neue, aber emstester Prii- fung durchaus wirdige Institution wire die Aufstellung eines Anwalts der Verfassung (Verfassungsawalts) beim Verfassungsgericht, der — nach Analogie des Staatsanwalts im Straf- verfahren — von Amts wegen das Ver- fahren zur Uberprifung jencr Akte Brasilia a. 31 n. 121 jansmar. 1994 185 einzuleiten hitte, die, der Kontrolle der Verfassungsgerichts unterworfen, vom Verfassungsanwalt fiir rechiswi- drig erachtet werden. Dass die Stel- lung eines solchen Verfassungsanwal- tes mit allen nur denkbaren Garantien der Unabhangigkeit gegeniiber der Re- gierung wie dem Parlament auszustat- ten ware, versteht sich von selbst) (Wesen und Entwicklung der Staatsge- Tichtsbarkeit, 1929, p. 75), B interessante notar que, sem se inspirar diretamente em Kelsen, o legislador consti- tuinte brasileiro acabou, um tanto casual- mente, por positivar idéia de um advogado da Constituigao (Verfassungsanwalt) (CF, 1967/69, art. 119,1, ). Registre-se, ainda, que, no ambito do de- ate sobre a reforma da jurisdigzio constitu- cional, foi, em tempos mais recentes, reen- cetada, na Austria, a discussdo sobre a ado- 0 desse instituto, tendo René Marcic de- fendido expressamente a outorga de legitimi dade para provocar a Corte Constitucional a um Verfassungsanwalt, que, segundo ele, ha- veria de exercer uma fungo subsididria, mas indispensavel (Seine Aufgabe ware subsi- didr, aber unentbehrlich) (cf. René Marcic, Zur Reform der dsterreichischen Verfas- sungsgerichisbarkeit, in: Festschrift fiir Gebhard Miiller, Tibingen, 1970, p. 217 (255). Ainda no contexto dessas curiosidades historicas, vale mencionar a proposta de ins- tituigao de uma Corte Constitucional formu- jada na Constituinte de 1934 pelo deputado federal fluminense Nilo Alvarenga. Aqui pa- rece inequivoca a influéncia direta do mode- lo de jurisdig&0 constitucional defendido por Kelsen, tal como exposto na Conferéncia de 1928. Sao os seguintes os termos da proposigao apresentada por Nilo Alvarenga: “An. — Compete a Corte de Justica Constitucional, origindria ¢ privativa- mente, conhecer da argilicao, suscitada por qualquer parte interessada ou pelo Ministério Pablico, em qualquer feito € perante qualquer juiz. ou tribunal, de conflito de uma lei ou disposigao de lei federal. ou de uma constitui¢do ou lei estadual ou alguma de suas disposi- ‘g6es, com a Constituigaio Federal, ou de uma lei estadual ou alguma de suas disposig6es, com a respectiva consti- tuigdo estadual. § 1° Levantada a preliminar de inconstitucionalidade, o juiz ou tribu- nal sobrestaré. no prosseguimento da causa, depois de assegurar, quando ne- cessirio, a eficécia do direito reclama- do, até que o tribunal se pronuncie. § 2° © juiz ou tribunal mandaré prosseguir o feito se a alegacao de in- constitucionalidade for manifestamen- te improcedente ou protelat6ria, ca- bendo desta decistio carta testemunhé- vel para a Conte de Justiga Internacio- nal que, a requerimento da pane, podera mandar sustar o andamento do rocesso, alé o seu pronunciamento. Art. Qualquer pessoa de direito piblico ou privado, individual ou cole- tivamente, ainda mesmo quando nao tenha interesse direto, podera pedir originariamente 2 Cone de Justica Constitucional a declaragao da nulida- de no todo, ou em parte, de uma lei ou de qualquer ato, deliberago ou regula- mento, emanado do Poder Executivo, manifestamente contrérios aos direitos garantias estabelecides por esta Constituigao. §1.° A Corte s6 poderé conhecer do pedido, depois de informada, no prazo méximo de 30 dias, pelo poder do qual emanou a lei, 0 ato, deliberagao ou re- gulamento. § 2° A lei ordinéria determinard a forma répida pela qual se processaré 0 pedido. §3. A sentenga anulatéria da Corte de Justiga Constitucional invalidaré & tomard inexeqifvel para todos, em parte ou no todo, a lei, ato, deliberagao ou regulamento por cla atingida € pro- duziré estes efeitos na data de sua pu- blicagao. Art. A Corte de Justiga Constitu- cional teré sua sede na Capital da Re- publica e compor-se-4 de nove minis- ros, brasileiros natos, de notdvel saber Revista de informagdo Legislative Jjuridico e ilibada reputagdo, dois dos {quais sero indicados pelo’ Supremo Tribunal Federal, dois pela Assem- biéia Nacional, dois pelo Presidente da Republica e tés pelo Instituto da Or- dem dos Advogados Brasileiros entre as mais notdveis express6es culturais € morais de sua classe, especializados em direito pablico e constitucional. § 1° Igual ndmero de suplentes seré simultaneamente indicado pelos pode- res pelo instituto acima indicados. Ant. Os ministros da Conte de Justiga Constitucional exercerao as Tungdes que Ihes sto atribufdas por esta Constituigio pelo prazo de trés anos, podendo ser renovadas as suas indicagdes © nomeages. § L° Os ministros nao poderao ser destitufdos de suas fungdes antes de findo 0 prazo para o qual forem no- meados € ero 08 mesmos vencimen- tos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. ‘Ad. A Corte de Justica Constitu- cional organizaré seu regimento inter- no ¢ Secretaria, cujos funciondrios serfio de sua nomeagio € (ero venci- ‘mentos equiparados aos da Secretaria do Supremo Tribunal Federal" (...). © parlamentar justificava assim a sua pro- posta: "Os mais belos ¢ generosos princf- pios de direito publico consagrados ‘nos textos constitucionais de nada va- lero sem as necessdrias garantias de sua efetividade. Essas garantias sao dadas pelo controle da constitucionali- dade das leis. Nos Estados Unidos, onde essa atri- buigdo € conferida a justiga comum, 0 controle € falho, imperfeito e incom- pleto. Por isso que a justia comum s6 cabe decidir das questées entre partes, os efeitos de suas decisOes se restrin- gem ao cuso sub judice. A lei anulada para o litigante continua a vigorar em ‘toda sua plenitude para a coletividade, Por isso ¢ imprescindivel criar a ju- risdig&o constitucional cometendo-a a um tribunal especial, com a fungao de exeroer este controle, anulando as leis e atos inconstitucionais, erga omnes. Mas nio basta a criagao de tribunal com esta competéncia. F necessério, ainda, assegurar a todos os individuos sua protegdo por meio de recursos f4- ceis, rapidos e baratos. E preciso que todo cidadao ferido em seu direito dis- Ponha de meio seguro para o restabele- cimento imediato deste direito. G2) A Corte de Justiga Constitucional, com estas atribuigdes e competéncias, seré 0 Gnico aparelho eficaz. de garan- tias constitucionais, do qual a Repibli- ca no poderdprescindir, para assegurar a defesa de todas as direitos ¢ liberdades de seus cidadaos” (Projeto do Deputado Nilo Alvarenga, de 20- 12-1933, in: Annaes da Assembléia Nacional Constituinte, Rio de Janeiro, vol. III, 1935, pp. 513 s. Ver, também, Ana Valderez Ayres Neves de Alen- car, "A Competéncia do Senado Fede- ral para suspender a execug20 dos atos declarados inconstitucionais", in: Re- vista de Informacao Legislativa, n° 57, 1978, pp. 223 (237-245). ‘Na discussdo que se travou na oportuni- dade da apresentagao da proposta em plena- rio, acentuou Nilo Alvarenga que se louvava na opiniio de Hans Kelsen, na comunicacao apresentada ao Instituto Internacional de Di- reito Pablico, wansorevendo a seguir passa- gem da conferéncia proferida perante a As- sociago Alema dos Professores de Direito Publico: "Nao ¢ excessive afirmar que a idéia potitica do Estado Federal nao é plenamente realizada sendo com a ins- tituiggo de um Tribunal Constitucio- nal" (Cf. Ana Valderez Ayres Neves de Alencar, "A Competéncia do Sena- do para suspender a execugio dos atos declarados inconstitucionais", in: Re- vista de Informacdo Legistativa, n° 57 (1978), pp. 223 (243). Parece indiscutivel, também, a influéncia do trabalho Kelsen na proposta de Nilo Al- Brasilia a, 31 n. 121 janimar. 1994 187 varenga relativa & adogao de uma especialfs- sima a¢do popular de inconstitucionali- dade, que permitia a instauragaio do con- trole abstrato de normas mediante inicia- tiva de qualquer pessoa de direito pitbli- co ou privado, individual ox coletiva~ mente, ainda mesmo quando ndo tivesse interesse (cf. a proposta acima transcri- ta). E de Kelsen a afirmagao de que a ga- rantia mais efetiva e radical para o controle de constitucionalidade seria a actio popula- ris. N3o lhe parecia recomendavel, po- rém, a adocao da ag&o popular de incons- titucionalidade, porquanto se afigurava muito grande o risco de agdes temerérias, que acabariam por sobrecarregar, dema- siada e inutilmente, a Corte Constitucio- nal. Revista de informaggo Legislative

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