Você está na página 1de 2
PAGINA ABERTA AS PRISOES DA LAVA-JATO As criticas as vezes severas contra as prises preventivas da operagao néo encontram fundamento nem na quantidade nem na extensdo — ¢ talvez sé existam porque, atras das grades, ha presos ilustres A PRESUNCAO DE INOCENCIA ¢ um escudo tanto contra condenagdes injustas como contra punigdes pre- maturas. Contra condenacGes injustas, a presuncio de inocéncia exige, para uma condenacao criminal, prova categérica, acima de qualquer diivida razodvel. Segue-se o velho ditado de que ¢ preferivel ter vrios culpados sol- tosa um tinico inocente condgnado. Contra punigdes pre- maturas, significa que a prisdo, pena moderna por exce- Jéncia, deve seguir-se aojulgamento, endo precedé-lo. Na {ltima perspectiva, o principio também significa que as, prisdes antes do julgamento, ainda que ndo defintivo, as chamadas pris6es preventivas, sio excepcionais e devem ser longamente justificadas, Tem havido uma série de eri ticas a supostos abusos na decretacao de prisdes preves vvas na Operaco Lava-Jato. Escrevi este artigo para escla- recer alguns aspectos delas. Existem atualmente sete acusados presos preventiva- ‘mente na Operacio Lava-Jato sem que tenhha havido julga- mento por sentenca na ago penal. 0 total das prises pre- ventivas decretadas é bem maior, 79, mas elas foram paula- tinamente revogadas ou substituidas por sentencas conde- natdrias. Apesar das discussdes em torno dessa substitui- 40, sio diferentes a situagao do preso provis6rio néo julga- do ea do preso provisdrio jé julgado e condenado. Setenta e nove prisdes preventivas, em quase trés anos, é um nimero significativo, mas outros casos de investigages rumorosas, como a Operacdo Maos Limpas, na Itlia, envolveram tm rniimero muito superior de prises provisorias, cerca de | 800 nos trés primeiros anos, entre 192 e 1994, somente em Mildo. De forma similar, 79 prises preventivas em uase trés anos ¢ um niimero muito menor que o de prisdes, preventivas decretadas em um ano em qualquer vara de in- quéritos ou em varas de crime organizado em uma das, grandes capitais brasileiras. Nao procede, portanto, a critica genérica is pri- des preventivas decretadas na Operacdo Lava-a- to, pelo menos considerando-se a quantidade delas.. ‘Também nao procede a critica & longa dura- ‘do das prisdes. Ha pessoas presas, é verdade, desde marco de 2014, mas nesses casos jé houve sentenga condenatéria e, em alguns deles, até mesmo 0 julgamento das apelagdes contra a sentenca. Quanto aos ppresos provisérios ainda sem julgamento, as prisdes tém ‘no méximo alguns meses, 0 que ndo € algo extraordinario, na pratica judicial, e nao raramente os julgamentos tar- dam pela propria atuacao da defesa, por vezes interessada, ematrasar 0 ulgamento para alegar junto a ouvidos sen- siveis a demora excessiva da prisdo provisoria. Outra cri tica recorrente é que se prende para obter confissdes. En- “Se a firmeza que a dimensdo dos crimes reclama nao vier do Judiciario, nao viré de nenhum outro lugar” tretanto, a maioria dos acusados decidiu colaborar quan- do estava em liberdade, e hd acusados presos que resolve- ram colaborar € acusados presos que no colaboraram. (Os dados nao autorizam conclusio quanto a correlacdo necesséria entre prisdo e colaboragao. | Aquesto real —e é necessirio ser franco sobre isso — | no éaquantidade, a duragio ou as colaboragdes decorren- | tes, masa qualidade das prises, mais propriamentea quali- | dade dos presos provisorios. O problema nao sio as 79 pri- s@es ou o5attalmente sete presos sem julgamento, mas sim ‘que se trata de presos ilustres. Por exemplo, um dirigente de cempreiteira, um ex-ministro da Fazenda, um ex-governador ‘eum ex-presidente da Camara dos Deputados. Mas, nesse | caso, as criticas is prisdes preventivasrefletem, no fundo, 0 lamentivel entendimento de que ha pessoas acima dalei ede que ainda vivemos em uma sociedade de astas, distante de n6s aigualdade republicana. Mesmo considerando-se as 79 preventivas € 0 fato de elas envolverem presosilustres, é neces: rio ter presente que a Operacio Lava-Iato revelou, segundo casos ja julgados, um esquema de cor- ie iW rs rupeio sistémica, no qual o pagamento de propinas em ccontratos piiblicos consistia na regra do jogo. A atividade delitiva durouanos e apresentou carater repetido e serial, caracterizando, da parte dos envolvidos, natureza profis- sional, Para interromper o ciclo delitivo, a prisio preventi- va foi decretada de modo a proteger a ordem piblica, espe- cificamente a sociedade, outros individuos eos cofres pi- blicos da pratica serial e reiterada desses crimes. ‘Ocasionalmente, foram invocados outros fundamentos, como a necessidade de prevenir fuga ot a dissipacao do produto do crime, ou de proteger a investigacdo contra a destruicdo ou a manipulacdo de provas. Cabe, nessa linha, embrar que todos os quatro diretores da Petrobras presos preventivamente — e jé condenados — mantinham mi- Ihdes de délares em contas secretas no exterior, nfo sendo possivel ignorar, nesse caso, 0 risco de que fugissem ou, pior, de que, foragidos no exterior, ficassem com o produto, do crime. Apesar das genéricas criticas a supostos exces- sos nas prises preventivas, a andlise circunstanciada re- ‘ela que todas estavam bem justificadas. Para ficar em um exemplo, foi decretada, em junho de 2015, a priséo preventiva de dirigentes de um grande gru- po empresarial. Os fundamentos foram diversos, mas a ‘garantia da ordem pitblica estava entre eles. Posterior- mente, tais dirigentes foram condenados criminalmente, embora com recursos pendentes. As criticas contra essas prisdes foram severas, tanto pelas partes como por inte- ressados ou desinteressados, que apontaram o suposto exagero da medida diante da prisdo de “pessoas conheci- das”. Posteriormente, dirigentes desse grupo empresarial | SERGIO MORO* resolveram colaborar com a Justica e admitiram o paga- mento sistemético de propinas no s6 no Brasil, isso por ‘anos, mas também em diversos paises no exterior, bem. ‘como participacdo em ajustes fraudulentos de licitagbes, da Petrobras. Mais do que isso: confirmaram a existéncia, no grupo empresarial de um setor proprio encarregado do pagamento de propina (Departamento de Operagdes Estruturadas) e que este permaneceu funcionando mes- mo durante as investigagbes da Lava-Jato, tendo sido des- mantelado apenas com a prisdo preventiva dos dirigentes, ‘em junho de 2015. caso é bem ilustrativo do equivoco das crticas, pois 0 ‘tempo confirmou ainda mais o acerto da pris4o. Foi a pri so preventiva, em junho de 2015, que causou o desmante- lamento do departamento de propinas do grupo empresa- rial, interrompendo a continuidade da pratica de sérios cri- mes de corrupgao. Assim no fosse, o departamento da propina ainda estaria em plena atividade. O tempo contir- mou que nao houve nenhuma violacdo da presungio de inocéncia na prisio preventiva de pessoas culpadas e que persistiam na pratica profissional de crimes. Isso nao significa que a prisio preventiva pode ser vul- ¢garizada, mas ilustra que, em um quadro de corrupgio, sistémica, com pratica serial, reiterada e profissional de crimes sétios, é preciso que a Justiga, na forma do direito, aja coma firmeza necesséria e que, presentes boas provas, imponha a prisdo preventiva para interromper o ciclo de- Iitivo, sem se importar com o poder politico ou econdmi co dos envolvidos. Sea firmeza que a dimensto dos crimes descobertos re- ‘clama no vier do Judiciério, que tem o dever de zelar pelo respeito as leis, ndo vird de nenhum outro lugar. Enfim, criticas a atuagao do Poder Judiciarrio so bem- vindas, pois nenfhuma atividade piblica deve ser imune a clas. Entretanto, as criticas genéricas as prises preventi- vvas na Lava-Jato ndo aparentam ser consistentes com 0s motivos usualmente invocados pelos seus autores. Admi- ta-se que é possivel que, para parte minoritaria dos criti- ‘cos, 05 motivos reais sejam outros, como a altudida quali- ‘dade dos presos ou algum desejo inconfesso de retornar a0 status quo de corrupcao e impunidade, mas, com esses, nem sequer é vidvel debater, pois tais argumentos sio in- compativeis com os majestosos principios da liberdade, da igualdade e da moralidade piblica consagrados pela Constituigao brasileira. m ‘Sergio Moro é juz federal da 138 Vara Criminalem Curitiba, responsével pela condugo da Lava-Jato

Você também pode gostar