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As tarefas da universalidade §1. Etica e filosofia critica A Fundamentacdo da Metaftsica dos Costumes (1785) conquistou um lugar de particular relevo na obra kantiana, no apenas por constituir 0 primeiro dos mais consistentes pilares da reflexio do filoséfo de Konigsberg sobre a dimensio pratica da raza — logo seguido pelas deci sivas e fundamentais Critica da Razdo Pritica (1788) e pelas duas partes da Metafisica dos Costumes (1797) -, mas também pelo contributo que © Seu aparecimento forneceu & prpria mutago no paradigma de raciona- lidade introduzido pelo amadurecimento da filosofia critica na década de 80. Em 1785, Kant esté em pleno processo de alargamento e consolidagio do edificio filos6fico que, a0 contrério do que algumas interpreta ccélebres pretendem sugerir, encontrara na Critica da Razio Pura a sua pedra basilar ¢ no © seu resultado final. Com efeito, na década e meia imediatamente posterior a sua obra capital, Kant aplicari 0 método eritico 0s dominios da histéria, da ordem politica, do diteito, da finalidade bio logica, da experiéncia estética, da antropologia, da pedagogia, num esforgo de compreensio da problemética da condi¢ao humana, cuja amplitude, consisténeia e coeréncia dificilmente encontram paralelo na tradigio filoséfica do Ocident. tos de conheciment, tas sim o levenamenie alien das Condes ‘ava no delinear de uma qualquer moral apicada e proxi, mas dcbruava-se, sim, sobre as condigbes unverais de funda eds so oat co, prea dveras mdse dao human ar raion ets, como ode ons exibir nitidamente. . sods Bind oe ca, mesmo daguela que se revestia da profandidade Leni da serie metodolgica de um Walt Por isso, nese distant anode 1766, Kant agra ema de todo um da razio humana» (ceine Wissenschaft der Grencen der menscliche Vernunft» Tune, Ml, 368) A missio da erica da rad, na nuns fet ao pa, enna ssmatcaent> (alan Ientriumae mic Be fh sstematnchgeoninere KIN. WV, ceitos puro da rast e ds suas diversas faculades, NiO anv, yon nlamento genial de um metafisica, a ser alguma coisa, 10 an fessor Johann August Grohmann, da Universidade de Wittenberg, consi- derasse que o inconfundivel mérito de Kant residia em ter renunciado & construgio de um «sistema de filosofia» («System der Philosophie») baseado na descoberta de um qualquer absoluto, para se confinar ao exer- cfcio de uma disciplina da raz (Grohmann, 1804: 120), Ao abrir-se para 0 dominio ético, essa «disciplina da raziio» fazia mais, contudo, do que alargar extensivamente 0 conjunto das «posses» («Besitze») da raz, A critica da esfera pritica vai alferar a prpria identi dade da razio que se descobre una, na tenso dos interesses teérico e prit- tico, apenas e s6 sob o primado deste tiltimo (KpV, V, 121). © primado do interesse prético assinala uma metamorfose essencial no proprio perfil e identidade da raziio na sua totalidade. Com Kant clarifica- “se a tendéncia para determinar a racionalidade nao tanto como contem- placao teorética da ordem existente, mas como impulso para a stealizagion («Realisierung») dos fins que a raziio se coloca a si propria sob o signo da necessidade e da universalidade (Logik, IX, 87). ara Kant, esse fim pritico que permite uma reconstrugao ¢ uma reo rientagdo da identidade de uma razao activa e laboriasa 86 pode ser o fim timo e incondicionado da moralidade, que contém em si no apenas uma tarefa para © aperfeigoamento ético do individuo como para a reno- ia comunitria sob o signo das leis da liberdade (sobre as mil cito de pritica em Kant: J. Barata-Moura, 1982: vvagiio da v Aiplas acepedes do cont 133-177). Nessa medida, a filosofia critica, no sendo embora uma ocorréncia contingente na historia do pensamento, no prescinde de uma decisio do fildsofo, através da qual se superam os estédios do «dogmatismo» («Dogmatism») e do «cepticismo» («Sceptizism»). E o principio que illu ‘mina essa escolha é o fio condutor do «fim da humanidade» («Zweck der -Menschheite) como eixo organizador dos «factos da razdo» («Facta der Vermunfi») que constituem o contetdo e a tarefa da filosofia (Preissehvift liber die Fortschritte der Metaphysik, XX, 341). Seri igualmente sob 0 primado pritico da razo que esse «fim da humanidade» se determinars nos dominios da histéria, do direito e da politica, Nessa medida, poderemos concordar com Hermann Cohen ‘quando este afirma que: «A ética, como doutrina do homem, tomna-se 0 centro da filosofia» («Die Eshik, als die Lehre vom Menschen, wird das Zentrum der Philosophie», H. Cohen, 1907: 1). Formal na sua esfera de fundamentagao, a ética kantiana nao é, toda- §2. Fontes da filosofia pritica em Kant A noviade em ilsofa no surge apie do nada Ea sesla de uma inveniva combinagdo de matras proexstntes, reclaborados sob wna perspectva sinttica divers, possbilitadora da formulagto de nove introgegdes¢oportinidades de pensamento, A matéria-prima, num acepedo mas rest, da medtago moral kan tana & bem conheci: 0 racionalsmo de Leibniz Wolf opis a flosofainglesa coevae Rowsseau (Vitor Delbos, 1826 7.594 Fernand Agu, 1978 613) Retenhames, pel dessas ones 0 pit, ates do ilsofo Cs lenofe lnglese, principal sobre educa, worl 61 obidacs lt moat Cusae 4§ Hae a 218-220); © mal define como impotent da Wend eae Fae Seal eee ee ainda, a posigo central, . Sees ec ne ee tren Grade ale Seletel linet eae Pines eas Si. Com eso, Hucesn ponara teeta eo ct («self-love») tudo explicasse no dominio da vivéncia moral, como poderfamos compreender, por exemplo, que nas \tagédias 0 espectador ndo se identifique sempre com os poderosos: «por ue niio nos faz amor-préprio aderir sempre ao lado vitorioso, levando- nos a admirar e a amar o bem-sucedido tirano ou traidor?» (owhy should 12 not self love engage us always to the victorious side, and make us admire dnd love the successful tyrant or traitor?». Francis Hutcheson, 1725: 112) Exisria, deste modo, um dominio mais radical do que o do simples inteesse, do que 0 da aritmética retocida das inlinagdes egosts: cra 0 dominio, a um tempo élico ¢ estético, do «sentido moral» («moral daue conceptual de uma esfera da razSo prea com os seus principios € coneetonprpios.Todavia, no fi mas do que iso, Kant neparéa exis (cf. Glossrio). Nio um «fundamento explcativon («Erkldrungsgrund), ints uma eonsequéncia da acgao da Tei moral sobre @ nossa Taculdade de desejar (R. 6634, XIX, 120) divida de admiragao e gratidio. No pertodo pré-crico chamou-lhe 0 Newton da dimensio humana, o descobridor da «profundamente oculta natureza [do Homem|» («die tief verborgene Natur desselben», XX, 59). rumo da ilasriapresungo da supremacia do poder intelectual para enve- redar pela via segundo a qual a tarefapriovtiria do pensador seria a de Contibuir para estabelecer os direitos da humanidade» (die rechve der Menschheit herustellen», XX, 44, 44 no pertodo entic, Kant no de xari de manter para com a obra de Rousseau uma aitde de benévola receptividade, recusando-se a acitar a tese da contadigo intena entre os dois Discursos, por um lado, © 0 Contrata Social @ Eniio, por outro Anfang, VIM, 16-119) ‘Aduilo que Rousseau signficou para a evolugio do pensamento moral de Kant lign-se essencialmente a identiticagio pelo primeito do carcter auénomo e primitivo da consei¢ncia moral, por um lado, e& afimagio da capacidade mobilizadora dessa consciéncia para tanscender reali dade dada, através do «entusiasmo da virtude> («enthousiasme de la vertu», por outro (Rousseau, 1762; 596) Escreve Rousseau no Emile: «Com a primeira acgaio boa ou ma, com 0 primeiro sentimento do bem ou do ma eleva-se orto da consi Ela ndo é de forma nenhuma, como dizem os fildsofos, a obra dos precon- ceitos, ela hes anterior, mas frequentemente eles erguemse conta ela obrem a sua voz tomam seu lugar.» («A la prendre action bonne ou mauweise, au premier sentiment du bien ou dit mal s'léve le cri de la Conscience. Elle n'est point comment disen les philosophes Vousrage des 13 réjugés, elle leur est antérieure mais souvent ils s'elevent contre elle, ‘couvrent sa voix, prennent sa place..». Op. cit., 225), Do «grito da consciéncia» ao imperativo categérico, tal era 0 longo {rajecto que ainda restava a Kant percorrer (ef, Soromenho-Marques, 1990: 401-426), $3.0 kantiana ndo nega a existéncia de facetas psicolgicas no dom! nio moral, nem poe de parte a possibilidade de se tragar uma narrativa do progresso das manifestagdes histéricas da conscigncia moral (Anfang, VIL 114), Aquilo que Kant nega é que a esséncia da moralidade se possa expli- car psicol6gica ou historicamente, isto &, por recurso as categorias de duas ciéncias que estudam a condigao humana na sua fotima dependéncia dos fenémenos e da causalidade natural, como o fazem a psicologia e a hist6- ria, ssa € a posigio axiomitica do seu idealismo transcendental A ética kantiana é inteiramente formal. Ela nao dé leis para as acgoes, tarefa que cabe ao direito positivo, ela dé, sim, leis «apenas para as maxi. mas das acgdes> («nur fiir die Maximen der Handlungen». MS-TL, Vl, 388). Mais ainda, a perspectiva critica sobre a faculdade de desejar vai separar 0 «fim» («Zeck») material da acgao do «mobil» («Triebfeders) formal da acgdo, S6 uma vontade aut6noma, quer dizer, uma vontade que se deixa determinar e identificar imediatamente pela e com a lei da liber dade (na sua forma que serve de paradigma as maximas das acces) pode ser considerada como boa, As reacgdes a0 formalismo kantiano, no mesmo perfodo histérico em que as obras da filosofia erftica viram a luz, do dia, nio se fizeram esperat. Blas variaram entre a incompreensio total, a recusa por motivos de diver- géncia tedrica profunda, ¢ a aceitagio firme daqueles que viram nesse for- ‘malismo a chave para a vitalidade dos fundamentos de wma ética que nao seria desmentida em cada caso conereto de aplicagio. Vejamos um exem- plo de cada uma dessas atitudes, Um exemplo de profunda incomprenstio da ética kantiana é-nos forne- cido pela leitura de Johann G. H. Feder (1740-1821), professor de Filosofia na Universidade de Géttingen ¢ colaborador do Teutscher Merkur, para além de membro da organizagio magénica, Die Illuminaten, Ao expor a doutrina kantiana de Deus e da imortalidade da alma como postulados da razdo pritica, escreve Feder: «Mas nos homens existem inclinagies que nfo se deixam submeter As Jes racionais da moralidade sem 0 pressuposto da existéncia de Deus e de uma outra vida» («ln den Menschen aber sind Neigungen die sich diesen Vernunfigesetzen des Siulichkeit nicht unterwerfen lassen, ohne Voraussetzung des Daseyns Gottes und eines andern Lebens». JG. H. Feder, 1790: 15). Como € fic de verifiear,trata-se de uma auténtica perverso do pensamento kantiano Uma substituigio abrupta da autonomia da vontade pela teonomia, i.e. pela dependéncia da lei moral face a um Deus que a tornaria de impers- tivo da razio prética em mandamento divino (K. Jaspers, 1935: 110: cf. entrada «supremo bem» no Glossario) A colisio a partir de opeées filoséficas diversas encontra-se bem patente, por seu turno, na atitude de Christian Garve (1742-1798), uma das figuras mais salientes € cosmopolitas das Luzes germanicas, chamado por Frederico Hl, em 1779, para trabalhar em Charlottenburg, ¢ um conhe- cdo correspondente de Kant. ‘Comentando, em 1792, o formalismo da ética do imperativo eateg6- rico, eserevia Garve: «Eu confesso pela minha parte que compreendo muito bem, na minha cabeca, essa divisio das ideias, mas que no encon tro no meu coragdo essa separagio entre desejos e esforgos» («ch fir mein Teil gestehe, dass ich diese Teilung der Ideen mit meinem Kopfe sehr wohl begreife, dass ich aber diese Teilung der Wiinsche und Besirebungen in meinem Herzen nicht finde». Christian Gave, 1792:134 135). Por outras palavras, Grave recusava-se a aceitar que a ética no fosse uma doutrina do desejo de felicidade, mas somente uma doutrina do esforgo pura dela podermos vir a ser No ano seguinte, responde Kant:

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