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ISSN 1517-5545 Behavi Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Coguitiva 2001, Vol. 3, n° 2, 9-18 ismo: reflexées acerca da sua epistemologia Marla Viega e Luc Vandenberghe! Universidade Catéliea de Goiés Resumo Nesta tentativa de definir 0 behaviorismo como uma proposta cientfica, ¢ priorizada a descrigio dos seus valores fundamentais, sua visio do homem e do universo, sua definigao do conhecimento, suas estratégias seménticas e sua atitude frente & nogao de verdade cientifica. Os pressupostos da abordagem so esbogados de forma a possibilitar a comparago com outras abordagens cientificas dentro da psicologia. Sua historia é tragada em termos de continuidade e descontinuidade paradigmticas, Sem apegar-nos a dicotomias didaticamente convenientes como a oposigo entre a5 variedades radical ¢ metodol6gica, exploramos as contradigSes inerentes a0 movimento e as implicagdes potenciais destas para sun identidade como abordagem e para suas diregdes futuras. Palayras-chave: behaviorismo; epistemologia; paradigma, Abstract Behaviorism: reflections on its epistemology. In this tentative to define behaviorism as a scientific project, priority is given to descriptions ofits fundamental values, its vision of man and the universe, its definition of knowledge, its semantic strategies and its attitude in relation to the notion of scientific truth. ‘The assumptions of the approach are sketched in a way that makes possible the comparison with other scientific methods within psychology. Its history is traced in {erms of paradigmatic continuity and discontinuity. Without sticking to didactically convenient dichotomies like the opposition between the radical and methodological varieties, we explore the ‘movement's inherent contradictions and their potential implications for its identity as an approach and for its future directions. Key words: behaviorism; epistemology; paradigm, 1. Definir o behaviorismo Neste artigo pretendemos abordar a proposta do behaviorismo sem querer repre- senté-lo como um sistema tedrico coerente & acabado, mas sim como uma das numerosas tentativas de entender o ser humane. Como todo movimento intelectual, o behaviorismo carrega em sios eftitos da hist6ria que o moldou, Falar desta histéria implica considerar suas raizes, o impacto que causou na época de sua ctiagdo e as modi- ficagdes que sofreu para se tornar o que ¢ hoje. E importante ressaltar que o behaviorismo_ uma das grandes tradigdes que deram diregiio a0 que conhecemos hoje como a psicologia cien- tifica. Trouxe idgias inovadoras a respeito da natureza do homem e de como estudi-lo. Seus preceitas basicos foram alvo de critica indignadae entusiasmo sectirio, Logo, é preciso concordar com Eysenck (1972) que qualquer caracteristica que seria avangada para definir 0 movimento como um todo, énecessariamente questiondvel. Moderatto € Ziino (1994), salientam que 0 Behaviorismo 1, Enderego para correspondéncia: R. J-S1 Q 136 L 31, Setor Ido - Goiania / GO, CEP 74674 170, Tel (62)2077639, e-mail: bergneve@zaz.com.br Marla Viega € Luc Vandenberghe deve ser entendido como uma familia de posigbes tedricas, que entre clas sio con- trastantes e diversas, mas que possuem uma certa semelhanga (“family resemblance” para usar 0 conceito de Wittgenstein) entre elas. Apesar desta semelhanga de familia, a distncia entre duas teorias integrantes da tradi¢ao behaviorista 6 as vezes, notével. Ao tratar das bases epistémicas do behaviorismo modem, ¢ da questo de como este se defronta cont os temas complexos da Psicologia contem- potinea, é impossivel ignorar esta pluralidade. ‘A abordagem hipotético-dedutiva de Hull, trazida por Eysenck para a terapia comportamental, € diametralmente oposta & estratégia indutiva de Skinner. A primeira faz cigncia testando hipéteses e privilegiando métodos estatisticos para processar dados colhidos em amostras representativas (Hull, 1953; Eysenck, 1959/1994), enquanto a segun- da constréi conhecimento de maneira indutiva, partir de regularidades observadas em estudos onde 0 sujeito tinico & seu proprio controle (Skinner, 1938). O behaviorismo radical trabatha com eventos privados, mas exclui nogdes mentais (Skinner, 1945) enquanto o behaviorismo teleolégico de Rachlin (1994) €0 operacionalismo de Tolman (1932) usam conceitos de tendéncia mentalista, mas excluem co que a pessoa sente dentro de si como dado a ser considerado, Como podemos entéo entender 0 que é 0 Behaviorismo? Moderato © Ziino (1994) enfitizam que 0 Behaviorismo como quadro teferencial foi articulado desde 0 inicio em diferentes niveis. Primeizo, foi concebido como uma cigncia que estuda eventos e processos sob condigées especificas, como acontece nas outras. cigncias que estudam 0 comportamento de planetas, eélulas ou particulas atémicas. Segundo, ¢ uma filosofia da cigncia porque define quais tipos de perguntes sto legitimas na 10 pesquisa ¢ 0 método a partir do qual deve-se respondé-las. Em terceiro lugar, é uma filosofia da mente porque formula pressupostos sobre a natureza humana. Finalmente, representa um conjunto de valores que devem ser considerados como uma ideologia dentro da Psicologia. Buscando entender o behaviorismo, precisamos prestar ateneZo ao entrelagamento destes diferentes niveis. Precisamos, para comegar, localizar 0 behaviorismo no meio da diversidade de posigdes paradigmaticas que propdem estudar o ser humano, 2. Asepistemologias da psicologia moderna Segundo a meta-epistemologia de Pepper (1942), posigdes tedricas nas cigncias humanas sfo diferenciadas pelo seu paradigma bisico. ‘Todas as epistemologias cientificas possuem as suras maneiras de conceber um evento. Elas nfo 6 se diferenciam nos tipos de conhecimento que oferecem, mas também na sua definigzo do que é verdade e como aleangar conhecimento valido, Na raiz de cada paradigma episte- molégieo, uma metifora implicita pode ser reconhecida, Desta metifora, os pressupostos filosoficos do paradigma so derivados. E a ‘metifora-raiz, que iré delinear 0 universo dos fatos a serem estudados, os tipos de perguntas a serem feitas, as estratégias a serem usadas para respondé-las e 0s critérios de verdade, através, dos quais avaliar as respostas obtidas. Existe um grande nimero de linhas teéticas que definem os eventos estudados a partir de suas qualidades ou especificidades, 0 que permite conhecé-los diretamente. Pepper chama esta atitude frente ao conhecimento de “formismo”. Fendmenos sfo reduzidos a essén- cia, dependendo da abordagem, representada por idéias puras, universais ou protétipos. 0 eritério de verdade ¢ a comespondéncia entre 0 fend- Behaviorismo: reflexdes acerca da sua epistemologia ‘meno complexo estudado e 0 universal ow a forma essencial capturada pelo estudioso. ‘No entanto, ja existem outras abordagens que véem 0 conhecimento valido como algo construido através de inferéncias, adequando-se a0 que existe por trés dos fendmenos, onde o seu critério de verdade &a coeréncia da explicagao. O conceito seriz que, quando as inferéncias explicam de maneira elegante as observagdes, so validas. Aqui, Pepper fala de “organicismo” porque a metifora implicita ¢ 0 ser vivo eo discurso lembra aquele da medicina, onde também se infere processos subjacentes para explicar os sinais observaveis. A mente € tratada como se fosse um organismo com a sua prépria vida interior. © clinico que assume esta atitude epistemolégica deve atuar nas estruturas ou dinamismos inferidos porque os fendmenos observaveis so apenas sintomas decorrentes destes, O“mecanicismo” é uma atitude frente a0 conhecimento que prope estabelecer uma estreita correspondéncia entre os fatos e a teoria, testando predigdes deduzidas desta iiltima, Para entender um fendmeno deve-se destrinchar as cadeias causais envolvidas. A pergunta legitima do cientista & sempre alguma variante de “como funciona?". Mensura exata ¢ estatistica so amplamente usadas dentro desta abordagem. Conhecimento & considerado vélido quando foi objetivamente estabelecido, Diferentes observadores devem perceber 2 mesma coisa independentemente, 0 isto implica em delineamentos experimentais ¢ replicabilidade das pesquisas. Em contraste, o “contextualismo” consi- dera que 0 evento s6 pode ser conhecido dentro do contexto do qual é fungo, A metifora-raizé 6 ato como evento histérico. Para a psicologia, isto implica que os fendmenos estudados sf0 sempre imersos em dinamicas temporais, materiais, sociais, culturais, familiares e outros. Ml Tipicamente séo investigadas interagdes bidi- recionais em detrimento de mecanismos de causa ¢ efeito li ares. Observam-se regula ridades nas relagdes entre variiveis e, a partir isto, induzem-se prineipios que regam esta interagdo, O critério de verdade é a pragmatica, isto é: quando o conhecimento permite agio, ele é vilido. © behaviorismo é conhecido pela sua luta contra as abordagens aqui chamadas de fe usar um nivel tedrico (o inferido) para explicar lum outro (0 observado) e o primeiro por seu subjetivismo declarado. Em muitos momentos nha sua histéria (Watson, 1913/1928; Tolman, 1932; Skinner, 1945; Kantor, 1959; Staats, 1963) parece que seu alvo mais importante era o de oferecer & psicologia uma visio livre de todo vestigio destes dois paradigmas. Além de optar por uma certa atitude frente ao saber, abordagens psicolégicas propu- nham uma meta-linguagem unificadora para poder ir além dos dados observados. Esta cons- titui a identidade da abordagem, aventando a possibilidade de coeréncia tedrica. Conhe- cemos a meta-linguagem do inconsciente, do transcendental, do processamento de infor- magdo © muitas outras, Como vamos observar 0 behaviorismo nito adotou tal forma de falar, do que est por tris mista e organicista, Rejeitou o siltimo por na discussto a seguit das outras linguagens, Esta auséncia nos reen- via com mais insisténcia ainda para a questo da identidade paradigmética do behaviorismo 3. A epistemologia behaviorista ‘Omovimento nasceu nos Estados Unidos frente a duas posigdes culturais: o estruturalismo (importado da Europa) que estudava fendmenos estiticos eo funcionalismo (mais coerente coma mentalidade do novo mundo) que dava énfase a Marla Viega Luc Vandenberghe ‘luxos de mudanga. O Behaviorismo tem as suas ‘aizes nesse segundo movimento, mas consti- tuiu-se num corte na historia da Psicologia com seu projeto de estudar 0 comportamento, enfocando entidades privadas de dimensdes espago-temporais, libertando a psicologia das siias amarras idealistas (Watson, 1913). ‘A escolha de definir como objeto de pesquisa o comportamento e nada mais do que comportamento, isto é a relagdo entre um aspecto da atividade do individuo (a resposta) e um aspecto da atividade do ambiente (0s chamados estimulos) — insistem Moderato & Ziino(1994) ~ obrigava a ciéncia jovem a ppercorrer de maneira acelerada todo um caminho ttilhado nos séculos anteriores pelos cientistas naturais ¢ contribuiu de maneira fundamental para a definiglo cientifica da disciplina © percurso de Watson foi influenciado pelo pressuposto de Loeb de quea organizaga0 do comportamento segue uma ordem necesséria. A pattir de associagSes miiltiplas entre as relagdes, de estimulo e resposta, poderia se entender ‘comportamentos mais complexos. Assim, uma das cosmovisdes que contribufram para 0 ehaviorismo foi o mecanicismo, que ao fazer implicitamente uma analogia do comportamento méquina, propunha que, através de combinagdes de relages causais simples, 0 funcionamento da pessoa poderia ser estabelecido. ‘A relago de causa e efeito, 0 esquema ent&o ...”” constituiu-se na base funda- mental deste paradigma. Até 0 pensamento é considerado como sendo uma organizacao hierdirquica de cadeias de estimulo-resposta, Os elementos que constituem o racioeinio mais elevado so semelhantes aqueles presentes no balbuciar de uma crianga, assim como as todinhas numa maquina muito complexa podem ser iguais as de um brinquedo simplis- simo ¢ 0 funcionamento de ambos pode ser on 2 compreendido a partir da interagdo entre as fungOes das suas partes. Assuntos io subjetivos como as emogdes (Watson, 1928), ¢ a construsio do sentido da propria vida (Watson, 1932, citado em Cohen, 1979) se tomaram, ento, assuntos pata pesquisa objetiva. © estudo cientifico da personatidade como conjunto de padres de habitos compostos de respostas submetidas ds leis da aptendizagem (Watson, 1928) foi inieiado, para ser levado a ‘maturidade, dentro desta mesma visto, décadas depois, por Eysenck (1982). Durante a vida do fundador, o beha- viorismo jé se diversificou. Depois do enraiza- mento da escola, uma vertente metodoligica se desenvolveu nos meios académicos. Esta se apegava as anélises dos comportamentos objeti- vamente acessiveis, enquanto outros insistiam em que todos os processas psicologicos eram acessiveis 4 andlise comportamental. Os primei- ros excluiram, por motivos de rigor experi- mental, os processos psfquicos, enquanto os segundos buscavam ser uma ciéneia psicologica inteira ¢ totalmente comportamental. Essa posigdes evoluiram a uma fase mais operacional, onde se encontram os pesqui- sadores com uma visio molecular, procurando resolver perguntas complexas através da anélise de comportamentos simples ¢ os beha- vioristas molares, interessados na agéo do organismo integral. A margem das iniciativas robustas, a primeira ligada ao nome de Hull ea segunda ao nome de Tolman, apareceram 0 intercomportamentalismo de Kantor e a andlise do comportamento de Skinner. Representam tum passo em que a afinidade com 0 empirismo de Mach veio eclipsar o rigor mecanicista de Loeb, que ameayou se tomar uma camisa de forga para a abordagem. Quem 18 Kantor ou Skinner reencontra as respostas emitidas pelo organismo transfor- Behaviorismo: reflexdes acerca da sua epistemologia madas, Agora ndo so mais resultados de um algoritmo causal, como era 0 caso nos trabalhos deHull ede Tolman, mas so emergentes de uma sucesso de interagdes. As fungdes destas interag6es sao determinadas pelos contextos que so, por sua vez, determinados pelos com- portamentos. As agdes s6 sao influenciadas pelo ambiente, porque tém efeitos sobre este diltimo. E so 0s efeitos do préprio comportamento sobre 0 meio que determinam a influéncia que o ambiente tera, Oesquema “Se... enti...” agora tem um outro sentido. Na contingéncia triplice, 0 “Se fago ¥ na presenga de X, entio a probabilidade de Z aumenta”, a forga do comportamento Y & fungio de Z e Z ¢ definido funcionalmente em termos da probabilidade de Y. Os conceitos se tomam circulares: no é mais possivel definir uum em fingaio do outro, sem definir o titimo em func&o do primeiro. Como posso reforgar Y? 0 reforgador Z que é contingente a emisstio de Y na situagdio X aumentaa freqiiéncia do compor- tamtento. Como posso saber se Z é um refor- gador? Porque quando aparece contingente & emissio de Y, a freqtiéncia do comportamento aumenta. Assim, um ponto de vista que jé era homem produto do seu meio’ de Watson e cujas raizes distavam a0 implicito na visio do funcionalismo, vinha em primeiro plano no behaviorismo modemo. Apesar de ter surgido paralelamente com as grandes tendéncias comportamentalistas, ele sé chegou a dominar o movimento quando a influéncia do beha- viorismo sobre a psicologia experimental norte-americana entrou em declinio. Entretanto, 6 pensamento Skinneriano chegou a influenciar profundamente a pesquisa experimental no Brasil, enquanto a corrente Kantoriana, que teve um impacto importante nos meios behavioristas mexicanos, recentemente ressurgiu nos Estados Unidos. 13 Autores como Micheletto (1999) e Del- prado (1995) ressaltam que o homem é produtor das contingéncias que o determinam. Assim seu comportamento € produto de sua propria agi. Essa determinacio ocorre por uma conjungao de milltiplas dimensdes em que comportamento e ambiente se transformam a partir de um processo de interagdes reciprocas das contingncias da biologia, do reforgamento direto e da vivéncia social. O behaviorismo psicolégico ou peradig- mitico de Staats (1995; Eifert, 1978) e 0 teleo- Ligico de Rachlin (1994) se destacaram do beha- viorismo radical, mas mostram a mesma viséo interativista E interessante observar que nesta visio a dicotomia entre os esforgos de Tolman e de Hull ésuperada, A unidade de andlise se toma extre- mamente flexivel porque tanto elementos moleculares quanto sistemas complexos podem ser estudados como evoluindo numa interaggo dindmica com o ambiente. Assim, nfo precisa mais recorrer & anilise de elementos simples para examinar os processos complexos, nem precisa manter metodologias separadas para processos superiores. Micheletto e Serio (1993) salientam que o sujeito Skinneriano, nao ¢ algo que existe por si mesmo. ‘Sujeito’ deve ser visto coma ‘interagao’, Na rela¢do entre homem e mundo, ha uma transformagao reciproca, onde nao existe autonomia nem de um nem de outro. Nesta relagio de troca continua acontece o comportamento, que produz conseqiiéncias sobre o ambiente as quais modificam 0 compor- tamento. Assim, o homem e€ o seu ambiente sio_ intrinsecamente entrelagados. E através dessa reciprocidade que cada pessoa, ao agir, desen- volve uma maneira de ser que Ihe é tinica, Similarmente, Kantor (1924-1926) descreveua resposta ¢ o estimulo como interde- pendentes. Um define 0 outro em fungio do contexto no qual interagem. Ele incorporou os Marla Viega e Luc Vandenberghe trés preceitos do funcionalismo, adaptago, fungao e contexto, na sua psicologia. Excluiu a idéia de adaptagao e a nog&o teleol6gica nela implicita e modificou 0 conceito de fungi para descrever a interagiio entre o organismo ¢ outros eventos sem, no entanto, aceitar a idéia funcionalista de mediagdo mental. Assim 0 kantoriano estuda 0 universo como uma uni- dade dindmica (Hayes, 1997). ‘A adaptagio do individuo é, tanto para Kantor (1958), Skinner (1969), Rachlin (1994) ou Staats (1995), umé interagfo continua, As fungées psicol6gicas dependem da historia do individuo que gera uma teia densa de relagdes com o ambiente, que por sua vez influencia 0 responder a qualquer estimulo. Os behavioristas estudam comportamento no seu “acontecer”, onde os diferentes termos da contingéncia s6 podem ser definidos em relago aos outros. Nio pensam mais em termos de associagées diretas da resposta ao estimulo nem em termos de relagées necessirias, mas em termos de conti- nuos probabilisticos. Comportamento é um constante vir a ser, adaptagio dinémica a uma realidade que muda a todo instante como resultado da propria adaptagao, Devido a exigéncia da observagio obje- tiva, o behaviorismo metodologico abriu espago para o principio de verdade por concordincia, conformando-se assim ao paradigma mecani- cista, Este principio foi explicitamente rejeitado por Skinner (1963) ao afirmar que, quando duas pessoas observam 0 mesmo fato, ambos podem estar sujeitos ao mesmo erro. Assim, 0 que ¢ somente acessivel a um observador tornou-se de novo matéria legitima para a investigagao cienti- fica, A tarefa de tratar os eventos privados numa perspectiva ndo-mentalista é trazida de volta e a introspecgdo € resgatada para o behaviorismo (de Rose, 1982; Tourinho, 1997) ampliando as possibilidades de atuag3o clinica (Guithardi, 1995; Banaco, 1993). 4 Para o behaviorista moderno (Tourinho, 1997; de Rose, 1982; Eifert, 1978) e, de novo podemos acrescentar aqui, também para o proprio Watson (1924/1928), sentire agir assim como pensar € im: nar so igualmente produtos da histéria de interagdes entre o indi- viduo ¢ 03 seus contextos materiais, verbais & sociais. Isto significa que oato de sentir deveser estudado como um comportamento e nfo como um estado. Nao explica por si mesmo os comportamentos piiblicos. O que é sentido internamente € um outro evento e € efeito de comportamento, nfo causa. ‘Se comportamento é uma relagao interde- pendente num campo multifuncional (Kantor, 1958), adistingtio entre a pessoa e seu ambiente é arbitraria, j4 que o que acontece fora e dentro do organismo € sempre interligado por uma rede densa de relagdes funcionais. Os eventos enco- bertos (Skinner, 1942) também chamados de comportamentos sutis (Kantor, 1956) sio igual- mente inseridos num tecido de contingéncias. So eventos que participam — com os mesmos direitos quanto estimulos e respostas piiblicas ~ nesta rede de relagdes que permeia e conecta. Numa tal complexidade de interagdes surge @ imagem do ser humano inteiro, floragaio de inte- rages continuas dentro de uma multiplicidade de contextos (Kantor, 1956; Staats, 1995; Hayes, Strosahl and Wilson, 1999), papel fundamental da linguagem na compreenstio de processos tradicionalmente considerados “superiores” foi uma dlas grandes contribuigdes de Watson (1920) ¢ foi elaborado em trabalhos pelos seguidores de Kantor (Ribes-Ifestra, 1992), Skinner (Hayes, Strosahl ¢ Wilson, 1999) e Staats (Eifert, 1987), que sempre procuraram entender estes processos lingtiisticos como interagdes com 0 ambiente, ¢ os abordaram assim necessariamente como produto social. © ato de conhecer é entendido ha mesma relagdo. Falar sobre um objeto de Behaviorismo: reflexdes acerca da sua epistemologia conhecimento ¢ agir sobre uma rede social e gera em cada sub-cultura e em cada caso indivi- dual, efeitos diferentes sobre os repertérios verbais relevantes. Estes efeitos determinam 0 sempre produto de uma histéria de interagdo. Conseqtiente- comportamento, assim a ago mente, 0 conhecimento como ato verbal tanto criador da cultura, quanto produto da mesma. O auto-conhecimento & abordado da mesma forma, Autores como De Rose (1982) ¢ Haydu (2001) descrevem como ainterago com a comunidade verbal gera a maneira da pessoa explicar a si mesma e aos outros. Comporta- mento verbal auto-descritivo em diferentes sub-culturas e em diferentes casos individuais levara a emergencia de qualidades diferentes de auto-consciéncia, Isto no s6 mostra o caminho para uma nova compreenstio cientifica do set humano, mas também para uma aplicagao clinica onde o psicoterapeuts ¢ 0 cliente consti- tuem uma nova comunidade verbal que permite que novas contingéncias sejam discriminadas ¢ uma nova compreensio de si mesmo sua. Todo “saber” é funedo da agdo particular do individuo em relagio a eventos pai em contextos particulares (Kantor, 1958) Conceituar o saber desta formia, como 0 compor- tamento do individuo e assim, logicamente, como produto da sua histéria de interagdes, tem implicaghes epistemolégicas importantes, Afasta o ideal da verdade objetiva. Contudo, nto ha na visio Kantoriana, objetos a serem conhe- iculares cidos, exceto as nossas préprias agdes em relagio a estes, 0 que necessariamente os redefine em termos de fungdes nas interagdes (Hayes, 1997). © que sobra, abandonando este ideal, € que 0 saber tem 0 seu valor pragmético dentro do campo de interagdes do qual ¢ fungao. Conhecimento cientifico, entZo, é sempre uma construgdo verbal endo tem outras garanties além das contingéncias que regem 0 comporta- mento verbal do cientista. Até a insisténcia do 15 dehaviorismo metodolégico na objetividade rigorosa ndo é outra coisa se colocar 0 comportamento descritivo do cientista jo uma tentativa de sob controle discriminative dos dados, através do método hipotético-dedutivo com os seus delineamentos com grupos de controle e testes de significdncia estatistica. A garantia da replica- bilidade por outros pesquisadores, que se torna possivel através deste rigor metodolégico, intro- duzo papel da comunidade cientifica. A propria exigéncia de concordancia entre observadores se resume & attiagiio de uma comunidade verbal ‘Mesmo assim, a oposigao profiunda entre © método indutivo e 0 hipotético-dedutivo continua sendo uma dicotomia dbvia dentro do movimento. So duas maneiras muito diferentes de se fazer cigncia. O salto do mecanicismo ticito dos behaviorismos ditos metodolégicos para ums visio interacional no ¢ to grande quando consideramos que as garantias da obje- tividade cientifica podem ser traduzidas em termos de um treino discriminative como sugerido acima, Isto se toma mais claro ainda quando observamos que Eysenck (1972) abraga explicitamente a pragmatica como critério de conhecimento cientifico valido, Uma anilise cuidadosa (Vandenberghe Reis, 2001) das formulagdes deste autor revela ainda que a stia visdo referente & pesquisa sobre a eficdcia clinica evoluiu de um raciocinio claramente linear (Eysenck, 1959) para um muito mais contex- tualista (Eysenck, 1994), apesar de manter firme asuaescolha para ométodo hipotético-dedutivo. Com Moderato Ziino (1994) podemos acreditar que o contextualis no é uma evolugao normal numa ciéneia que chegou a um nivel de controle e predigao suficientemente adequado, como aconteceu na Fisica e Biologia modemas, Seria exatamente 0 sucesso do projeto experi- mental rigoroso que possibilitou este salto de qualidade no pensamento cientifico. Marla Viega € Luc Vandenberghe E possivel que @ pesquisa empirica na area clinica seja um dos fatores que facilitam esta transformagiio. Embora nascidas no labora- t6rio, foi no campo da psicoterapia que tanto a visfo Kantoriana (Delprado, 1995) quanto a Skinneriana (Hayes, Strosahl e Wilson, 1999; Kohlenberg e Tsai, 1991/2001) mostraram plenamente os seus potenciais como aborda- gens contextualistas. Paradoxalmente, a face mais mecanicista do behaviorismo se mostra hoje nas linhas mais avangadas da pesquisa experimental, onde 0 métgdo hipotético- dediutivo demonstra ser mais adequado a tarefa de afinar areas de conhecimento cujos proces- sos basicos ja esto bem estabelecidos (Foxall, 1998), 4. Conclusao Anossa discussio deve deixar claro que a pretenstio do behaviorismo de se posicionar entre 9s ciéncias naturais, de forma alguma 0 identifica com 0 positivismo, sendo que estas ciéncias abandonaram e também nao procuram seadequaraeste ideal. A afirmacao Watsoniana de que @ pessoa poderia ser analisada como fungdo de uma historia de adaptagio a uma sucesso de ambientes, continua sendo essen- cial no behaviorismo modemno. 0 abandono do ‘modelo de causagdo linear, a favor de um ponto de vista radicalmente interacional, aconteceu gradualmente através de uma maturagio do behaviorismo histérico e mostrowas suas vanta- gens de forma mais clara na érea clinica As idéias do proprio Watson contiveram as sementes do contextualismo em seu conceito de comportamento como matéria de pesquisa. Raramente 0 behaviorismo histérico foi coeren- temente mecanicista. Questées do tipo “como funciona” sto encontradas desde 0 inicio da hiistéria do movimento ao lado de “qual é @ fungtio disto dentro deste contexto?” Assim, os diferentes behaviorismos se encontram em posigdes divergentes, no continuo entre meca- nicismo e contextualismo, com Kantor represen- tando o titimo extremo e Hull, o primeiro, A nossa anilise das atitudes dos beha- vioristas frente ao conhecimento expés valores cientificos divergentes. Nas versdes Skinneriana ¢ Kantoriana, a propria nogao de “verdade” & colocada entre parénteses, enquanto outras vyersdes do behaviorismo insistem em objeti dade formal. Mas justamente com a sua énfase sobre exatidio, todo behaviorista ¢ um puro pragmatista, para quem conhecimento néo pode- ria ser outra coisa do que comportamento, defini- do pelo seu relacionamento com o ambiente. Desde Watson, 0 carter revoluciondrio do behaviorismo est na sua rejeig#o de uma meta-linguagem, na qual todas as outras linguagens poderiam ser traduzidas e avaliadas. Para o behaviorista, cada fendmeno precisa ser relacionado com o seu ambiente tinico. Cada colocagio tedrica deve ser estudada no contexto no qual emerge. Assim 0 behaviorismo muitas vyezes da a impresstio falsa de set uma abor- dagem sem teoria, enquanto & de fato, uma teoria auto-referente que se reinicia a cada indagagio. ‘A auséncia de tal meta-linguagem leva a uma fragmentagio conceitual. Podemos citar a oposigdo entre o paradigma operante e respon- dente, ou entre as afirmagdes que pensamento & comportamento verbal e que comportamento verbal nio tem fungo de representagio, Que © behaviorismo pode sustentar tal fragmentago tem tudo a ver com seu critério de verdade pragmatica, Muito mais do que ameagar @ epistemologia behaviorista, a recusa de uma formulagdo unificadora que poderia tomar 0 saber sobre 0 comportamento uma totalidade coerente e fechada traz consigo uma flexibili- dade e abertura para o crescimento. Behaviorismo: reflexdes acerca da sua epistemologia A énfase na descrigfo objetiva est em contradigdo aparente com esta filosot vista, mas a propria definigzo de conhecimento como comportamento verbal exige que este esteja sob controle dos dados com os quais 0 estudioso interage. Esta definigao torna incon- tomavel a percepgio de que a objetividade cientifica ndo pode existir além do controle discriminative dos dados sobre repertérios descritivos e resultado da historia de interagaio do cientista com o seu mundo, Sem essa percepgao, 2 énfase sobre a objetividade se tomaria insus- tentével porque daria abertura para a loucura do saber onipotente, inadmissivel dentro do beha- viorismo pois o proprio conhecimento cientit € objeto da mesma anilise funcional como qualquer outro comportamento, Assim, os paradoxos de uma ciéncia exata que se estende & propria subjetividade do cientista, a uma visio do homem como resul- tado do seu ambiente e criador do mesmo, a uma abordagem que exige abjetividade rigorosa eao mesmo tempo relaciona o saber ao pragma- tismo, constituem tensbes dialéticas, Elas confi- guram a chave da sobrevivéncia do behavio- rismo como proposta cientifica e excluem o perigo de que se torne um sistema dogmatico e necessariamente estéril. relati 0 Referéncias Banaco, R. 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