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Carlos Roberto F Nogueira labe ~imaginario Diabo 6 uma das figuras eentrais do imaginério cristo ocidental. En- lrelanto, 0 estudo de suas origens & dos papéis histéricos que esta curiosa figu- ra desempenhou ao longo dos séculos no tem merecido a atengao necessaia, Nesta obra, Carlos Roberto Nogueira aprofunda com a crudigao necesséria esta problemstiea, pesquisando e apresentando a fusio existente entre a historia do Cris- tianismo e a histéria do préprio Diabo. O papel decisive desempenhado pela pre- senga deste personagem seus agentes dentro de uma erenga oficial — 0 Cristia- nismo — é analisado a partir da necessi- dade desta crenca personificar um cle- mento como 0 representante do Mal. tentativa, to earacteristica ao longo da histéria do Cristianismo, de tran- jiilizar © uniformizar as conscién- cias, & aqui estudada em suas causas efeitos, destacando-se que estes tiltimos no foram os definidos ¢ esperados segun- do seus objetivos originais, pois acabaram gerando aspectos, considerados nefandos por seus proponentes, que culminaram até mesma nium certo “prazer estético” em relagio a0 Mal. Apds as revolugdes burguesas na Europa, ha uma certa reabilitagao do Diabo, possibilitada sobretudo pela sepa- ragio entre Igreja ¢ Estado. Este momento merece uma anzilise especial do autor, que comenta ¢ aprofunda abordagens existen- tes e mesmo consagradas deste novo perio- do histérico. Eo momento em que 0 De- monio passa a ser um dos simbolos da revolta humana, encontrando seu pice em muitos autores do Romantismo. Coordenagdo Editorial Inmé Jacinta Turolo Gar Assessoria Administrativa Irma Teresa Ana Sofiatti Assessoria Comercial Irma Aurea de Almeida Nascimento Coordenagdo da Colegio Histéria Luiz Eugenio Véscio ‘tered Ui Sagas Congo ua ima Arminda, 10450 ‘yat-t60 - Bauru - SP Fone (14) 235-7111 - Fax (1) 295-7219 ‘emai: edusct@use.br N778d__ Nogueira, Carlos Roberto (0 Diabo no imaginsrio cisto / Carlos Roberto FE Noguera. -= 2, ed. -- Bauru, SP : EDUSC, 2002, 126 p.ril.; 21 em, + (Colegio Hist}. Inclut bibliografia ISBN: 85-7460-019-9 1, Demonologia, 2. Deménio. 1. Titulo, 1, Série. cpp. 235.4 1 de: 2000 2 Biigio: 2002 e-mail do autor: erfn@excite.com, SUMARIO W 13 25 41 n 103 17 121 Prefacio Introdugao As origens do anjo rebelde Cristianismo e demonolatria Deus € 0 diabo: a pedagogia do medo O triunfo de Sata Epilogo Vocabulario critico Bibliografia PREFACIO Nos tempos que correm, uma rellexdo sobre a hte do stato pode acabar por ser discurso mulkivoeo, O abo no innag- rndroerudo de Carlos Roberco Figucizedo Nogueira € um exer- plo muito bem acabadio desta possiilidades pluras, Resultado de uma tradigdo de séculos, elaborada a partir do substrato herdado do mundo judaico, por sua vezinfluenciado por ‘outa eulturas,arepresentacSo européia do demdnio nao 6, final- ‘meme, allela 2 uansformagio operada com 0 advento da exis tandade medieval que © enloca em lugar central da rellexi0 igica sobre a existéncia do mal e sobre o problema do pecado. ‘Neste sentido, a demonologia c1isti acaba por ver no iabo o protagonista de uma luta cismica que reronta a um tempo anterior Criagio, e cua contimacéa se projeta ao longo de toda a Historia, No entanto, olhado de perto, este esforgo de conceptuali- zaglo nem sempre se desenvolve de modo linear. Operado ea Consonancia com a evolucae intelectual prépria dos séeulos ‘medievos: s40 muitas ¢ variadas as sobrevivenetas; sao multiplos 1 discursos qualiieados de cristdos; io dispares os contextos sodiais, as influéndas culturais ¢ 0s objetivas de tantos textos que se poderiamn aduzr a propésito desia matéria, E, além disso, no so pequenas as discrepancias provo- cadas pela cronologia Para sé falar da Idade Média, que coeréncia existe entre, por um lado, © mundo das primeiras cenitrias (murido de con trastes profundes, de assimilagies ndo terminadas, le plastic dade extrema nas formas sociais ¢ culturas), por outro lado, 0 ‘mundo da Critandade instiucionalizada dos séculos XML © XI (onde € nokivel o esforgo de eonceptualizacio clasiicagao de todas as facetas do universe, com ineidéncias também na, rellexao sobre a acio demoniaca), ¢, fnalmente, o mundo ter- minal da Kade Média ¢ do advento da Modernidade (tempos dominados, em diferentes aspectos, pela grande crise ocidental)? Sendo assim, para além de todas as divergéncias © rmatizes julgo que a grande continuldade se situa a0 nivel da reflexio teoldgiea mals exigente Nesta ordem de ideias, parece evidente que, ao longo da histéria do pensamento ocidental, sempre que o Cristianisme ddeixa mareas da sua inuéncia, esté presente a erenca no diabo. No Amigo Testameme, 6 entendido camo 0 que se opac; € 0 adversiri, é 0 acusador. A partir de determinado momento, a ‘radigao olha-0 como um ser individual (vg. 0 Livro de Job ou 0 Livro de Tobias). No Nove Testamen, onde € ireqientemente des- ‘to 0 encontro pessoal, sucedem-se as demotas de Satanés Fste, de acordo com tradigio crista plasmada na Idade -Méalia,é espiritoinsinuador, ce mil modos mascarado; ruidoso ou silencioso, est sempre atuante, munca descansa; 0 ongulho e © Gdio dominamn a sua incansével aividade, &, de fata, nome € rosio da revolia contra Deus = loucura extrema e suprema ini- ‘qldade -, cuja frieza munea deixa de desconcertar. Nos tempos medievos, so muitas as formas escolhidas para » mostrar. No entamto, a monstruosidade horeivel domina as deserighes © a iconogralia. £ uma forma de representagio Porque. enquamto espirto, © deménio ngo tem aspecto cor- péreo, sendo o homem, submergido na cultura ¢ mentalidade priprias de cada época, quem o pinta com estas ou aguelas ‘ener On era, sen deménio, em si, estéaldm da Hist6ria. a soa rpresentagdo (pelo discurso, pela afctividade, pela iconogratia) & sempre produto da Thst6ria.. Monstruoso ou atraente, ¢ sem pre aparente a formna esculhida e momentneo 0 caréter adora- do, De qualquer modo, de acordo com a mesma tradigio, 0 demdnio ~ anjo caido~ & criatura maravilhosa na sua inteligén: Ga e vontade. ‘Mas, n0 fundo, embora pléstico na muliplicdade das suas manifestagbes ¢ das representagies que Ihe sio atrbuidas, tembora vestido com atributos varios que as diferentes mental: dades Ihe concedem, algo attavessa os sGculos. Para 0 pensa- mento sistematico, & a neoessidade de explicar a existéncia do ‘mal e de dar sentido aos permanente dilemas da vida, Para as sensibilidades menos presas is ortodoxias {misto de sincretismo cultural ede religiosidade popular insuficentemente liberta dos varios politeismos), & 0 desejo de encontrar cveréncia enire a f6 ‘num nico Deus e a dispersio dos daimon herdados de urn fundo ancestral. Para muitos, & manifestagio do medo com que a vida a todos atormenta, F do medo por exceléncia que é a Xdescrenga em ns proprios. Talvez por isso. o Poverllofrancis- ‘ano tanto recomendava avs seus iemaos, como remédio contra a tentacio, a alegria de espirito. ‘Aos ollios de uma letura mais atenta, uma rellexio sobre a existéncia do deménio levanta ainda outra ordem de ‘questées: a seu modo, uma tal rellexao revela a crenga na ‘apacidade da divindade para ordenar a criagio em relagio aos seus fins. Com efeito, embora as diabos lutem porfiadamente por desviar o homem la salvacao, nao é menos verdade que cesta sua atividade esté, em cima andlise, subordinada aos planos da Providéncia. O seu poder & sempre poder de eriatura, portanto, controlado. Ali, a eliminagao do demnio tem con: seqiiéneias: entre outras coisas, implicaré a wansferéncia do mal para a constituigio ontoldgica do universo, 0 que nio deixa de ser desagradvel Por sso, 2 aluagio demoniaca 86 tem sentide quando se Inscreve numa visdo en que a liberdade ocupa o ceme da hist6ria humana. Quer ito dizer que a atuagdo diabélica &, em certa medida, co-protagonista da Historia? Talvez.. quando a associamos a uma perspectiva mifante da Vida... Sa Mateus € ‘9 Apocatipse, por exernplo, dizem-no claramente: a doutrina das, ‘tas cdades, de raiz agostiniana, explicita-o;¢, ao longo da Idade “Média, muitos sio os textos onde esta visio ests present, # este co-protagonismo que, assumido na Chisiandade a partir do século Xf, fciita 0 desenvolvimenta de urna mental lade favoravel ao que jd se chamou aa primeira grande explode sabi. Na tadicio sistematizada nestes séeulos, @ demdnio & autor de uma resposta livre (€ 0 Nae serie de Jerernias, 2, 20), fem palavras de Inacéncio Ill, & anjo cafdo, no por natureza, mas por alvedrio, Sendo agente temtador, forga 0 homnem a optar, ria condig6es que o obrigam a decidir, que, em tilima andlise, tem um sentido potencialmente positive, Assim, a existéncia do, ddeménio reveste-se, para a humanidade, de dupla face: ele, 0 rival de Deus, transormado em inimigo do mesmo homem, ‘constitui-se ~ suma contradigio ~ em criador de aportunidades de clevagio moral, Talver porque tenham estado demasiado contlcionados pela crise de tbieza tipica da sensibilidade religlosa da Balxa dade Média, os homens dos séculos XIV-XV1, também domina- los por este duplo significado da existéncia do deménto, acabaram por viver subjugades pela presenga contante do tspirto diabéiico. Pelo menos, assim o pensavam. De qualquer modo, sem liverdade dificiimente a Hst6ria Fhumana tera sentido, Pelo menos, uma Histéria onde o hormem seja protagonbsa. E, paraa tradicional heranga cultural erst, ‘uma tal stra dificimente se pode alhear da presenga de usr sistema de explieagio em que o demanio tem uma posigao fu cal Sap freqiientes, hoje em dia, as siuagdes em que, tlvez porque demasiado presos a uma visao dualista, cujas origens Femontam as raizes do: maniqueismo antigo, ou talvex porque dlemasiado instalados na crenga ingénua no papel liertador do progiesso, associamos o pader diabélico a tudo quante, neste mundo. € desgraga, sofrimento, morte, E tudo recusamos (deménios e males humanos}, no afa de eiminar todas as limi- tages ¢ todas as contrariedades. Mas esquecemo-nos de que, de cord com a tradigdo erst os efeitos diabslicos so sobretudo de ordem moral, € que, portanto, a desgraga, 0 soimento e a _morte nio serio fargosamente agradaveis ao deménio. Em cada Greunstncia, tudo depende da opgio escolhida por cada um. Principe deste mundo assim € reerido em sniiplas fonces = simboliza, na tealidade, a opcio pelo pecado. No dizer de S Tomas de Aquino, “quando os homens. cometendo 0 pecado,, si conduzidos a ess fim, ito & 3 aversév a Deus, caem sob & regimento ¢ governo do Diabo, ¢ este pode ser camado a sua cabeca” [Neste sentido ~e para retomar as palavras inicais, relat- vasa plurisignificagio, dentre as quais se inscreve a rellexdo de Carlos Roberto Figueiredo Nogueira ~ 0 deménio pode apr sentarse como discurso multivoco © acaba. sempre por ser enriquecedor. Porque ~ para além da multiplicdade e da diver- sidade dos dsaersos demonolbgicns,e das suas complexas genealo- sas, para além da crenga (maior ow menor) na real existéncia fdo(s) diabo(s), para além dos deménios coneretos que cada tempo escolhe para com eles degladiar ese preocupar io reais, ‘9s problemas que eles) levanta(m). Porque sio os problemas, ide fundo que aletam o homens na sua hist6ria, Ontem e hoie. Lie Addo da Fonseca Porto, agosto de 2000, 10 INTRODUGAO A cristianizagdo da cultura européia traz.consigo uma vitagem decisiva para a hist6ria do imaginario. Mesmo se tendo em conta a presenga de certas comti- nuidades importantes, a mudanga nos sistemas de representagées mentais ¢ evidente seja na natureza do mundo sobrenatural, seja nas relagées do homem com seu corpo. Assistimos @ construgio de um sistema de conte‘idos simbélicos onde se articulam de maneira cficaz.a realidade € o imaginado , 0 mundo dos vivos € 6 além-tumba, intermediados por um universo invisi- vel de seres sobrenaturais, que de uma maneita feroz- mente maniqueista, empenham-se num combate sem Juas que 6 terminara com @ Armagygedont: a lta da~ tada da propria Criagio, entre o Bem € 0 Mal. Comba- te que transborda da esfera do sagrado para pautar condutas € comporiamenios cotidianos, servindo de explicagio para a realidade e as desventuras vividas, para explicar os impulsos incontrolaveis da came, ¢ para ensinar & hoa coletividade, ao *rebanbo dos fiéi donde se encontram Said ¢ seus agentes. Pairando sobre a coletividade dos laicos, os “guardiaes do sagrado", devotam-se & pia tarefa de manipular e traduzir este imaginério extremamente rico, na tentativa de uniformizar € aquietar as cons~ ‘cigncias, mediadores que sfo entre a realidad brenatural. Contudo, essa mediagao esta longe de ser eficaz, pois estamos diante de uma coletividade per meada por diversos contetidos simbélicos,, no qual © Cristianismo preenche ~ ainda que de modo domi- nante ~ somente uma parcela das representagies. uw Portanto, no ala de garantir a hegemonia das crengas, a Igreja necessita detectar, divulgar ¢ exorci- ar 0 Mal, garantindo assim, o dominio da consciéncia coletiva, Aqui, chocam-se duas tendéncias: uma reli- sgiosidade que € vivida pela coletividade e entremeada de creneas tradicionais € a tarefa da ortodoxia de ga- nhar o poder sobre as consciéncias, ¢ levar a coletivi dade a aproximar-se € sujeitar-se a0 discurso eclesids- tico. Para a ortodoxia religiosa, a imagem realmente herética, era estabelecida através do "pacto com 0 de- mOnio, entendido nao tanto em sentido contratual, mas sobretudo em sentido feudal, veiculador neste sentido, da idéia de uma relagao, nao entre duas par- tes iguais, mas de sujeigao, da fidelitas que 0 homem jurava ao Diabo, em cuja ceriménia se Ihe rendia ho ‘magiun, como 0 vassus a Seu senhor", Este mesmo "pacto” demonfaco, que na opinio dos tedlogos de fins do periodo medieval, era assimilado a0s pactos entre mercadores, ambos traigoeiros e furtivos, de- vendo serem desprezados pelos bons cristaos. E & pre~ cisamente nesse contexto de fidlidade a Sat3, que va~ ‘mos encontrar 0s meios ¢ a possibilidade da constru- io de uma Demonolatria. © Demonio representa a opasigdo fincamental, dialeticamente relacionada com o ees dominante, 20 qual se ope virtualmente, freqiientemente como for- «a de rebeldia, ‘A construgio pela elite dirigente de uma mitolo sla saténica a0 longo do Cristianismo, implicou em um monumental esforgo de reconhecimento do inimigo, de suas formas ¢ possibilidades de atuacio, em parale Joa pia tarefa de identficagao de seus agentes. ou seja, daqueles que embora inseridos no rebanho dos seeretamente tramavam para a sua perdicao. 12 Capitulo 1 “> AS ORIGENS DO ANJO ve REBELDE ‘A TRADICAO HEBRAICA Fendmeno de cardter essencialmente histori- co, a compreensao de como se estrutura a figura do Deménio no Ocidente cristéo leva-nos necessaria- mente & tradigéo religiosa hebraica, responsavel pela gestagao do Cristianismo. Este, como religido dominante na coletividade ocidental, reuniu, siste- matizou e determinou a figura, as atitudes e a esie- ra de ago de nossa personagem: 0 Diabo. Foi a religiosidade hebraica que imprimiu nas conscigncias posteriores 0 arquétipo do Grande Ini migo, constitufdo através de sua evolucao hist6rica; ¢ 0 hebreus, cuja nacio se originou das muitas tri- bos existentes na antiga Mesopotamia, foram, por- tanto, herdeiros naturais de crencas religiosas e para- religiosas estreitamente ligadas ao conjunto de mitos € préticas hierdticas existenies naquela regio, ‘A principio, os primitivos hebreus nao tinham necessidade de corporificar uma entidade maligna, Para eles, jahiveh era um deus tribal e, como tal, supe- rior aos deuses das populagées vizinhas, que se colo- cavam, assim como seus adversérios ¢ como expres- soes naturais da maldade, tornando supérflua qual- ‘quer encarnagéo suplementar do Mak Quem entre os fortes (deuses) & semethante a ti, 6 Senhor? Quem € semelhante a ti, magnifico em san- 13 tidade, terrivel e louvdvel, operando prodigios? (Bxodo 15:11). ‘Agora conhed que o Senhor € granile sobre todos os deuses (Exodo 18:11). Posteriormente, essa religido tribal evoluiré em diregdo a um monotefsmo de caréter absoluto, que sublinharé a onipoténcia e a onipresenga de Deus, como 0 supremo poder do Universo criador de todas as coisas, situagao que conferira as Forgas do Mal um poder insignificante. Dpuras imaginagdes que buscam substituir a nogéo do verdadeiro Deus — 0 Deus de Israel 4 mengocs ~freqiientes na Antiguidade—as guerras, no centre reis ou povos, e sim entre deuses. O deus vence- dor subjugaré e se apropriara do terrtorio, submeten- do as divindades nele contidas. 0 povo vencido reagi 1d, endo, num processo de retaliagio, colocando a res- ponsabilidade de seus males na deus vencedor. A esse

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