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O PROBLEMA DA ESTORIA © DECLINIO DA ESTORIA Tmagine, em um dia inteiro, as paginas de prosa viradas, pecas encenadas, filmes exibidos, o fluxo interminavel de comédia e drama televisivo, imprensa escrita ¢ te- levisionada vinte ¢ quatro horas, est6rias de ninat contadas a criancas, conversas de bar, fofocas de internet, o apetite insacidvel da humanidade por estérias, A estoria nao € apenas nossa mais prolifica forma de arte, mas também rivaliza com todas 48 atividades ~ trabalhar, brincar, comer, exercitat-se — por nossas horas acordado. Contamos ¢ ouvimos est6rias tanto quanto dormimos — até quando sonhamos Por qué? Por que tanto tempo de nossa vida é gasto com est6rias? Porque, como o ritico Kenneth Burke nos disse, estérias sio equipamentos para a vida Dia apés dia nés procuramos uma tesposta para a questio eterna que Aris- roteles nos propés em “Etica”: como um ser humano deve viver sua vida? Mas a auestio nos ilude, escondendo-se atris de uma nddoa de horas corridas enguan- fo nds lutamos pata ajustar nossos meios aos nossos sonhos, fundir idéia com Paiste, tornar 0 desejo realidade. Nés somos arrastados através do tempo em uma arriscada viagem de trem. Se nds pararmos para pensat nos padsSes e nos significados, a vida, como um Gestalt, dé reviravoltas: primeira fica sétia, depois comica: estitica, frenética; significativa, sem sentido, Os mais importantes acon. fecimentos mundiais estio além do nosso controle enquanto os acontecimentos Pessoais, apesar do nosso esforco para manter nossas maos na disecko, geralmente 0s contro. Tradicionalmente a bumanidade procurou a resposta de Arist6teles nas quatro sabedorias — filosofia, ciéncia,zeligiio, arte — tentando compreender cada uma delas Para junté-las em um signiticaco digno de set vivenciado. Mas, hoje em dia, quem lé 24 Hegel ou Kant sem ter uma prova a passas? A ciéncia, um dia a grande esclarecedo- 1a, hoje deturpa a vida com complexidade e perplexidade. Quem pode ouvir sem ce- ticismo economistas, socidlogos ¢ politicos? A religiio, pata muitos, virou um ritual vazio que mascara a hipoctisia. Quando nossa fé nas ideologias tradicionais diminwi, nos viramos 4 fonte na qual ainda acreditamos: a arte da storia, O mundo hoje consome filmes, romances, teatro e televisio em tanta quan- tidade ¢ com uma fome tio voraz que as artes da estéria viraram a principal fonte de inspiragio da humanidade, enquanto ela tenta organizar o caos € ter um pano- rama da vida. Nosso apetite por estérias 6 um teflexo da necessidade profunda do ser humano em compreender os padrdes do viver, nio meramente como um exercicio intelectual, mas como uma expesigncia pessoal ¢ emocional. Nas palavras do dramaturgo Jean Anouilh, “ficgdo dé a vida sua forma”. Alguns véem essa dnsia por estétia apenas como entretenimento, uma fuga da vida a0 invés de sua exploragio. Mas o que é, afinal, entretenimento? Ser entre- tido € ser imerso na ceriménia da estétia para um fim intelectual e emocionalmen- te satisfatério, Para 0 puiblico do cinema, entretenimento € o ritual de sentar-se no escuro, concentrado no significado da estéria, que desperta emogdes fortes, 3s vezes até dolorosas. Quando esse significado se aptofunda, 0 ptiblico é levado 4 satisfacdo suprema dessas emogdes. No triunfo de empresatios maniacos sobre deménios hititas em OS CAC! FANTASMAS, ou na complexa anélise dos deménios internos em SHINE - BRI- LHANTE; a integracio da personagem em DESERTO VERMELHO ou em sua desintegragio em A CONVERSAGAO, todos os grandes filmes, romances € pecas, através de todas as tonalidades do cdmico e do trigico, divertem quando dio ao pibblico um novo modelo de vida fortalecido por um significado afetivo. Abrigat-se attis da nocio de que pitblico simplesmente quet se livrar de seus problemas ao entrar ¢ fugir da realidade é abandonar covardemente a responsabili- dade artistica. A estéria no é uma fuga da realidade, mas um veiculo que nos car- rega em nossa busca pela realidade, nossa melhor tentativa para descobrit algum sentido na anarquia da existéncia. Ainda assim, enquanto o aleance expansivo da midia nos da agora a opor- tunidade de mandar estérias através das fronteiras ¢ linguagens para centenas de milhdes, a qualidade geral das estdrias vem se desgastando, Ocasionalmente lemos ou assistimos trabalhos excelentes, mas na maior parte do tempo cansamo-nos de procurar algo de qualidade em propagandas de jornal, locadoras e listas de televi- sio, de desistir de romances no meio da leitura, de fugit das pecas no intervalo, de sair do cinema suavizando nossa decepgio com “mas a fovografia estava linda...” A arte da estoria esti em decadéncia, e como Aristételes observou ha dois mil ¢ trezentos anos, quando a estéria vai mal, 0 resultado é a decadéncia. 25 Estorias falsas ¢ defeituosas substituem substincia por espeticulo, verda- dle pot artficios. Hstérias fracas, desesperadas para segurar a atencio do publico, degeneram-se em espeticulos banais maltimilionétios. Em Hollywood, « imagem fica cada vez mais extravagance, na Europa, cada vez mais decorativa, O com Portamento dos atores fica cada vex mais histridnico, cada vez mais lascivo, cada vez tnais violento. A miisica ¢ os efeitos sonoros vém se tornando cada vee mais temultuosos. O efeito final revela-se grotesco. Uma cultura no pode evoluis sem tims harrativa honesta ¢ poderosa, Quando uma sociedade expetimenta repetitiva- mente pscudo-estérias ocas ¢ envernizadas, ela se degenera. Precisamos de sétiras « tragédias verdadeiras, dramas e comédias que iluminem os cantos tnais sombrios a psique humana € da sociedade. Se nio, como Yeats avisou, “0 centro ake pode suportar”. A cada ano, Hollywood produz e/ou disuibui entre quattocentos ¢ qui- mhentos filmes, virtualmente um filme por dia, Uns poueos sio excelentes, mas & maioria € mediocre ou piot. A tentagio é culpar esse excesso de banalidade em essoas como Babbitt que aprovam as produgdes, Mas lembre-se de um momento de O JOGADOR: 0 jovem executivo hollywoodiano de Tim Robins explica que tem altos inimigos, pois seu estidio aceita mais de vinte mil est6rias para apre- Ciagio, mas faz apenas doze filmes, Esse didlogo é preciso. Os Departamentos de Estorias dos grandes estidios léem atentamente milhares de rotciros, argumentos, “Diminces ¢ Pegas em busea de uma grande est6ria para a tela. Ou, mais provivel, de algo mais ou menos para bom que eles possam desenvolver em algo um pouco acima da média Nosanos 90,0 dinheiro usadono desenvolvimento de roteiros em Hollywood Passou dos $500 milhées por ano, trés quartos disso pagos a roteiristas por options & feescritas de filmes que jamais serio feitos. Apesar do meio bilhio de délares € dos exaustivos esforcos do pessoal do Departamento de Estorias, Hollywood ‘40 consegue achat material melhor do que produz, A verdade dura de actedliae € que 0 que vemos na tela a cada ano é um sefleso razofvel da melhor esctita dos Sltimos tempos. Muitos roteiristas, porém, niio enfrentam esse fato preciso ¢ vivem nos con. fins da ilusio, convencidos de que Hollywood nio enxerga seu talento, Com on as excecdes, génio irreconhecido é um mito. Roteiros de primeira classe sio no minimo transformado em options, se nto produzidos, Para esctitores que sabem Fratet amma est6ria de qualidade, é um mercado ganho ~ sempre foi, sempre seri Hollywood rem um negécio internacional seguro para centenas de filtnes a cals ano, ¢ eles serio feitos. A maioria estreard, ficara em cartaz por algumas semanas, sairé de cartaz e sera piedosamente esquecida, * Options: spo de contraw de opeio arioritisia feito pelos maiores estdios de Hollywood. (NN, do) 26 Ainda assim, Hollywood nio apenas sobrevive, mas prospera, pois no tem, virtualmente, nenhuma competigao, Esse nem sempre foi 0 caso. Do surgimento clo neo-realismo a maré alta da Nouvelle Vague, os cinemas norte-americanos esta- var abarrotados de trabalhos brilhantes de diretores continentais que desafiavam © dominio de Hollywood. Mas com a morte ow a aposentadoria desses mestres, os tiltimos vinte e cinco anos presenciasam um lento declinio na qualidade dos filmes europeus. Hoje os cineastas evropeus culpam uma conspiracao das distribuidoras por seu fracasso em atrair 0 publico. Ainda assim, os filmes de seus predecessores ~ Renoir, Bergman, Fellini, Buftuel, Wajda, Clouzot, Antonioni, Resnais — foram exibidos em todo 0 mundo. O sistema nao mudou. O piiblico de filmes nio- hollywoodianos ainda é vasto ¢ leal. As distribuidoras tem hoje a mesma motiva- cio daqueles dias: dinheiro. O que mudou foi o auteur contemporineo que no consegue contar uma estéria com o poder da geracao anterior. Como decoradores pretensiosos, eles fazem filmes que captam os olhos, ¢ nada mais. Como resultado, a tempestade de génios europeus virou um brejo de filmes dtidos que deixam um vacuo a set preenchido por Hollywood. Filmes asiiticos, porém, hoje viajam através da América do Norte ¢ do mun- do, comovendo € deliciando milhées, apanhando o holofote internacional com facilidade por uma taxi: cineastas asiéticos contam dtimas estétias, Melhor do que pegar as distribuidoras para Judas, cineastas nio-hollywodianos fatiam bem em olhar para o leste, onde artistas tem paix por contar estorias e a habilidade de conté-las belamente. A PERDA DO OFICIO A arte da est6ria é a forca cultural dominante no mundo, ¢ a sétima arte € 0 meio dominante desse grande empreendimento, O piblico mundial é devotado, mas esti sedento por estétias, Por qué? Por falta de esforgo nio é Por ano, trinta ¢ cinco mil roteiros passam pelo setvigo de registro de roteiros da Writers Guild Of America’, Esses sio apenas os registrados, Através da América, centenas de mi- Ihares de roteiros so tentados, mas apenas um punhado sio roteitos de gualidade, por muitas raz6es, mas sobretudo essa: os aspirantes a roteitistas de hoje em dia correm para as maquinas de escrever sem antes aprender seu oficio, Se vocé sonhasse em compor misica, vocé diria a si mesmo: “ja ouvi um monte de sinfonias,.. eu sei também tocar piano... acho que vou fazer uma esse fim de semana”? Nao. Mas é exatamente assim que muitos roteiristas comecal “caja ** Writers’ Guild OF América: sindieaeo dos toteitistas ameticanos. (N. do T) 27 vium monte de filmes, alguns bons, alguns ruins... eu tirel A em inglés... as Zérias esto vindo..” Se voce desejasse compor, isia a uma escola de nuisica para estudar tanto te- oria quanto pritica, focando no género da sinfonia. Apés anos de diligéncia, vocé fundiria seu conhecimento com sua criatividade, , conduzido por sua coragem se aventuraria a compot. Muitos roteiristas que estio se batendo jamais suspeitam que a criagio de um bom roteiro é tio dificil quanto a criacdo de uma sinfonia. De alguns pontos de vista, até mais, pois enquanto o compositor acerta com a pureza das notas, nés mergulhamos naquela coisa complicada conhecida como “natureza humana”. O novato segue em frente, contando apenas com a experiencia, achando que a vida que viveu e os filmes que viu Ihe dio algo a dizer e um modo de dizé-lo. A experiencia, porém, é superestimada. E ébvio que nés queremos roteitistas que niio se escondam da vida, mas que vivam profundamente, ¢ a observem de perto. Isso € vital, mas nunca suficiente. Para a maioria dos esctitores, a sabedoria que eles ganham da leitura ¢ do estado iguala ou supera a experiéncia, especialmente se essa experiéncia nfo for estudada. Autoconbecimente é a chave — a vida mais uma reflexdio nas nossas reacées & vida. Sobre a técnica, 0 que 0 novato confunde com habilidade € simplesmenve sua absor¢o inconsciente dos elementos da estéria a partir de todo romance, filme ou peca que ele ja teve a sua frente, Enquanto ele escreve, combina seu trabalho, por tentativa ¢ erro, com o modelo criado pela leitura e pelos filmes acumulados O roteirista ndo instruido chama isso de instinto, mas isso é apenas habito ¢ é rigi- damente limitante. Ele ou imita seu prototipo mental ou imagina-se na vanguarda, rebelando-se contra o tal protétipo. Mas tatear seu caminho ao acaso ou revoltar- se contra a soma de repeticdes enraizadas no inconsciente nao é, de forma alguma, técnica, ¢ leva a roteiros entupidos de clichés, sejam eles comerciais ou artisticos. Esse método de tentativa € erro nem sempre foi usado. Nas décadas pas- sadas roteiristas aprendiam seu oficio através do estudo universititio, ou em suas proptias bibliotecas, ou através da experiéncia no teatro, ou escrevendo romances. ow como aprendizes no sistema de esnidios de Hollywood, ou através de uma combinacio desses meios. No inicio do século, um grande mimero de univetsidades americanas veio a acreditar que, como misicos ou pintores, escritores precisavam de um equivalente as escolas de arte ou musica para aptender os principios de seu oficio. Com esse fim, académicos como William Archer, Kenneth Rowe e John Howard Lawson. escreveram excelentes livros sobre dramaturgia e a arte da prosa. Seu método era intrinseco, extraindo o poder dos movimentos do desejo, forcas do antagonismo, pontos criticos, estrurura, progressio, crise, climax — a estirta vista de dentro para fora, 28 Esctitores contemporineos, com ou sem educagio formal, usaram esses textos para desenvolver sua arte, transformando 0 meio século entre os formidaveis anos vinte’ e os agitados anos sessenta"" em uma era de ouro da estoria americana, no cinema, no papel e no palco, Nos tiltimos vinte ¢ cinco anos, porém, o método de ensino de Esctita Cria- tiva nas universidades ameticanas mudou de intrinseco para exttinseco. Modismos na teoria literatia desviaram os professores das profundas raizes da estéria em direcio & linguagem, cédigo, texto — a estiria vista de fora, Como resultado, salvo algumas novaveis excecdes, a geragio atual de roteiristas foi mal-educada nos prin cipios fundamentais da estéria, Roteiristas estrangeiros tém ainda menos oportunidades de estudar seu off- cio. Académicos europeus geraimente negam que a escrita pode, de qualquer ma- neira, ser ensinada, e como resultado, cursos como Escrita Criativa jamais foram inclafdas no curriculo de universidades continentais. A Europa, é claro, abriga muitas das mais brilhantes academias de arte ¢ mtisica do mundo. Por que se con- sidera que uma arte pode ser ensinada € a outra nao, é impossivel dizer. O que € pior, 0 desdém pela escrita de roteiros, até recentemente, a excluiu do estudo em todas as academias de cinema européias, exceto em Moscou e Vatsévia. Muito pode set dito contra o antigo sistema de estiidios hollywoodiano, mas a seu favor havia um sistetma de aprendizagem supervisionado por editores de es- toria vetetanos. Aqueles dias se foram. De vez em quando um estidio redescobre © aptendizado, mas em seu zelo em trazer de volta os anos dourados, esquece que um aptendiz precisa de um mestre. Os executivos de hoje podem até reconhecer aptidio, mas poucos tém a habilidade ou a paciéncia para transformar um talento cm um artista. A causa final do declinio da estéria € muito mais profunda, Valores, as cargas, positivas e negativas da vida, sfo a alma da arte. O escritor molda sua estbria a0 te- dor da percepgao das coisas pelas quais se vale viver, pelas quais se vale morrer, do que € tolo almejar, dos significados de justica, verdade — os valores essenciais. Nas décadas passadas, autores sociedades estavam mais ou menos de acordo nessas questes, mas a cada dia que passa nossos tempos se tornam uma era de cinismo, rclativismo ¢ subjetivismo ético e moral — uma grande confusio de valores. Quan- do a familia se desintegra ¢ antagonismos sexuais emergem, pot exemplo, quem pode achar que compteende a natureza do amor? E, se vocé tem uma convice’o, como explic4-la a um piblico cada vez mais céptico? * Formidéveis anos vine: do inglés, Rossing Twenties, denozninagio tradicional des anos 20-nos Estados Unidos, epoca em que ocoreeu sim feriomenal crescimento econdmico — intercompido pela exe de 29 — ¢ contundentes revolugtes culturais, inchuindo a cxiagio do cinema falado. (N. do T) * Agitados anos sessenta: do inglés, Protesting Sixties, época de intensa ayitasio poltio-culmal nos Estados Unidos ena Europa. (N. doT) A corrosio dos valores rouxe consigo uma corrosio correspondente na e t6tia, Ao contririo dos escritores do passado, no podemos supor nada. Primeiro precisamos penetrar nas profundezas da vida para descobrir novos panoramas, aper- feicoar valores e significados, para dai criar um veiculo para a estéria que expresse nossa intexpretacio de um mundo cada vez mais agnéstico. Nao € pouca coisa, © IMPERATIVO DA ESTORIA Quando mudei-me para Los Angeles, fazia 0 que muitos fazem para continuar comendo ¢ escrevendo — eu Ka. Eu trabalhei paza a United Artists ¢ a NBC, anali- sando roteiros ¢ teledramas submetidos 4 consideracéo. Apds cem, duzentas anili- ses, senti que poderia escrever adiantadamente uma cobertura para os analistas de estorias de Hollywood para todos os propésitos, ¢ apenas deixar as lacunas para © titulo € 0 autor. O relatério que escrevi centenas de vezes era mais ou menos assim: Boa descricao, didilogos apresentdveis. Alguns momentos divertides; outros deli- cados, Em resume, unr roteiro de palavras bem escolhidas. A estéria, porém, é un saco. As priniinas trinta pdginas se arrastam como wma lesma, repletas de exxposigan; 0 resto néio chega a seus pés. A trama principal, ou 0 que bd dela, é recheada de coincidéncias convenientes e motivagdo fraca. Nao hd um protagonista aiscernivel. Tensies nao relacionadas que poderiam transformar-se em subtramas nunca chegam ld. Personagens nunca revelane ser algo a mais da que eles prarceen. Nenbum panorama momenténea da vida interior dessas pessoas on de sta socie- dade. E wma colegia sem vida de episidios previstveis, malcontados ¢ clichés que cantinbam para uma confusio sem sentide, PASSE ADIANTE. Mas eu nunca escrevi esse relatorio. Otima estirial Prendew-me desde a primeira pagina ¢ no me largon mais. O Drimeiro ato é construido em diresdo a um climax stibite, que se transforma em soma trama ¢ uma subtrama trangadas de forma soberba, Revelagies sublimes de cartier projimdo, Um grande panorama dessa sociedade. Fez-me rir, me for cho- rar. Chegon ao climax do segundo ato de asa forma tao comovente que ew achei que a estonia fivesse terminado, Ainda assim, das cingas do segundo ato, esse ro- teinista erion um terceiro ato to poderoso, tho belo e tao maguifico que escrevo esse relatirio no chia Parém, esse roteivo é um pesadelo gramatical de 270 pdginas, com wn quinte das palacras mal soletradas. O didilogo 6 to confuso que Olivier nao conseguinia represenié-lo. As descrigies esto cheias de ordens para a cimera, 30, explicarbes subtescturais, e comenténios filosifices. Obviamente no se trata de um roteirista profissional, PASSE ADIANTE. Se escrevesse esse relatorio, teria perdido meu emprego. A placa sobre a porta aio diz “Departamento de Diilogo”, ou “Departa- mento de Descrigo” ¢ sim “Departamento de Est6ria”. Uma boa estéria fax um bom filme possivel, enquanto o fiacasso a0 fazer a estéria funcionar virtualmente garante um desastre. Um leitor profissional que no entende esse fundamento merece ser demitido. E surpreendentemente raro, na verdade, achar uma estéria graciosamente trabalhada com diilogos ruins e descrigSes estipidas. Na maioria dos casos, quanto melhor for a qualidade da estéria(storytelling), mais vivas sio as imagens, mais afiado é 0 didlogo. Mas a falta de desenvolvimento, motivagdes falsas, personagens redundantes, subtexto vazio, furos e outros problemas seme- Ihantes na estéria so a raiz de textos chatos ¢ insossos. ‘Talento literirio nao é suficiente. Se vocé nao consegue contar uma estéria, todas as belas imagens e sutilezas do didlogo nas quais vocé passou meses ¢ meses aperfeicoando desperdicam o papel no qual vocé escreve. O que criamos para 0 mundo, ¢ 0 que cle pede de nds, é est6ria. Hoje e sempre. Varios roreiristas esban- jam didlogos bem vestidos e descrigdes de unhas pintadas em est6rias anoréxicas € ainda se perguntam por que seus roteitos nunca sao produzidos, enquanto outtos com um modesto talento literitio, mas um grande poder narrative, tém © imenso prazcr de assistir a seus sonhos virarem realidade nas telas de cinema Do total de esforo criativo representado em uma obra terminada, 75 por cento ‘ou mais do trabalho do roteirista é usado para moldar a est6ria. Quem sao essas perso- nagens? O que elas querem? Por que elas 0 querem? Como elas tentario consegui-lo? O que as impede? Quais so as conseqiiéncias? Achar as respostas para essas grandes questées ¢ moldé-las em uma estéria é nossa grande tarefaa criativa, Desenhar a estéria testa a maturidade e 0 discernimento do roteirista, seu conhecimento da sociedade, natureza ¢ do coracio humano, A estéria exige tanto imaginagio vivida quanto pensamento analitico poderoso, Auto-expressiio nunca € um problema, pois, intencional ou nao, todas as estdrias, honestas e desonestas, inte~ ligentes ou bobas, espelham fielmente seu autor, expondo sua humanidade... ou sua falta disso. Comparado com esse terrot, escrever didlogos é um doce divertimento. Entio o roteirista abraca o principio. Contar a estiria... e dai congela. Afinal, o que é uma estdria? © conceito de estdria é como o conceito da musica, Nos ouvi- mos cancées a vida inteira. Nos sabemos dancar e cantar junto, Nos achamos que entendemos de miisica até tentar compor. O que sai do piano assusta o gato. Se tanto A FORCA DO CARINHO quanto OS CACADORES DA ARCA PERDIDA sao est6tias maravilhosas belamente contadas para a tela — ¢ elas sio 31 ~ gue diabos clas tém em comum? Se HANNAH E SUAS IRMAS e MONTY PYTHON EM BUSCA DO CALICE SAGRADO sio ambas brilhantes esto- fias comicas deliciosamente contadas, ¢ clas so, onde elas se tocam? Compare TRAIDOS PELO DESEJO com PARENTHOOD - 0 TIRO QUE NAO SATU PELA CULATRA, O EXTERMINADOR DO FUTURO com O REVERSO DA FORTUNA, OS IMPERDOAVEIS com COMER BEBER VIVER. Ou UM PEIXE CHAMADO WANDA com MANUAL DO INSTRUCOES PARA CRI- MES BANAIS, UMA CILADA PARA ROGER RABBIT com CAES DE ALU- GUEL. Voltando a0 passado, através das décadas, compare UM CORPO QUE, CAI com 8 ¥4 com QUANDO DUAS MELHERES PECAM com RASHOMON com CASABLANCA com OURO E MALDICAO com TEMPOS MODER. NOS com © ENCOURACADO POTEKMIN ~ todas estotias soberbas para a tela, todas vastamente diferentes, ¢ ainda assim produzem o mesmo resultado: um ptiblico que sai do cinema exclamando “que dtima estoria!” -Afogando-se no mar de géneros ¢ estilos, 0 roteirista pode vir a acteditar gue, se todos esses filmes contam uma est6ria, dai tudo pode set estétia. Mas se analisarmos profundamente, se retirarmos a superficie, descobtimos que na essén- Gia elas sio todas iguais. Cada uma delas incorpora a forma universal da estéria, Cada uma delas articula essa forma para a tela de uma maneira tinica, mas em to. das a forma essencial €idémtica, ¢ €a essa forma profunda que o piiblico responde quando reage com o “que étima estérial” Cada uma das artes € definida por sua forma essencial. Da sinfonia 20 hip- hop, a forma basica musical faz da composicio uma musica, e niio barulho, Seja tepresentativa ou abstrata, os principios primordiais da arte visual fazem da tela ‘uma pintura, € no rabiscos. Da mesma maneira, de Homero a Ingmar Bergman, a fotona universal da estéria transforma um trabalho em uma estétia, nio um retrato ou uma colagem, Através de todas as culturas e todas as idades, essa forma inata foi imensamente varivel, mas nunca mudou. Anda assim, forma néo quer dizer “formula”. Nio bh receitas pata escrever ro- teltos que garantam que seu bolo vai ctescer. A estétia é tica demais em mistério, complexidade e flexibilidade para ser reduzida a uma fOrmula. Apenas um bobo. tentaria. Preferivelmente, um escritor deve entender a forma da estotia, Isso € inevitével, Boa estéria bem contada Uma “boa estéria” significa algo valido a dizer que o mundo queira ouvir. O que dizer vocé tera de descobrir sozinho. Ela comeca com talento. Vocé precisa nascer 32 com © poder eriativo para juntar as idgias de uma maneita que ninguém nunca sonhou. Depois, woeé precisa trazer ao trabalho uma visio ditigida por um novo Panorama sobre a natureza humana e 2 sociedade, acasalada com um profundo conhecimento de seus personagens ¢ seu mundo. Tudo isso... ¢, como Hallie ¢ Whit Burnett revelaram em seu excelente livrinho, muito amor, O amor pela estoria ~a ctenca de que sua visio pode ser expressa apenas ateavés da est6ria, de que as personagens podem ser mais “reais” que as pessoas, que 0 mundo ficcional é mais profundo que o concreto. O amor pelo dramitico ~ 8 fascinacéo pelas surpresas stibitas ¢ revelacdes que trazem mudangas imensas 4 vida. O amor pela verdade ~ a crenga de que a mentira aleija © artista, de que toda verdade na vida deve ser questionada, de acordo com os motivos sectetos de cada um. O amor pela humanidade — uma disposicio para sentir empatia pelas almas que sofrem, para atrastar-se dentro de suas peles ¢ ver 0 mundo através de seus olhos, O amor pela sensacio ~ o desejo de deliciar no apenas os sentidos do corpo, mas também os da alma. © amor pelo sonbar~o prazer em passear por sua imaginacio s6 para ver onde ela vai dat. O amor pelo humor ~o jubilo pela graca salvadora que restaura o equilibrio da vida. O amor pela linguagem — o encanto Pelo som ¢ 0 sentido, sintaxe © semantica. O amor pela dualidade ~ a percepcio das contradicdes secretas da vida, uma saudvel desconfianca de que as coisas aio séo 0 que parecem. © amor pela perfeigio — a paixio por escrever e re-escrever na Procura do momento perfeito, O amor pela singularidade — o prazer pela audécia € uma calma absoluta quando ela encontra o ridiculo. © amor pela beleza — um sentido inato que estima a boa escsita, odeia a escrita ruim e sabe a diferenga, O amor proptio—uma forea que nio precisa de auto-afirmagio constante, que munca duvida de que voeé seja, de fato, um escritor. Vocé deve amar eserever ¢ suportar a solidao. Mas 0 amor por uma boa estétia, com personagens extraordindrios ¢ um inundo ditigido por sua paisio, coragem ¢ dons criativos ainda nto é o suficiente, Sua meta deve ser uma boa estotia herr contada, Assim como um compositor deve atingit exceléncia nos principios da com- Posigao musical, vocé também precisa dominar os principios correspondentes da composicio da estéria. Hssa arte no é mecinica nem macete. E um concerto de *éenicas pelas quais nds criamos uma intriga de interesses entre nds ¢ 0 pablico, A arte € a soma final de todos os meios pelos quais deixamos 0 piblico profunda- mente envolvido, mantemos este cavolvimento ¢, finalmente, recompensamo-nos com uma expetiéncia comovente ¢ significativa. Sem a pericia na arte, 0 melhor que um escritor pode fazer apanhar a Primeira idéia que vem em sua cabeca, ¢ dai sentar desamparado ein frente a seu Pr6ptio trabalho, sem poder responder as tertiveis questdes: “std bon? Ou est um we 8 Feo? Ese esta um lie, 0 que ex faso?” O lado consciente da mente, fixada nesses ter- riveis questées, bloqueia o subconsciente. Mas quando 0 consciente é posto para trabalhar na tarefa objetiva de executar a arte, o espontineo emerge. A pericia na arte liberta o subconsciente. Qual ¢ 0 ritmo do dia de um escritor? Primeiro, vocé entra no seu mundo imaginatio. Enquanto as personagens falam e atuam, vocé escreve. Qual é a pro- xima coisa a fazer? Vocé sai de sua fantasia € Ié 0 que escreveu. Fo que voce faz enquanto lé? Analisa. “Isso é bom? Isso funciona? Por que niio? Devo cortar? Adi- cionar? Reordenar?” Vocé escreve, vocé lé; cria, critica; impulso, légica; cérebro dircito, cérebro esquerdo; re-imagina, reescreve. Ea qualidade de sua reescrita, a possibilidade da perfeico, depende de seu comando da arte que lhe guia para cor- rigir a imperfeicao. Um artista nunca deve estar 4 mercé dos caprichos do impulso; ele voluntariamente exercita sua arte para criar harmonias de instinto e idéia, ESTORIA E VIDA Ao longo dos anos, observei dois tipicos e persistentes tipos de roteitos fracassa- dos. O primeiro € 0 roteiro ruim “estéria pessoal”: Em um ambiente de escritério, encontramos a protagonista com um problema: ela merece uma promogio, mas vent sendo deixada para tras. Irritada, ela vai para a casa dos pais para descabrir que papai ficou senil e mame nao consegue lidar cant ssa dificuldade, Vai a seu apartamento ¢ briga com sua desajeitada ¢ conspiradora companheira de quarto, Agora vai «um envontro ¢ dé de cara com uma filha de comunicacio: seu amante insensivel a leva para um restaurante francés carkssimo, esquecendo completamente que ela estd de dicta, Voltando ao escriteria, surpre- endentemente, ela & promovida... mas surgem novas pressies. De volta a casa dos pais, quando ela finalmente revolve o problema do papai, mansde esté: no limite. Ao woltar para seu apartamenio, ea descobre que sua companbeira de quarto roubou a televisio ¢ desaparecen sem pagar o alyguel Ela dé: ure pé no amante, assalta a geladeira e ganha cinco quilos. Mas, de cabeca erguida, ela transforma sua promogao em une triunfa. Uma conversa nostélgica em tm jantar com suas co- madres cura as aflzdes da maniae. Sua nova companheira de quarto nao apenas se revela uma caxias que paga seus algottis com semanas de antecedéncia com cheques quentes como também a apresenta a Alguém Nova. Estamos agora na pagina noventa ¢ cinco, Ela segue sta dieta ¢ parece maravilbosa nas proximas vinte e cinco pdginas, que sao o equivalente lterdria de correr em cdmera lenta através das margaridas enquanto o romance com Alguém Novo floresce, No final ela enfrenta 34 sua Decisio Critica: comprometer-se on ndo? O roteiro termina com um climax: choros0 no gual ela decide que precisa de espaga, O segundo € 6 roteito ruim “sucesso comercial garantido”. Em uma confusio na hora de pegar a bagagem, no aeroport, um vendedor de softwares pega acidentalmente aquela-cotsa-que-vat-acabar-com-accvilixasio- como-nis-conbecemos, — Aquela-coisa-que-vai-acabar-com-a-civilixagao-come-nés- combecemos & bem pequena, Na verdade, ela esti escondida dentro de uma canta esferagréfica involuntariamente colocada deniro do bolso deste infu, protagonista, qe wira alvo para um elenca de trés dias de personagens. Todos ees tim per- sonalidade dupla on tripla, jé trabalbaram nos dois lados da cortina ae ferra, se conbecem desde a Guerra Fria, e estio tentando matar 0 cara. O roteiro é recheado com perseguigies de carro, tivoteios, escapadas de arrepiar os cabelos e explosies Quando nio ha nada explodindo ¢ ninguém se matando, ele pansa para cenas entupidas do didlogos nas quais 0 berdi tenta selecionar agueles em quem ele pode confiar entre toda essa gente de duas caras. No final, uma cacofonia de violbncia 2 efeitos multimiliondrios, durante a qual o berél consegue destruir aquela-coisa- que-vaé-acabar-com-a-civilizagaa-como-nas-conhecemos, e, portanto, salva a buma- nidade, AA “estétia pessoal” é um retrato de uma porcio-de-vida sub-estruturado, que confunde verossimilhanca com verdade. Bsse roteirisea acredita que quanto mais precisa sua observacio dos fatos do dia-a-dia, quanto mais exata for sua re- portagem sobre o que realmente acontece, mais verdades ele conta. Mas fato, no importando quio bem observado, é verdade com “v” mimisculo, A Verdade do “V" mabisculo se localiza ateis, além, dentro ¢ debaixo da superficie das coisas, suportando ¢ dilacerando a realidade, nio podendo ser diretamente observada. Como esse roteirista vé apenas 0 que ¢ visivel e factual, cle é cego para a verdade da vida, O “sucesso comercial garantido”, por outto lado, é um ataque superestrutu- rado, super-complicado e superpovoado aos sentidos do corpo que no apresenta a minima relagao com a vida, Esse roteirista esta confundindo cinética com entre- tenimento, Ele espera que, nao importa a estéria, ao encher o roteito de acio em velocidade maxima ¢ visuais impressionantes, 0 publico ficaré entusiasmado. E, considerando 0 fendmeno da computagio grafica que conduz tantos lancamentos de verti, ele nao estaria completamente enganado. Espeticulos desse tipo substituem a imaginacio por uma realidade simulada. Bles usam a estéria como desculpa para usar efeitos até entio nunca vistos que nos 35 carregam para dentro de um tornado, ou para as mandfbulas de um dinossauro, ou ara holocaustos futuristas. B, sem dividas, esses espetdculos espalhafatosos po- dem nos propiciar um turbilhio de emogdes. Mas assim como em montanhas-rus- sas, esses prazeres duram pouco. A histéria do cinema nos mostrou diversas vezes que essas emocées cinéticas sobem em popularidade tio rapido quanto afundam na apatia do “ja estive ld, jé fiz isso”. A cada década, inovagdes técnicas desovam uma multidao de filmes mal- contados, com © nico propésito de explorar o espeticulo. A invengio do filme em si, uma espantosa simulacio da realidade, causou grande excitagio no piblico, seguida por anos de estérias insipidas. Com o tempo, porém, o filme mudo evoluin Para uma magnifica forma de arte, pata ser destruido pelo advento do som, uma simulacio ainda mais realista da realidade. Filmes do comeco dos anos 30 detam uum passo para tras, quando 0 piiblico sofria propositalmente com estorias fracas pelo prazer de ouvir 0s atores conversando. © filme falado entio cresceu em po- Ger € beleza, para ser nocauteado apenas pela invencio da cot, do filme 3-D, da widescreen’, agora da computacio grifica, ou CGI”. CGI nao é nem maldicio nem panacéia. Ele apenas adiciona novas nuances fa palheta da estétia, Gracas a0 CGI, qualquer coisa que podemos imaginar pode ser feita, ¢ feita com qualidade espantosa. Quando os CGis sio motivados por uma estoria forte, como FORREST GUMP - O CONTADOR DE HISTORIAS ou HOMENS DE PRETO, o efeito desaparece por tras da estéria que conta, entiquecendo o momento sem chamar a atencao pata si. O roteitista “comercial”, Porém, € freqiientemente deslumbrado pelo claro do espeticulo e no consegue ver que entretenimento duradouro se encontra apenas nas carregadas verdades humanas sob a imagem. Os roteiristas de retrato e espetaculo, de fato todos os roteitistas, precisam entender a relacio da estéria com a vida: a esténia é uma metéfora para a vida Um contador de estérias é um poeta, um artista que transforma o viver iatio, a vida interna ¢ externa, sonho e realidade em um poema cujo esquema de fimas sto eventos ao invés de palavras — uma metifora de duas horas que diz: a vida é assim! Portanto, a estoria deve abstrair-se da vida para descobrit suas essén- Clas, mas sem tornar-se uma abstrago que foge do senso de vida-como-é-vivida. Uma estéria tem de ser como a vida, mas no literal a ponto de nio ter nenhuma profundeza ou sentido além do que é Sbvio para todo mundo, Roteiristas de retrato precisam entender que fatos sio neutros. A descul- Pa mais fraca possivel para incluir qualquer coisa em uma estéria é: “mas isso realmente aconteceu”. Tudo acontece; tudo imaginivel acontece, De fato, até o 1 Widescreen: do inglés, tela ampls. Tipo de sia de cittema mais empla que a convencional. (N. do 7) ** CGI: do inglés, Computer Generated Image, imagem geradla por computador (N. dT) 36 inimaginavel acontece, Mas estéria nao é a vida em realidade, Mera ocorréncia nio nos aproaima nem um pouco da verdade. O que acontece ¢ fato, ¢ no verdade. Verdade € 0 que nés pensamos sobre 0 que acontece. Considete um grupo de fatos conhecides como “A Vida de Joana D'Arc” Por séculos, esctitores celebrados trouxeram essa mulher pata o palco, para as paginas e para a tela, ¢ cada Joana é nica ~ a Joana espiritual de Anouilh, a Joana sagaz de Shaw, a Joana politizada de Brecht, a Joana sofredora de Dreyer, a guer- rcira romantica de Hollywood. Nas mios de Shakespeare, ela tornow-se a Joana lundtica, um ponto de vista distintamente britinico. Cada Joana € inspirada por Deus, levanta um exército, derrota os ingleses e é queimada na fogueira. Os fatos sobre Joana sio sempre os mesmos, mas géneros inteiros se transformam enquan- to a “verdade” de sua vida espera o esctitor achar seu significado. Da mesma maneira, roteitistas de espetéculos precisam entender que abs- tragdes siio neutras, Por abstracdes eu quero dizer estratégias de design grafico, efeitos especiais, saturacio de cor, perspectiva sonora, edico de ritmo ¢ similares. Estas nfo tém um sentido nem interno nem exrerno. O mesmo padrio de edigio aplicado a seis cenas diferentes resulta em seis interpretagées distintas, A estética do filme € meio de expressar 0 contetido vivo da estéria, mas nunca devem tor- nat-se um fim em si PODERES E TALENTOS Apesar dos autores de retratos ¢ espeticulo serem fracos em estéria, eles podem ser abencoados com um dos dois poderes essenciais, Roteiristas que se inelinam Para a reportagem freqiientemente tém poder dos sentidos, 0 poder de trans- portar sensacdes corpéreas para dentro do leitor. Fles véem ¢ ouvem com tanta acuidade € sensibilidade que coragio do leitor pula quando abatido pela beleza kicida de suas imagens. J4 0 roteirista de ago extravagante, por outro lado, muitas vezes tem 0 poder imaginativo de levar o ptiblico além da realidade. Eles sabem pegar impossibilidades presumidas e transforma-las em certezas chocantes, Eles também fazem os coragées pulatem. Tanto percepgio sensorial quanto uma ima- ginaglo vivida sto dons invejéveis, mas, como um bom casamento, um comple- menta 0 outro. Sozinhos, eles so enfraquecidos. Fm um extremo da realidade esta o fato puro; no outro, a imaginacio pura. Unindo esse dois pélos estd o infinitamente variado espectro da ficgio. A narrativa forte aleanga um equilibrio ao longo desse espectro. Se sua escrita inclina-se para um extremo ou pata o outto, vocé deve aprender a harmonizar todos os aspectos de sua humanidade. Vocé deve colocas-se ao longo de todo 0 espeetto criativo: 37 sensivel & visio, ao som ¢ ao sentimento, mas equilibrando isso com o poder de imaginar. Cave com as duas mos, usando sua visio € seu instinto para nos como- vet, para expressar sua visio de como e por que seres humanos fazem as coisas que eles fazem. Por ultimo, nfo apenas os poderes sensoriais ¢ imaginativos sio pré-requi- sitos para a ctiatividade, a escrita também requer dois talentos singulares e essen- ciais, Esses talentos, porém, no sio necessariamente conectados. Uma montanha de um nfo significa um grio do outro. primeiro é 0 talento literirio — a conversio criativa da linguagem comum em uma forma mais forte e expressiva, descrevendo o mundo vividamente capturando suas vozes humanas. O wlento literario, porém, é comum. Em toda comunidade alfa- betizada do mundo, centenas, quicé milhares de pessoas podem, em um gyau ou outro, comecar com a linguagem comum de sua cultura e desembocar em algo extraordind- rio, Eles escrevem graciosamente, alguns magnificamente, no sentido literario. O segundo é 0 talento para estéria — a conversio criativa da vida em si em uma expeiéncia mais poderosa, clara e significativa, Ele procura a paisagem in- tena de nossos dias ¢ a remodela em uma narrativa que enriquece a vida. Talento puro para estoria é xaro. Que escritor, apenas instintivamente, cria estérias brilhan- temente contadas ano apés ano € no pensa nem por um instante sobre como ele faz 0 que faz ou se ele poderia fazé-lo melhor? Genialidade instintiva pode produ- zit trabalhos de qualidade vez ou outra, mas perfeicao ¢ prolificidade nao fluem do espontineo e do nio-educado, Talento literézio ¢ talento para a estéria no sio apenas completamente di- ferentes, sfio também independentes, pois estérias no precisam ser escritas para serem contadas, Estérias podem ser expressas de todas as formas com as quais 0 ser humano se comunica, Teatro, ptosa, filme, opera, mimica, poesia e danca sto todas formas magnificas do ritual da estéria, cada uma com seus préprios delei- tes, Em tempos diferentes da historia, porém, uma delas € 0 destaque. No século dezesseis era 0 teatro; no século dezenove, o romance; no século vinte, o cinema, © grande concerto de todas as artes. Os momentos mais poderosos ¢ elogiientes no cinema nao requerem uma descri¢io verbal pata serem ctiados, nem didlogo para interpreté-los, Sao imagens, puras € silenciosas. A matéria-prima do talento literario so as palavras; a do talento para a estoria é a pripria vida, © CONHECIMENTO DA ARTE MAXIMIZA O TALENTO ‘Mesmo que o talento para est6ria seja raro, nds freqiientemente enconttamos pes- soas que parecem té-lo por natureza; sfio aqueles contadores de estérias de rua 38 para quem contar uma estéria é to facil quanto sortie, Quando, pot exemplo, trabalhadores se reinem ao lado da cafeteira, as estérias comegam. Essa ¢ a moeda do contato humano. E quando uma meia-ciizia de almas se reine pata esse ritual no meio da manha, sempre haverd pelo menos um com esse talento. Digamos que essa manhi nossa contadora narra para seus amigos a estéria de “Como Bu Coloquei Meus Filhos No Onibus da Escola”. Como 0 velho ma- tinheito de Coleridge, ela atrai a atengio de todos. Ela joga um feitigo nos outros, deixando-os de queixo caido sobre suas xicaras de café, Ela transforma seu con- to, deixando-o mais elaborado, facilitando algumas partes, fazendo-os tir, talvez chorar, mantendo-os todos no alto do suspense até fazer tudo valet a pena, com uma cena final explosiva: “e foi assim que eu coloquei aquela pirralhada dentro do Onibus essa manha”, Seus companheiros de trabalho se reclinam satisfeitos, mur- murando, “nossa, € verdade, Helea, meus filhos sio bem assim também”. Agora digamos que a vez de contar a estoria passe para 0 sujeito ao sew lado, que conta aos outros o relato arrasador de como sua mie morreu neste fim de semana... ¢ deixa todo mundo de saco cheio, Sua estéria é toda superficial, uma divagacio repetitiva do detalhe trivial ao cliché: “ela estava tio bonita em seu cai- x40”. No meio de sua rendigio, 0 resto volta para a cafeteita para mais uma xicara, com suas orelhas tapadas para scu softido relato. Dada a escolha entre um material trivial brilhantemente contado contra um material profundo mal contado, o piiblico vai sempre escolher o trivial bem con- tado. Os grandes contadores de estérias sabem como retirar a vida das coisas me- notes, enquanto maus contadores de estéria reduzem o profundo ao banal. Vocé pode ter a vistio de um Buda, mas se vocé no consegue contar uma estéria, suas idéias se tormam secas como um giz. Talento para est6ria € primério, enquanto talento literétio é secundario, po- rém essencial. ['sse ptincipio é absoluto para o cinema ¢ a televisio, e mais verda- deiro para o palco e para as paginas que muitos dramaturges e novelistas gostariam de admitir. Mesmo que o talento pata estorias seja raro, voce deve ter algum ou entZo nao estaria louco para escrever. Sua tatefa é espremer dele toda criatividade possivel. Apenas utilizando toda e qualquer coisa que vocé saiba sobre a arte de contar estérias, vocé podera fazer seu talento forjar uma estoria, Pois talento sem 0 conhecimento da arte é como combustivel sem um motor. Ele queima violenta- mente, mas no efetua nada. 39

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