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iH 1 ARTIGOS (x) CtENCIA PURA E CIENCIA APLICADA Manfredo Perdigéo do Carmo Ha varios anos, 17 um artigo de um fisico tedrico, Eugene Wigner, intitutado "A no-razoavel eficacia da Matematica nas Cién cias Naturais", que se inicia com a seguinte historia. Dois ex-cole gas de Gina’sio se encontram, j@ homens maduros, e se podem a conver. sar sobre as suas respectivas profissées. Um deles, que era um Esta tistico e se dedicava a crescimento de populacbes, comecou a expli: car ao outro um trabalho que favia escrito. 0 outro estava um pouco incrédulo de como aquelas conclusdes poderiam ter sido obtidas ficava perguntando: "Como € que vocé pode saber isto?" Finalmente, ele olhou, ainda duvidoso para o trabalho & sua frente e perguntou: “e este sTmbolo aqui, o que 8?" "Ah, disse o Estatstico, isto &7, no lembra? © 8 a relagao entre a circunferéncia e o diametro de um circulo.” "Bem, disse o outro, acho que vocé est& brincando co migo; certamente, 2 populacao nao tem nada a ver com circulos." Pensando bem, & realmente extraordinario que uma coisa te nha a ver com a outra. Todo o mundo sabe que as nogdes basicas de Matematica que aprendemos no Ginasio (triangulos, cfrculos, equa goes, etc.) nasceram da necessidade de resolver problemas apresen- tados pela Natureza. 0 que & aqui inesperado e maravilhoso & que os conceitos introduzidos transcendem as necessidades iniciais e aparecem em outras aplicacées inteiramente dissociadas das motiva sdes de origem. Este carter de surpreendente aplicabilidade da Matematica tem sido uma constante do seu desenvolvimento. Uma das razées pare (*) Este artigo € um resumo da Aula Inaugural no Centro de Ciéncias Exatas da Natureza da Universidade Federal de Pernambuco, apresentada em 3 de mar go de . 24 26 ce ser que o desenvolvimento da Matematica nao se processa de ma neira isolada mas recebe influéncias freqiientes das préprias mudan gas que ela ajudou a realizar. 0 que existe € uma interagdo de progressos tedricos e aplica dos formando uma imensa rede de infiuéncias mituas onde se torna dificil decidir o que & mais importante: se o desejo pura de enten der, ou a necessidade pratica de aplicar. Creio que o fenémeno de interacdo entre progresso tedrico e aplicado nao @ particular a Matematica mas existe um maior au menor grau no desenvolvimento de qualquer Ciéncia. Restrinjo-me aqui a Matematica, pois 8 0 Ginico terreno em que poderei defender o meu ponto de vista com alguma seguranga. Neste sentido, gostaria de fazer um paréntesis nesta exposi. do para afirmar que uma discussao, em termos de decis8o social, sobre a prioridade de Ciéncia Aplicada sobre Ciancia Basica (ou vi ce-versa) @ inteiramente sem sentido. As interligacdes entre estas duas atividades formam uma rede tao delicada que @ quase impossivel a uma sociedade ser forte em uma sem sé-lo em outra. E claro que, em termos de decisdo individual, a situacio @ inteiramente distin ta, © a Gnica exigéncia cabfvel nesie caso @ a de qualidade. Permitam-me apresentar um exemplo recente e acontecido no Brasil, onde um resultado em Matematica Pura dependeu de um desen volvimento tencolégico provocado pela prépria Matematica, Este @ apenas um entre muitos outros e provavelmente outres greas da Cién cia poderdo também apresentar exemplos semelhantes. Existe um objeto matematicc, chamado superficde minima, cuja imagem fisica pode ser obtida tomando um contorno fechado feito de arame e mergulhando-o em uma solugao de sabdo (Fig. 1). Retirande 26 © contorno da solugdo, aparece uma superficie que tem a seguinte propriedade: qualquer pedago pequeno desta superficie tem area me nor ou igual do que qualquer outra superficie com a mesma fronteira (dai o nome de superficie minima), At& alguns anos atras, sd se conheciam trés exemplos de su perficies minimas* que fossem completas e mergulhadas: o plano, o ca tendide (Fig. 2) e 0 helicdide (Fig. 3). CompZeta quer dizer que a superficie nao tem fronteiras nem buracos e mexgughada quer dizer que a superficie niéo se auto-intersecta (a curva em forma de un 8 Fig. 2 Fig. 3 se auto-intersecta e nfo & portanto mergulhada). 0 catendide e 0 helicdide foram descobertos em 1776 desde entdo nao apareceu ou tro exemplo com as caracterfsticas mencionadas. Alguns matematicos tentaram demonstrar que, de fato, isto era um teorema, isto @, uma superficie minima completa e merguihada deveria ser o plano, o catendide ou o helicdide. Historicamente, as superficies minimas apareceram em um tra balho de Lagrange em 1760 como solugdo do problema de determinar a * Rqui_¢ no que se segue deve ser incluida_a condicdo de que a superficie _seja topologicamente equivalente a una superficie compacta menos um numero finito de pontos. Isto corresponde a afirmacdo que a curvatura total i.e., a inte gral da curvatura gaussiana, @ finita. ~ eer 27 superficie de menor area para um contorno dado. Em torno de 1850, o ffsico belga J. Plateau mostrou a relacdo destas superficies com questées de tensdo superficial, estudou-as intensamente, e propds aos seus colegas matematicos algumas questdes que levaram mais de um século para serem resolvidas. As superficies minimas sao até hoje objeto de uma quantidade consideravel de pesquisas matemati_ cas. Em 1982 um aluno de Doutorado no IMPA, Celso José da Costa, obteve as equaces de uma superficie que parecia ser mais um exem plo de uma superffcie minima completa e mergulhada. A superficie era minima, completa e, fora de uma certa bola, era mergulhada. Ele tentou mostrar, sem sucesso, que este "nicleo"” era também mergu- Thado.. De quaiquer maneira, o seu trabalho ja era bastante interes sante para justificar a obtencdo do grau de Doutor pelo INPA. Durante a defesa da tese, varios membros da Banca menciona ram a necessidade de traduztr as equacées obtidas em uma figura por meio de computador, o que permitiria verificar experimental - mente se @ superffcie era ou n3o mergulhada. Neste tempo, os recur sos que dispunhamos para isto no Brasil eram muito limitados, En. tretanto, um membro da Banca, o Professor americano W. Meeks, Te vou a idéia para os Estados Unidos e, junto com David Hoffman, co locou as equacdes da superficie no computador da Universidade de Amherst. 0 que eles viram (Fig. 4) € que a superficie do Celso é de fato mergulhada. 0s recursos do computador permitiram ainda co locar a superficie em varias posicées e verificar que ela possuia muitas simetrias. Com as sugestdes dadas pelo computador, era fa cil “provar", com as equagdes da superficie, que as simetrias de fato existiam. A partir destas simetrias, foi possivel a Meeks Hoffman provarem matematicamente que a superficie do Celso & mergu hada. Sem o auxT1fo do computador, o problema poderia estar ainda em aberto. A superficie do Celso tornou-se rapidamente famosa © fez a capa do Science News (vol. 27 nQ 11 de (1985), 161-176), A re vista Science incluiu-a entre as 25 descobertas cient?ficas do ano de 1985, 28 Un fato interessante € que, para descobrir o seu exemplo, Celso usou fortemente proprtedades das funcdes elipticas, um tipo de fungao introduzida no Século XIX e cuja motivacao foi um proble ma de matematica pura, 0 qual, aparentemente, néo tinha nada a ver com as superficies minimas, Isto Tlustra o fendmeno de interagao que mencione? antes e mostra que a surpreendente —aplicabilidade dos conceitos matematicos ocorre nao sé da Matematica para as Cién cias Naturais mas dentro da prépria Matematica. Outros exemplos podertam ser descritos aqui, | ilustrando, até de maneira mais nitida, a imensa rede de interrelagdes entre a razao pratica e a razao pura, Resisto a tentagao de apresenta- -los, pois eles podem se tornar rapidamente muito técnicos. Gostaria de concluir com uma observagdo. Eugene = Wigner termina o artigo que menctonet no infcio desta palestra — dizendo que “o milagre da adequagao da linguagem matematica & formulagao das lets da natureza & uma dadiva maravilhosa que ndo compreende mos ou sequer merecemos". Que me seja permitido acrescentar que a melhor maneira de agradecer esta dadiva @ utiliza-la no limite de nossa capacidade, deixando a mente aberta tanto aos desafios da natureza quanto 4 criacao de conceitos abstratos. Fig. 4

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