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= PIERRE DARDOT” \E CHRISTIAN LAVAL. *§ ENSAIO SOBRE A SOCIEDADE NEOLIBERAL eee ot ees ESTADO K de SiTio eee ee Ce eae eae a rey Reser aS ote cee cece Ee ire eee ee ue oer préticas de dominagdo. E também reconhecer a ecessidade de nomed-lo a partir de sua atuali- Cen eee eee Goto oe Mute e tr cue ec ( Cana SE ne Peer oun Ue Demet Crs teu Cue) A aplicagéo de recursos analiticos pouco artodo Brew eome Re Me teeses Pee ieee Meet no pre ace ne an Teens eee coe Pec ute C MT unten tec Coie Ot Se ee ca cet una ean en cae Tee oe Pee Oona en Ce oe ee ee et CCN ar tee ecu Neat eesti CU Ne Rea ee se generalizar para todas as esferas sociais. entre per eco eerie Cesc CeO MRSS oto Rosecrans ere uO MEM aco liberalismo configuraria uma racionalidade politic Pc een enterica BALE MA ERR é 2 3 } g 2 (© Bakons Us Decne, Pe Fs, 28,2010, Tie oak a Mole ran monde a alc nie Gis erie! ama king ‘Baie Nels Mac and press Un Cape Trace Madara Eee penis Hoses Vein ‘Cpe Romo Aes ft cy Ob (09) Beierdeople Alas one. Ara Ys \ Rane Gil Teas fin, iv Dod, Leonards Ft, Maen Mepst, aura Buon, Resa Sue, Tae Baron, Tio Car CUPBRASIL. CATALOGAGAD NA PULICAGAD SINDICATO NACIONAL DOS EDITORESDELIVROS,@) ‘Attra ai do mind sobs oid ener ire Dank (Ganda) ‘Td de a lain wn ir vt mbt ISBN 9745.7559.481 Brendan pedis guppies ost de ca ounnge bind ater Cevowrage pub dosed da rope Aid Ls Picton dertropamnesd Aiea ubleton 2016 Caos Drmttont de Andee dela ne out de acTtowine Fane Most fang dex A ss pounced Tuclirocinou com angeinda Eels, publ no dmb da Ppa de Apia & sie 2016 egnonade pois Rtgs do Cale Drurnond de Andrade ator coy convo apie doe Tenino Peel anc da Reg Exeter co Doles Lean PANES adios do de 2096 BOITEMPO FOITORIAL Jy For cos Li. Tus Gera Lae 373 ep442-000 Si Pade SP ‘shtcaboisenpoeieia combs raisimnpediecaoom | wvmloplbismpe.com-br qrndasinel oafechenye |eoopicesrelitaines srmyoutinccon/taene L SUMARIO Preficio & edicao brasileira... Agradecimencos. Introducio& edi inglesa (2014) I A RteUNDAGAO INTELECTUAL... 1 Crise do liberalismo e nascimento do neoliberalismo .. 2 © Coléquio Walter Lippmann ou a reinvengio do liberalismo.. 3 O ordoliberalismo entre “py de sociedade’ O homem empresarial, Estado forte, guardito do diene privado ANOVA RACIONALIDADE, A grande virada..s i As origens ordoliberas da construgao da Lasop O governa empresarial A Gabtics do sujeito neoliberal Conclusio — O exgotamento da democracta liberal Indice onoméstico .. Indice analitico, PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA Um sistema pés-demoeriticg O ncoliberalismo tem uma histria ¢ uma coeréncia, Combate-lo exige rio se deixar iludis, fazer uma andlise hicida dele. O conhecimento cxftica do neoliberalismo sio indispenséveis. A esquerda radical ealternativa rio pode contentar-se com dentincias ¢ slogans, muitas vezes confusos, parciais ou atemporais. Assim, é errado dizer que estamos lidando cor o “capitalismo”, sempre igual a ele mesmo, e com suas contradigbes, que tavelmente levariam 4 roina final. Eficécia politica pressupse uma andlise precisa, documentada, circunstanciada ¢ atualizada da situacéo. O capitalismo é indissociivel da histéria de suas metamorfoses, de seus descarrilhamentos, das lutas que o transformam, das esteatégias que 0 senovam. O neoliberalismo transformou profundamente © capitalismo, ransformando profundernence as sociedades. [Nesse sentido, o neoliberalismo nao € apenas uma ideologia, um tipo depolfcica ccondmica. # um sistema normativo que ampliou sua influgncla ao mundo inteico, estendendo a logica do capical a vodas as relagdes sociais ea todas as esferas da vida. Aoobra que vocé leri que finalmente esta disponivel em porragués gra- fesReditora Boitempo, foiescrita no periodo de gestagso da crise financeira mundial de 2008, Foi publicada no momento em que se podia constatar 4 amplidio dos estragos causados pelo neoliberaismo, A conviccio que tinhamos a0 escrevé-la possuia fundamento: a crise ndo foi suficiente para fazer neoliberalismo desaparccer. Muito pelo conteirio, 2 crise apareceu pata as classes dominantes como uma oportunidade inesperada. Melhos, como um modo de govemo. Ficon demonstrado que 0 neoliberalismo, aaa ee YP aaa ee 8* Anorarerdodo mundo apesar dos desastres que engendra, possui uma nocivel capacidade de au- tofortatecimento, Fle fe. surgit um sistema de normas € instinuigées que comprimeassociedades como um ns deferea. As crises nfo sio para ele uma ceasldo para limitar-se, como aconteceu em meads do século XX, mas um melo de prosseguir cada ver com mais vigor sua trajewsria de ilimitapao. O capicalismo, com ele, no parece mais capar de encontrar compensacées, concrapartidas, compromissos. A maneira come a crise de 2008 foi provi- soriamente superada, com uma inundacio de moeda especulaciva emitida pelos bancos centrais, mostra que 2 légiea neoliberal escapa de manciza extrzordinariamente perigosa © aciimulo de tensbes ¢ problemas nio resolyiddos, 0 reforgo de ten déncias desigualitirias e desequilibsios especulasivos preparam dias cada vex mais dificeis para as populagées. No entanta, © cariter sistémico do isposicivo neoliberal torna qualquer inflexao das politicas conduzidas muito dif, ou mesmo impossivel, no proprio Ambito do sistema. Com- preender politicamente © neoliberalismo pressupée que se compreendst a natureza do projeto social ¢ politico que ele representa e promove descle 08 anos 1930, Ele traz. em si una ideia muito particular da demoera qquc, sob muitos aspectos, deriva de um antidemecratisne: 0 direito pri vado deveria ser isentado de qualquer deliberagio ¢ qualquer conteole, mesmo sob a forma do sufrigio universal, Essa ¢ razio pela qual a logica nao controlada de autoforealecimento c radicalizacéo do neoliberalisme obedece, hoje, a um cenitio histérien que no é o dos anos 1930, quando ‘ocorreu uma revisio das doutrinas ¢ das politicas do “laisez-fire”. Esse sistema fechado impede qualquer anrocorrecto de trajetéria, em particular em razio da desativagio do jogo democritico ¢ até mesmo, sob ccrtos as- pects, da politica como atividade. O sistema neoliberal esta nos fazendo entrar na era pés-democrttica Na auséneis de margens de manobra, 0 confionto politico com © sisterna neoliberal enquanco tal € ineviével. Mas esse confroni0 também € problemitico, porque é dificil reunir as condig6es em que ele se di. O sistema neoliberal ¢instaurado por forgas e poderes que se apoiam tins nos ‘outros em nivel nacional e internacional. Oligarquias burocrivicas e poli- ticas, multinacionais, atores finanoeiros ¢ grandes organismos econdmicos internacionais formam uma coalizagéo de poceres concretos que exereem certs fungio politica em escala mundial. Hoje, a relagio de foreas pend= inegavelmente a favor desse bloco oligdequico. Preficio & eigie basen * 9 ‘Alémm dos fatores sociol6gicos e politicos. os préprios mobs subjetivos da mobilizagio sio enfiaquecides pelo sistema neoliberal: 2 acto coletiva se tornox: mais diffil, porque os individuos sio submietidas a um regime de concoriéacia em todos 05 niveis. As formas de gestio na empresa, 0 de- semprego ea precariedade, a divida ea avaliagio, sio poderosas alavancas de concorzéncis incerindividual e definem novos modos de subjetivagio. A polarizacao entre os que desistem ¢ os que sio bem-sucedicos mina asolida- riedade e a cidadania, Abstencio eleicoral, dessindicalizagao, racismo, uido parece conduziri destruigao das condigdes do colecivo e, por consequeéncia, a0 enfiaquecimenta da cxpacidade de agir contra o neoliberalismo. © sofrimento causado por essa subjetivacio neoliberal, a mutilagio que ela opera na vida comum, no trabalho e fora dele, siotais que nia podemos excluir a posthilidade de ma revolt antinealihers! de grande anyplide cm suites paises, Mas nao devemos ignorar as mutages subjetivas pro- vocadas pelo neoliberalismo que operam no sentido do egoismo social, da nnegagio da sofidariedade e da redistribuisio e que podem desembocar em movimentos reacionérios ou aré mesmo neofascistas. As cndiges de um confronto de grande amplitude entre logicas contedsias e foxgasadversas em escala mundial estdo se avolumando. ‘A exquerda somente poder tirar partido disso se souber remediar a pane de imaginagdo que vem sofeendo. A faléncia histérica do comunismo dde Estado contribuiu em mito para sua ruina, Se quisermos ultrapassar 0 neoliberalismo, absindo uma alternativa positiva, cemos de desenvolver uma capacidade coletiva que ponha 4 imaginagio politica pata trabalhar a partir das experimentagbes edas lutas do presente. O prineipio da comm que ema- ra hoje dos movimentos, das lutas ¢ das experigneias remeve a um sistema de peisicas diretamente contritias & racionalidade neoliberal ¢ capazes de sohicionaro con)unto das relacbes sociais. Essa nova razdo que emerge das priticas fax prevalecer o uso comum sobre a propriedade privada exclusiva, © autogoverno democritico sobre 0 comando hiersrquico ¢, acima de tudo, corna a coatividade indissoeisvel da codecisio ~ nao ha obrigagio politica sem participagio em uma mesma atividade, Como escrevemos ras éilkimas linhas deste livre, precisamos trabalhar por uma outra resco do mundo Pierve Dardot e Christian Laval Fevereiro de 2016, ACRADECIMENTOS Este liveo é devedor, em primeiro lugar, de todas aquelas erodes ag {que participaram nos siltimos anos do seminario “Question Mars’, no qual foram apresentadas © discucidas nossas pesquisas sobre © neoliberalismo, Queremos agradecer especialmente aos participantes que enriqueceram nossa reflexzo coletiva com suas apresentagSes, om particular Gilles Dostaer “Agnés Labrousse, Dominique Plihon, Pascal Pest ¢ Iselle Rocher. Deve mos muito a nosso editor, Hugues Jalon, que acompanhe desde 0 inicio a ppequenaavennusa do seminstio “Question Marx” enosajudou enosmemente com seus conselhos para a composigio da obra. Agradecemos igualmente a Bruno Auesbach, pela releitura atenta e paciente do osiginal Mas nada disso teria side possivel sem a amizade fel e6 apoio inselectual de El Mouhoub Mouhoud, que se assnciou desde o infeio & redagio deste livro, tampouco sem a ajuda tio canstante quanto preciosa de Anne Dardor, jas veres relew e organizou o original, sem nuncs medit esforcos, INTRODUGAO A EDICAO INGLESA (2014)* “Ainda ndo terminamos com o neoliberalismo” era a primeiza frase da Lncodugio 4 primeira edigan francesa deste livia, pubeada em janeiro de 2009, Na época, queriamos dissipar o quanto antes a ilusGes que surgizam ‘com a faléncia do banco Lchman Brothers, em setembro de 2008. Muitos pensavam, na Europa ¢ nos Estados Unidos, que a crise inanceira soara as ‘badaladas finais do neoliberalismo e que seria a vez do “terorno do Estado” cela regulagio dos mercados. Joseph Stiglitz pereortia o mundo anunciando “o fim do neoliberalismo”, eautoridades politicas, como. presidente francés Nicolas Sarkozy, proclamavam a reabilitagao da incervengao governamental Perigosas, uma ver que poderiam susciear uma desmobilizagio politica, essay ilusdes no tinham r2z0es para nos deixar admizadas: baseavam-se num erro de diagnéstico amplamente compartilhado, © qual nossa obra rinha o objetivo de combater. Enganar-se sobre a verdadlita nacureza do neoliberaismo, gnorar sua histria, nfo enxergar suas profundas motivagbes sociaisesubjetivas era condenar-se& cegueira e continuas desarmado diante do que néo ia demorar a acontecer: longe de provocar © enfraquecimento das politicas nevliberais, a crise conduziu a seu brutal fortaecimento, ma forma de planos de austeridade adotados por Estados cada vex ras aivos imence publicado na Franca, em 2009, este liveo teve uma edit ingles, fedusida eadaptada em 2013 e visa em 2014, Embora a presente traduco tenha sido fica partido origina francs, aedicio que ora se apveienta ao lecorbrasileino Incorpacou, por meio de cotejo € coma supervisio dos autores, a reducio, as adap tages eas conregées da edigdo inglesa cle 2014, enue cas, esta inuodueto revista & ampliada. (NE) 14 + Arnova carte do rand na promogio da I6gica da concorréncia dos mercades financeiros. Parecia- -nos, ¢ hoje nos parece mais do que nunca, que a anilise da génese € do funcionamento do neoliberalismo € condigao para uma resisténcia eficaz em escala curopeia e mundial. Ainda que precenda respeitar os critérios da pesquisa cientifica, este livio néo é académico no sentido tradicional do termo, mas precende-se primeiro, ¢ acima de tudo, uma obra de esclareci- mento politico sobre essa l6gica normativa global que 0 neoliberalismo. Em uma palavra, a compreensio do neoliberalismo a nosso ver, uma questio estranigia universal Um erro de diagnéstico A partie do fim dos anos 1970 edo inicio dos anos 1980, 0 neoliberalismo foi interpretado em geral como se fosve ao mesmo tempo uma ideologia © uma poiiticw econdmica divetamente inspitada nessa idcolbgia. O niicleo dco dessa ideologia seria constituido por uma identificagio do mereado com ama realidade navusal!, Segundo essa oncologia nacuralista, hastaria deixar essa realidace por sua propria conta para ela alcangar equilibrio, estabilida dee crescimento. Qualquer intervencio do governo s6 poderia desregular perturhar esse curso esponcineo, logo convinha estimular uma atitude abscencionista, © neoliberalisma compreendico dessa forma apresenta-se como reabilitacio pura e simples do laisee-feire, Considerado do ponto de vista de sua implantagio politica, foi analisada de pronto de forma muito estreita, segundo a perspicaz observagio de Wendy Brown: (Como inserumcnro da politica econdmica do Estado, com desmantelamen- to dos autos sociais, da progresividade do imposto ¢ outrasferramencas de redisibuigao de riqueras de um lado c com o estilo da ativida entraves a0 capital mediante a desregulamencagéo do sistema de sade, trabalho edo meio ambient= de outeo Ene credo nacuralisa, que ert 0 de Jean-Laptiste Say « Frédéric Basciat, i pes feitamente formalado nos saguintes termor pelo ens rancts Alain Mine: 'O capitalism nfo pode mui, ele 60 estado natural da sociedade. A democracia nao € ‘ estado natural da sociedade, O mercado, simi” (Cambio 16, Madsi, 5 dex 1999, Wendy Brown, Ler habits ney del politique mondiale, ntoubénalume ex néoconer- tacznte(erad. Chiintine Vivier, Philippe Mangeot e labelle Sint-Saéns, Paris, Les Prairies Orclinares, 2007), p 37. Ese ensai inciiva cor sjudou: muita formulae nossa propria compreensio do neviberaismo, Introdusio i edigao inglesa (2014) © 15 Se admitirmos que sempre hé “inrervengio”, esta € unicamente no seatido de uma agéo pela qual 0 Estado mina os aficerces de sua propria existéncia, enfiaquecendo a missio do servigo piblico previamente confiada ade, “Intervencionismo” exchusivamente negativo, podedamos dizer, que nada mais € que a face politica ativa da preparagio da vetirada do Escado por ele proprio, portanto, de um anti-intervencionismo como prinefpio. No é nossa intend contestar a existéncia e a difusto dessa ideologia, tampouco negar que ela tenha alimencado as policicas econdmicas impulsio- nnadas macigamente a partir dos anos Reagan ¢ Thatcher e encontrado em Alan Greenspan, 0 "maestro de Wall Street’, seu adepto mais fervoroso — com as ‘onsequiéncias que todos conhecemos?. O que Joseph Stiglitz chamou com justiga de “fanarismo do mercado” 6, alids, 0 que os periddicos Wall Street Journal, The Economist © codes 0: equivalences a0 redor de mundo sabem fomentar melhor entre seus letores'. Mas o neoliberalismo esté muico dis tance dese resumir a um ato de fé fandtice na naturalidade do mercado. O zgrande cero cometido por aqueles que anunciam a “morte do liberalism” & confundira xepteseatagio ideoldgica que acompanha aimplantacio das po- Iiticas neoliberais com a normatividade prética que caracceriza propriamente o neoliberalismo. Por isso, 0 rckativo deserédito que atinge hoje a ideologia do Leisee faire nio impede de forma alguma que o neoliberalismo predomine ‘mais do que nunca enquanto sistema normative dotado de cera efciéncia, isto capaz de oriencar intecnamentea pritica efetiva das governos, das em- presase, paraalém deles, de mithdes de pessoas que nao téen necessariamence conscitncia disso. Este & 0 ponto principal da questo: como & que, apesar das consequéneias catastréficas a que nos conduziram as poliieas neoliberais, cessas politicas sio cada vex mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises politicase retocessos sociais cada vee mais graves? Como € que, ha mais de trina anos, essas mesmas politicas vém se desenvolvendo se aprafundando, sem encontrar resistencias suficientemente substanciais| para coloci-as em xeque? “A bi, de Frédéric Bastiat {tead. Ronaldo da Silva Legey 2. sd, Rio de Janeiro Init Liberal, 1991), eso livo de caboccies de Ronald Reagan no inicio das anos 1960. Ver Alain Laurens, Le lihratirme américaiz (Pai, Les Bolles Lectes 2006), p. 177, Joseph Siglte, Un auare monde: contre le fearione du marche (ead. Pas Cher, Pats, Fayad, 2006) 16 + Annova raraa do rmunda A resposta nao € eno pode sr limitada apenas aos aspectos “negativos" daspoliticas neoliberas, isto 6,4 destruigéo programada das regulamentacoes ¢ das instituigaes, O neoliberalismo nao destr6i apenas regras, instiigBes, direitos. Ele também produz certos tipos de celagSes sociais, certas manciras de vives, certas subjetividades. Em outras pakwras, com 0 neoliberalismo, «6 que estd em jogo é nada mais nada menos que a forma de nossa exiténcis, isto €, a forma como somos levados a nos comportuf, a nos relacionar com. fos outios © com nds mesmos. © neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais ¢, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da “modemnidade”. Essa norma impoe a cada um de nds que vivamos num universo de competicao generalizada, intima os assa- Jasiados e 2s populagGes a entrar em lua econdmica uns contra 0s outros, frdena as relagées sorinis segundo. modele de mercado, obvriga 4 justifear desigualdades cada vex mais profundas, muda atéo individuo, que é instadoa concebera si mesmo ¢ acomportar-se como umnaempresa. Ha quase um ergo deséculo, essa norma de vida rege as politicas pillieas, comanda as relacées econdmicas mundiais, cransforma a sociedade, zemodela a subjetividade. As circunstincias desse sucesso normativo foram descrtas intimeras veres. Ora sob seu aspecto politico faconquista do poder pels Forgts neoiberais), ora sob seu aspecto econdmico (0 répido crescimento do eapitaismo financeiro glo balizado), ora sob seu aspecto social (a individualizagio das relays socials is expensas das solidariedades colecivas, a polarizacio extrema entre ricos € pobres), ora sob seu aspecto subjerivo (0 surgimento de um nove stijeieo, 0 desenvolvimento de novas patologias psiquicas). Tudo isso so dimensées complementares da none needo da mundo, Devemos entender, por isso, que «ssa rario ¢ global, nos dois sentidos que pode ter o termo: é “mundial”, no sentido de que vale de imediato para 0 mundo todo; &, ademais, longe de Tinitas-se A esfera econdmica, tende & toralizacio, io é a “fazer © mundo” por seu poder de integracio de ads as dimensoes da existéncia human, Razao do mundo, mas 26 mesmo tempo ura “razdo-munde” 7 Aldsia de uma razio configuradore do mundo enconta-seem Max Weber, embora se cefra essencialiente & o1dem ezondmica eapisalara, ewe “imenso casa” que “impée ao individuo page mas srmadilhas do mercado as normas de sua stividade ccondmica” (Léthigue protatense t Frit du capitelion, tad Isabelle Kalinowski, Pacis, Champs Flammarion, 2000, p. 93-4 [ed bras: dice protestants «0 epirito de capitaliono, trad. José Marcos Mariani de Macedo, ed. Antonia Flaviv Pitucl, ‘fo Paulo, Companhia das Letras, 2012). Contudo, numa passager dessa meat Incrodusio A edigio inglesa (2014) « 17 O neoliberalismo como racionalidade A tese defendida por esta obra é precisamente que 0 neoliberalismo, antes deser uma ideologia ou uma politica econdmica, éem primeiro lugar ¢ fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, onde a estruturar ¢ ‘organizar nfo apenas a ago dos governamtes, mas até prépria conduta dos governados. A racionalidad neoliberal tem como caracteristica principal a seneralizagio da concorréncia como norma de conduta e da empresa como modelo desubjetivagio. O rermo racionalidade nao é empeegedo aqui como sum eufemismo que nas permite evitara palavra “eapitalismo”. O:nealibera- Tismo €a ntzto do capitalism contemponinee, de tim capitalismo desirapedida de suas referéncias arcaizantes ¢ pleaamente assumido como consttugio histdrica e norma geral de viela, © neoliberalismo pode ser defi co de discursos, priticas e dispositivos que determinam um modo de governo dos homens segundo o prinefpio universil da concoreéncia. ( conecito de “racionalidade politica” foi elaborado por Michel Foucault ‘em relago direta com as pesquisas que dedicow & questie da “governamen talidade”. Assim, encontramos na explanagio do curso dado no Collage de France em 1978-1979 — publicado com o titulo de Nascimento de biopol tie — uma apresentagio do “plano de antlise” escolhide para 0 estudo do neoliberalismo: tata-se, diz Foucault, em resumo, “de wm plano de anslise possivel oda ‘ravio governamental, isto & dos tipos de racionalidade que sic empregados nos procedimentos pelos quais se disige, através de uma administragio de Estado, a conduta dos homens*”; Uma racionalidade politica é nesse sentido, una racionalidade “governamental”. aa 20 cariter “elacivo”e “impessoal” do amar x0 peéximo no calvinis- mo, encontamos 3 expresso “coofigurasia rackonal do cosmo social” (Ibidem, 1-175), Ness sentido, edesde que o socal nossa redusid a apenas mats uma dat sdmenses da existéncia humana, poderiamos dizer que 2 ezio neoliberal & muivo Irecinmente ¢ ruio de nase "eosino social”, Michel Roucault, Naisavce de la biopeingue (Paris, SeuilCallimard, 2004) fed. bias: Natanouee da binpalitis, rnd. Révardo Brandso, Sio Paulo, Mattins Fontes, 2008), Fsse curso constitu aroferéneiaconteal pela qual s ordena toda a andlise de neoliberalismo ensainda nesta obra Idem, p. 327: xeproduzico em Dit er ders IT(1976- 1988) (Pcs Gallimard, 2001), 823, Sobre a nocio de ralonalidade polities, ver ainda esa dlcima obra, p. 818 e166, 18 + Arnova raxto do mundo Devemos nos estender ainda sobre o sentido desia nogio de “governo": “Teacase[+~] no da instituigao"governo’, mas daatividade que eonsisteem reget a concluta des homens no interior de um quscro.¢com insteumentos de Estado", Foucaul retoma virias vezes essa ideia do governo como atividede, no como instituigio. Asim, no resume do curso do Collage de France intivulado Do governe dos vives", essa nogio ¢ “entendida no sentido amplo de eéci as e procedimentos destinados a dirigic a conduta dos homens", Ou entio, no preficio a Hisniria da secuatidade™, hd este esclacecimento retrospective de sua andlise das préticas punitivas: ele se diz interessado, aci a de tudo, nos procedimentos do poder, ou seja, “na elaboragio € na implantagdo desde o século XVII de técnicas para ‘govema®’os individuos, isto 4, para ‘conduzir sua eondura’ € isso em dom jo tao diferentes quanto a escola, 0 Bxércivo, a fbriea™®. O rermo “governamentalidade” foi inero- duzido precisamente para significar as maltiplas formas dessa atividade pela «qual homens, que podem ou nao percencer a um governo, buscam conduzie .condura de ourras homens, isto é, governs £ {ntimo do indlividuo, visa na verdad a obter um autagaverno do individu, rto que 0 governo, longs de remeter disciplina para aleangar © mais isto é, prouir certo tipo de relagtio deste consigo mesino. Em 1982, Foucault ddird que se interessa cada vez mais pelo “moda de agio que um individuo exerce sobre si mesmo por meio das eécnicas de si”, a ponte de ampliar sua primeira concepeso de governamentalidade, excessivamence centrada nas téonicas de exercicio do poder sobre os outros: "Chamo de ‘governments lidade’ o enconeco entre as éentcas de dominagio exercidas sobre os ourros ¢ astéenicas de si". Assim, governar é conduzir a conduta dos homens, desde que se especifique que-essa conduta é tanto aquela que se tem para censign ‘mesmo quanto aquela que se tem para com os outzes. E nisso que o governo Michel Foucauls, Naisance de de biopoitigue, cits p. 924: reproduxide em Dis er rite, ci, p. 819. + Tad, Eduardo Brandio, So Paulo, Martins Fontes, 2014, (N. E.) Michel Foveaule, Dis et eis i, t., p. 944, * Tad. Masia Theveza da Costa Albuquerque, Rio de Janctm, Pare Tere, 2014-2015, Bw (NE) Michel Foscauls, Dire die 1401 Tem, "Les techniques de soi", em Dis ef dries My tsp. 1.604, B nesse sentido amplo que ser romado aqui o term “governamienalidade Introdusio edigéoinglesa (2014) + 19 requet liberdade como condigao de possibilidade: governar nio & governar contra a libesdade ou # despite da liberdade, mas govemat pela liberdade, isto é, agi ativamente no espago de liberdade dado aos individuos para que estes veniam a conform se por si mesmos @ certas norma, Abordar a questo do neoliberalismo pela via de uma reflexo politica sobre o modo de governo modifica necessariamente a compreensio que se tem dele. Fm primeiro lugar, permice efurar andl “cotirada do Estado” dia 0 Estado aparece camo um dos piincipais obsréculos & earscrerizagao exata simplistas em tetmos de te do mercado, ja que 2 oposigio entre. mercado do neoliberalismo. Ao concritio de certa percepgao imediaca, edecertaidei demasiado simples, de que os mercados conquistaram a partic de fora os Estados e ditam a politica que estes devem seguir, forain ances os Estados, © 6S mals poderosoS emt primero lugar, que introduziram e universalizaeam na economia, na sociedade c até neles prdprios a légica da concorréncia ¢ ‘6 modelo de empresa. Nao podemos esquecer jamais que aexpanséo das finangas de mercado, assim como 0 financiamento da divida pablica nos mereadosde titulos, sio fruto de politicas deliberadas, Comose-vé até mesmo za atual crise na Europa, os Estados adotam politica altamente “interven- cionistas”, que visam a alterar profundamente as relagacs sociais, mudar 0 papel das insticuigdes de protegio social e educa¢io, orientar as condutas ‘criando uma concorréncia generalizada entre os sujeitos, ¢ isso porque cles priprios estdo inscridos num campo de concorréncia regional e mmuncal que ‘oslevaa agir dessa forma, Mais uma vez, comprovamos as grandes anélises de Mars, sozinho: alc foi sempre amparado pelo Estado. Em segundo hugar, a reflex politica permite compreender qu: ‘eber ou Polanyi segundo as quais o mercado moderno nio atua ada é uma mesma logica noemat edominios muitos diferentes da vide econbmica, politica e social. Ao contririo de unia ‘que rege as relagdes de poder eas maneiras de governar em nivel Ieitura do eaundo social que o divideem campos auténomes, frgmenta cm lidade destaca 0 cardter transversal dos modos de poder exercides no interior de uma sociedade numa mesma época microcosmos tribos separadas, a aniliseem termos de governam: Os limites do marxismo Enfucizando 0 regime disciplinar imposto a todos pela lbgica normativa que se encarnou em instituigées ¢ dispositivos de poder cujo aleance hoje é we oe 20 + A nova ratio do mundo mundial, nosso pensamenco difere um pouco de muiras das interpretagiies co ncoliberalismo dadas até o momento. Nio contestamos queas politicas neoliberais foram impostas primeico pela mais eriminosa das violéncias no Chile, na Argentina, aa Indonésia e em outros lugares, com o apoio decisi vo dos paises capitalistas, a comegar pslos Estados Unidos. O trabalho de Naomi Klein, muito bem documentado a respeito desse ponto, continua obrigarério, Nesse aspecto, hi uma frase de Marx que nfo envelhece: “Na histéria real, como se sabe, o papel principal ¢ desempenhado pe conquista, a subjuy a, a violencia”. Esse parto na violéncia revela, em primeio lugar, 0 Fato de que se trata de sao, o assassinio para roubar, em su uma guerra que se tava por todos os mcios disponiveis, inclusive o terror, € que se aproveita de todas as oeasi6es possiveis para implantar 0 novo segime de poder ¢ a nova forma de existéncia, Por isso, se reduassemos 0 neoliberalismo & aplicagao do programa econdmico da Escola de Chicag pelos métodos da ditadura militar, enveredariamos pelo caminho errado. Comvém néo confundir estraégia ger dependem das circunstincias locais, das relagies de forgas e das Fases com métodos particulars. Estes histéricas: podem tanto empregar a brutalidade do puch militar como a reer do emprego edo crescimento eaproveitar os déficits ¢ as dividas como pre sedusio eleicoreira das elasses médias; podem usar ¢ abusar da chan cexto para as "reformas estruturais’, eomo fazer I muito tempo 0 Fundo Monetério Inceenacional (FMI) € a Unio Europeia. O questionameno da democracia toma caminhos divetsos, que nem sempre tém 2 ver com a “terapia de choque", mas, sim, sobretudo, com 0 que Wendy Brown chamou, com justiga, de processo de “desdemocratizasao", que consiste em esvaziar a democracia de sua substincia sem a extinguir formalmente. Nao hi davida de que hii uma guersa sendo travada pelos grupos oligae Rigas ators vem ewe delocament como ura tao ov ur “éewievamen do Uberaismo, £0 cao de Alain Laven, Le ligralime améroin: site den ‘tournament Pats, Les Beles Laces, 2006) 58 + A nova eu da mundo © “novo liberaisma” repousa sobre a constatagao da incapacidade dos dogmas lierais de definir novos limites para a iatervengao governamental Em nenhum outro lugar lé-se melhor essa incapacidade dos dogmas antigos do que no pequeno ensaio de John Maynard Keynes cujo titulo ji & por si 6 uma indicagio do espicito da época: O fim do “aises-fare™* (1926). Se Keynesse corns i mais tarde o alvo preferido dos ncolibersis, nao devemos nos esquecer de que keynesianismo e neoliberalismo compattilharam as mesmas preocupacses durante algum compo: como salvar do proprio liberalismo o que € possfvel do sisters ‘capitalista? Esse questionamento interessa a todos 0% pafses, com variagdes notéveis conforme peso da tradisio do liberalismo ceonbmico, Obviamente, 1 mod estava a procura de uma terceira via enere © puto liberalism do século anterior ¢ 0 socalismo, mas seria um engano F e382 “terocira via” como 0 “Justo meio". Na realidade, esea pment todo sentido quando a reinserimas no Ambito da questa cencral da época sobre que firndamentos deve-serepensar a interven gowernamental’®? Toda a forca de Keynes proveio justamente de ter sabido colocar esse ptoblema da época em termos de governamentalidade, como fard poitea depois, als, seu: amigo Walter Lippmann, embora num sentide diferente. Apés lembrat as palavras de Edmund Burke! ¢ a distinggo de Bentham, centre agenda e nto agenda, Keynes escreve 0 soguinte: A tarefaestencial dos economists hoje, sem diivida, € repensa a distingio centze agenda do poverno e nao agenda. O complemento politica dessa cara * Bim John Maynard Keynes, Keynes (org Tutds Scmccaiys 2 el St0 Palo, ica, 1984, Colegio Feonomia). (NE) Giles Dastales apresemta dz seguime mancita a visa politica de Keynes “A visto politica de Keynes se delineia, num primeins momenta, em terme negatives, Ela é ‘mals clara naguilo que rejeita do que no que pregs. De um lado, Keyes teava uma luca concrao liberalismo elssien, que xe tomou apandgo de um conservadoristo.¢ |que, em sta forma extrema, pode transormar-ee em fascismo. Pot outro, ele eejeiea as formas adieals do soclalisma, que cledenomina ora leninismo, ora belchevismo, fora comuunismo, Trata-s, portanto, de mavegarentte a reagao.e a tevulugio, Essa Ea rmiscto de uma ‘erceia vi, akernadamente denominada nove ibeisnn iberalsmo social socialism liferel, do qual cle se faz propapandista’. Gilles Dosales, Keynes et sesconbais (Pus, Albis) Miche, 2005), p. 166. [Edmund Burke considerava que “um dos problemas mais sutis do di definicéo exara do que © Estado deve omar a seu encargo e geri segundo o descjo dzopiniso pablicae do que deve ser deixado para. niciatva prveda. resguardado, vance quanto possvel, de qualquer ingerénc : Giise do liberalismo enascimento do ncoliberalismo * 59 seria conceber dentro da quae democti,formasdle gaverno quefessem Sxpazes de pr a8 agendas em execu.” Keynes nio desea por em questio todo 6 liberaismo, mas sua deriva dogenivica. Assim, quando propoe que “o essencial para um governo mio €azer win poxco melhor ou um poo pioro que os individtos j fazem, mas farer o gue atualmente nao é feito de manera alguna’, nao se poderia ser rnais clano sobre a nacureza da “crise do liberalism”: como reformulartebrica, morale politicumentea distingio entre agenda e ndo agenda? Isso sgnificava retomar uma questio antiga, sabende quea rxsposta néo poderin mais sera dos fundaclores da economia liberal, em particular a de Adam Smith, Keynes querestabelecer a distingao entre o que-0s economistas disseram de fato eo que apropaganda respondeu. Para ele, 0 tassexfaive é um dogma social simplista que amalgamou: tradigses ¢ épocas diferentes, sobretudo a apologia da livre concorréncia do século XVIII e 0 “darwinismo social” do século XIX (Os economist ensinavam que a riquesa, © comézcio ¢ 4 inchistria eram fruco da livre concorréncia ~ que a live eoncortéacia fandara Lones. Mas os darwinivea iam mais longe: a livre conootréneia eviasa « homem. A humanidade nio ers mais fruto da Criagfo, ordenando milagrosamene toulas as coisas para © melhor, mas fruto, supremo, do acaso submetide as condigies da live concorréncia e do laises-fite. O principio mesmo da sebrevivéne:a do mais bem adapiado podia ser considerado, assim, ume vasea generalizagio dos prineipios econdmioos rieaxlianos. © Keynes sublinka que essa crenga dogmitica & largamente rejeitada pela maioria dos economistas desde meados do séeulo XIX, embora continue a ser apresentada aos estudantes como propedéutica. Anda que talves exagere a extensio da revisio, omitindo a constituigéo da economia de inspiragéo “marginalista” que faz da concorréncia a condigio mais perfeita do funcio- namenco ideal dos mercedos, ele aponta um momento de refundagio da doutrina que foi chamada de “novo liberalismo” e que cle proprio reivindica para si. Esse novo liberalismo visava a controlar as forcas econdmicas para evitar a anarquia social ¢ politica, reapresentando a questio da agenda ¢ da nao agenda er sentido favorivel 3 intervengio politica. O Estado se vé © John Maynatd Keynes, The End of Later fire (Masel * Teidem, p. 31. © Thidem, p. 9, Agone, 1999), p. 26 60 + A nova saxo do mundo cencarregado de um papel regulador ¢ redistibuidor fundamental naquilo ‘que se apresenca também como uum “socialise liberal"®. Gilles Dostaler, isso significava sobretudo reatar com 0 » que sempre defendeu a intervengio do Estado quando . Ennessa tradigéo que se inseriamn, no fim do século XIX €n0 inicio do século XX, autores como John Hobson ¢ Leonard Habhouse, Estes tiltimos defendiam uma democracia social, vista como o prolonga- mento normal da democracia politica. Na pluma desses partidarios das reformas socials, 0s principios da liberdade de comércio e de propriedade tornavam-se um meio como outro qualquer, e néo mais um fim em si, 0 que evidentemente nvio deixa de lembrar Bentham e Mill. Mais ainda, esse movimento pretendia travar uma luta doutrinal contra o individualisme na, compreensiio dos mecanismos econdmicos ¢ sociis,criticando frontalmente a ingemuidade dogma ica do velho libcralismo, que conduzia 3 confusto do Estado moderne com o Estado monicquico despéiico, Hobhouse propés em 1911 uma releitura sstemivien da hiscéria do Iiberalismo" Esse movimento lenio e progressive de libertagao do indi- viduo em relagio as dependéncias pessoais era, para ele, um fendmeno eminentemente hiscérien e social, Eate levou a certa forma de organizacéo {que éirreducivel& reunido imaginavia de indivicuos inteirarente formmados fora da sociedade. Essa organizagio social visa a produzit coletivamente as condiges de pleno desabrochar da personalidade, inclusive no plano eco Isso somente é possivel se as relagées mihiplas que cada individuo ‘mantéi com os outros obedecem a regsas coletivamicnte estabelecidas. A democracia mais completa, baseada na proporcionalidade da representacio, Gilles Dostaler descreve esse “novo liberalisma” da seguinee mane “Testes, em \tkima ansbise, de transforear profundamente um ligeriismo esondiice que havia esac so mente mute caro no period vitoviano corr rico de provost unm revolta da classe opera. © novo liberalismo apeesenta-se como wna alcenativa a0 socialisma coleivista © marssta. Os novos liberals sein a Juta de classes como motor de cransformagio social, Aderem de preferéncia « uma foros de vociaisma liberal que podemos qualifier de social-democrats 20 menos sentido que tomaria ‘cxpresto aps as esses nos partidos operisios no inicio da Segunda Gucita Mundi, [Naturalmente, esse novo lberalismo ¢ exato opost daquilo que hoje chamamos de neoliberaisme, que é, em primeieo lugar, uaa racdo ultzaliberal contra o interven lonismo keynesiano”. Gilles Dostaer, Keynes e95 erm, cit p. 179. ‘Ver Leonard Hobhouse, Liberalism and Osher Writing (org. James Mendowerof, ‘Cambridge, Cambridge Universcy Pres, 1994), Cee do liberslisma e nascimenta do nealiberslieme * 61 é necessiria para que essa realizagio pessoal seja efetiva: cada individuo deve ter condigoes de participard sua liberdade eferiva’”, E que a liberdade ganha uma concepeo nova inscauragao das regras que assegurario fe mais concreta com a legislago proretora dos trabalhadores. Segundo Hobhouse, no século XIX pareceu necessério reequilibrar as trocas socials em beneficio dos mais fracos mediante uma intervengio da legislaco: “O verdadciro consentimento é um consentimento livre, ea plena liberdade do consentimento implica igualdade das duas partes compromeridas na transagio"®, Cabe a0 Estado assegurar essa forma real de liberdade que 0 velho liberalismo nao concebera; cabe a ele garantir esa “liberdade social” (social freedom), que ele opie “liberdade nao social” (uncial freedom) dos ais fortes, Ainda de forma benthamiana, Hobhouse explica quea liberdade real someice pode ser assegurada pela Lociyiu excrcida soine ayucle que 6 mais ameagador para a liberdade dos outros. Essa coergao, longe de sex entatéria i liberdade, proporciona & comunidade um ganho de liberdade fem todas as condutas, evitando a desarmonia social”. Liberdade no é 0 contritio de coergo, antes é combinagio das coergdes exercidas sobre os {que sio fortes com as protegées dos que sio mais Fracos. essa perspectiva, a logica liberal auténcica pode ser facilmence resu Iida asociedade modesna multiplica as relagBes contratuais, nfo apenas no campo econdmico, mas em toda a vida social, Portanco, convém rmuliplicar as agées de reequilibrio e proceso para gorantir a liberdade de todos, sobretudo dos mais fracos. O liberalismo social segura, assim, por sua leis de individuos. Filosofia plenamente individualista, esse liberalismo da a0: Estado 0 papel essencial de assegurara cada individuo os meios de realizar seu proprio projeto®. Pode-senorar que este nove lberaliemo é um movimento fundamencalmente demo: critico, que deixa de lado a deseonfanca que ainda se encontava em Mill acerca da “Teanla da msioris”. Mais pitaimo de Bentham neve expetto, ee tn mals rece dd reconstituisio dae oligarquiae da quedo pader cine mane © Leonaed Hobhowse, Liberalion end Other Writingt cit. p. 4. Ihidem,p. 44. Evidentemente, esa “retomad liberal deve ser articulada 3 wadigio republicana no mundo eue-aUdativo. Seu eguivaleate na Prana o projec republicano moderne, sseudado por Jean-Fabien Spe, Le moment ripubliczin en France Pats, Gallimacd, 2005, Colegio NRF Essai) Seek aE 7 i RRR KR 62 + A nova ratte de mundo No entreguerras, esse novo liberalismo verd desdobramentos impor tantes nos Estados Unidos™. John Dewey, nas conferéncias que fez em 1935, reunidas em Liberadisma e agao social, mostrou a impotéacia do liheralismo cldssico para realizar seu projeto de liberdade pessoal no séciulo XIX, sendo inc para uma orga berais. Reconheoe cm Bentham 0 mérito de ter visto grande ameaga que pesava sobrea vida politica nas sociedades modernas. A democracia que ele ‘queria implantar era pensada como forma de impedir os politicos de usar sett poder em interesse proprio. Mas Dewey detss-0, a ee € a0 conjunto az de passar da critica das formas antigas de dependéncia iacdo social intciramente Fundada sobre os principios li- dos liberais, de no ter reconhecido que 0 mesmo mecanismo agiria na economia ¢, consequentemente, de no ter previsto “eravas” para eviter esse desvi tuamenco®, Em suma, para Dewey, assim como anios antes para Hobhouse, 0 liberalismo do séeulo XX nao poderia mais contentar se com os dogmas que permitiram a ccftica da ordem antiga, mas deve colocar-se imperativamente © problema da consteucio da ordem social ¢ da ordem econémica, E exatamente a isso que se dedicarao ~ em sentido oposta ~ 95 neoliberais moclernos. Hobhouse, Keynes ou Dewey encarnam uma corrente, ou melhor, um meio difuso do fim do século XIX e inicio do século XX, no cruzamento do tadicalismo com 0 socialismo, que se empenha em pensar a reforma do capitalism. A ideia de que politica ¢guada por um bem comum ¢ deve ser submetida a finalidades mor ue explica as interseesdes possiveis com © movimento socialists. O fabia- coletivas é fundamental nessa cottente, 0 nnismo, por intermédio de circulos ¢ revistas, constieui um dos polos desses encontios, Mas ese novo liberalismo deve ser sicuade sobzetudo na hist6ria do radicalismo inglés. Hobson deve ser levado a sério quando decls 5 Segundo Alain Laurent, os “Iibeesis moderns" conduides por John Dewey reriam realizado uma operacio muito semelhante nos anes 1920 nos Estados Unidos, o que teria sido determinate para 9 signifcade que adquiriu o termo “Ube” no léxico politico norte-americano, % Ver John Dewey, “Liberalism and Social Action”, ein The Later Works (1985-1937), v.11 (Carbondale, Souther Ilinois University Pres, 1987), p. 28 [ed bras. “Libe- rallsmo ¢ aséo soial”, em Libentismo, Aberdade eculeure, ead. Anisio Teac, Sio Paulo, Editors Nacional, 1970) 8 Ver Peter Clarke, Liberals and Soctat Democrats (Cambridge, Cambridge University Prete, 1978), (Crise do iberalisme e asscimento do necliberalismo © 63 queria “um novo uriltarismo em que as sacsiagées fiscas, intelecuais © morais terdo seu lugar justo™, Ver nisso um “desvirtuamenco” do verdadeiro liberalismo seria, eviden- ntal do liberalismo®. E esquecer que, desde o inicio do século XIX, 0 radiealismo emente, um erro baseado no postulado de uma identidade funda beenthamiano seve suas zonas de contato com © movimento socialisa nas- cente, canto n8 Inglaterra como na Franga. F esquecer que, anos depois, 0 uilitarsmo douteoal foi progressivamente conduzide a epor uma Iégica hhedonista pura a uma ética da maior felicidade para o maior niimero de pessoas, como em Henry Sidgwick. Mas também é desconhecero sentido das inflexoes aparentes dadas por John Stuart Milla sua prépria doutrina, como lembramos antes A dupla agao do Estado segundo Karl Polanyi A.questio da naturera da intervenciio governamental deve ser distingnida da questo das fronteiras entre o Estado ¢o mercado, Essa distingto permite aprcender melhor um problema apresentado em A grande transformagio, livro em que Karl Polanyi afirma que o Estado liberal conduziu uma dupla jem favor da ctiagio dos mecanismos de mercado ¢, de outro, implantow mecanismos que o limiearamn; de um lado, apoiou o “movimento” na dicegio da sociedade de mercado e, de ouro, levou em consideragio e reforcou 6 “eontramovimente” de tesisténcia da sociedade aos mecanismos de mercado. Polanyi mostra que a entrada no mercado dos fatores econémicos a condigéo para erescimento capitalista, A Revolucéo Industral teve como condigio a constiruigao de um sistema mercantil em que os homens devem concebs se, “sob o aguilhiio da fore’, como vendedores de servigas para poder adquirir recursos vitais para 4 tzoca monetiria. Para tanto, &ne- cessério que'a nanureza ¢ o trabalho se tornem mercadorias, que as elagbes que © homem mantém com seus semelhantes ¢ com a natureza comem 2 forma da relacio mercantil. Para que a sociedade inteira se organize de 2cordo com a fica da mercadoria, para que se consticua como uma grande 5 Joh A. Hobson, Waal and Lif, citado em Michael Preeden, Liberation Divided, cic, extaldo de John A. Hobson, Wetib and Lif (Londes, Macmillan, 1929). » Ver Alain Lausem, Le libénlisme américain, ce 64 + A nova rizéa do mundo maquina de produgao e troca, a intervencao do Estado é indispensivel, nfo apenas no plano legislativo, para fixar 0 direico de propriedade e concrato, mas também no pl wo administrative, para instaurar nas relagbes sociais regras maleiplas necessérias 20 funcionamento do mercado concotteicial «¢ fazer com que sejam respeitadas, © mereado autorregulador fruto de uma agio politica deliberada, cla qual um dos prineipais teérices fei, seaun: do Polanyi, precisamente Bentham, Citamos aqui um trecho decisivo de A grande transformagie: 0 latses-fare nio isha nada de natural; ox mercades livies nunca podeziam rer nascide seas cols tivessem sido simplesimenteabarclonalas asi mess [.eo] Botte 1830 ¢ 1850, viu-se nao apenas uma explosio de leis ab-rogando lamentos restitivos, mas também uum enorme aumento das fungies sdministzacivas do Estado, que é endo dotado de uma busoeracia cential capa de eumprir as tarefas estabelecidas pelos partidirios do liberalism, Para o usilcaistatipice, o liberalismo econdmico € um peojetn social que deveser posto em agio para a mar fl 2 daisen-feive mio é um métade que permite realizar uma coisa, ele é a vos que se deve paizar® ‘dade do maior nero de pessoas Esse Estado administratvo, eriador ¢ reguliclor ca economia e dt ciedacle de mercado, é imodiatamente, sem que se possa distinguir bem o alcance das ineervengSes, um Estado admin erative que reprimea dinimica espontinea do mercado e protege a sociedad. Fsse é 0 segundo paradloxo da demonstracio de Karl Polanyi, formulado da seguinte maneira por ele: “Enquanto a economia do leissea-ftire era produzida pela acio deliberada do Estado, as restrigoes posteriores principiaram espontaneamence. O Iaisex-ftve era planejado, a planificagto ndo”?. Apis 1860, ¢ para o pesat de Herbert Spencer, um “eontramavimento” generalizou-se em todos os paises capitaliseas, canto na Europa como nos Estsdos Unidos. Inspirando-se nas ideologias mais diversas, le respondia a unva ligica de ‘protect da socieda- do". Es aurorregulacor tomou duas Formas: 0 protecionismo comercial nacional ¢ 0 protecionismo social que seinstalou no fim do século XIX. Portanto a hist deve ser lida segundo um “duplo movimento” de seatido concritio: o que c movimento de reagio conta as tendéncias destruidonas do mercado ido do mercado ¢ 0 que tende a resistira ele. Esse movimiento de % Kel Polanyi, Le grande namyforoation, ct, p. 189; grfo nosso 5 Tider, p. 191 gifo nosso, (Crise do ibcralisono¢ nascimente do necliberstisma + 6) aurodefesa espontines, como diz Polanyi, prova quea sociedade de mere total € impossivel, que os softimencos que acarreta sio t2is que os poderes piblicos sto obrigados a estabelecer “diques’ e “muralbas”. fodo desequilibrio ligado a0 Fancionamento do mercado ameaga a sociedacle submerida a ele. Inflagio, desemprego, erise de crédivo inter racional, cnavb financeiro, todos esses fenémenos econémicos atingem disetamente a sociedade e, porianto, exigem defests politicas. Porque no compreendezam essa listo que poderia ter sido tirada do periodo anterior 4 Primeira Guerra Mundial, os responséveis politicos que surgiram apés 0 fim das hostilidades quiseram reconstruc fedgil, acumulando tensdes entre o movimento de reconsirugio do mercado (em particular no nivel mundial, com o desejo de restauracio do sistema na ordem liberal mundial muito do padeSo-suro) « o movimento de aurodafesa sacial. Essas censSer, que eéma ver com a contradigio interna & “sociedade de mercado”, passaram da esfera econdmica para a social, e desta para a politica, da cena nacional para internacional e vice-versa, 6 que, por fim, provocou a reagio fascista ea Segunda Guerra Mundial A“gande cransform 0" que caracteriza os anos 1930 © 1940 uma resposta de grande envergidura ao “deseparecimento da civilizagéo de mereado”™ c, mais precisamente, uma reacio 3 tentativa derradeira € ‘oO Iiberalismo cconémico fer um lance alte para restabelecera autorregulagso desesperads de restabelecer 6 mereado aurorregulador nos anos 1920: do sistema, climinando todas as poiticas intervencionistas que comprome tiam a liberdade dos mereados de terra, tcabalho € moeda”®, Desse lance alto, em que a moeda desempenhou o papel principal, & grande transfor magio, a consequéncia é direta. O imperative da estabilidade monetitia e daliberdade do comércio mundial levou a melhor sobre a preservacao das liberdades priblicas e da vida democritica. © fascismo foi o sintoma de uma “Sociedade de mercado que se recusava a funcionar”® ¢ o sinal do fim do capitalismo liberal tal como fora inventado no século XIX. A grande reviravolta politica dos anos 1930 manifesta-se como uma ressocializagio violenta da economia Por toda parte, a eendéncia €a mesma: subtracm-se * Thidem, p. 285. » Ibidem, p. 299. © Thider, p. 308, Ver Peficio de Louis Dumoae. em ibidem, p. 1 66 © A nara se do mundo do mercado concorrencial as regras de ixagio dos pregos do trabalho, da rerra eda mooda para submeté-las a Iigicas polisieas que visa “defesa da sociedade”, O que Polanyi chama de “grande trensfosmagio” 6 para ele, 0 fim da civilizagao do século XIX, a morte do liberalismo econdmico ede sus utopia Polanyi, todavia, precipitou-se acreditande na morte definitiva do smo. Por que cometeu esse ero de diagndstico? Podemos avangar a hipéweve de que subestimou um dos principais aspecos do liberalism, embors mesmo o tenha posto em evidéneia. Vimos antes que, entre 2s diferentes formas de intervencionismo do Estado, havia dues que se Contrariavam: as intervengoes de criagéo do mercado © as de proceso da soctedade, “movimento” ¢ 0 “eonttamovimento”. Mas existe um terceiro tipo, do qual cle fala mais brevemente: as intervencées de fimionamento do mercado, Embora indique que estas nao so facilmence distinguiveis das outras, ele as menciona como uma constante da agéo do governo liberal. Essay intervengoes destinadas a ceguear a autorregulagio do mercado tentam fazer com que © principio de concorincia que deve regé-lo seja respeitado, Polanyi cits como exemplos as leis ancicrustes € a regu nentagio das associagies sindieais. Nos dois casos, tata-se de ir contra a liberdade (na situacdo em questio, a liberdacle de coalizio) para fazer funcionar melhor as regras concorrenciais, Polanyi cita, alids, esses “fiberais consequentes com eles mesmos", enire os quals Walter Lippmann, que ndo hesitam em sacrificar o laissez-faire em beneficio do mercado concorrencial®. Isso porque estes tiltimos termas nao so sindnimos, apesar da linguagem comum que as confunde. Citamos uma passagem particularmente eloquence: Esitamente falando, 0 liberlismo econdmico ¢ & prinepio dirtor de ume sociedad em que india ébaseada na instcuigo de wim mercado aurorregulador. verdad que, uma vex que esse sistoma este mais ou menos realizado, necesiea-se de menos intervengio de cert ipo, Contudo, isco nio quer dizer, longe diso, que o sistema de mercado a imtervenci ssjam termos que se excluam muruanience. Pols, enguaato esse sistema do ¢ implantado, os partition da economia liberal devem exigir—e no hesitaria em faré-lo — que o Estado intervenla para estabslect-o e, uma ver estabelecide, que intervenhs para manté-lo. © partidétio da economia liberal pode porranto, sem nenbumaincoeréneia, pedir a Estado queuilize © Thidem, p. 200. Crise do beraiamo e nascimenta do neoliberalisma * 67 a forcx da lei ele pode até mesmo recorrer& violéncia, 4 gue instaurar as condisées prévias para um mercado autorregulador.™ wil, para Essa pas cruzadas” recentes,distancia-nos da “disjungfo" encre Estado. mercado que é vista como tipica do liberalismo. A realidade hist6ries ¢ muito diferente, ‘como mostra Polanyi quando cita a guerra que Norte travou contra 6 Sul para unificar as regras de Funcionamento do capitalism nove ssa forma constante de intervencio para “manutengio” do mercado langa uma nova luz sobre.o erro de Polanyi, hem como sobre os que vieram ger muito pouco citada, nocivel pelo faco de antecipar eercas depois dele, Fla é apenas a presungéo otimista de um fim ardentemente desejado ou apenas 0 resultado de uma confisto de pensamento, cujo isco foi identificade pelo préprio Polanyi. O liberalisme eco confanule com o luises-fuire, wi & uanuririo wo “inkervencionisme”, como ainda se pensa com frequi Na realidade, & emtre os diferentes tipos de intervengées do Estado que & preciso fazer uma distingio. Flas podem dizer respeito a principios hecernomos 4 mercantli acio © abedecer 2 prineipios de solidatiedade, compartithamento, respeito = tradig6es ou normas tligiosas. Nesse sentido, partcipam do "conteamovimento” heen :ncia principal do grande mercado, Mas também podem ser dx ordem de um programa que visa a estender a insergi0 no mereado (ou quasi-mezcado) de setores intciros da produgio eda vida social, mediante certas pol cas publicas ou certas despesas sociais que vém proteger ou apolar o desenvolvimento das empresas capitalistas. Polanyi, quando se quis *profet, ficou como que fascinacto com a contradigéo entre ¢ss¢ movimento mercantile esse contramovimento social, contradisio. para ele, levou afinal 4 “explosio” do sistema. Mas esse fase tanto pelo contexto como pelas intencées demonstr coin que ele se esquecesse das incervengdes priblicas para o fencionamento do mercado auto 5 explicdvel s de sua obra, fex tlador que, no entanto, ele pusera em evidéncia, Fsse erro de Polanyi € importance porque tende a obscurecer a na: uuseza espectiica do neoliberalismo, que nio ¢ simplesmente uma nova reagio & “grande tansformagio", uma “redugio do Estado” que prece- detia um “setorno do Estado”. Fle se define melhor como certo tipo de © Tbidem, p. 201 Iden, 68 + Anova rasio do mundo intervencionismo destinado a moldar politicamente relagdes econémicas ¢ sociais regidas pela concorréncia. O neoliberalismo e as discordéncias do liberalismo A “crise do liberalismo” revelou a insuficiéncia do principio dogmétieo do laissez-faire para a conducho des negécios governamentais. O cariterfxo das “leis naturais’ tornow-as incapazes de guiar um governo cujo objetivo declarado 6 assegurar a maior prosperidade possivel e, ao mesmo tempo, aordem social. Entre os que permanecem apegados aos ideais do liberalismo clissico, foram formulades dois tipos de resposta que devem-se distinguir, ainda que, historicamente, elas tenham se misturado algomas veres. A primeira em ordem cronol igica €a do “nove liberalismo”, a segunda é a do “neo- liberalismo”. Os nomes dados a essas duas vias nfo se smpuseram de ime- diato, como se pode imaginar. Foi o uso que se fer delas, os contetidos que foram elaborados, as linhas politicas que se destacaram pouce a pouce {que nos permitem distingui-Las etroativamente, A proximidade dos nomes traduz, em primeice lugai ; uma comunidade de projeto: trata-se nos dois casos de responder a uma crise do modo de governo liberal, de superar as dificuldades de todas os tipos que surgiram das mutagies do capitalism, dos confliros sociais, dos confrontos internacionais. Trata-se até, mais fundamentalmente, de fazer frente a0 que aparecen em dado momento como 0 “fim do capitalismo”, fim esse que foi encarnado pela ascensio Suerta Mundial, Essas duas correntes dos “totalitarismos” apésa Primeira C deseobricam progressivamente que tinham em comum, dito brutalmente, um inimige: © totalitarismo, isto é, a dessruigo da sociedade liberal. Sem diivida, foi isso que as levou a criar um discurso a0 mesmo tempo ‘eérico e politico que di razio, forma e sentido 4 incervengio governamen- «al, um discurso novo, que produz uma nova racionalidade governamencal. © que supunha revisar, de um lado e de outro, © naturalisme liberal tal como fora transmitido a0 longo do século XIX. A distingio dos nomes, “novo liberalismo” e “neoliberalismo”, por mais discreta que seja na aparéneia,traduz uma oposicio que nio foi percebida de imediato, as vezes nem mesmo pelos acores dessas formas de renovagio da ante do governo. O “nove liberalismo”, do qual uma das expressées tardias € mais elaboradas no plano da teoria econdmica foi a de Keynes, consist Cee do Liberalism ea ‘em reéxaminar 0 conjunto.dos meios juridicos, morais, politicos, econé- imicos€ sociais que permitiam a realizagio cle uma “sociedade de liberdade individual”, em proveito de todos. Duas propostas poderiam resumi-to: 1) asagendas do Estado devem iralém dos limites que © dogmatismo do laises- “faire maps a clas, se se desejasalvaguardar 0 essencial dos bencticios de uma Sociedade liberal: 2) essas novas agendas devem par em questéo, na pritica, a.copfiangs que se deposicou até entio nos mecanismos autorreguladores do mercado ea Fé na justiga dos contratos entre individuos supastos iguais, Em ourras pakivtas, realizagio dos ideais do liberalismo exige jyue se saiba utilizar meios aparentemente alhcias ou opostos 20s pri cipios liberais pare defender sua implementagio: leis de protesio do trabalhe, impostes pro- gressivos sobre a rend, asatlios sociais abrigatsios, despesas orcamentérias aus, nacionalizayoes. Mas, se esse reformusmo acelta restringir os Interesses individuais para proreger o inceresse coletivo, cle o faxapenas para garantir as condigées resis de realizago dos fins individuais, © “nell lismo” vem mais tarde. Fm certos aspectas, aparece como. toma decantagio do “novo liberalismo” e, em outros, como uma alte 103 tipos de intervengio econdmica ereformismo socal pregedos pelo “nove Liberalismo”. Ele compartlharé amplamente a primeira proposigio com este iim. Mas, ainda que admivam a necessidade de uma ineervencio do Exado reeitem a pura passividade governamencal, os neoliberais opdem -se a qualquer agio que entrave 0 jogo da concorréncia entre interesses privados. A intervengio do Estado tem até um sentido contraio: trata-se do de corregio ou. compensagao do Estado, mas de desenvolver e purifiear 0 mereado concorrencial por um nfo de limitar © mercado por um: enquadramento juridico cuidadosamente ajustado. Néo se trata mais de postular um acordo espontineo entie os incetesses individuais, mas de produzir as condigoes dtimas para que © jogo de rivalidade satisfaga 0 in teresse coletivo. A esse espeito,rejeitando a segunda das dus proposigSes mencionadas antes, o ncoliberalismo combina a reabilitaggo da incecvengi0 pblica com uma concepgio do mercado centrada na concorténcia, cuja Fonte, como vimos, encontra-se no spencerismo da segunda meade do século XIX®, Ele prolonga a virada que deslocou o eixo do liberalismo, © Michel Foneauleapontou ses passsgens da tinea para aconcoviéncia, que ensetertea neoliberaismo em relasio 20 liberslisma elissico, Ver Michel Foucsule, Naitsance dela bingolitique, cit, p. 121-2 1ento do neoliberaliame * 69 70 * A nova raaio do mundo fazendo da concorréncia © principio central da vida social ¢ individual, mas, em oposigie & fobia spenceriana de Estado, reconhece que a ordem de mercado no é um dado da natureza, mas um produto artificial dé uma 2 O COLOQUIO WALTER LIPPMANN OU AREINVENCAO DO LIBERALISMO hristéria e de uma construgio politica Se 6 verdade que a crise do liberalismo weve come sintoma um refor- mismo social cada vez mals pronunciado a partir do fim do século XIX, ‘6 neoliberalismo é€ uma respostc a esse sintoma, ou ainda, uma tentativa de entravar essa orientagao as politicas rediseributivas, assistoncia phani ficadoras, reguladoras e prorecionistas que se desenvolveram desde o fim do século XIX, uma oientagio vista como uma degradacio que conduzia direramente ao coletivismo. Acriagio da Sociedade Mont-Pelerin, em 1947, ¢ citada com frequen: cia, € ertone ro de nascimento do neoliberalismo’ ade, @ momento fundador do neolibe: Na re no Coléquio Walter Lippmann, realizado durante cinco dias em Patis, a partir de 26 de agosto de 1938, no ambizo do Instituto Intemacional de Cooperarao Intelectual (ancecessor da Unesco), na rue Montp no centro de P: Jismo sitwa-se antes, ris. A reunitio de Paris distingue-se pela qualidade de seus participantes, que, na maioria, mareario a histéria do pensamento ¢ da politica liberal dos paises ocidentais aps a guerra, quer se rate de Friedrich Hayek, Jacques Ruel, Raymond Aron, Wilhelm Répke, quer se trave de Alexander von Ristow, Arespeite dahistéria da Socielade Mom-Péerin, ver Ronald Mex Hasewell Hitry ofthe Mons Pelerin Sacety (ndianspalis, Liberry Fund, 1995). ara mais dealhes, ver Francois Denord, “Aux origines du néolibécalisme en France: Louls Rogier er le Colloque Walter Lippmana de 1938", Le Mowvement Social 1 195, 2001, p. 9-34, ¢, mais recente, o live abundantemente documentado de Serge Audier. Le Callague Lippomann: aus origin de ndolibévaliome (Lateesne, Le Boed de Es, 2008), Anova rio do mundo Fscother uma dessas duas datas como momento fundador nao 6 ine diferente, como veremos adiante. A anlise que se faz do neoliberalismo depende dessa escolha, Esses dois acontecimentos, aliés esto correlacionados. © Coléquio Walter Lippmann iséo de um Centro Internae cional de Estudos para a Renovagio do Liberalism, cuja sede acabou sendo © Museu Social, na rue Las Cases, em Pats, instituigio que foi concebida tna época coma uma sociedade intelectual internacional que devesia realizar errourse com a declaragio de e sessGes regulares sempre em paises diferentes. Os acomtecimentos na Europa decidiram 0 conteirio. Sob esse Angulo, a Sociedade Mont-Pulerin aparece ‘como um prolongamento da iniciativa de 1938. Um de seus pontos em co- roum, que nio foi de pouca imporrdncia para a difusio do acoliberalismo, & seul cosmopolitiimo. O Coldquio Walter Lippmann 4 a psimeisa ventaciva de de uma “internacional” neoliberal que se prolongou em outros orga: nrismos, entre 0s quais, na iltimas ckécadas, a.Comissio Trilateral eo Féram Econdmico Mundial de Davos. Oust pomio em comurn é a importineia que se dd a0 trabalho intelectual de reFundagio da doutrina para melhor assegurae sua vitdria contr os principios adversérios. A econstrucio da doutrina liberal jeneficir meios académicos bem financiados ¢ de prestigio, comesando nnos anos 1930 pelo Institut Universitaire des Haures Baucles Internationales LUnsticuro Universitit de Altos Estudos [nternacionais),fundado em 1927, em Genebra, pela London School of Economics ¢ pela Universidade de Chicago, ‘para mencionarmos apenas 98 mais famosos, ¢ destlando-se em seguida em algurnas eentenas de thik tanks que difunditio a doutsina ao redor do mundo. © neoliberalismo vai desenvolver-se segundo varias linhas de orga, submerendo-se a tensbes das quais devemos reconhever @ importincia, O coléquio de 1938 revelou discordiincias que, desde © principio, dividiram os intelectuais que reivindicavam para sie neoliberalismo, Alias, ele mostra bem as diver juerra Mundial, cont agir de forma cada vez mais patente. Fssas divergéncias ncias que, apds a Segunda \uatdio a vio de vitios tipos confundidas. © Coldquio Walter Lippmann mostra, em primeiro lugar, quea exigéncia comurn de reconstrucio do liberalismo ainda 4o permite, em 1938, distinguir completamente as tendéncias do “novo liberalismo” eas do “ncoliberalismo”, Como mostrou Serge Audier, alguns enio dewem participantes Franceses sio tipicamente da primeira eorrente quando se re- ferem a um “liberalismo social”, como Louis Marlio, ou @ um “socialismo liberal”, como Bernard Lavergne. rT (© Coldquio Walter Lippmann ou a reinvengio do liberalsmo + 73 Todavia, o “nove liberslismo” nao é o principal eixo do coldquio, que énnuivo mais 0 momento em que é decantado um modo diference de re- cconstrugio, que teri em comum com o “nove liberalismo” a aceitacie da intervengio, mas rencaré dat a ela uma nova definigio ¢, por conseguince, roves limites, Iss, porém, ésimplificaras coisas. Qutras divergencias dizer, rexpeito a0 proprio sentido desse “neoliberalismo” que se deseja construr: de transformar o liberalismo, dando-lhe um nove fundamenso, ou reasuscitar 0 liberalismo elissico, isto & operar um “retorno ao verdadciro Iiberalismo” contra os desvis e as heresias que 0 perverteram? Em face dos inimigos comuns (0 coletivismo em suas formas comunisea e fascista, max também as tendéncias intelecuais ¢ as correntes politias reformistas que supostamente levavam a cle nos paises ocidentais, a comegar pelo keynesis- fismo), essas livergéucias vau parecer secunaéas, sobretude quando viseas de fora. Durante a travessia do deserto politico e intelectual dos neoliberais, 6 que importa, na verdade, & opor um from unido a0 “i de Estado” ¢ “escalada do coletivismo”. Foi essa oposigao que a Sociedade Mont-Pulerin conseguiu enarnar, reunindo as diferentes correntes do neolibecalismo, a corzenee norte-amesicana (Fortemente influenciada pelos “peoaustrfacos” Friedrich Hayek ¢ Ludwig von Mises) ea corrente alemi e petmixindo, desse modo, que se apagassem as linhas divengentes tais como haviam se firmado antes da guerra. Sobretudo, essa jungso dos neolibe rais oculrou um dos aspectos princi do liberalismo moderna: teorizago de um interveacionismo propriamente liberal. Era pr esse sentido, este tiltima nio é somente um registro de nascimento, mas um elemento revelador. ais da virada que se dew na histéria mente isso que ta7ia 3 luz 0 Coléquio Walter Lippmann. Contra o naturalismo liberal © coldquio realizou-se de 26 a 30 de agosto de 1938, © organizador ddexa teunido internacional com 26 economists, flésofos ¢ funcionsies do alto escalio de cxios paises foi Louis Rougier,flésofo hoje esquecido, Na época, ele eta professor de filosofia em Besancon, adepro do pesitvisina \6gico, membro do Citculo de Viena ¢ jé havia escrivo virias obras e artigos quepregavam um “rexomo do liberalismo” sobre novas bases. Essa reuniio foi uma dupla ocasiéo parao langamento da tradusio francesa do liveo de Walter Lippmann, An Znguity ant che Principles ofthe Good Society (Uma investigario ie 74 * A vows casio do mundo sobre 0s prineipios da Grande Sociedade}, com o titulo de La cité Wore, ¢ para a presenga do aucor em Patis.O liso é apresentado pelo organizadlor do coléquio came wm 1 ranifesto de teconserugio de liberalismo, em corno do qual podem reunir-se espiricos diferentes tr hando na mesma diregio. A 1 haverd “rerorno do liberal mo” se nfo houver uma refundacto teérica da doutriaa liberal esc dela nao ideia que anima Rougier é bastante simple se deduzir uina politica iberal ativa, que evite os efeitos negatives da crenga merafisica no desez faire. A linha que Roger descja exabelecet no cold € um prolongamenco da conviegéo que Lippmann afirma firmemente em sua obra quando define a ‘agenda’ do lberalismo a ser reinventid: A.agenda prova quo libetaliemo néo é apologética estéril em que se trans formou durante sua sujelglo 20 dogma do daises-faire € a incompreensis dos econamistasclissices. a dern nao uma jusificagso do status qu, mas una lgica de eajustamento social que se toznou necessiria pela Revolugo Industeal a, aerdlra os. que« liberalisme & Rougier, no discurso que absiu os trabalhos do coléquio, assinala que forgo de refundagao ainda nio tem um nome oficial: deve-se em “liberalismo construtor”, “neocapitalismo” ou “neoliberalismo”, termo ‘que, segundo ele, parece prevalecer no uso coreente’? Refandaro liberalismo para melhor combater nude ascensao dos toralitarismos & a meta que ‘Walter Lippmann, Laced libe (cad. Georges Bluanberg, Pass Librairie de Méelcis, 1938). Lippmann, jornalisae editorials norte-ameticano, fnoso pelassnlises de opinize piblica « politica estangelta norte americana, eteve entie as das uerias no cruzamenco do “novo liseralisma” com o neoliberalismo, km Draft and ‘Mastery (1913), cle se pronunciaa favor de wm contele cientiica da economia ¢ da Sociedade. Mais tarde, seus exritos sobre a Grande Depressio e 6 New Deal dario ‘ontinuidadea sun tse de que no existem iberdades sem intervencia governamental i The New Impenasive (1935), salenta que-o “novo imperative” politico, que fo posto em pricica con: as poltcas de sespasta& crise, consate cm o Estado “assumir 2 responsablidade pela condigéo de vids dos cidadios". Em sts opinao, essas poli ea, adr tanto por Hoover como por Roosevelt, insugurarsea umn “New Del Permanente” em rupcura com a ideologia do feisee fave ancerior « 1929, dando 49 governo ums nova funcio, que consiste em “usar de radat oe seus posevee para regular o ciclo dos nepécios”. Se o governo da economia movlema é indispensivel restadetctminar a melhor politica passvel. Tados as seus esforgosVsutio a reponsar Jum modo de governo liberal. Ver Ranald Stel, Waler Lippe and the Americans Century (Boston, Little Brown, 1980), Walter Lippmann, La vith bre, et, p 272 Acexpressio ji haviaxido w irada antes do coldquio, em particular por Geétan Pirou. © Colsquio Waker Lippmann out a reinvensio doliberaismo #75. Rougier pretendia dar reuniso da qual fora o promoror, sublinhando que uso Ao mesmo tempo, este coldquio ¢ para cleo ato inaugural cle uma organizacto difandie uma dourrina liberal de novo ‘aambicio do coléquio era condensar um movimento intelectual di internacional destinada a conscru ggnero: o Centro Intemacional de Estudos paraa Renovago da Liberslismo, ‘0 qual mencionamos anteriormente. Esse centro ainda organizard algumas reunides teméticas, mas desapareceri em consequéncia da dispersio de seus membros causada pela guerra e pela ocupagto. Em seu diseusso de abertura, Rougier lembra também a importancia da cese de Lippmann, segundo a qual o iberalismo nao se identifica com 0 laisexftire. De fato, essa assimilacio demonstrou todas as suas consc- quéncias riegativas, que, diante da evidéncia dos males do laisex-faie, 2 opinige pablica loge conclui que apenas o soctalismo, pode salvar do fascismo ou, inversimente, apenas o fascismo pode salvar do socialismo, embora um ¢ outro sejam variedades de uma mesma espécie. Fle enfatiza igualmente a extica de Lippmann ao naturalismo da douirina “manches ane mi teriana”. La eité libre possuta em sua opiniio, de lembrar que o regime liberal ¢ resultado de uma ordem legal que pressupé incervencionismo juridico do Estado. Ele resume da seguinte maneica a tese contral da ob: A vids econdmica acorre dentro de un quadeo juridico que estabelece 0 regime da propricdade, dos comtratos, das patentes, da faléach das associagdes profssionais © das sociedades comerciais, o dinheleo ¢ os hhancos, todas as coisas que nio so dadas pela natutezs, como as leis do equilfbrio econdmica, mas sio criagSes contingentes da legistador.” ssa é expressio da linha dominante do colbquio, que serd objeto de ressalva, ou até mesmo de contestacio, por parte de alguns convidados, ‘em particular dos “neoaustriacos” Von Mises e, decerto, Hayek, que, em bora nao se manifeste durante as discuss6es, concorda com aquele que FTrauis Rougies v2 us discussdes do coléquio como a continuagic de uma sie de tuabalhos ji publicadas que se idenificaram com o bberalisno e cso tem em co mui eraa “cisedo enpitalismo”. Ele mencionaas obras de Jacques Ruel, Leerisedu apitalisme (1935), Louis Maelio, Le sort da capitabrme (1938), e Bernard Lavergne, Grover et clin di sapiens (1938). * Trrvaue du Cenere Incernational d'Feudes pour lt Résovation du Libéelisme, Le Cattague Lippmann (ats, Librairie de Mééicis, 1939), p. 15. A aa do enléquio fot publicada recentemente por Serge Audier Le Cologne Zippmara, ci. ia laDii seta itl, 76 » A noes raeie do mundo considera seu mestre, Mas todos os participantes compartilham incontes tavelmente da rejeicio dos “ oaustriacos” go coletivismo, ao planismno € ao totalitarismo, em suas formas comunista ¢ fiscista. H4 também uma rejei¢%o amplamence compartilhada as reformas de esquerda que visam 4 redistribui 10 de renda e & protecao social, como aquelas adotadas pela Frente Popular na Eranca®, Mas o que fazer para combater essas tendén- cias? Rearualizar 0 liberalismo dentro de um novo contexto on revisé-lo profundamente? Essa alternativa esti estrcitamente ligada 20 diagndstico da “grande crise” As divergéncias manifestadas entio tém celagéo com uma diferenca importante de interpretagio dos fendimenos econdmicos, politien do entreguerras, que alguns autores de diferentes horizontes politicos doutrinais pension come unfit “rise do capitalisnna®. Resa pouca divida, como vimos anteriormente, que @ situagio mudou profundamente com relagio A “belle epogue do liberalismo, tia bem descrita por Karl Polanyi. Dus interprecagées rad nente opastas do “caos” do capitalisme conflitam durante esses dias. Als, las divider jis amplamente os meios liberais na Europa nessa época. Para uns, a douttina do laissez-faire deve ser renovada, n diivida, mas devs ‘obretudo ser defendida daqueles que pregam a ingeréncia do Estado. Destes tltimos, Lionel Robbins na Ingla- terrae Jacques Rueffna Franga, juntamente cotn os “auscriacos” Yon Mises ¢ Hayek, estio entre os autores mais conservadores em matéria doutrinal’, Para outros, o liberalismo deve ser ineegralmente refundado e favorecer 0 que jf € chamado de “intervencionismo liberal”, segundo o termo wiiliza- do por Yon Rastow Henri Truchy". As divergéncias sobre as andlises da grande crise sio particularmente significativas dessas duas opgdes possiveis * © consenso em tomo desse ponte nto € geral. Prova da “complexidade do neoli- beralismo francés, segundo Serge Audier, & que alguns paricipames do Coldquio ‘Walter Lippmann sio pactidirioe dos “progress saints’ e do “liberaliomo socal”. E 0 casa jd citado de Louis Marlo e Bernard Javergne. Serge Auer, Le Cllogue Liggrnariy ci, p. 140.57 © 172-80, \eremoz mais ant oguanto autres como Von Mise sobretado, TTayeederen- volver rlexdsoigons que nio podem sersimplesmente ssimiadas ae lho Isai © Henri Teuchy, “Libtalsme économique Franca et Ere de du neoiberalisme co Fano feonomie dsigée”, LAnnte Plligue 34, p. 366, ctado em Frangois Denocd, “Aux orgines (© Coléquio Walter Lippmnana ou a rinvengio do libeeaismo * 77 ‘Para os ptimeitos, os farores principais do caos devem ser buseados na ‘aigio progressiva dos principios do liberalismo eléssico (Robbins, Rueff, Hayek, Von Mises); para os segundos, as causes da crise so encontradas no proprio liberalismo clissico (Rougien, Lippmann ¢ os teéricos alemics do ordaliberalismo") Em La Grande Dépresion, 1929-1934, Robbins explica também que a crise € consequéncia das intervencoes politicas que desregularam 0 me- canismo autocorretivo dos pregos. Come sublinha Ruef® no preficio que fex 20 liv, foram as boas intengbes dos reformists sociais que levaram 20 dlesasete, A reacio de Robbins ¢ Rueff revel na nostalgia de urn mercado ‘spontancamente autorregulado que teria Funcionado em uma era dourada das sociedades ocidenaais. Fo que Rueff eaduz muito bem no opiisculo Lacrivcde cipinelinne, quando opie 0 quase equilibria do perfodo anterior 4 Primeira Guerra Mundial ao caos da geande crise’, Antes, escreve cle: ‘Oshomens agiamn independenemence uns dos outeos sem munca se preo- ‘eupar com as repercussbes de seus atos sobre o estada geral dos mercado Eno entanto, do eaos das tajecécas indivicloas nasce esa orden coletiva traduzida pelo quase equiltbrio que os faros revelavan.”* Mas, depois, as intervengées pliblicas, wdas as formas de dirigismo, Ses, 25 planificagdes ¢ as regulamencagbes “possibilitaram a alegre queda da prosperidad 4, © postulado desses autores, que encontramos também em Von Mises ou Hayek, & que a intervengio politica € um pro- cesso cumulativo. Uma vez iniciada, leva necessariamente & coletivizacio total da economia ¢ ao tegime policial totalitério, jf que € preciso adaprar os Gomportamentos individusis nos mandamentos absolutos do programa de gestio autoritaria da economia. A conclusio ¢ clara: néo se pode fala de faléncia do liberalismo, porque foi a politica intervencionista que gerou a tise, O mecanismo dos proves, quando funciona livremente, resolve todos ‘0s problemas de corde mtes econdmicos. 1agio das decisées dos ag Rueff, por exemplo, na sessio de domingo, 28 de agosto, dedicada relagses cntre 0 liberalismo ¢ 2 questo social, sustenta da mancira mais "Tasco una aptetentagio dstersileimas no capialo 3. ° Jaques Rue La erie de cnphalimse (Pai, Eaivons dela Revue Bleue, 1936) ® hidem, p 5. “ thidem, p.6. 78 + Arnovs rato da mundo ‘ortodoxa que a inseguranga social sofrida pelos crabalhadores deve-se as desequilibrios ecortémicos periddicos contra os quais nada se pode favet, © que eles no sio tio graves quanto parecem, na medida em que bé auromaticamente um retorno a0 equilibsio quando 0 mecanismo dos prevos nio & desregulado, Por outro lado, o Estado, se intervém, emperra & méquina sutomatica: (sistema liberal tendon assogurar As classes mais neceastadas o maximo de bem-estar. Todas as intervengoes do Estado no plan econdimica tiveram 0 efeito de empobrecer os trabalhadores. Todas as intervengées dos povernos parecerars melhor condigGes da majoria, nas para iso nio hi outro melo serio aumentar a massa des produtos que dever see partilhados "> Aq questionamento cético de Lippmann sobre os beneficios sociais da liberdade de mercado ("é possivel aliviar o cofrimente que a mobilidade de lum sistema de mercados privaclos comporta? See equilibrio deve ser deixado sempre por conta prépria, isso comporta grandes softimentos”), Rueff responde pouco depois com a sentenea definitiva: “O sistema liberal dé a0 sistema econdmico uma flexsbilidade que permite lusar contra a insoguran sa", Yon Mises ainda lembrars, a propésito do scguro-desemprego, que © desemprego, enquanco Fendmeno macico € dursdouro, & consequéncia ros em um nivel mais elevade do ‘que aquele que tesulcatia do etado do mercado. O abandono dessa polivica c numa diminuicte considerivel do nimero, kde uma politica gue visa a manter 0s dundarta mnie rapidamer desempeegados." Na vésperay a pergunta “o declinio do liberalismo &devido a causas en- dddgenas?” também mostrava a tensio, Para o pensadorordoliberal Ropke,a coucentragio industrial que destréi a concorréncia deve-se acausas técnicas (peso do capital fixo), a0 passo que Von Mises sustenta que os cartéis so produto do provecionismo, que fragmenta o espago econémico mundial, freia a concorréncia entre paises e, portanto, favorece as acordos cm nivel nacional, Segundo ele, seria absurdo, portanto, pregar a intervengao do Estado em relagio 3 concentiasio, porqu é precisamente essa intervensio ® Serge Andier, Le Cetlogue Lippmar, le, p. 62. Tem ° bidem, p. 71. * Thidem, p74 i © Caléquio Walter Lippmann ou 4 reinvengéo do liberalisma * 79 a causa do mal: “Néo foi o livre jogo das foryas econdmicas, masa politica antiliberal dos governos que criou as condigées favoriveis ao estabel dos monopélios. Foi a legislagio, foi a politica que criow a tendéncia 20 monopélio™ sea linha de nfo incervengfo absoluta que se expressa no coldquio revela nesse plano a persisténcia de uma ortodoxia aparencemente intocada. Mas o que Foucault acerradamente chamari de “fobia do Estado” no resume o ais inovador propésito do coléquio. A originalidade do neoliberalismo Axtavés do discutso dos numerosos participantes, impOe-se uma redefi- nico do liberalismo que deisa os ortodoxos particularmente desarmados. Fass linha de forga do coléquio une a perspectiva de Rougier, de oxdem essencialmence epstemoldgica, a de Lippman, que lembra a importincia da construsio juridica no fincionamento da economia de mercado, ¢, por fim, aquela, muito préxima, dos “socidlogos liberais” alernses Rapke e Von Riiscow, que enfatizam a susteneagio social do mercado, que pot si 6 ido 6 capaz de assegurar a integragéo de todos. “Aparentemente, 0s participances do coléquie tinham plena conscitneia das clivagens que os dividiam. Assim, Von Rlistow afirma: vel que agui, em nosso efrculo, estie represenacoe dois pontos de vista diferentes. Uns nio veem nada de essoncial para eriticar ou mudar no liberalismo tradicional [...- Outtos, com nds, procuram a responsabilidad pelo declinio do liberalismo no préprio liberalism; ¢, consequentemente, procuram a saida numa renovasao fandamental do liberalisne. Sio sobretudo Rougier e Lippmann que definem durante o ealéquio ‘9 que se deve entendes, segunelo eles, por “neoliberalismo” e quai tarefas Ihe competem, Ambos os autores haviam desenvolvido antes, em suas ” biden » Rrangois Denon coments esas palavens da seguinte mansin: "Em piblice, Rnetow respeea es regras do decoro universisio, mas, em pasciular, conssa a Wilhelm Ropes a péisima opiniso que tem de Friedrich Hayek e Ludwig von Mise: © gue eles éno museu.eanservados em formal St pessoas dess ipa que so esponsiveis pela grande crise do século XX", Fzangols Denord, “Aux ovjgines du néoliseaisoe en France’, it, p88 pak 80 + A nova ratio do mundo respectivas obras, idelas bascante semelhantes , sobretudo, a mesma von- tade de reinventar o liberalismo. Para compreender rhethora natureza dessa reconstrucio, convé examinarmos um pouco mais de perto os escritos de Rougier ¢, principalmente, de Lippmann. “retorno 20 liberalismo” pregaco por Rougier é, na verdade, uma refundacio das bases teSrieas do Tiberaliemo ea definicio de uma nova politica. Rougier parece guiado sobrecudo por sua rejcigao A merafisica naeuralisea. O importante para ele é aftmar de saidz a distingio entre turn naturalisme liberal de estilo antigo © um liberalisino ativo, que visa A criagio conscience de uma ordem legal no interior da qual 2 inieiativa privada, submetida & concorréncia, possa desenvolver-se com toda a liberdade, Esse intervencionismo juridico do Estado contrapée-se a un intervencionismo adminsirating, que estorva ou impede a liberdade de 0 aurtoricdria da aso das empresas, O quadro legal, a0 contcéeio da. ge economiasdeve deixar que © consumido: abiere no mercado entre os produores concorrentes. A grande diferenga entre esse neoliberaismo eo liberalismo antigo, segundo Rougicr, a concepeio que eles tém da vida econdmica ¢ social Osliberais vendiam a vera ordem estabelecida como uma ordem nacural, © que os levava a siscemaricamente tomar posighes conservadoras, tendendo a manter os privilégios existences. Nao intervir era, em estimo, respeitar a natureza. Para Rougier, scr liberal nfo em absolute ser cons vadot, no seatido da manutensgio dos privilégios de faco resultante da lepslagio anterior. F, 20 contritio, ser cesencialmence “progresists’, no sentido de wma eoninna adapraglo da ‘oniem legal As deseobertas ciencificas, aos progressos da organizacio ¢ da técnica econdmica, is mudangas de estrurura da sociedade, as exigenclas da consciéncia comemporanea. Ser liberal nfo & como o “manchestesia- no”, deizar os aucoméveiscireularem em rodos ae sentdos, segundo sess ccaprichos, donde revultariam incessantes engarrafamentos ¢ acidentes; nfo 6, como o “planistd,extabelecer para cada automével uma hora de eaida © uum isinesitio; € impos um eddlige ce ndnsitn, admitindo 30 miesino tempo ‘que ele mio & na goes des eraneporees ripidos 9 mesmo que cra ns époea dias diligéncise Essa metifora com o cédigo de trinsito uma das imagens mais usa- das pelo neoliberalismo, ¢ quase uma assinacura oficial. Ela é longemence 2B Sexge Audies, Le Callogue Lippmann, ci. p. 15-6 © Coléquio Walter Lippmana ou a rcinvengio do liberaliseao * $1 por Lippmann, mas também consta no famoso livre que guerra, O caminkn da servo” desenvolvi Hayek publicari aps: ‘A ideta decisiva do coléquio é que 0 liberalismo clissico € o principal responsive pela crise por queele passava. Os erros de governo aos quais ele conduriu favoreceram 0 planisi e odirigismo, De que nacureza exam esses cerros? Consistiam essencialmenteem confundiiras regras de funcionamento de um sistema social com Ieis nacucais intangiveis. Rougies, por exemplo, ‘8 nafsioczacia francesa a expressio mais clara dess tipo de confusio®, 0 ‘gue chama de “mistica liberal”, ou exeniga numa naturera imutivel, que cle prerende distinguir euidadosamente da cigncia econbmica verdadeira, deriva de passagem da observagéio das caraccerlsticas cieatlfcas de uma ordem regida pela livre concorréncia para a ideia de que essa ordem & intocsivel e perfeita, ama vex que é obra de Deus" U segundo erro metodologica, que esti ligaclo a essa confusio, & a crenga na “primaria do econdmico sobre 0 politico”, Esse duplo erro pode ser sumido, segundo Rougier, na seguinte sentenga: “O methor legislador é aquele que sempre seabstém de intervir no jogo das forgas econdmicas e subordi a elas todos os problemas morais, sociais € politicos”, Essa submissio a uma ordem supostamente natural, que est no principio do laisez-faire, € uma ilusio bascada na ideia de que economia ¢ um dominio & parte, que nao seria regido pelo ditcito, Essa independéncia da economia com relacio As instiuigdes sociais ¢ politicas é erro bésico da mistica liberal que leva 20 ndo reconhecimento do caricer consiruido do funcionamento do mercado. Lippmann, em La cité libre, fez uma aniilise muito semelhante dos textos dos “iltimos liberais", como os denomina. Q “laissez-faire”, do qual cle recorda a origem em Gournay, era uma teoria negativa, destruidora, revolucionétia, que por sua propria natureza nfo poderia guiar a politica dos Estados. Tratava-se nao de um programa, mas de uma palavea de Lippmann explca em Lact tre Cit, p. 385-6) que os funciondsios piblicos exisern para fiero cédigo de ceansito ser respeitado, nao para dizer aonde deverns i ‘Tal, Anna Maria Capowilla, Jot Italo Stelle e Liane de Moras Ribeito, 5.ed., Rio de Janeiro, Instieuco Liberal, 3994, (N. E.) Ver Louis Rouier, Ler mpigues économique: comment Fon passe der démocraties rales aes Etats ttalesires (Pais raicie de Medics, 1938). Segundo Rougier, a crenga maturalsaa € um mistcizmo, porém menos groseiro ‘que doutrina coleiise, que 6 pura exenga mégica nos poderes absoluzos da rasdo humana sobre os precesss sociais e politicos. Logo, exstem graus no mistcismo. 82 * A nova mato do mundo ocdem, que “a ideiasinicialmente revolucionésias, que permitiram dercubat os vest io passava de uma objesiio histérica a leis eaducas”™, Essas do segime social e politico antigo © instaurar uma ordem de mercado, “ransformaram-se em um dogma obscurantista e pedancesco"™, O natu ralismo que impregnava as tcorias juridica-politieas das primeiros liberais destinado a essa mutagio dagmatica e conservadora. Se em certa époea os direitos nacurais foram ficgSes liberais que permitirarn gurantir 4 propriedade e, portanto, favorecer os comportamencos acumuladores vois que impediram qualquer reflexio sobre a utlidade das leis, explica cle. Vetando a rflexia sobre @ esses micas se fisaram em dogmas inalters alcance das leis, esse respeito absoluto & “nacurera” forcalecia a sieuagdo adquirida pelos privilegiados. Essa anilise nao deixa de rer certo parentesco coma posi¢i das funda- dores franceses da sociologia do século XIX. O grande defeito do liberalis- ‘mo econéimica, como Auguste Comte mostrou em sua época, derivava da Impossbilidade de se construit uma ordem social vidvel a partie de urna ceoria essencialmente negativa. A novidade do neoliheralisme “zeinven- ado" reside no fato de se poder pensar a ordem de mereade como uma ordem conseruida, portant, ter condigées de estabelecer um verdadeiro programa politico (uma “agenda’) visando a seu estabelecimento ¢ sua conservacio permanente. A ideia mais equivocada dos “iltimos liberals”, come John Stuare Mill ou Hesbert Spencer, consiste em afirmar que existem dominios em que hi tuma lei ¢ outros em que nao ha lei nenhuma. Foi essa crenga na existéncia de esferas de apo “natura, egides sociais ce nto diseito, como seria, na opinifo deles, a economia de mercado, que Hecurpou a inveligéncia do curso hist6rico ¢ impediu o prosseguimento das poltticas necessirias. Como ainda observa Lippmann, no século XIX a dogmética liberal descolou-se pouco a poueo das priticas reais dos governas. Enquanto os liberais discusiam sentenciosamente a extensio do laisee-faire ea lista dos direitos naturais, « realidade politica era a da invengio de leis, instituigdes e normas de todos 6s tipos, indispensiveis para a vida econémica modern 3 Waler Lippovann, La eit tre ci p. 221 e908 % idem, p. 228, ® Lippmann néo fix distingto entre ener dois aueores porque ni leva em conta as ish © nem as inflexoes de Mil | | | (© Coléquio Waker Lippmann ou a seinvengio do liberalisine + 83 “Tods ens tansgoes dependiam de uma lel qualques, da disposigio do Estado de fazer ver certos direitos procegercertas garancias, Cansaquen- sgnificava no ter aenhium senso de-realidade perguntar-se onde dominio do Estado.” Os direitos de propriedade, os contratos mais variados, os estacutos j= ridicos das empresas, enfim, todo 0 enorme edificio do direito comercial e de ireito do trabalho era um desmentido em ato da apologética do laises-fiire os “tltimosliberais", que se tormarain incapzzes de refletir acer pritica Néo somente Itheralismo progressismo separaram-se, como se viu, sobretudo, 0 surgimento de uma convestagao cada vex mais forte do capitalismo liberal e das desigualdades que ele engendeava. © socialismo desenvolveu-se aproveitando 0 empedernimento conservador da doutrina liberal a servigo dos incerssesevondmicos dos grupos dominantes. O ques ionamento da propriedade: para Lippmann, particularmente sintomitico desse desvio: “Sea propriedade privada esta gravemente comprometida ‘no mundo moderno, é porque as classes favorecidas, resistindo a qualquer :mudanga em seus dircitos, provocaram um movimento revolucionsrio que tende 2 aboli-las"™. A agenda do liberalismo reinventado Os “iltimos liberai naoentenderam que, “longe de serabstencionista, a economia liberal pressupée-uma ordem juridica ativa e progressista’ que vial 4 adaptagio permanente do homem a condigdes sempre cambiantes, E necessirio um “intervencionismo liberal”, um “liberalismo construtor”, um ditigismo do Estado que convém distinguir de um intervencionismo colctivista e planista. Apoiado na evidéncia dos beneficios da competisio, dem, p. 234-5, ™ Tbidem, p. 329, 86 * Arnovs eto do mundo ‘esse intervencionismo abandona a fobia spenceriana do Estado e combina aheranga do concorrencialismo social ea promosio da aslo do Estado. Seu objetivo € restabelecer incessantemente as condigées da livre concorténcia ameagada por ldgicas sociais que tendem a reprimicls para garantira “vit6ria dos mais apros” O disigismo do Estado liberal implica que cle soja execido de mancira que a liberdade seja procegida, nao subjugidas de maneiza que a conquista do beneficiosefa 0 resultado da viedria dos mais apeos numa competizéo Leal, to 0 privilégio dos mais protegidos ou dos mais ricos, em consequéncia do apota hipdcrita do Erte.» Esse liberalismo “mais bem compreendido”, esse “Iiberalismo verdadei- 10°, depende da reabilitagio do Estado como fonte de autoridade imparcial ‘uot quiser retornar ao liberalism ter§ de dar aucoridade sficlente aos .governos para que resistam 3 ascensio cos inceresses privadessindicalizados, ‘cssa autoridade thes seri dada por meio de reformas constitusionals apenas sna medida em que o espirico pibico for reerguido atsavés da deniincia dos snaefcios do inersencionism, do drigismo eda planiino, que em gota sto apenas ane de desregulrsitemacicamenteoelibio c dewimenta da momensineo de win peyucno aimero de sande massa dos cidadios-consumidores para o beneficio abundancia na expe Sem diivida, niio é simples distinguir a inuervensio que mata a con- conréneta daquela que 2 fortalece. Em todo caso, quando se constata que cexistem forgas policicas e saciais que indurzem 3 desregulagio da maquina, deve-se aceitar que uma forca contriria visa a devolverhe o devido lugat © poder por “gosto do tisco © da responsabilidade””. Rougier vem dus posigdes diferentes, na verdade, Na primeira, o intervencionismo do Estado deve ser essencialmente juridico. Trata-se de impor regres universais a todos esistir a todas as intervengbes que detuspam a concorréncia, dando vantagens ou eoneedendo privilégios e provesses a dererminadas categorias. O perigo & que o Fstado fique na maa de grupos caligidos, seja dos mais ricos seja das massas pobres © Lonis Rougier Les mstigues dconomsigae, % hide, p. 10. © Tbidem, p. 192, p84, r (© Cobbguio Wale Lippman ov a reinvencio do libesaliane © 87 ara Rougien existem forgas na sociedade que induzem ao desvirtus~ menco do jogo da concorréncia em proveito préptio, a comegar pelas forcas politics, que para conquistar 0 voro dos eleitares nfo hesiram em praticar politicas demagogicas, A Frente Popular francesa & em si mesmia ‘um exemplo perftico. Exiscem também légicas sociais que induzem a essas deturpacées, que nao sio levadas em conta por um pensaimento econdmi- 1iés nao somos moléculas de gis, co limitado: ‘mas seres pensantes ¢ sociais; nds coligamos nossos intereses, somos submetidas a pricicas gregirias, softemos presses externas de grupos organizados (sindicatos, orgunizagies politieas, Estados estrangeiros etc)", Um Estado forte, provegido das chantagens e presses, é necessirio para garantirigualdade de tratamento diante da li Te também susenta outro argument, © Tstaly nae deve proibie-se de intervir para fuzer as engrenagens da econonnia Faricionarem melhor. liberalismo constestor significa lubriicar « maquina econtmica, desngripar os fxores aatotregaidores do 04 produto is necenidades reais do consume, wt svenes;a poupanco, 2s necessidales de fawantimen dali em dance justicadas pela Gemandas 9 coméio exterior, & cvisio natural do trabalho incmnacionaly ot siltio, 4s posiildadestdcniease& renabildace das empresas,” fbrio; permitir que pregos, sas de juro, disparidades ajustem » ssa ingeréncia adapradora chega 20 pono de indie certos compocia- rmentos desefiveis nos agentes a fim de restabelecer equilibrios que, embora “naucas", nio se constitusiam por s ss. © intervencionismo liheral deve proacupar-se, om periados de supero ferta, em estimular 0 consumo, que é {nica coisa qi permite valarirar a produeao, pois, se 0 volume da produgio ¢ fungi do prega de custo apenas a demanda solvente devermina seu valor comercial e socal € ise 1ndo pelos procedimencos esterilizantes da venda a exédica, mas distibuie ddo a maine parte dos beneficios de uma empresa na forma de dividendos [para os acionisas e salrias para os operérios. Com isso, o Estado no teri ‘ome objetivo eriar equiltbtios artifcais, mas restabelecer os equilfbrios nat a predugio e o consumo, as entre a poupana eo investimenta lexporcagBes-e as importagses. * Idem. % Tbidem, p. 194 © Tbidem, p85. 88 + A nova rxvio do mundo © capitalismo concorrencial nao é um produto da nacureza: ele € uma maquina que exige vigilincia e regulagie constantes. Percebe-se, no centanto, a fata de clareza em torno do “intervencionismo liberal" na ver~ séo dada por Rougier, que s6 poderia inguietar os liberais mais préximos reodoxia. Rougier mistura trés dimensbes diferentes na legivimacéo da politica piblica:o estabelecimento de um Estado de direito, uma politica de adapra 4.0 &s condig6es cambiantes ¢ uma politica que auxin a reaiza “equilibries natura io dos info so da mesma orden. Una coisa & romper com a “fobia do Estado”, tal como esta se manifesta excmplarmence em Spencer, ona é estabelecer o dda ilegitima. Como eviar © limite que separars a incervensio legitima, nos vicios dos “politicos demagogos” ¢ dos ‘doutrinarios ilaminados"? © critério absoluto é 0 respeito aos prinetpios da concorréncia, Ao contritio de todos aqucles que explicam que “a con- ia mata a concorréncia”, Rougier sustenta — como todos os liberais, aliis ~ que as distorgbes da concorréneia sio consequéncia sobrende das ingeréncias do Estado, nto de um processo endégeno. Desde o protecio- rnismo alfandegirio até a instauragio de um monepélio, ésempre o Estado que, exclusivamente ou ndo, esté na origem da Timitagao ou da supressio do regin ‘oncorrencial, em detrimento dos interesses do maior niimero de individuos. © que, todavia, introduz uma diferenga entre essas posicSes € que, para Rougies, a concorréncia s6 pode ser estabelecida pela ingeréncia do Estado, Fsse é também 0 principal eixo do neoliberalismo aleméo, como indica Von Riistow durante 0 coldquio: Nic éaconcorstncia que mata a concorrtaca, E antes a fraqueea intelectual ¢ moral do Extado, que primeito ignoca e neigencia seus deveres de poli= cial do mercado e deixa a concorréncia degenerar e depois deixa ewvaleiros rapinadores abusitem das direitos dessa concorréncia degenerada pats the dar 0 golpe de misericordia.” Para Rougiet, 0 “retomo ao liberalismo” somente tem sentido pelo valor que se di a “vida liberal”, que nao éa selva dos egoismos, mas jogo regulado da realizagio de si mesmo. Por isso ele prega 0 “gosto da vida que resulta do fato de ela comportar um risco, mas dentro do quadro ordenado de um jogo cujas regras sfo conhecidas ¢ respeitadas”® Serge Audier, Le Collague Lippmann, ct. p. AV. Louis Rouges, Las mpgs dcomnmigues, cit A. Y © Coliquic Walter Liypmana ou a reinvensao do liberaliseo * 89 Neoliberalismo ¢ revolucio capitalista Lippmann, por sn vez, val desenvolver uma argumentario mito diferente «sem diivide, mais consistence para justificar 0 neoliberalismo ¢ explicar se significado histérico. A seu vero coletvismo é uma “contrarrevolugio”, uma Syeagio” & revolucfo verdadeira, surpida nas sociedades ocidentais. Porque, paraele,« vedadcica revolucio a da economia capitaliata e comercial exen- daa todo o phinera, ado capitalismo que altera continuamence 05 moos de vida, wansformando o mercado no “regulados soberano dos especialistas nua economia basescia numa divisio do trabalho muito especializada”™ Eo que os tiltimos liberais esqueceram e que torna obrigaeSria uma “redescoberta do liberalisme”. O liberalismo, na verdade, nao é ura ideo logia semelhance as outras, ¢ menos ainda esse “enfeite descorada” do conservadorismo social no qual se tnsformou pouco @ pouco. Ele & para Lippmann, a tinicafilosofia que pode condurie a adapragao da sociedade € dos homens que a compéem 3 mutacio industrial e comercial baseada na divisio do trabalho ¢ na diferenciacao dos interesses, E a nica douu que, bem compreendida, pode construir a “Grande Socie: fancionar com harmonia: “O liberalismo nio & como o coletivismo, uma reigio A Revolucio Industial; ele & a prépria flosfia dessa Revolugso In- dustrial", © cariter necesdrio do beralismo, sua inse das sociedades, acaba apatecendo como o conrespondence da tese mar ‘que fir do socialismo outea necessidade da histia. ‘A.economia baseada na divisio do trabalho ¢ regulada pelos mercados um sistema dle produto que no pode ser fundamentalmente modifica do, Trata-se de um dado da histéria, uma base histériea, da mesma forma que o sistema econdnico dos cagadores-coletores. Mais ainda, trata-se de Luma revolugso muito semahante Aquela por que passou a humantdade no petfodo Neolitica, © erro dos colet as € acreditar que se pode anular «ssa revalugio social pelo dominio total dos processos econdsmicos; 0 erro dos manchesterianos é pensar que esse é um estado natural que no exige incervenges politicas. A palavra mais importante na reflexio de Lippmann & adapranio. A agenda do neoliberalismo é guiada pela necessidade de uma adaptagio © Walker Lippmann, Le ctf ibm city p. 209. Ibidem, p. 285 90 + A nove rinso do unde permanente dos homens ¢ das instituigées a uma ordem econdmica intrin- secamente vardvel, bascada numa concorréncia generalizada e sern tnégua Apoliica liberal & requerida para favorecer esse funcionamento, comba- tendo 0s privikégios, os monopélios cos renistas, Ela visa criar e preservar as condligses de funcionamento do sistema concorrencial A revolucio permanente dos métodos ¢ das estruturas de produgio ao permanence dos modos de vida das mentalidades. O que torna obrigatériz uma incervengio permanente deve correspander igualtnente- ad dla forca priblica, Foi o que entenderam claramente os primeiros liberais, inspirados pela necessidade de refbrmas sociais e politicas, mas foi também © que esqueceram os “iltimos liberais", mais preocupados com a manuten- fo do que com a adaptagio, A bem da verdade, os adeptos do laisex-faive supunham que esses problemas de adapcagio se resolviam por magia ou, melhos, que nem existiam. © necliberalismo repousa sobrea dupla constaracio de que o capitalismo Inaugurou um period de revolusdo permanente na ordem eeondimica, mas ‘que os homens nao se adaptam espontaneamenté a ess orem de mercado cambiante, porque se formaram mum mundo diferente. Essa é a justifica- ‘gio de uma poltt a que deve visar 3 vida individual e social como ume todo, como dirio os ordoliberais alemées depois de Lippmann. Essa polit adaptagio da ordem social divisio do trabalho é uma tarcfa imensa, diz dle, queconsiste em “dari humanidade um novo tipo de vida", Lippmann & particularmente explicivo acerca do carder sistemitice © completo da transformagio social que se deve operar: A mi adaptacio se deve a0 fato de que houve uma sevolucio no modo de produgio. Como essa revolusio se deu enue homens queherdatam um tipo 1c ciferente, @ roajuste necesssio deve estender-se a eda devids rudicaln a ordem social. Provavelmente, cle deve prosseguir enqusato dura a propria Revoluséo Industrial. Nao pode haver wm momento nele em que a “nova ors esteja ealizada, Pela natureza das coisas, uma ecanomis dindmica deve neces e mente estar alojada mura ordem social progress, E precisamente ao Fstado # legislacdo produzida ou garantida por ele que ‘abe inserir as atividades produtoras comerciais em relagoes evolutivas, enqua-

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