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Rousseau Os PengadoréS Rousseau “Renunciar a liberdade @ renun- ciar 4 qualidade de homem, aos direi- tos da humanidade, e até aos proprios deveres. Nao hd recompensa possivel para quom a tudo reauncia. Tal renin. cia nao se compadece com a natureza do homem, ¢ destituirse voluntaria- mente de toda @ qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas ages." Je ROUSSEAU: Be Contrate Sacial, “A desigualdade moral, autoriza- da unicamente pelo direita positive, contrénia ao direito natural sempre que nao acorre, juntamente e na mesma proporgio, com a desigualdade fisica — distingdo que determina suftciente- mente o que se deve pensar, a esse res- pelto, sobre a espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policia- dos, pois & manifestamente contra a lei da Naturoza, seja qual for a mane a por que a definamos, uma erianga mandar num velho, um imbecil condu- zir Um sibio, ow um punhado de pes- soas repurgitar supertluidades. enquan- to & multidéo faminta falta o necesss- fio," J]. ROUSSEAU: Discurso sobre a ori- gem eos fundamentos da desigualda- de entre os homens, “Como seria doce viver entre ne S€ a Gontengig exterior sempre repre: sentasse a imagem dos estados do cora~ gio, se a decéncia fosse a vinude, se nossas maximas Nos -servissem de re~ fa, se a verdadeira filosofia fosse inse- paravel do titulo de fildsafo!”* JJ. ROUSSEAU: Discurso sobre as Ciencias e as Artes. Os Pensadoré3 CIP-Brasil. Catalogagao-na-Publicagio: ‘Camara Brasileira do Livro, SP RTD 83.0557 Rousseau, Jean Jacques, 1712-1778. Do contrato social ; Ensaio sobre a origem das linguas ; Dis- curso sobre a Origen ¢ 0s fundamentos da desiqualdade entre os ho- mens : Discurse scbre as cigneias e as artes / Jean-Jacques Rous- seau ; traducdo de Lourdes Santos Machado ; introducdes e notas de Paul Arbousse-Bastide ¢ Lourival Gomes Machado. — 3. ed. — ‘Sdo Paulo : Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores) Inclui vida ¢ obra de Rousseau. Bibliografia, 1, Filosofia francesa 2, Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778 1. Arbousse:Bastide, Paul, 1899- Il, Machado, Lourival Gomes, 1917- 1967, 111, Titulo : Do contrato social. IV. ‘Titulo : Ensaio sobre a origem das linguas, V. Titulo : Discurso sobre a origem ¢ os funda- mentos da desigualdade entre os homens. VI. Titulo + bre as cincias ¢ as artes. VII. Série. para catalogo sistematic 1, Filosofia francesa 194 2. Filtsofos franceses 194 3. Filsofos modemos ; Biografia ¢ obra 190.92 4, Franga : Filosofia 194 JEAN-JACQUES ROUSSEAU DO CONTRATO SOCIAL ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LINGUAS DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS DISCURSO SOBRE AS CIENCIAS E AS ARTES ‘raduedo de Lourdes Santos Mach: Ant mtrodugSes e nots de Paul Arbouse-Bastide ¢ Lauri i Gomis Nevins 1983 EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Totulos originais: Bu Conuras Social Eseai sur Origine des Langues Discours sur (Origine et les Fondements de 'Inégalité ‘partai les Hommes Discours ner les Seiences et les Art © Copyright ety edigto, Abril S.A; Cultural, So Paulo, 1973. — 2," edigio, 1978, 3," edigao, 1983. radugbes publicades sob licengu da Editora Globo $.A., Porto Alegre. Direitos exclusives sobee “Roussesu — Vidaie Oba!" ‘Abcil S.A. Cultural, Sao Paulo, ROUSSEAU VIDA E OBRA Consultoria d: Marilena de Souza Chaui Nu tarde do ano de 1749, um homem caminha pela estrada entre Paris ¢ Vincennes. $40 treze quilémetros de terra batida, 5 arvores estao desfolhadas e distanciam-se muito umas das outras. Quase ndo hi sombra alguma para suavizar o calor excessive do ve- a0, e 0 homem cansa-se fazendo © percurso a pé, pois mio. tem di- nheito para alugar um fisere. E relativamente moco, com seus trinta ¢ sete anos de idade, ¢ procura apressar © passo para chegar mais ce- do. Carrega consigo um exemplar do Mercure de France para distrair- se ¢ 18 a0 acaso o que Ihe cai sobre 03 olhos, Num desses momentos, tem a atengao despertada por uma noticia sobre © concurso da Acade- mia de Dijon para o ano seguinte. Os interessados deveriam escrever sobre 0 tema: “Se © progresso das citncias e das artes contribuiu para corromper ou apurar as costumes’. A noticia deixa-o subitamente transtornado, Toma-se de um entu- jiasmo como jamais ser e divisa um outro universo mental, Sente a Cabega tonta como se estivesse embriagado e 0 coracdo bate com violéncia, dificultando a respiragao e 0 andar. Artoja-se debaixo da primeira drvore que oferece sombra ¢ ali fica mais de meia hora em intensa agitagao interior. Ao levantar-se, fica surpreso com a foupa to- da molhada de lagrimas, sem ter sentido derramé-las. Imediatamente pde-se a tomar notas para responder a questa proposta e redige uma pequena dissertacio. Nascia; assim, a primeira de uma série de obras de pensamento em que a mesma carga emocional estaria sempre presente, compor- do um conjunto de idéias radicadas profundamente na vida do autor eda qual ndo podem ser desligadas. O despertar da imaginagio Chamava-se Jean-Jacques Rousseau ¢ nascera em Genebra, a 28 de junho de 1712, filho de Isaac Rousseau, cujos antepassados protes: tantes provinham da regio de Paris ¢ de Sabdia-e se refugiaram na ci- dade de Calvino, durante as guerras religiosas na Franca do século XWI, © primeiro desses antepassades chamava-sc Didier e obtivera 0 dircito de cidadania em Genebra no ano de 1555, Quase todos eram relojoeiras e alcancaram relativa fortuna, mas nunca chegaram a per- tencer & aristocracia; enquadravam-se dentro dos limites da burguesia média, Isaac Rousseau nao fugia & regra, mas era um pouco mais pobre Vill ROUSSEAU do que os demais perentes em virtude de ter que partilhar a heranga com catorze irmaos. Casou-se com Suzanne Bernard, filha do pastor da localidade, © loge depois do nascimento do primeiro filho, partiu para Constantinopla a fim de tornar-se relojoeiro num harém. Deixou @ esposa sozinha em Genebra e Suzanne, mulher de grande beleza e encantos espirituais, passou a ser assediada por outros homens. Era, contudo, uma mulher extremamente fiel e amava Isaac desde a meni- nice. Nao suportande a separacao e temendo as constantes investidas dos admiradores, implorou ao marido para que voltasse sem demora. Isaac nao se fez esperar e abandonou o harém: dez meses depois, nas- Cia fraco e doentio 0 filho Jean-lacques e Suzanne falecia do parto. Durante muito tempo, pai e filho viveram do culto a Suzanne ¢ os dois “devoraram’ uma grande cole¢ao de romances que ela deixa- ra. Liam sem parar apés a ceia ¢ assim passavam a noite, Os roman- cos esgotaram-se logo, deixando tragos marcantes no cardter do meni- no: imaginagdo exacerbada e visao profundamente dramatica das re- lagées humanas. Quando Jean-Jacques tinha sete anos de idade ¢ os livros da mae se esgolaram, os dois passaram a ler a biblioteca do pai de Suzanne, onde encontraram outro tipo de obras: Histéra da Igrefa e do Império, de Le Suer; Discurso Sobre a Histéria Universal, de Bos: suet; Homens ilustres, de Plutarco; Metamorfoses, de Ovidio; Os ‘Mundos, de Fontenel e; e algumas pecas de Moliére. © rumo dessa educacio foi interrampido por um incidente cujas conseqiiéncias tiveran influéncia decisiva na vida do menino, O pai era um homem instavel ¢ despreocupado @ as vezes deixava-se tomar por reacées violentas. Numa dessas ocasides desentendeu-se com um certo capitdéo Gauthier e este, para vingar-se, acusou-o de desembai- nhar a espada dentro da cidade. Procurado para ser preso, Isaac, inva- cando a lei, exigiu que © acusador também fosse preso, até que a questio viesse a julgamento. Nao o conseguindo e afirmando que as- sim ficavam comprometidas a honra e a liberdade dos cidadaos, pre- fou expatin-se pelo resto da vida, n&o participando mais da vida do filho. Jean-Jacques ficou sob a tutela do tio Bernard, que o enviou para Bossey a fim de estudar com © ministro Lambercier, Em Bossey, viveu 8 prazeres de estar em contato com a Natureza e ligou-se afetivamen- te a0 primo Abraham, além de fazer amizade com a filha do ministre Lambercier, A estada em Bossey estendeu-se até 1724, quando Jean-Jacques completava doze anos de idade. De volta a Genebra, passa dois ov trés anos na casa de um tio, aprendendo desenho em companhia de primo. Sonha com ser ministra evangélico, achando bela a tarefa de pregar, mas 3 recursos econémicos deixados pela mde nao permi- tiam a continuagao cos estudos nesse sentido, e o sentimento de inie- rloridade social comeca a se fazer sentir como um dos fatores determi- nantes de seu carate’. Enamora-se da Srta. de Vulsan, que tem o do- bro da sua idade. Apaixona-se também pela Srta. Goton, que brinca- va de professora com ele. £ enviado 4 casa do notério Masseron para aprender 0 oficio de moco de recados, mas no mostra qualquer vo- cago para esse tipo de trabalho. Q tabeliao considera-o preguigoso € idiota, e acaba dispensando seus servicos. Outra tentativa profissional ndo tem melhores resultados, quando vai aprender o oficia de grava- VIDA E OBRA Ix dor com um certo Sr. Docommun. Passa a maior parte do tempo a-cu- nhar medalhas para 0; amigos, € acusado de fabricar dinheiro falso e degenera moralmente, tornando-se medroso, dissimulador e ladrao, roubando de tudo, menos dinheiro. Desanimado com a situacdo. na oficina, volta aos prazeres da leitura, alugando livros de uma senhora chamada La Tribu. Em um ano esgota toda a sua biblioteca. Além dos livros, Jean-Jacques encontra consolo nos passeios pe- lo campo. Isso, no entanto, 6 podia ser feita nos domingos e fora dos muros da cidade. Nessas ocasies, esquecia-se completamente de voltar e acabava cncontrando fechadas as portas da cidade. Num primeiro atraso, foi repreendido severamente pelo mestre; no segun- do, 0s castigos corporais fizeram-se acompanhar de ameagas de que uma terceira vez nao seria tolerada. O terceiro atraso aconteceu € com isso teve inicio outro période na vida de Jean-Jacques. Na noite de 15 de margo de 1728, dormiu na esplanada externa das portas da cidade, jurando partir para sempre quando raiasse o dia. Partia animado pelos mais belos sonhos. Livre e senhor de si mes- mo acreditava poder fazer tudo o que quisesse. Entrava com a maior segurancga do mundo, onde julgava poder encontrar festins, tesouros, aventuras, amigos e arantes. Mas nada ocorreu como esperava e Jean-Jacques logo sentiu as angustias da fore. Procurou entéo 0 cura de Confignon, Senhor de Pontverre, que se dedicava 3 tarefa de reconduzir ao seio da Igreja Ro- mana os jovens calvinistas de Genebra. Jean-Jacques orienta logo a conversa nesse sentido, pois era uma maneira facil de resolver proble- mas de subsisténcia, ¢ 0 cura, pretendendo arrancar mais uma alma 3 heresia, sugeriu-the drigitse a Annecy: “Ld encontrareis uma senho- fa muito caritativa”. O protegido da Sra. de Warens A Sra. de Warens nao ¢ra uma velha devota como imaginara, Ti- nha 28 anos de idade, um belo rosto, alhos azuis plenos de docura, cor de pele maravilhosa e um pesceca encantador, Jean-Jacques tor- nou-se imediatamente prostlito catdlico, pois, para ele, uma religido pregada por missiondtia tao encantadora nao poderia deixar de con- duzir ao paraiso. A Sta, de Warens quis conservé-lo junto a si, mas por prudéncia achou melhor envid-lo a Turim, onde havia um asilo destinado a catecumengs, Chamava-se Asilo do Espirito Santo e cau- 50U a pior impressdo no jovem Jean-Jacques. Suportou, contudo, os aspectos negatives ¢ representou o papel de cateciimeno porque nao via como safar-se. Foi declarade converso, fizeram-lhe uma coleta que rendeu vinte francos: estava livre para novas aventuras, Os vinte francos acabaram logo @ Jean-Jacques viu-se obrigado a procurar trabalho, Ojereceu seus conhecimentos como gravador 2 Sra. Basile, com a gual ficou pouco tempo, e depois trabalhou como secretario da condessa de Vercellis, da qual roubou uma fita cor-de- rosa, pondo a culpa na camareira. Cam o falecimento da condessa, trés meses depois, passou a ser empregado do conde de Gouvon. Ena- morou-se da jovem nora do conde, ¢ estudou latim com o filho do do- no da casa, que era padre ¢ 0 fez ler obras de Virgilio, x ROUSSEAU Avido de aventurzs, deixou a casa do conde de Gouvin, ao en- contrar um velho conhecido de Genebra, chamado Bacle, com 0 qual perambulou algum tempo até resolver valtar para a companhia da Sra. de Warens, como melhor forma de manter a subsisténcia. De neve em Annecy, ajuda a protetora em trabalhos de medicina ¢ alqui- mia e principalmente 18 muito: Puffendorf, Saint Evremond, a Henri da de Voitaire, Bayle, La Bruyére ¢ La Rochefoucauld. Estuda mdsica e esforga-se por decifrar as cantatas de Clérambault, até que a Sra. de Warens resolve envidlo para um semindrio, onde deveria melhorar ‘95 conhecimentos de latim. Mais importante, contudo, foram os estu- dos de misica na casa do Sr. Le Maitre, no inverno de 1729/30, que Ihe permitiram ficar sabendo © suficiente para apresentar-se como pro- fessor de misica. Com isso, conseguiu ganhar o sustento nos meses seguintes, quando, na auséncia da Sra. de Warens, perambulou por Lausanne e Neuchatel e chegou a visitar Paris, onde permaneceu pou- cos dias, De volta 4 casa da Sra. de Warens, agora instalada em Cham- béry, af viveu varios anos, lendo muito ¢ comegando a escrever. Em 1740, tornou-se preceptor de dois filhos do Sr. de Mably e malogrou totalmente, mas ndo deixou de aproveitar a experiéncia, escrevendo um Projeto de Educagéo de M. de Sainte-Marie e acumulando conhe- cimentos para a futura grande obra pedagogica que seria o Emilio. Dois anos depois, chega a Paris disposto a conquistar a cidade. leva consigo um novo sistema de notacao musical, uma Gpera, uma comédia ¢ uma colegio de poemas, Procura a fama e 0 sucesso, mas 08 resultados nao sido nada animadores: o sistema de notacdo musical é friamente recebido pela Academia de Ciéncias e por Rameau (1683-1764), e © bailado As Musas Gafantes, que consegue fazer apresentar na dpera de Paris, atrai pouquissima aten¢ao. Nao fosse is- 30 suliciente, sofre a humilhacao de nio ser correspondide no amor pela Sra. Dupin, e um resumo que faz para uma 6pera composta por Rameau e Voltaire (1694-1778) @ apresentado em Versalhes sem que seu nome seja citado. Tem melhor sorte, entretanto, na amizade com 9 filésaio Condillac (1715-1780) © com Denis Diderot (1713-1784), que Ihe encomenda artigos sobre musica para a Enciclopédia Em 1745, liga-se a Thérése Levasseur, com a qual teria cinco fi- Ihos, todos entregues a orfanatos, porque achava que ndo poderia cui dar deles sendo pobre e doente, O remorso par isso seré seu compas nheiro para o resto da vida; para livrarse dele preocupou-se sempre em encontrar justificativas, A temporada no Ermitage Em 1749, Diderot publica sua Carta Sobre os Cegos, na qual ex- pressa claramente posicdes ateistas. Por esse motivo foi preso durante trés meses em Vincennes, onde Jean-Jacques visita 0 amigo quase to- dos os dias. Fol numa dessas tardes que entreviu a caminho a ser tri- thado pelo seu pensamento inquieto, ao. responder negativarnente a mete sobre se 0 progress das ciéncias e das artes tinha contribui- para aprimorar os costumes. No ano seguinte ‘ecebeu © primeiro prémio nesse concurso ¢ VIDAE OBRA x com ele veio também a fama, ha tanto esperada, e sobretudo a poss bilidade de ser ouvido 30r citculos mais amplos. Dais anos depoi um intermezzo operistico de sua autoria, O Adivinho da Aldeia, 6 le- vado 2 cena em Fontainebleau © Ihe é oierecida uma pensao real, que orgulhosamente recusa. Publica a Carta Sobre a Musica France- 53, na qual defende o e: italiano; visita Genebra, onde retorna a fé Protestante que abjurara ¢ escreve dois discursos Sobre a Origem da Desigualdade © Sobre a Economia Politica, o Gltimo por encomenda de Diderot para a Enciclopédia, Em 1756, passa a morar na Ermilage, uma enorme casa em Mentmorency, posta & sua dispasicao pela Sra. d’Epinay. Ali poe-se a escrever o romance episiolar A Nova Heloise, obra bem tipica de sua personalidade romantica. £ @ historia de um homem que conhece o amor mais pela imaginacio do que na realidade. Os cuidadas exterio- res de que cerca o trabalho nao sao menos significativos: usava 0 mais belo papel dourado, p6 de ultramarino e de prata para secar a tinta e fita azul para costurar os cadernos. Ao mesmo tempo, apaixo- nase pela Sra. d’Houdedot, briga com o amiga Diderot por achd-lo implicado em intrigas com a reterida senhora e apresenta os primei- fos sinais claros da mania de perseguigao, que se torna cada vez mais docntia nos anos seguintes. Em 1757, deixa © Ermitage e passa a viver em Montlouis, onde Permanece durante cinco anos muito produtivos ¢ felizes, Escreve a Carta Sobre os Exspetaculos, em que critica um artigo de D'Alemben sobre Genebra, publicado na Enciclopédia, ¢ opde-se ao estabeleci mento de um teatro na cidade natal. Completa A Nova Heloisa & redi- Be as duas obras tedrieas que marcardo toda a historia da teoria politi- cae da pedagogia: 0 Fmilio e o Contrato Social, O refagio junto a Hume Os dois livros, imediatamente depois da publicaga em 1762, sio Considerados altamente ofensivos as autoridades «, assim, inicia- se © perfodo mais negro da vida do autor. Os problemas agora nio so mais com os amigos e as amantes, mas com as autoridades e a opinide publica. Ordena-se sua prisio, & Rousseau vé-se obrigado a deixar a Franga, refugiando-se em Neuchatel, entaa sob dominio de Frederico I da Prissia. Passa a usar roupas arménias para disfarcar-se © escreve a Carta a Cristophe de Beaumont, na qual ataca o arcebispo de Paris por ter condenado o Emilia. O mesmo sentido tém as Castas Eseritas na Montanha, réplica a J. 8. Tronchin, que ordenara a quei- ma do Emilio e do Contrato Social. Em 1764 prepara um inacabado Projeto de Constitui¢do para a Corsega, a pedido de Matteo Butta- fuoco. Ainda em 1764, toma conhecimento de um panfleto andnimo que circula em Paris sob o titulo de Q Sentimento dos Cidadios, no qual ¢ atacado como hipécrita, pai sem coracao @ amigo ingrato. O panfleto tinha sido escrito por Voltaire e feriu profundamente Rous- seat. Pés-se entio a escrever as Confissdes, onde, em quase mil pagi- nas, procura explicar toda sua vida © seu pensamento. Com isso, 0 li- vro tomou-se uma sintese completa do autor como homem, romanci ta, filésofo e educador. Xt ROUSSEAU Os infortanios n&o pararam af, Em 1765, atacado pelos protestan- tes de Neuchatel, que chegam a jogar pedras em sua casa, abandona Métiers e dirige-se para a ilha de Saint-Pierre, onde ¢ impedide de fi- car. Aceita a oferta de refagio na Inglaterra, feita pelo filésofo David Hume (1711-1776). Chega a Londres e vai viver em Wootton. As rela- Goes com o amigo Hume, no entanto, seriam prejudicadas por uma Carta que circulava em Paris. Enderegada a Rousseau e assinada por Frederico Ml (1712-1786) — na verdade escrita por Horace Walpole (1717-1797) —, criticava ironicamente sua conduta, @ Rousseau su- pds que Hume tivesse alguma coisa a ver com ela. Com delirios de perseguigso, imaginava um vasto complé contra cle. A poldmica cam Hume divertiu toda a Europa culta e, por fim, Rousseau acabou por deixar a Inglaterra. De novo na Franga, publicou © Dicionario de Musica, no qual trabalhava ha anos. Deixa-se dominar outra yez por crises de panico. Casa-se com Thérése Levasseur € procura defender-se contra os imagi- ndrios conspiradores, Tenta justificar-se diante do mundo, lendo extra- tos das Confissdes nos salées parisienses e escrevenda os Didlogos ¢ Rousseau, Juiz de Jean-lacques. A dltima obra técnica seria Considera- ¢6es Sobre 0 Governo da Poldnia, a pedido do conde Wielhorski, que desejava conselhos para reforma das instituicdes politicas de seu pais. Nos tiltimos dois anos de vida, os sintomas psicoticos diminuem de intensidade, ¢ Rousseau pode escrever a mais serena e delicada de suas obras, Devaneios de um Caminhante Solitério, que contém des- crigées da natureza e dos sentimentos humanos feitas com admiravel suavidade e beleza, Em 2 de julho de 1778, falece em Ermenonville e 6 enterrado na ilha dos Choupos, Refugia-se por fim na Naturoza, a “mae comum’, em cujos bragas buscou subtrair-se “aos ataques de seus filhos’’ Natureza ou civilizacao? © chamado a Natureza ¢ o “evitar os ataques de seus filhos” constituem os motivos fundamentais do pensamento de Rousseau e a fonte de sua contribuicdo original para a historia da filosofia, Essa con- tribuigde ndio compde um conjunte sistemstice, ¢ a riqueza © varieda- de da obra, as {reqiientes contradicées, a repugnancia pela sistemati- zacéo conceitual e a permanente vinculacdo entre as idéias e os con- flitos pessoais vivides pelo autor tornam extremamente dificil uma ex posicado sintética de sua obra. Contudo, ¢ possivel desenredar essé teia intrincada @ trazer tona alguns elementos estruturais privilegia- dos e certos temas dominantes: relacdes entre Natureza c sociedade, moral fundada na liberdade, primazia do sentimento sobre a razao, teoria da bondade natural do homem ¢ doutrina do contrato social. © primeiro desses elementos estruturais — raiz de toda a filoso- fia rousseauniana — encontra-se nos discursos Sobre as Ciencias e as Artes ¢ Sobre as Origens da Desigualdade. Neles Rousseau desenvol- ve a antitese fundamental entre a natureza do homem e os acrésci- mos da civilizagao. As obras posteriores levam as ultimas consequén- cias esse pensamento que, mais do que simples idéia abstrata, é um sentimento radical, VIDA E OBRA Mill Em sintese, a civilizagao é vista por Rousseau como responsdvel pela degeneragao das exigéncias morais mais profundas da natureza humana e sua substituigao pela cultura intelectual. A uniformidade ar- tificial de comportamento, imposta pela sociedade as pessoas, leva-as a ignorar 05 deveres humanos e as necessidades naturals. Assim co- mo a polidez e as demais regras da etiqueta podem esconder 0 mais vil e impiedoso egoismo, as ciéncias e as artes, com todo seu brilho exterior, freqéentemente seriam somente mascaras da vaidade e do or- gulho. A vida do homem primitive, ao contrério, seria feliz porque ele sabe viver de acordo com suas necessidades inatas, Ele € amplamente aute-cuficiante porque constréi sua existéncia no isolamento das flo- restas, satisfaz as necessidades de alimentagao € sexo sem maiores di- ficuldades, e nao é atingido pela angustia diante da doen¢a ¢ da mor- te. As necessidades impostas pelo sentimento de autopreservagao — presente em todos os nomentos da vida primitiva ¢ que impele 0 ho- mem selvagem a agGes agressivas — sio contrabalancadas pelo inato sentimento de piedade que o impede de fazer mal aos outros desne- cessariamente, Desde suas origens, 0 hamem natural, segundo Rous- seau, @ dotado de live arbitrio € sentida de perieicao, mas o desen- volvimento pleno desses sentimentos 36 ocorre quando estabelecidas as primeiras comunidades locais, baseadas sobretudo no grupo fami+ liar, Nesse periado da evolucéo, o homem vive a idade de ouro, a meio caminho entre a brutalidade das ctapas anteriores e a corrupcao. das sociedades civilizadas. Esta comeca no momento em que surge a propriedade privada. A critica as sociedades civilizadas ¢ a idealizagao do homem pri- mitivo, manifestadas a todo passo nas obras de Rousseau, foram vis- tas por muitos intérpretes Como expressio de um desojo de retorno. animalidade. Alguns 0 aproximaram dos cinicos gregos, especialmen- te de Didgenes (Cc. 413-327 a.C.), que admirava os animals e celebra- va os rituais antrapofigicos da mitologia. Voltaire, entre outros, fez es- Sa aproximagao, certamente com itonia, ao dizer do autor do Contra- fo Social que “ninguém jamais pds tanto engenho em querer nos con- verter em animais”’ e@ que ler Rousseau faz naseer “desejos de cami- nhar em quatre patas’". Tal interprotagio & sem duvida incorreta © de- ve ser entendida apenas como expressdo do sarcasmo voltairiano. O que Rousseau sempre pretendcu nao foi exaltar « animalidade do sel- vagem, porém sua mais profunda humanidade em relagdo ao homem civilizado, A dignidade da natureza humana frente aa animal € cons- tantemente expressada pelo autor do Emilio: “Que ser aqui embaixo, exceto o homem, sabe observar os outros, medir, calcular, prever seus movimentos, seus efeitos, e unir, por assim dizer, o sentimento da existéncia comum ae de sua existéncia individual?,.. Mostrem>me gutro animal sobre a terra que saiba fazer uso do fogo e admirar o Sol... Eu posso abservar, conhecer 0s s¢res e suas relacées, posso sen~ tir o que &a ordem, a beleza, a virtude; posso contemplar o Universo ¢ clevar-me até a mao que governa; posso amar o bem e fazé-lo; @ me compararia com os animais’... que coisa maior poderia eleger do que ser homem?”” ‘O homem, para Rousseau, nao se regenera pela destruicao da so- ciedade @ com o retomo a vida no meio das florestas, Embora priva- XW ROUSSEAU. do, no estade social, de muitas vantagens da Naturoza, ele adquire outras: capacidade de desenvolver-se mais rapidamente, ampliacao dos horizonies intelectuais, enobrecimento dos sentimentos e eleva- éo total da alma, Se os abusos do estado social civilizada no 0 colo- cassem abaixo da vida orimitiva, 0 homem deveria bendizer sem ces- sar o instante feliz que o arrancou para sempre da animalidade e fez de um ser estépido e limitado uma criatura inteligente. O propésito sado por Rousseau ¢ combater os abusos e nao repudiat os mais altos valores humanos. Qs abuses centralizant-se, para ele, na perda de consciéncia a ‘que € conduzido o homem pelo culto dos refinamentos, das mentiras convencionais, da ostentac3o da inteligéncia @ da cultura, nas quais se busca mais a admiracao do préximo do que a satisfagso da propria consciéncia. Rousseau, em uma palavra, néo pretende queimar bi- bliotecas ou destruir universidades © academias; reconhece a funcao til das ciéncias e das artes, mas nao quer ver os artistas e intelectuais submetidos aos caprichos frivolos das modas passageiras. Pelo contra rio, glorifica os esforgos laboriosos da conquista intelectual verdadei- fa, que se realiza na juta contra os obstacutes e na atividade criadora do espirito livre de prossées, A interioridade desvendada pelo sentimento O retorn 2 pureza da conseiéncia natural & o dever fundamen: tal de todo homem, segundo Rousseau, Com isso, ele retoma de certa forma, 0 “conhece-te a ti mesmo'' socritico. Em Sécrates, no entan= te, a andlise da consciéncia tem significado completamente diverso, inserindo-se em outro quadro de referéncia, Diante dos filésofos anto- tiores que se preocupavam em descabrir a constitui¢do fundamental do mundo da matéria, Sécrates reivindicou como centro do pensar fix loséfico @ propria homem e os valores que orientam sua conduta. Mas a diferenga maior entre Sécrates e Rousseau no reside nisso, mas no fato de que 9 “conhece-te a ti mesmo’ socrdtico & tarefa inte- lectual a cargo da razic, e Rousseau, ao contrario, vé no intolecto uma faculdade que conduz @ homem para fora de si mesmo. Rous: Sau aponta o sentimento, essa “outra faculdade infinitamente mais sublime’, como o verdadeiro caminho para a penetracdo na esséncia da intertaridade, O sentimento come instrumento de penetracéo na esséncia da in- terioridade 6 outro dos clementas estruturais do pensamento de Rous- seau. Ndcleo central de tado pensar filoséfico, constituiria a chave com que se pode compreender toda a Natureza e alcancar mistic: mente o prépria infinito. Deixar de lado as convencdes da raz3o civi lizada, E imergir no fundo da Natureza através do sentimento signifi- ca elevar-se da superficie da terra até a totalidade dos “seres, ao siste- ma universal das Coisas, ao ser incompreensivel que a tudo engloba’” Perdido 0 espirito nessa imensidao, o individuo nao pensa, nao racio- cina, nao filosofa, mas sente com voluptuosidade, abandona-se a0 ar- tebatamento, perde-se com a imaginacao no espaco e langa-se ao infi- nito, Essa imersdo mistica no infinite da Natureza equivale a penetrar IDAEOBRA XV na propria interioridade, alcancar a consciéncia da liberdade e atingir 9 sentimento intimo da vida, cam 0 qual o homem teria cansciéncia de sua unidade com os semelhantes. e com a universalidade dos se- res. No relacionamento mistico com a Natureza, segundo Rousseau, nao se desiruta nada externa ao proprio individuo e sua existéncia: durante 0 lapso de tempo em que ocorre a relag3o, o homem basta- sea si mesmo, como se fosse Deus. A idgia de que 0 sentimenta mistico da Natureza nao pode ser se. parade do sentimento de interioridade pessoal constitui aquilo que se costuma chamar 0 espitito “romantico’ de Rousseau. Vendo 2 Natu- reza como fonte da felicidade humana, relevando ao maximo a carga mistica de sua vivénca ¢ formulando a concepcao de que ela s6 po- de scr compreendida aelo sentimento e néo pela razdo, Rousseau de- sempenhou papel original dentro da filosofia do século XVII. Os con- temporaneos enciclopedistas, tanto quanto cle, também fizeram da Natureza o ponto central de suas teorias. Continuando © movimento do método indutive de Bacon (1561-1626), da metodologia experi- mental-matematica de Galileu (1564-1642), da fisica de Newton (1642-1727) e do empirismo de John Locke (1632-1704), os enciclo- pedistas do século XVIII tomavam a Natureza como fonte de conhe mentos ¢ faziam dela critério de julgamento de idéias e instituicoes, além de arma de luta contra a tradicaa escolastica. A Natureza, no en- tanto, ¢ concebida por cles essencialmente como matéria e movimen- to_mecanico, inteiranente exterior ao sujeito humano. Holbach (1723-1789) e Helvetius (1715-1771), por exemplo, abjetivam o sujet to cognoseente © reduzem o espirito 4 Natuteza © a interioridade & ex- tertoridade. Para Rousseau, ao contrdrio, a Natureza palpita dentro de cada ser humano, coma intimo sentimento de vida. Tomou parti- do contra os “filésofos"” ¢ jamais quis ser chamado assim: “Vi muitas pessoas que filosofavam muito mais doutamente do que cu; mas sua tilosofia pareeia, por assim dizer, estranha,., Estudavam © universo como teriam estudado qualquer miquina que tivessem visto por curio- sidade, Estucavam a natureza humana para poder falar sabiamente de- la, ndo para conhecerem-se a si mesmos"”, ‘A pedagogia do Emilio Rousseau desloca, assim, duplamente o centro de gravidade da reflexdo filoséfica, Em primeiro lugar, ndo é razao mas o sentimento 9 verdadeiro instrumento de conhecimento; em segundo lugar, nao é 9 mundo exterior 0 abjeta a ser visado mas o mundo humano. Am- bos as aspectos vinculam-se intimamente e implicam a passagem da atitude te6rica para o plano da valorizagio moral. Dessa forma, o tra- co mais significativo do pensamento de Jean-Jacques Rousseau passa a residir nos caminhos praticos que ele procurou apontar para 6 ho- mem alcangar a felicidade, tanto no que se refere ao individuo quan- to no que se relacionz 4 sociedade. No primeiro caso, formulou uma pedagogia, que se encontra no Emilio; no segunda, teorizou sobre.o problema politica e escreveu © Contrato Social, além de outras obras menor © Emilio & um ensaio pedagégico sob forma de romance ¢ nele XVI ROUSSEAU Rousseau procura tragar as linhas gerais que deveriam ser seguidas com 9 objetivo de fazer da crianga um adulto bom. Mais exatamente, trata dos principias para evitar que a crianca se torne ma, ja que o pressupaste basico do autor ¢ a crenca na bondade natural do ho- mem, Outro pressuposto de seu pensamento consiste em atribuir 4 ci- vilizagéo a responsabilidade pela origem do mal. Conseqtientemente, ‘os objetivos da educagdo, para Rousseau, comportam dois aspectos: o desenvolvimento das potencialidades naturais da crianca seu afas- tamento dos males sociais. A educacao deve ser progressiva, de tal forma que cada estagio do proceso pedagdgico soja adaptado as necessidades indiviruais do desenvolvimento. A primeira etapa deve ser inteiramente dedicada a0 aperfeicoamento dos 6rgaos dos sentidos, pois as necessidades ini- ciais da crianca sao principalmente fisieas. Incapaz de abstracoes, o educando deve ser orientado no sentido do conhecimento do mundo através do contato com as préprias coisas; 0s livros 36 podem fazer mal, com excegao do. Robinson Crusoé, que relata as experiéncias de um homer livre, em contato com a Natureza, Liberta da tirania das opiniées humanas, a crianga, por si mesma € sem nenhum esforco especial, identifica-se com as necessidades de sua vida imediata ¢ torna-se auto-suficiente. Vivendo fora do tempo, nada precisando das coisas artificiais ¢ néo encontrando qualquer des- proporcao entre desejo.e capacidade, vontade e poder, sua existéncia yé-se livre de toda ansiedade com relagdo ao futuro endo € atormen- tada pelas preocupacdes que fazem a homem adulto civilizado viver fora de si mesmo. E necessirio, contido, preparé-la para o futuro. Isso porque ela tem uma enorme potencialidade, mao aproveitada imediatamente, A tarefa do educador consiste em reter pura e intata essa energia até 0 momento propicio. Nesse sentido @ particularmente importante evitar a excitagio precoce da imagina¢do, porque esta pode tomar-se uma fonte de infelicidade futura. Outros cuidados devem ser tomados com 9 mesmo objetivo e todos eles podem ser alcangados ensinando-se a ligdo da utilidade das coisas, ou seja, desenvolvenda-se as faculda- des da crianca apenas naquilo que possa depois ser-Ihe ctil. Até aqui, 0 processo educative preconizado por Rousseau € nega tivo, limitando-se Aquilo que nao deve ser feito, A educagse positive deve iniciar-se quando a crianga adquire consciéncia de suas rela- gGes com os semelhartes. Passa-se, assim, do terreno da pedagogia Propriamente dita aos dominios da teoria da sociedade e da organiza- cao politica, O supremo bem: a liberdade Em todas as obras de Rousseau, os processos educativos, tanto quanto as relagdes sociais, sa0 sempre encarados do ponto de vista centralizado na nogao de liberdade, entendida por ele como direito e dever ao mesmo tempo: “... todos nascem homens ¢ livres’; a liber- dade thes pertence e renunciar a ela é renunciar a propria qualidade de homem. Ao reiormclar tal principio @ dar-lhe o papel fundamental na moral ¢ na politica, Rousseau elevou-se muito 2cima dos contem- VIDAEOBRA XVII poraneos ¢ dos precursores. iguém como cle afirmou o principio da liberdade como di-eito inaliendvel e exigéncia essencial da. pré- pria natureza espiritual do homem, Com isso, levou a: dltimas conseqiiéncias a linha de pensamento iniciada pelo humanismo renascentista e sobretudo pela reforma pro- testante. Esta ultima, especialmente, expressava as necessidades € as- piragdes das coletividades que reivindicavam o valor da intimidade e os direitos da consciéncia religiosa de cada um, frente ao principio ca- tolico da autoridade. Essa corrente de idéias desenvolveu-se depois com as teorias do direito natural do século XVII ¢ principalmente com Espinosa (1632-1677) ¢ John Locke, que prenunciavam Rousseau. O caminho que serd trilhado pelo autor do Contrato Social é anunciado por Locke ao formular a teoria do estado da natureza como condigao da liberdade ¢ de iguadade e com a afirmacao da pessoa humana co- mo sujeito de todo direito e, portanto, fonte e norma de toda lei. Con- tudo, Locke admite a perda da liberdade quando afirma que “o ho- mem, por ser livre por natureza, ... nao pode ser privado dessa condi- Ga0 e submetido ao poder de outro sem o préprio consentimento”’. O principio da liberdade torna-se, assim, apenas uma questo de fato e deixa de ter 0 valor humanista @ a forca renovadora da vida social que Ihe foram dados por Rousseau. Com ele, 0 principio da liberdade constituise como norma, @ nao como fato; como imperativo, © ndo como comprovagao. Nao é apenas uma negacio de impedimentos, mas afirmagdo de um dever de realizagao das aptidées espirituais. Na consciéncia da liberdade re- vela-se a espiritualidade da alma humana; por isso ¢ a exigéncia ética fundamental, ¢ renunciar a ela é renunciar & propria qualidade de ho- mem e “aos direitos da humanidade”’. Aa fazer tal afirmagéo, Rousseau distancia-se de todo individua- lism, pois este supde uma antitese entre cada um e a coletividade ¢ estabelece o valor do individuo enquanto individuo ¢ néo enquanto homem, Rousseau, ao contrario, reivindica a consciéneia da dignida- de do homem em geral ¢ ilumina o valor universal da ‘personalidade humana, cuja consciéncia moral nao se traduz no sentimento particu- larista do amor prépric, mas na universalidade do amor de si. No pen+ samento de Rousseau o amor de si, constituindo a interioridade por exceléncia e a forga expansiva da alma que identifica o individuo com seus semelhantes, é a ponte que liga o eu indivi mum, a vontade particular 4 vontade geral. Assim & que todos os cida- daos “poderdo chegar a identificar-se, por fim, com o Todo maior, sentirese membros da pitria, amd-la com esse sentimento delicado que todo homem separado s6 tem para si mesmo’. A ealizacao concreta do eu comum e da vontade geral impli- cam necessariamente um contrato social, ou seja, uma livre associa- ao de seres humanos inteligentes, que deliberadamente resolvern for- mar um certo tipo de sociedade, a qual passam a prestar obediéncia. © contrato social seria, assim, a Gnica base legitima para uma comu- nidade que deseja viver de acordo com os pressupostos da liberdade humana. £ neeessatio, contudo, resolver o problema de encontrar uma for- ma de associagdo que continue a respeilar essa mesma liberdade que Ihe dé origem, Muito embora o homem seja naturalmente bom, cle é XVilt ROUSSEAU constantemente ameacado por forcas que nao sé o alienam de si mes- mo como podem transforma-lo em tirano ou escravo. Rousseau procu+ ra uma forma de associagdo na qual “cada um unindo-se a todos obe- dece, porém, apenas a si mesmo e permanece livre’ como antes de estabelecer o contrato. Cada um por si mesmo, dando-se para todos, nao se dé a ninguém. As possibilidades de desigualdade e injustica entre os cidadaas sao evitadas mediante a ‘‘total alienagao de cada as- saciado, com todos os seus direitos, em beneficio da comunidade”. Nao sendo total essa alienagéo, o individuo ficard expasto a domina- cao pelos outros. Em caso contrario, o cidadao nao obedece a interes. ses de apenas um setor do conjunto social, mas a vontade geral, que € “uma for¢a real, superior 8 acao de qualquer vontade particular’. Essa obediéncia jamais suscita qualquer apreensie, pois a vontade ge- ral, segundo Rousseau, & sempre dirigida para o bem comum, A alienacao total ao Estado envolve igualdade ainda noutro senti- do, na medida em que a vontade geral nao & autoridade externa obe- decia pelo individuo a despeito de si mesmo, mas corparificacao ob- jetiva de sua prdépria natuteza moral, Aceitanda a autoridade da von- tade geral, © cidadao- nao s6 passa a pertencer a um corpo moral cole+ tivo, como adquire liberdade obedecendo a uma lei que prescreve pa- fa si mesmo. E por intermédio da lei apetitiva para seguir os ditames da tazio ¢ da consciéncia, A submissdo a vontade geral, possuidora de “inflexibilidade que nenhuma forca humana pode superar”, con: duz a uma liberdade que “resguarda o homem do vicio"” ea uma mo- ralidade que “Yo eleva até a virtude'’. © individuo é, assim, investido de uma outra espécie de bondade, aquela virtude genuina do ho- mem, que ndo.é um ser isolado mas parte de um grande todo. Liberto dos estreitos limites de seu proprio ser individual, encontra plenitude numa verdadcira experiéncia social de fraternidade ¢ igualdade, jun- toa cidadios que aceitam o mesmo ideal. A concepgao rousseauniana do direite politico ¢, portant, essen- cialmente democratica, na medida em que faz depender toda autori- dade e toda soberania de sua vineulagao com o povo em sua totalida~ de. Além disso, a soberania & inaliendvel ¢ indivisivel ¢, como base da propria liberdade, € algo a que 6 povo pio pode renunciar ou par tilhar com os outros, sob pena de: perda da dignidade humana. A so- berania pode, contudo, ser delegada em suas fungdes executives, se- gundo formas diversas; nascem, assim, 0 governos mondrquicos, aristocraticos e republicans, cada um devendo corresponder a cir Cunstancias histéricas ¢ geograficas especificas, Para Rousseau, a lei, como ato da vontade geral e expressio da soberania, & de vital importincia, pois determina tado o destino do Es- tado. Assim os legisladores (ém relevante papel no Contrato Social, sendo investidos de qualidades quase divinas. € deles que 0 cidadic “recebe, de certa forma, sua vida e seu ser’’ @ transforma-se superan- do a existéncla independente, que usufrui no estado natural, e pene trando na vida moral como um ser comunitario. Esse novo modo de existéncia nao Ihe ¢ imposto de fora, mas resulta de uma vontade pro- veniente do fundo de seu ser interior. Os legisladores devem, assim, assemelhar-se aos deuses, mas perseguindo sempre 0 objetivo de ser. Vir as necessidades essenciais da natureza humana, Nos ultimes capitslos do Comtrato Social, Rousseau acrescenta VIDAEOBRA XIX um Conjunto de sangées rigorosas que acreditava serem necessdrias para a manutengio da estabilidade politica de Estade por ele preconi- zado. Propoe a introdugao de uma espécie de religido civil, ou profis- sao de f€ civica, a ser obedecida pelos cidaddos que, depois de acei- tarem-na, deveriam segui-la sob pena de marte. Nisso se viu algo de ‘extremamente chocante, mas € preciso ndo esquecer que Rousseau ja- mais foi um liberal no sentido politico do termo. Ele nio acredita na possibilidade de qualquer rigida separacao entre o individuo e o Esta- do — como queriam os tedricos liberais — @ acha inconcebivel 0 de- senvolyimento da plena vida moral sem ativa participacao de indivi- duo no corpo inteiro da sociedade; por outro lado, estabelece que a unidade e permanéncia do Fstado depende da intagridade moral e da lealdade indivisivel de cada cidadao. A profissio de f6 civica formula da por Rousseau reduz-se a alguns poucos dogmas simples que todo ser racional e moral deveria accitar: crenca num ser supremo, vida fu- tura, felicidade dos jusios, punicso dos culpados. A esses dogmas po- sitivus deve-se acrescentar apenas um negative: a rejeigao de todas as formas de intoleranci A heranca de Rousseau Jean-Jacques Rousseau nao terd sido um filésofo no sentido mais estrito do termo, Seu forte ndo era 0 encadeamento ldgico das idéias nem a {undamentagdo rigorosamente racional dos princfpios que for- mulou, nem a penetragao analitica dos problemas. Seu pensamento procede antes pela expressdo de intuiges resultantes da paixao per- manente com que viveu todos os problemas da existéncia mais co- mum, como também os da cultura ne nivel superior das idéias, Mas soube como poucos expressar essas intuigdes @ defendé-las apaixona- damente. As idéias corespondentes a essas intuigdes ndo sia concei- tos abstratos mas realidaces vividas intensamente @ valores morais imersos na mais nervosa sensibilidade. Opor-se aos fildsofos nso foi para ele apenas assunto tedrico, ras questao de honra pessoal. Toda essa carga emocianal e a Capacidade de expressaa estética que possuia deram forca incomum ao seu pensaments ¢ fizeram dele um marco revolucionstio dentro da hist6ria da cultura. Sua influencia estendeu-se aos mais diversos campos. Os prineipios de liberdade © igualdade politica, formulados por ele, constituiram as coordenadas teGricas dos setores mais radicais da Revolugio Francesa (Robespierre era seu fervoroso seguidor) € inspiraram sua segunda fase, quando fo- ram destruids os restcs da monarquia e foi instalado o regime repu- blicano, colocando-se de lado os ideais do liberalismo de Voltaire e Montesquieu (1689-1735). As teorlas politicas do idealismo alemao do século XIX — que glorificaram o Estado camo Deus na historia — também devem a Rousseau, quando passam de sua doutrina de que 0 Estado € legalmente onipotente para a exaltacao absalutista do mes- mo, Isso, apesar de Rousseau tér afirmada claramente que a maioria deveria ser limitada por restrices morais, e insistido no direito do po- vo de derrubar 0 governo quando este deixasse de ser expresso da vontade geral. Por outro lado, a valorizacao rousseauniana do mundo dos senti- XX ROUSSEAU Cronologia mentos, em detrimento da razdo intelectual, e da natureza mais pro- funda do homem, em contraposi¢ao ao artificialismo da vida civiliza da, encontra-se precisamente na base de amplo movimento romanti- co que caracterizou a arimeira metade do século XIX e permancee: Vi gorando até os dias de hoje, como uma das formas basicas de sentir pensar 0 mundo. 1712 — Jean-Jacques Rawsseau nasce em Genebra, no dia 28 de junho. 1719 — E publicado 0 Robinson. Crusoé de Daniel Defoe, que expressa um dos tragos fundamentais do pensamenta de Rousseau. 1722 —“Rowsscay passa a estudar na casa do ministro Lambercier, em Bos sey. Rameau publica 0 Tratado de Marmonta ¢ Bach compde o Crave Bem Temperado, 1728 — Rousseau foge de Genebra, encontra a Sta. de Warons © converte= Se 20 Catolicismo em Torim 1740 — Tora-se preceplor, mas ndo consegue bon ogo, Rachardson publica o romance Pamela e Sati, 1742 — Rousseau chepa a Paris, em busca de sucesso. D’Alembart redige 0 Tratado dle Dindmica, 1745 — Rousseau liga-se a Thér'se Levasseur, com a qual passard lode a vi= dae ters cinco tithes. 1743 — Rousseau rediige © Discurso Sobre ag Ciencias 6 a8 Artes, 1752 — 0 “intermezz0” operistico de Rousseau, © Adivinho da Aldeia, & encenade em Fontainebleau. A Enciclopédia, dirigida por Diderat, @ con- denada pela primeira vez, 1754 — Rowseau visita Genebra @ volta aa protestantismo. O filsofo Con. dillac publica 0 Tratado Sobre as Sensagoe 1755 — Rousseau publica as discursos Sobre a Origen da Desigualdade ¢ Sabre a Fronomia Politica. 1756 Passa a morar ce Ermitage © comoca a escrever 0 romance A Nova Heloisa. 1757 — Escreve o Emilia ¢ @ Contrato Social, A mania de persegui¢do came: Ga apresentar os primeieos sintomas 1762 — © Contrato Socal eo Emilio sto condenadoes pelas autoridades, Rousseau € perseguido, refugiando-se em Neuchatel, 1764 — Redige um Projeto de Constituicao para a Cérsega © as Confissdos 1765 — F obrigada a dewar Neuchitel e refugia-se na Inglaterra, junto a Da- vid Hume, descaniia do ainigo © sente-se cada vez mais alvo de conspira- 660, 1767 — Volta 2 Franca, casa-se com Thérese Levasseur e publica 0 Diciond- rio de Masica M771 — Escrove as ConsideragGes Sobre. Governo da Polénia. Pura justifi- carse de ataques, alguns reais, outros imaginérios, compde os Dialogos — Rousseau, Juiz de Jean-locques. 1776 — Escreve os Devanelos de umm Caminhanie Solitario. W778 — falece em 2 de julho e é enterrado na ilha dos Choupos, em Erme- nonville, Durante-a Revolugade Francesa, seus restos mortals setdo coloca- dos no Pantedio, resultados Como peda- Bibtiografia VIDA E OBRA XXI Masson. PAL: La Religion de |. J, Rousseau, 3 volumes, Paris, 1916. Scrmvz, Austat: La Pensée Religiouse de |. |. Rousseau et ses Récents Interpre- tes, Paris, 1927. Seine, Auer: La Fensée ae J. J. Rousseau, Alcan, Paris, 1929. ‘Scwnz, Auster: Frat Présent des Travaux sur J. |. Rousseau, Nova York @ Paris, 1941 Wacar EH. The Meaning of Rousseau, Oxtord, 1929. Hortons, Haxaio, J. f, Rausseau and his Philosophy, 1930, Hinoa, C. War Jo J. Rousseau, Moralist, 2 volumes, Nova York ¢ Oxlord, 1934 Guiéene, Jian Jean-Jacques, 3 volumes, Bemard Grasset, Paris, 1948/52. (Em 1962 foi publicada nova edicio com o subtitulo Histoire d'une Conscien- ce.) Deraine. Roweer be Rationalisme de f. J. Rousseau, Presses Universitalnes de France, Paris, 1948. Dreatnd, Romie tk Rowmsoau et la Seionce Politique de son Temps. P.UF., Paris, 1950. Moaner, Dawu Rousseau, E"Homme-et L'Ouevte, Paris, 1950. Buxcium, Puxrt: La Philosophie de I'Existence de J. J. Rousseau, P. U. f., Paris, 1952. Cah Eoin The Quen of |. J. Rousseau to 54 StaRoanst JAN). J, Rousseau, la Transparence et Obstacle, Paris, 1957. Monoraro, Rone: Rousteau y fa Conciencia Moderna (original italiano), Edi« torial Universitaria de Buenos Aires, 1962. Peano Jk, Bexto, Lecture de Rousseau, em Discurso n.” 3, Faculdade de Filo sofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas, USP, So Paulo, 1972, inal alemaa), Nova York, DO CONTRATO SOCIAL OU PRINCIPIOS DO DIREITO POLITICO ADVERTENCIA A presente edi¢ao traz notas do Auiar ¢identificadas por N. do AJ. notas da Tradutora (N. da T.), de Paul Arbousse-Bastide (N. de PAB) ¢ de Lourival Gomes Machado (N. de L.G.M.). INTRODUCAO. DE LOURIVAL GOMES MACHADO 1. Circunstincias da composigao Conta Rousseau nas Confissies: “O Contrato Social imprimia-se com bastante rapidez. O mesmo naa acon tecia com 0 Emilio. cuja publicaeéo eu esperava para ofetivar o descanso que planejara. De tempos em tempos, Duchesne enviavame modelos de composigan para escolha: quando eu escothia, em lugar de comecar 0 trabalho, enviava-me novas modelos. Quando, cnfun, chegamos a um bom entendimento acerca do formato e do tipo, havendo ja muitas foihas impressas, ele, por causa de uma pequena modificacdo minka nas provas, tudo recomecou — ao fim de seis meses, estavamos menos adiantados do que no primeire dia’* Assim, seguramente, alterow-se um dos planos mais carinhosamente iraga dos por Jean-Jacques, que des¢java ter no Emilio uma espécie de termo conclu sivo de suas idéias sobre a educagao e, ao mesmo tempo, um elemento prenun ciador do Contrato. Projetara téo firmemente tai sucessao temporal de suas obras, que incluin no Emilio um resumo, assaz longo, das idéias centrais do tra halho @ aparecer & que expressantente anuneiava. Ndo se tratava de um expe: diente de propaganda (como poderia apressadamente supor 0 leitor moderno), porém sobretudo de firmar bem clarameme a importéncia capital do conhect mento da vida politica no estudo da hamem. A morasidade, talvez calculada, dos editores do Emilio ¢ a rapidez de Rev, a quem fora conftade o Contato, frusira- ram-the 9 plano. Em abril de 1762, surge 0 Contrato Social, algumas semanas antes do Emi lio, Rousseau, que estava entdo nos eingiienta anos, era um eseritor célebre. Fazia win ano, @ Nova Heloisa dera-the as gtérias dy mais intense ¢ comavide interesse piblico. Consolidava-se, desse modo, 0 que havia de benévolo no can cello de que anieriormente gozave, enquanio declinava, ao menos por wn instan te, @ fama de “singular” que aleangara nos primeiros passos da carreira. Os dois Discursos ¢ a Carta a d’Alembert, somados ao éxito mais ou menos ruidoso das pecas musicais € teatrais, representavam os alicerces duma indiscutivel celebri dade. Come, depois do Contrato, 56 assinaria obras polémicas ao modo da Carta a Beaumont, das Cartas da Montanha, de Rousseau, Juiz de Jean-Jacques, podemos concluir, sem fargar a interpretagao, ado the ter escapade encontrar se \ Conftisies, X1.(N.de 1. G.M.) 4 INTRODUCAO om posivao especial desde a publicaedo da Veloisa ¢, pois, ser ehegado o momen- to de langar a sew livra mats queridy e mais ambicioso. “Das varias obrax que tinha no estaleiro, aquela sobre a qual meditava havia muito tempo, de que me oeupara com mais gosto, na gual desejaria traba thar durante toda a vida e que deveria, segundo acreditava, selar mini repuia- edo, eran minhas Instituigdes Poliicas. Havia ireze ou ealorze anos que conce- bera a primeira id€ia, quando, estanda em Veneza, encontrara ocasiao ide observar os defeitos desse governo tao louvade. Depais disso, muito se amplia- ram minkas vistas pelo estudo hisiorico da moral.” Essas palavras, com que Rousseau registra suas cogitacdes no periodo promissoriamente calmo da Ermé- tage", confirmam e esclarecem o designio gue 0 animaria « publicar, em momen 10. e condigses bem estudadas, o Conirato Social, Nao se julgue, contudo, que a redacdo final do livre on sequer a drdstica redueade do primitive plano das Instiwuigaes Politicay foram, também elas, fruto de una decisio inspirada tdo-s6 pelas eireunstancias momentaneas. Pelo coniré rio, @ obra amadureceu tentamente. Ne ano de 1743, ent Veneza, germina a pri metra semente. E aparentemente abandonada nos anos seguintes, mas impoe se compreender que a concepedo politica de Roussean dependia, para estriiturar se completamente, das progressos que fizesse no “estudo histérico de moral" Acre. dita Vaughan que. pela altura de 1780 51, houve uma primeira redacdo do plano, enquanto Halbwachs no ousa inferir @ mesmo sendo para o ano de 1753. O certo & que, nesta tiltima data, circula o Wixcurso sobre a Desigualdade, denun ciando um grande progresso e mesmo uma reelaboraedo das idéias anteriormente expostas no Discurso sobre as Cignelas ¢ ay Artes, Emirevé se em muitas passa ens @ afirma:se na tiltima parte wn esboco dos principais problemas do Con- trato Social. A Dedicatiria, de £754, prope claramente as teses centrais do fietu ro tratado, Mais tarde, 0 artigo sobre Keonomix Politica levanta, pela primeira vez, a teoria da “vontade gerat”, pedra de-chave de todo @ Contrato, enquanto d célebre carta a Voltaire, de 18 de agosto de 1766, ficaria reservada a tarefa de rasgar perspectivas bésicas acerca da eclacdo entre a let e a liberdade. Antes, porém, Rousseau ja teria chegado av primeiro raseunho de Cont 10 Social, a tao comentado Manuscrito de Genera No séeulo passado, foi identificado, na Biblioweca de Genebra, um manus- ero que continha uma verséo do Contrato Social acompanhada de alguns feax mentos da Eeonomia Politica. Quem primviro noticiou sua existéncta fot 0 Pro: Jessor Ritter, da universidade genebrina, em 1882. Km 1887, Alexeiff reprodus iu 0 em apéndice de uma obra de dois volumes, editada em Moscou, com o titulo Estudos sobre Jean-Jacques Rousseau. Essa ediedo. contudo, ndo poderia tornar mais canhecido no Ocidenie europeu a Manuscrito de Genebra, sobre oO qual Bertrand escrev'ia wn artigo, em 1891, que consegiu suscitar maior inceresse. Cinco anos depois, aparecia em Paris a cldssica edicdo do Comtrato Social de Edmond Dreyfus-Brisac, gue recothera, repusera ¢ comentara a forma definitive do texto rowsseauniano, confrontands 0 eam as versdes primitivas aurégrafas de Genebra ¢ Neuchdtet. Entdo, pode-so estabelecer una série de elementas esclare- cedores. EM primeiro lugar, que-o Mawuscrito de Genebra nde é um rascunho do Conteato, mas uma verdadeira versio passada a limpo ¢ cuidadosamente emon Confissies, IX.0N. We 1G. MY INTRODUCAO 5 dada, que. pais, representa o pensamento politico dé Rousseau em determinada altura de sua vida, Pode ser anterior ¢ Economia Politica ¢ parece comecada em 1751, mas quase certamente se completou quanda da viagem a Genebra em 1754. @ texto, iat como foi descoberto, mostra-se fragmentario, 36. ateancando mais ou menos a metade da versao definitiva do Contrato, porém essa meuilagdo parece provir de acidente posterior, havenda indicios de que Rausseaw o redigiu infeiramente. Tal como haje @ conkecemos, compreende uma versdo que alcanga os dois primeiros livros do Contrato, mais o capitulo f do tivro HI. Houve, con iudo, algunas modifieardes: 0 capinuio inieial do Manuserito cedeu lugar é introducéo do livro I que, na versao definiviva, define 0 ubjeto da obra: o segun do capitulo, bastanie extenso ¢ versundo a Sociedade Geral do Género Humano. foi suprimido; 0 tereeiro capitulo do Manuscrito descobrou sé nos eapriulos I, VI, VIE, VIN ¢ IX do livro 1 do Contrato Social. enquanto os capttulos Il, HI. 1V, 2 correspondem wo quinto capitulo do Manuscrito. Tudes esses ponios tive ram o condao de desencadear uma onda de estudos eruditos ¢ discussoes entre especialistas que, intensificando se por ocasido do segundo centendrio de nasei mento de Jean-Facques (1912), cobriu os vinle primeiras unos deste século, inte ressando homens da altura de um Beawlavon, de um Espinas, de um Faguet. Desse movimento, resultou @ publicagdo, em Canibridge (1915) e Manchester (1917), dos Escritos Politicos ¢ do Contrato Social na edigdo de C.£. Vaughan, que é considerada definitiva e hoje 86 pode ser comparada com as edigées de Dreyfus-Brisue, Beaulavon ¢ a maisrecente, de Halbwachs, De tat sorte, estabeleceu-se que, vartantes é parte, o Contrato Social ja conhecia wma primeira ¢ bem completa redagdo pelas atturas de 1760. Ora, 0 proprio Rousseau nos diz que, em 1759, tumow uma séria resoluedo: "Tinha ainda duas obras no estaleiro. A primeira ¢ram minkas Instituigdes Politicas. Exam inet o estado desse livra ¢ conclut que extgia ainda muitos anos de trabalho |...| resalvi dela tirar 0 que pudesse destacar, depois de queimar todo 0 resto, e, desenvolvendo zelosamenre esse trabalho sem interromper odo Emilio, dei, em menos de dois anos, aiiltima demao no Contrato Social”*. Eis 0 que leva Vaug han a crer que, pronta « versdo quase definitive do Manuscrito de Genebra, uma ampla revisdo, compreendendo supressdo e desdabramento de capttulos, resultouw no texto enviado, em 1761, a0 preio. Essa imerpretagao esta, atiés, em perfeita coeréncta com 0 que dizem a Advenéncia inicial e 0 siltimo capitde do texto Jina. Como se ve, nasceu o Contrato de wna longa ¢ amadurecida meditagao, conlinuada praticamente durante toda a vide intelectual de seu autor. Mesmo a redugdo do plano inicial ndo the alterou substanciatmente a feigdo, nem the muti fou @ desenvolvimento, pois, quanto saibamos, as Instituigoes, além de uma pri- meira parte acerca da natureza ¢ fancionamento do poder politico encarado do ponto de vista interno, ou seja, das retagaes entre Estado & cideddo, deveria ter umia segunda parte destinada ao exeme do poder em suas relagses exteriores, isto 6, das relagoes entre Estados. Ora, a matéria que se preservou no Conirato é a essencial e fundamental, cuja cormpreenséo ndo depende, efetivamente, do aban- donado complemenio. Justifica-se, pois, que o atormentado Rousseau, no momento em que se sentia tocada pela admira¢do dos comempordneos v também Confissies, X(N. de LGM) 6 INTRODUCGAG quando cedia & esperanca dé retirar-se para uma existéncia quase isolada, resig nasse 0 grande projeto de outrora, sobreredo se assim conseguia preservar & imediatamente ornar conhecida aqueia sua obra que considerava capital. No conjunio da produgdo de Rousseau, 0 Contrato ndo se destaca sé por merecer a preferéncia sentimental do proprio autor. Jd em sua forma revela se 0 intuito de constituir um caso singular, pois nessa produedo feita de romances Jilosdficos, cartas polémicas e discursos acusat6rios, todos vazados numa lingua gem candente, impiedosa e por vezes até aspera, surge como um verdadeira trata- do redigido nui estilo que é “'sébrio, amargo e forte" como. queria Jaurés, 6 sempre aspira a objetividade técnica, em que pesem os percalcos passionais ofe- recidos pelo temperamento apaixcnade do autor. Mais ainda, nada tem de obra de cireunsténcia, como sucede com a maioria dos textos rousseaunianos, (ea dendo a desenvolver-se, gracas & longa ¢ profunda meditacan, num plana de ver dadeira universalidade. Nela, Beaulavon encontrou “a expressdo amadurecida, sistemdtica e definitive do pensamenio de Rousseau”. 2. Fontes ¢ influéncias Valham as anteriores indicagées sabre v lento ¢ longo processe de elabora- edo do Contrato Social para detxar claro que muito dificilmente se poderd tracar um satisfatério quadro das suas fontes inspiradoras. Jd se tem sublinhade come, en! determinados autores. vai Rousseau cother subsidios diretos para a composi edo de seu texto © como, quase sempre, € cle o primeire a clié-los, Tal ¢ caso, por exemplo, do Marqués d‘Argenson (registrado como ‘'m. d'A "numa nota do capt. tulo VHT do livra IV, porém idennificado depois, pelo proprio Rousseau, na carta a Usteri de 15 de julho de 1763), por via de suas Consideragées sobre 0 Governo Antigo ¢ Presente da Franga. Ou ainda, e em muito mais ampla margem, 0 caso de Maquiavel, de cujas obras todas, porém em especial do Discurso sobre a Pri meira Década de Tito Livio, Rousseau se valet com liberalidade. Ou, afinal, 0 caso de Sigonius, de cuja Legibus Romanis teré saido, diretamente, quanto o Contrato dis do sistema politico de Roma nas notas do livro HI ¢ nos sete capétu- Jos iniciais do iiltime livro, Basta, porém, a confronto da contribuicdo devida a Maguiavel com o que foi tomado 2 Sigonius, para tornar patente a precariedade de tal arrolamento de fontes, porquanto, se Sigonius at figura um tipico fornece dor de referencias, Maquiavel. também desempenhando tal fungéo, influi decisi vamente na formagdo de determinados canceitos rousseaunianos. No préprio Contrato hd declaragdes reveladeras dessa influéncta singular. Néo se pode, realmente, redezir as fontes de uma grande obra @ lista de autores ¢ livros em que se cotheram, com ou sem eitagdo explicita, elementos tb picos. Nao obstante, se quisermos estabelecer um rol das principais fontes do Contrato, daqueles autores em que Rousseau foi buscar estimulo doutrindrio para o desenvolvimenio de seu prdprio sistema, correremos © oposto riseo de estender-nos sem limite certo, Obra fartamente amadurecida, pacienlemenie rovisia ¢ retomada por mais de uma vez, livro destinado a representar a suma de toda uma vide intelectual ¢ 0 coroamento de uma obra variada ¢ complexa, 0 Contrato Social é praricamente, © intetro pensamento de Rousseau e, pois, lerd encontrado fontes em quanto conseguin, a qualquer momento interessar seu INTRODUCAQ, 7 aitior, a comecar, sem dhivida, pelos Evangelhos propiciados, logo a inféneia, pelo protestantismo de Genebra. Nessas condigdes, excelente parece @ caminko tomado recentemente por Derathé*, aliés sequindo o exemplo de Halbwachs. Mais do que a investigagdo restrita ou lata das fontes, no sentido comum do termo, valerd investigarmos quais foram as leituras politicas dz Rousseau. E, segundo aquele autor, devemos referir dots grupos distintos de tratadistas que Jean-Jacques estudou mats detida € proveitosamente, como se pode supor por citagdes explicitas ou por inferéncias bem fundadas. Em primeiro lugar, temos os jurisconsultos. Grotius ¢ Pufendorf represen- tavam o methor da cultura juridica do tempo e a eles atirau-se Rousseau para adquirir conhecimentas sem ox quais nao chegaria a dominar os problemas do Estado, porém soube coloear 0 espirito critieo acima da humildade de estudioso. Assim, em Grotius repele método ¢ doutrina e, se Pufendorf fornece-the preciosas informacdes, nem por isso concorda com seus principias e suas conclusdes. Quanto a Burlamaqui, discipulo daqueles dots grandes mestres da escola do Direito Natural ¢ no gual muito tempo se desejou eneontrar a principal fonte de Rousseau, hoje jé foi reduzido as suas verdadeiras proporgdes: tradutor ¢ conti muador quase servil dos grandes juristas, nele pouco de nove se encontraria e, pals, certa abundéncia de referéncias a seus trabalhos mos textos rousseaurtianos dever-send, muito provavelmente, a fixagdo psicoldgica que fatalmente causavam em Jean-Jacques os trabalhos, nem por isso admirados, de um genebrino & mem bro do Conselho,., Cabe, afinal, assinalar 0 nome de Johannes Althusius, 0 autor da importante Politica Methodice Digesta (1603), que tanto tempo perma- neceu ignorada pelos historiador:s das idéias politicas. Oto von Gierke, que recuperou sua memoria e sua dourrina, foi o primeiro a suspeitar de uma influéneia direta em Rousseau. Vaughan reforcou a indicagao citando uma pas- sagem das Cartas da Montanha em que hd referéncia expressa a Althusius, autor enido praticamente desconhecido. Uma frase do Contrato — “Tem muita razdo aqueles que pretendem néo ser um coniralo, em absolulo, 0 alo pelo qual um Povo se submete a chefes. (1. 1H, c. 1) — parece tomada diretamente a A lthusins ¢, se assim for, Rousseau teré tide a felicidade de encontrar, entre os velhos trata distas, ao menos um, disposto, como ele, a negar os pretensos direilos superiores dos reis Compée-se, 0 segundo grupo, de escritores politicos. Aqut, muito embora a amplitude das leituray de Rousseau xeja hem maior, podemos ficar-nos em trés nomes: Hobbes, Momesquiew ¢ Locke. A forga desses ros pensadores fez-se sen- tir, de forma decisiva, nas preacupacées de quem estava destinado a colocar sé no mesmo nivel. Em cada um deles, Rousseau distinguiu a verdade fundamental das fraquezas acessérias e, tomando-thes 0 que era essenciat, soube criticd-los pelas fragitidades de método e doutrina que ndo poderia acvitar, para afinal, gra gas a esses pontos de apoio, positivos e negativos, tentar sua propria construgao sistemdtica, Em Hobbes, sentiu a necessidade de conceber-se camo absoluo o poder do Estado, mas repelit, corr veeméncia quase brutal, 0 sacrificio da liber- dade do homem. Em Locke, contrariamente, aproveitou muito das formutacoes * Robert Deratin LGM.) jean Focques Rousseau et la Science Politique de som Temps, Paris, 1980, (N, de 8 INTRODUCAO destinadas a preservar « pessoa livre, mas soube ver 0 defetio, em contrapartida, desse individuaiismo que Prejudicava a exata definigdo da realidade estaial. Em Montesquieu, que foi dos 1res 0 mais admirado, lastimou que tanta capacidade de andlise e tanto poder de séntese se bastassem com a verificacao de como os povos de fato se governavam, sem importar-se com saber se esses governos eram ou néo leaitimos. Assim, algou-se & condicao de pensador capacitado a formular um esquema em que, interligando-se substancial e vitalmente a liberdade e a lei, acahasse por definir se a legitimidede do poder politico. Como expe » Conteato Social. 3. Resenha analitica Dividindo 0 Contrato Social em quatro livros, Rousseau reservou 0 pri meiro deles para atacar, deforma direta e sem dispensdveis consideracdes preli minares, 0 problema que sempre o preacupou e que é.o de positivar qual o | funda- mento legitimo da sociedade pottiica. O segundo livro, prosseguindo nas cogitacdes decorrentes dessa indagaedo bésica, cuidard de diseutir as condicdes © 05 limites em que opera 0 poder soberano. Dai passamas as consideracdes sobre @ forma ¢ 0 funcionamenta do aparato governamental, que exigiram o ter- ceiro ¢ 0 mais longo dos quatro lvros, enquanto ao titime fiearia reservadte, afora ¢ capitulo inictal onde se compendia conetusivamente a exposigdo anterior, uma série de estudos sobre os sufrégios, as assembléias ¢ certas drgdes ¢ funcdes governamentais complementares, que nGo apresentant a mesma unidade sistema. tica das trés primeiras partes da Contrato. LIVROF Depois de breve adverténeia, na qual se abandona definitivamente 0 plaio das Instituigdes Polfticas, abre-se @ primeiro livro com uma introducdo, onde ainda ressoam algumes notas do estilo aratério e do pensamento apaixanado do fovem Rousseau, Al sedis que o trarado se destina a “indagar se pode existir, na ordem civil, alguma regra de administrapao legitina & segura, tomando os ho- mens como sdo ¢ as leis como podem ser”, porén o leitor precisa evitar as mui fas armadithas interpretativas que se encontram por sob expresses coma “regras de administrasao", “homens coma sav" ¢ “lels como podem ser”. Nao teremos um exame empirico ¢ realisia da situacdo politica dos varios poves, nem um compéndio de pritica governamental. O verdadeiro objeto da investigacao reve la-se na frase inicial do Capito f; "O homem nasce livre, e por toda a parte encontra se a ferros”. Em outras palavras, Rowsseaw anota 0 contrasie entre a condigdo natural do homem, que é « de uma total irrestriga de seus impulsos, ¢ @ sua condi¢éo social que comumente the abafa a liberdade, Impoe-se, Portanto, investigar se a passagem da liberdede natural para o condicianamento social & necesséria. ou seja, se correspond a ui imperative de sobrevivencia e, se tat for 0 ease, em que condigdes a iransformacdo pade operar-se legitimamente. isto é, atendendo plenamente a seu objetivo ¢ sé a ele. Natureza ¢ convencda constituem, pois, 0s grandes temas da Livro 1, no qual se demonstraré nao ser natural qualquer desigualdade entre os homens, INTRODUCAO 9 como supuseram os que, erroneamente, para explicar ou justificar 0 poder de al- guns sobre todos, recorreram ao exemplo da auloridade paterna na sociedade doméstica, que, contudo, 86 uma ecnvenedo mantém coesa depois de crescidos as fithos, ou enido wo simile do pastor e do rebanho, ou, ainda, @ afirmagao aris totélica de nascerem alguns homens para serem livres e outros para serem escra vos, o que é “tomar o cfeito peta causa”. A discussdo, iniciada no Capitulo Ul, continua no Capitulo III, onde se demonstra que um pretense “direito do mais forte” nao pode oferccer base & ordem social, pois naw se consideraré como um direito a justo trlulo, esse que desazarece quando cessa a forca, néo passando pois do reflexo de uma situacdo de Jaro sem qualquer validade ética ow juridica. "4 forca néo faz 0 direita”’ e, consegieniemente, “$6 se & obrigady a obedecer aos paderes legitimos." Se 0 Capitulo IV volta a cuidar da escraviddo, anterior mente discutida, agora a faz do ponio de vista do direito das genres ¢ para afran- tal refutagao de Grotius, pois a guerra, se chega a gerar direitos, sd 08 gera para as relacées entre Estados, enquanto, no tocante aos individuos, dela sb resielsarn situagces de fato. De forma alguma se conccherd que um povo se aliena awn rei. numa estranha canvencdo, que em tudo aproveilasse a uma sé das partes; x6 isso (jécaracterizaria sua ilegitimidade. Impoe-se, portanio, “remontar a uma convengde anterior”, ao fato de mart darem uns ¢ obedecerem outros, como nos anuneia o titulo do Capitulo V. Ainda quando verdadeiras, todas as explicagdes ¢ fustificages anteriores ado hastariam para gerar um direito. Mesmo, pois, se dispostos a aceitar. como quer Grotius, que ‘um pavo pode dar-se a um ret”, deveriamos, ances de examinar esse ato de insélita alienacdo, conhecer aquele outro © anterior “ato pelo qual um pow. 6 povo", isco &, a conven¢ao de que se origina, nde o poder, mas a sociedade. Eo pacto social, sal como no Capitulo VI se descreve, Os homens, impossibititados de subsistirem por seus proprios meios 10 estado de natureza, is1o é, como sin ples individuos, enire si contratam uma transformacdo na maneira de viver, wrin do-se numa “forma de associagao que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a@ forca comum, e peta qual cada um, wnindo-se a todos, 86 obedece contudo a si mesma, permanecenda assim tdo livre quanto antes”. Eis como tudo se origina de uma convenedo e, por seu intermédio, dando- se cada um, total € igualmente, a todos, preserva-se a sua igualdade e a sua liber dade, sendo que esta ultima apenas se wansforma, porquanta, em lugar da liber- dade natural irrestrita, instala-se agora uma likerdadé convencianal, uma existéncia livre porém socializada, Tal o sentido explicito do texto em que se descreve o contrat social. Se, contuda, o colocarmos em catejo cam o8 anteriores escritos de Rousseau, alean caremos também sua significacdo em profundidade, porquanto nele se estabelece que, no homem, a parte animal. substrata fisiopsicolégico de instintos e input. 808, se mastra incapaz dé resistir as necessidades geradas pelos conialos com os semethantes. S60 ser social, ou melhor, a parte socializdvel do ser hiumano pode ré atender a ais solicitacées. & condicdo de realizar-se plenamente, porém essa passagem ndo sv deve fazer, para ser legitima, em nome de “fundamentos natu rais” (desigualdade dos homens, diveito da forca, eseraviddo, autoridade paterna ¢ outros argumentos que ja se discietiam no segundo Discurso ¢ na Eeonomis Politica). sendo em funcdo de sew objetivo realmente natural: a preservacao do homem pelo grupo. Por isso, constilui efeito principal do contrato social o maseé mento de uma nova entidade, dé “wm corpo moral e coletive”, com “sua unidade, sew eu comum, sua vida ¢ sua vontade". que no é 0 simples agregado de homens, mas a ‘pdlis", a “repiblica”. ou, como prefere Rousseau, 0 “‘corpo politic”. Como um todo orgénieo, chamase “Estado”, quando passivo; “sobe- rano”, quando ativo, e “poténcia" ro irato com seus iguais. Quanto aos homens, constituiram um “povo”, sendo “cidaddos” ou “siditos” conforme os conside- remos ativa ou passivamente. “Do Soberano”, ow seja, dos homens considerados coletivemente e depois de legitimamente investidos no poder que thes conferiu o pacto, cuida 0 Capitulo VII, que analisara as relagdes entre ¢ corpo politico ativo e seus proprios compo- nentes, formulando a mais transcendente questéo do Contrato Social: a vontade geral. lmporta suber, desde logo, onde auscultd-la e estabelecer que nos préprias homens é que ela se revela, nao peio que de geral haja en suas vontades particu fares, mas pelo que de comum as iorna interligadas. Por isso mesmo, a vontade Seral ¢ sempre certa ¢, ndo podendy errar, jamais atentard contra a liberdade de quatquer dos membros do corpo social. O Capitulo VILE, estudando a “Estado civil”, num batanco entre 0 que perde ¢ 0 que ganha o homem pelo contrato, fraga 0 contraste entre, de ur ludo, o direito ilimitado a tomar para si tudo que suas forgas permitirem e, de outro..a tiberdade civil v a propriedade de tude que possui legitimamente, enquanto o Capitulo IX examina as relaces entre a propriedade privada e o poder do soberano, LIVRO IT Havendo 0 primeiro livro passado em exame todas as quest6es fundamen- tais da vida politica, no segundo se encontraré um estudo mais pormenorizado da estrutura e comportamento da soberania, com 0 que se prepara a definicdo da lei, para depois formuléé-ta, Caracteriza-se a soberania por ser inaliendvel (Capitulo I) pois, sendo vontade geral, é-the impossivel alienar-se, dado que 0 poder se transmite, porém nao a vontade — ¢, também, indivisivel (Capitulo 1) — pPorquanto, afastando-se de seus predecessores, notadamente de Montesquieu, Rousseau demonstra que my hd divisdo de poderes no Estado, no¢do erronea que resulta de confundir-se © que sao verdadeiras “emanagoes" da forga de mando do corpo politico, com Pretensas “parles” constitutivas da Estado. Consegiientemente, um 56 dos cha- mados paderes realmente dispoc da forga soberana — 0 legislative. Antes, orém, de cuidar da legislagao, tiniea manifestacdo completa ¢ direta da vontade geral, 0 Contrato Social ainda se deterd no exame das limitagdes que pode comhecer, em si mesma, essa vontade geral. Pode ela sofrer uma deterloragdo — limite vivencial, poder-se-ia dizer — no contato com os interesses privadas, cuja plor manifestacdo se encontra na formagao de grupos e partidos politicos, como se estabeleee no Capitulo IM, onde porém se firma que, salvo em tal caso de deperecimento & perversdy, a vontade geral nunea erra. No capitulo seguinte, apontam-se os tinicos limites reais e, por assim dizer, sadios do poder soberano: sdo os limites das convencdes gerals, 0 que vale dizer que cada homem sera livre no que escapar a elas, pois nem. tudo, efetivamente, constitui objeto do interesse geral. Afinal, o Capitulo V aborda c inquietante questdo de saber-se se deve o Es- dado deter-se em face da vida dos siditos ¢ Rousseau haveré de concluir que, se INTRODUCAO i o Estado precisar das vidas dos siditos, a elas tem direito, porém, malgrado um contide protesta sentimental, apressa-se a distinguir tal situacdo, configurada pelas exigéncias da guerra, da pena de morte que se aplica aos criminosos, por quanto estes, pelo seu crime, ja se coloearam a margem do paeto social, “Da Lei"é 0 tuto do Capltuty VI, que comeca, aliés, por uma clara propo- si¢do do problema: se “pelo pacto soeial demos existéneia e vida ao corpo politi co, resia atribuir the, pela legislacie, movimento e vontade". De fata, & descricdo genética, que nos dew uma visdo segura, porém apenas estatica, anatdmica, do organisma politico, impde-se acrescentar o exame de sua fisiologia, de seu comportamento ativo. F 0 Estado vive e age pela lei. Nao nos percamos, a tal propdsito, em idéias metafisicas que, apelando para a lei da natureza ou afirmando que toda a justica vem de Deus ou ainda que hd uma justica universal emanando da razdo, ndo chegam a definir, na esséncia, 0 que é atei do Estado. Ora, impée-se saber, exatamente, a relarao que resulta do disposto pela vontade geral “quando todo o povo estalui algo para tado 0 pova”” pois, sendo a matéria de deliberagao “geral como @ vontade que a estatui”, af teremas 0 que se pode ¢ se deve chamar de lei. Em ottras palavras, a lei, que pot isso mesmo jamais pode discriminar ou particularizar, 6 a expresso das condi- Ges da assoviagao civil, tais como as estabelece & mesmo povo a quem vird a obrigar. Con. sequentemente, se chamarmos de repiblica a todos os Estados regi das por leis, sé 08 governos republicanos, sem embargo da forma particular de sua administracéo, serdo legitimos. A nogao de lei, que completa ¢ amplia as nogses fundamentais do Livro I, exige, contudo, uma nova cogitaréy basica, pois faz-se necessério super, para 0 primeiro ¢ imprescindivel esiabelecimento legal, uma “inteligéncia superior” que se interessasse pelos interesses dos homens, sem ter ela propria nenhum interesse. “Do Legistador” rata o Capitulo 11, que muitos comentarios tem suscitado pelo faio de, nele, Rousseau abandonar decidida e declaradamente qualquer rigor analitico ¢ racional para, depois de afirmar que "seriam precisos deuses para ar leis aos homens", supar que sé serd verdadeiro legistador aquele que, “homem extraordindrio no Estado”, ndo obstante permanece pratieamente fora do Estado, sem poderes & sem autoridade. F admite até que em estdgios socials rudimentares recorra a apelos as divindades, para ser melhor compreendido e aceita pelos ho, mens que nelas creiam. Como se vé, ndo basta o pacto constitutive do corpo politico, pois quase tdo substancia! quanto ele é 0 estahelecimenio das conven g6es gerais que sé um tegistador pode realizar devidamente. Suposto tal elemento, os capitulos VII, IX e X, sob o titulo gerat “Do Povo", passam em exame as condic6es de adequacdo dos sistemas de legislagdo a-cada pove, considerado segundo sua propria constituicéo, as condigoes natu rais de sua vida e cada momento particular de sua historia, O Contrato Social comega a tanger 0 campo dos problemas, s¢ nado concretas, ao menos préticas, ou ainda melhor: técnicos, da orgenizagae estatal. Essas consideragdes se con clue no Capitulo XI, onde aandlise dos “diversas sistemas de legislacdo” se re: sume & fixacdo de “dois objetos principais: a liberdade e a igualdade, sempre os mesmos, enquanio variam os recursos especificos empenhudos em sua preserva: ¢ao conforme as especificas condicoes de cada caso concretion". Q Capitula XII estabelece uma divisdo das leis que distingue as politicas das civis e das crimi- nais. porém nao se encerra sem apaixonada referencia — ent que repercutem as concepgaes sobre o legistador — a uma quarta espécie de lei, “a mais importante de todas, que nio se grava ito mérmore, nem no branze, mas nos coracaes dos cidaddos". Como dessas leis imateriais decorre a “verdadeira constituigde do Estado", pademos conchir que, no momento em que se vé levado a examinar problemas mais téenicos, Rousseau julga necessario reafirmar a importancia capital do conteido ético da vide politica. LIVROMT Contrastando com a apaixonada reivindicagdo éliea que ecabamos de sumariar, este livro, além de sero mais longo de todo @ Contrato Social, é tam- bém o de maiores ambigées de exatiddo sistemdtica. Dedicade inteiramente ao estudo do gaverio, propae-se a desenvolver as principais idéias a eusta de similes matemilicas, 0 que, longe de traxsmitir & politica 0 rigor dos mimeros, torna bastante nebulosay certas passayens ¢ comuniea ao conjunto wna impressao aleo desapontadora. Parece necessario, neste passo, ir buscar o pensamento de Rous- seau para além das pretonsas equacdes de que se sentia tde ureulhoso. Dedicado ao estude do governo, abre-se o tivro com dois capitulos em que ae examina a questéo em termos gerais a fim de estabelecer unt eritério para a avaliacdo das varias formas de organizagao governamental. Como ndo passa de simples corpo intermédio, posto entre vo soberano e os siditos, 0 governo apre senta-se principalmente como um problema de equilibrio, pois, se jamais deve colacar-se abaixo das forcas particutares, também nao deve tomar para si aforca do Estado. Firmada tal distineao entre 0 poder executive, mera "“¢manacaa”, ¢ a completa reatidade estatal — disingdo que jad av tempo de Rousseau, como ainda hoje, acusa os maiores abusos politicos —, torna-se impossivel dizor que, em si mesma, € melhor tal ou qual das formas de governo, expostas e jielgadas do Capitulo 1H! ao Capitulo VI, Bemocracia, aristoeracia & monarquia, todas tém suas vantagens peculiares para cerios casos especificos, como tem qualquer delas, em outros casos, defeitos caracteristicos. Cada uma — salvo, tatvez, a democtacia absoluta, que é praticamente irrealizavel — deverd, portanto, ser avaliada segundo as condi¢des do povo que as adoia (capttulos VII @ XD, ¢ se o Contrato Social parece fixar-se preferencialmente no indice oferecido pela populagdo, desde logo reconhecamos que ndo se reduz ao simples censo numé rieo dos habitantes, pois visa av exame de toda o complexo das relagées demo-econdmicas, Uma ves estabelecida a conexdée necessdria da composicdo e atividade do powe coi a forma de governo, impde-se compreender gue mau se irata de wn nexo relacional estdvel e definitivo, pots hi uma natural sendéncla dos governos @ degenereseéneia (capitulos X a XV). Sempre tenta o governo tomar o lugar ea Jorga do soberano. Dai, as duas formas de dectinio: a contracdo do governo, tuma congestao do poder que 0 torna, por assim dizer, esclerotico, ¢ a dissolu ¢do do Estado, num depauperamenio que se diria anemizante do organismo pol ssas moléstias, a rigor, sdo incurdveis, porém un palialivo, bastante satis fatério para retardar-thes os efeiws, pode ser encontrado na interrupeéo do- exerei¢io do poder governamental pelas assembléias periddicas, que fransfun- dirdo a forca pura e auténtica da vontade geral no eorpo debilitado, Por isso INTRODUCAO, 13 mesmo, néo se admitem assembléias compostas de representantes, ista & 0 simu- lacra da depuiacéo do poder do povo, pois, como sabemos, as vontades e, consegientemente, a vontade geralndo se transmitem. Destinam-se os irés capttulos finais do Livro Il a cuidar da instituigdo do governo que, coerentemente com a que ja sabemos desde ¢ primeiro livro, jamais configura um contrato nem poderia abrigar ao saberana que, por sua prépria natureza, nda conhece superiores ¢ néo reconkece interesses particulares, Tal afirmagao, a esta altura do livre, provoca, contudo, uma séria dificuldade siste métiea, pois obriga a distinguir a lei. que adota a forma de governo, do ato de escolha do chefe, 0 que 36 se resolve supondo, num recurso teorético, a assem biéia em dupla funcao. E, novamente, so as assembléias periddicas podem consti- Juir remédio contra as usurpagses. LIVROIV Iniciando-se 0 tiltimo Livro com um capitulo sob 0 titulo “De coma a Vonta de Geral & indestrutivel”, impoe-sc esclarecer que ado nos defrantames aqui com uma tardia seqdéncia da primeira porcdo do segundo fivro, onde se tratou dos atributos essenciais da soberania, mas apenas eom uma conelusao do que se tra fou no Livro IIT sobre as relagdes entre 0 governo ¢ 0 soberano. E curiasa a loca lizagao desse trecho conclusive no quarto livra, sobretudo se tivermos em vista que nos demais capitulos, enire os quais ndo se reconhece a mesma unidade siste Mmidtica ¢ a mesma eoeréneia expositiva até agora constantes, surge ume série de ponderacoes sobre certos problemas de minicia, certas implicagoes conerelas do Juneionamento da maquina potitiea que, fartamente entremeadas de referencias tomadas @ histéria romana por intermédio de Sigontus, instigam a suspetta de iratar-se de um aproveitamenta fragmentario de porgdes das Instituigoes que a Rousseau custava abandonar. Assim vemos sucessivamente abordados os problernas do sufragio (Capitulo MU) das cleigGes (Capitulo M1), onde ainda ressoam consideragaes sobre a lege tima expressdo da vontade geral, para logo toparmos com uma verdadeira mono grafia sobre 05 comicios romanos (Capitulo IV), que se retaciona com v assunte, mas dispensava tratamento exaustivo. O “tribunato”, palavra que Rousseau emprega com significagéo muito especial, ¢ a ditadura (capttulos V e VE), ou seja, 05 remédios excepcionais a que se pode recorrer quando o Estado, ameacado em sua integridade, chega ds bordas da crise, também se ligam ao exemplo de Roma, porém nele ndo encontram mais do que inspiragdo para uma inédita figura de ditador-repiiblico jamais vista na pritica ¢ que parece significar o temor de ver se irremissivelmenie perdida a esséncta do ence politico. E, como sempre que euida do Estado em perigo, néo pode Rousseau esquecer-se de seu conteido ético, pelo que normaimente se passa, no Capitulo VI, @ questdo da censura que corres- ponde, para a opiniao piblica, an quo, para a vontade geral, é a lel. Nao se bus que ui, contudo, @ raiz da exposig#o sobre a religido civil que surge no capétulo seguinte, fruto de diversa inspiracdo ¢ de circunstanciay distintas das responsé- veis pelo mais que se encontra nese livre. Embora nde constitua, propriamente, um corpo estranho ao conjunto do Contrato Social, esse capitulo sempre exigira estado ¢ comentario a parte, Afinal, o derradeiro capitulo néo passa de brevis- 14 INTRODUCAQ Sima concluséo em que, d guisa de escusa, Rousseau enumera o que ndo pdde expor, isto &. 0 que constituiria 0 plano completo das Instituigdes Politicas. 4. Observacées sobre 0 texto Na revisdo desta edic@o do Contrato Social. urilizamo-nos, para confronio, da edicdo classica de Vaughan’. por ela gjustando as eveniuais variantes, inclusive #0 que respetta d pontuacdo e¢ oriografia quando possuiam significado para a sransposicao em portugués, como, por exemplo, o emprego intencional da maiits- cula ou mimiscula inicial no vocdbulo lei, Ndo ignoramos as contribuicdes valio- Sas trazidas, posteriormente, por Maurice Halbwachs, porém, nao chegando algumas @ modificar substancialmente 0 sentido do texto de Rousseau ¢ sendo numerosas aguetas que tendem a reposicao de maitisculas ¢ outras peculiari dades ortograficas d maneira do século XVII segundo a edicdo original, pareceu mais seguro ater-nos a versdo de Manchester. considerada exemplar, inclusive Pelas espeeialistas franceses, como Robert Derathé, Bertrand De Jouvenel e Pier- re Burgelin, para citar os que assinam trabalhos mais recentes, De outra parte, a tradugdo, que procurou manter-se 0 mais proximo posstvel do original, embora com algum sacrificio estilistico, foi respeitada nesse intuito, Particularmente conforme a intengdo de rigor sistemidtieo ¢ exatiddo expressiva que, embora nem sempre plenamente alcancada, constiluiu a constante preocu- pagdo de Sean Jaeques Rousseau ao redigir 0 Contrato Social. <, 2ean-dacques Reusscau; Du Conirar Social ou Principes du Droit Pottigue, edited by C. E. Vaughan, Manchester, 1947, (N.de LG. ML) DO CONTRATO SOCIAL’ OU PRINCIPIOS DO DIREITO POLITICO Dicamus eves Koéderis wequas Ving. Eneida, lib, tib, Xtw. A212 Na edigao Dreyfus-Brisac. famosa por sera primeira n tentar a repasigio do texto segundo as fomtes originais, figura um fac-simile da primeira falha do Manuseritn de Genebra, primitive ws bogo do Cunerale Secial, Af se encomram ax muita variantes por que passou o titule da obra, Primcieo, foi mesmo “De Coniralo Social”. Depois, provavelmente para fugir a sabor indivi dualista dessa expressao. foi ela riseada ¢ vubstituida por “Da Sociedade Civil". A seguir. cons ciente da originalidade de sua interpeetagio do esquema cnmtratual, Rousseau retorma o primeiro titulo. Quanto ao subtitulo, encontramos sucessivamente "Ensaio sobre a Constituigao do Esta do". “Ensain sobre x Formagao do Corpo Politico”. "Ensaio sabre a Formagao du Estado’ ¢ “Ensaio sobre « Ferma da Repablica™, “Prneipios do Direity Politico” € novidade que s6 surge fa versio definitiva do Clmiraia. (N. de L.G. Mi.) A ciltigia em epigeslé ¢ tomada com grande largueza interpretativa, pois o texto latino alude expressamente igualdade de leis para ox membros de uma alianga entre povos ou nagdes. enquanto © objeto do livro que agora se inicia & a igualdade dos homens unio’ em um corpo politico peto pacto social, (N.de L. G.M.) ADVERTENCIA Este pequeno trarado fot exiratdy duma obra mais extensa®, outrora ini- ciada sem que houvesse consulrads minhas foreas v de hé muito abandonada. Dos varios Irechos que se podiam tomar ao que estava fetto, este & @ mats consi deravel ¢ pareceu-me o menos indigno de ser oferecidd ao piiblico. O resto ndo mais existe, Alusio as instinioies Politicus, cujo destino aqui se seta. Seriam fragnser los da “obret mais extensa @ mamuygrito de Ni \itel, wobre C Estad cle Guerra, suatros textos menores que Vaug a dos é:seritns Politicos de Rouyscau v. talver. ox de7essels eapitu los sobre a faderaciia que d'Antraipues diz ter revehide de proprio Reivsvenu ¢ desieuilo por causa de seu tear revolucioniris, (N. de LG. M.) 2” A subrevivéneia ocasional doa frazmentos refecidos ni moni anterior mao desmente essa afir magaus Rousseau desistira, em definitive. das énstduigries ¢ Uestruira, Uelas, 0 que estalva em Sigs “Renuncianda a essa obra resolv; tirar dela o que se podia destacar. = qusimar todo 6 * (Confissies, H parte, livre X(N. de 1G. ML.) LIVRO PRIMEIRO Quero indagar se pode existir. na ordem civil §, alguma regra de adminis- tragiio legitima € segura, tomande os homens como séo ¢ as Icis como podem ser§, Esforgarmeei sempre. 5 NRe se Uns de estudar as elagies de homem 9 homem, como faria super a expres sito “ordem civil”, tau proxima do que moder~ namente € rezulado pelo direito civil. © obie live em mira € a organizagio eral da sociediile. o8 sous prineipios fund: ay Teeras institucionais do que hoje dle “ordem piiblica”. (N. de L.G. M.) “Aqui se encontram dois clementoy substan= siais do pensamento de Rousseau: 1.2) Sepiracse. nesie ponto, de Montesuieny Leis. procura com wem para exphi fit las segundo ag situagdes reais que ax pera Fam. o Consrata Social procura 0 que as leis “podem ser” s devem ser para corresponder fs isitudes, individuais ¢ eoletivas. dox “ho como sdu”. Rousseay parte, pois, do conhoeimenta profundo ¢ genético do homem Pura cstabelecer ay regray da arganizaciia eonscieitte da sociedade: “F preciso estudhar a soeiedads pelos homens ¢ ox homens pela sociedude”, dina o Emilio (iveo IV). ) Os objetivo ambiciosus Ue Rousseau nao © levam a esquecer se das consideragies peli sus. Dos “principias de dircito politico”, anun ny subtitule © que serde abstratos genéricos, deer decorrer “uma regra de administragao lepitima & segura”. asto &, ade quada aos homens ¢ posta ad aleance de sua im imediata, (N.de LG. M.) +" Cf, nots anterine, 2° parte. Nem puramente teorico, nem exelusivamente utilitario, Rous: Seau deseja principio e agao atendidos a um so tempo, (N. de LG. M.) nessa procura, para unir o que o dirci- to permite ao que o interesse presereve, a fim de que nao fiquem separadas a justiga ca utilidade?, Entro na matéria sem demonstrar a importineia de meu assunto. Pergun lar-me-do se sou principe ou legisla- dor, para escrever sobre politica. Res- pondo que nao. ¢ que por isso escrevo. sobre polities. Se fosse principe ou legislador, nado perderia meu tempo, dizendo o que deve ser feito: haveria de fazé-lo, ou calar-me*. Tendo nascido cidadao de um Esta- do livre ¢ membro dosoberano*,embora fraca seja a influéncia que minha opi nidio possa ter nos negécios piblicos, 0 direito de neles votar basta para impor © dever de instruir-me a seu respeito, sentindo-me Feliz todas as vezes que © Se houve quem aproximasye de io eid 10 0% Propositos teoricos de Frede Hl, da Prissia. em seu Ami Maguiavel esta lembrar que a referencia pode ser esicn dida a todos os chaniados "déspolas esclareci dos”, que. sempre dispostos aa convivio inte fectual com os fildsofos da lrberdade © por veres teorizando, cles proprios. sobre o direite € 0 homem, divers atitude asyumiam quando se tratava de exereer @ poder de mando. (N. de LGM) » Cidadio de Genebra, Rousseau chegou 4 tomar parte numa reunidio do Conselho Geral daguela repablica, quando de sua viagem de 1754, Para tanto. tivera de voltar ao protestan tisma, mas sentira-se. entdo. “membre do sober le LGM) Pa 2 ROUSSEAU medito sobre os governos, por sempre encontrar, em minhas cogitagdes, mo- 19 Apesar da indiferenea e. depois. dat hostili dade de seus concidadaos. Rousseau sempre manicye Genebra como modelo de repibica. Para tanto, deveu idealizar bastante a reall dade genebrina. cuja estrutura constitucicnal, seeunda certes comentaristas, nfo comlecia bem. Exalta Genebra na “Dedieatdria” do Discurso sobre a Desigualdade. Naw a esquece tivos para amar o governo do meu pais nia Economia Palitiea:".. pars expor aqui a sistema econimico de um bom governo, Freqtentemente voltei os olhos para o desta repiblica”... Agora, faz nova referéncia ao caso modelar. E 36. se calard depois de sua condenagao pelo Governo genebrino, (N. de L. GM) Caprruto | ‘O homem nasce livre*’. e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se cré senhor dos demais, nao deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio "1 Por causa dessa expressio, graves cquive cos tém prejudicado a interpretagao do-pensa mento de Rousseau e, em particular, do Con trata Social. De fato, aqui nio se trata apenas da liberdade {melhor dirtamos: da irrestrigiio} individual, da qual ja se cuidow no Discurso sobre a Desigualdade, com claro e preciso ven ido. O objetivo primordial do Contrara Secial std em assentar as bases sobre as quais legit mamente s¢ possa eltuar « passagem da liber. dade nutucal b liberdade convencional, como mais adiante se vera. Nao obstante, essa expressio genérica, posta & entrada do texto ¢ antes de estabelecer-4e 9 sentido dos termes que a compoom, leva a pensar numa defesa do Individalisme, quando cm verdade se inicia uma exposigae aceren da organizagio social. (N.deL. GM.) 12 Nio © ignora. Tampoueo 0 esqueceu, como alguns descjam supor. A Interpretagao histérieo conjetural stabelecida no. segundo Discurso esta presente ao espirito de Rousseau €0 guiard através de todo o Contrato Social. Acontece. porém, que agora deseja deixar de lado as interpretagies de fatos para langar-se ao problema politico no plano da maral ravio~ nal. (Nede LG. M.) "2 V, nots anterior, Seo segundo Pisenrso fegistrara a passagem da Hberdade natural & servidao eivil, 0 que era um “fat”, ¢ 0 mesmo fago a que se refere a primeira frase deste expi- tulo, agora se buscard estabelecer em que con- digdes a mesma transi¢io podera fazer xe legitimamente, isto é em favor da liberdade, (NdeL.G.M), tal mudanga? Ignoro-01?. Que poderé legitimi-la? Creio poder resolver esta questo". Se considerasse somente a forga eo efeito que dela resulta, diria; “Quando um povo ¢ obrigado a obedecer e o faz, age. accrtadamente; assim que pode sacudir esse jugo ¢ 0 faz, age melhor ainda, porque, recuperando a liberdade pelo mesmo direito por que lha arreba- ‘taram, ou tem cle 9 dircito de retoma- la ou nao © tinham de subtrai-la”. A ordem social, porém, & um direito sagrado'* que serve de base a todos os. outros! ®. Tal dircito, no entanta, nao se origina da natureza’*: funda-s "4 “Sagrado”, nesie ponte, mide’ constitul palavra va ow mero relorgo literdrio da frase. AE figura para significar algo superior ao indi viduo ¢ que, ndo wbstante, se processa no pro prio homem: sua transfiguracao pelo social. Na Economia Polltica ha alusiio. ais. subli~ me de todas as instituipdes humanas” que capacita @ criatura a “imitar cit embaixo os decretos imutaveis da Divindade” ¢ & impres- sho que temos, em face de seus resultados, de uma “inspiragio celeste”. Essa imagem aqui reaparece. (N. de L, G. Mi.) '* A afirmagao ressurge, mais clara ainda. no capitulo IX, primeiro paragrafe, '® [sto & mio se origina na natureza funda- mental do homem, no substrato fisico ¢ mental do individuo considerado em si mesmo. (N. de L, GM.) DO CONTRATO SOCIALI 2 portanto, em convengdes' 7. Trata-se. pois, de saber que convengdes sao essas. Antes de alcangar esse pento, *# Isto-é. na soviedade organizada de forma conscicnie ¢ aceita voluntariamente. “Conven cional™ e “natural” (v. nota anterior) open se, na linguagem rousseauniana, para marcar a diferenga entre o gue é obra da vida em socie. dade e da consciéneia Fesultante para ¢ homem, © 0 que se deriva dos impulses tatu rais do. individuo que. supostamente. wivesse em isolamento. (N. de I... G.M,) preciso deixar estabelecido o que acabo de adiantar? ‘© Nos quatro capitulos seguintes (I a V) desenvolver-seai o que, & maneira de proposi- Gita, aqui se apresenta numa forma, é verdade. pouco precisa e demasiado condensada, Entéio. Furse-d a refutagao das varias doutrinas que se propoem a justificar 2 servidiio civil, No fundo. tudo se redue @ uma alternativa: ow 3 Giferenga entre governantes ¢ owernados se explica’pela superioridade natural de alguns, ou a autoridade & o resultado de uma conven glo. (Node LG, My) Caprruto I Das primeiras sociedades A mais antiga de todas as socizda. des, ¢ a inica natural’, 6 ada familia; ainda assim s} se prendem os filhos ao pai enquanto dele necessitam para a propria conservagéo. Desde que tal necessidade cessa, desfazse o liame natural. Os filhos, isentos da obe- diéncia que devem ao pai. e este, isento dos cuidados que deve aos filhos, vol- tam todos a ser igualmente indepen dentes, Se continuam unides, ja nio ¢ natural, mas voluntariamente, € a 9rd- pria familia sO se mantém por conven- gio, Rousse, 0 conceit de “natural” in lui 6 de “necessario™. como ito caso da fami lia que € decorténcia icremissivel da dade instiniva. A fconorria Politice j& cuidara da familia eo Manuserito de Genebra rejeita qualquer influéncia dese “modelo” ni eerto que o liame social da Cidade nto pode, nein deveu formar se por extension do da famitia nem pelo mesmo modelo". Aqui xc admite uma aproximagie. porém meramente ilustra tiva e sublinhando que mesmo o grupo fami lial, no concemente & sua continuidade, depen de da convengdo. Repele se, pois, a concepeie aristotélica — “a associagao natural de todas os momentos é a familia” — de que dessa suciedade primaria se derivam todas as de mais. (Node LG. MD Essa liberdade comum ¢ uma conse- qiiéncia da natureza do homem?*, Sua primeira lei consiste em zelar pela pro- Pria conservagio, seus primeiros cui- dados so aqueles que se deve a si mesmo, ¢. assim que alcanga a idade da razao, sendo 0 Unico juiz dos meios adequados para conservar-se, torna-s Por isso, senhor desi, A familia & pois, se asvim se qui: ser*!, 0 primeira modelo das socieda- des politicas: © chefe é a imagem do 2° Em sua edigio do Couirato, Besulavon anotou que. com essa rel natureza humana, Rousseau nao apela p qualquer nogio metafisiea, buscando s¢ ape ay may condigies fisiolbyieas « psicaldgieas da vida individual. Tanto bastou para que se interpretasse esse comentirio como sendo uma restrigdio (v- Facques Maritain, em Tees Refur madores, ¢ Frangois Bouchardy, em sua edi cio do Contato), quando Beaulavon tao:s6 desejou axtinalar que as dados. puieafisio I6gicos bastam para caracterizar o Uansite da dude, originalmente preservauda pofos ins lintos © necessidades, 4 liberdade justifies dirigida e, também, limitada pela Fazio, (N. de LGM.) 41 Rousseau desiste de sua oposicao ao “mo, delo” da familia, desde que ja demonsirow scr -enta, EM seus aspects estiveis, uma sociedade convencional, (N, de L. GM.) icorges pai; 0 povo, a dos filhos, e todos, tendo nascido iguais ¢ livres, 56 alicnam sua liberdade em proveito proprio. A dife- renga toda esta em que, na familia, amor de pai pelos filhos o paga pelos cuidados que Ihes dispensa, enquanto no Estado © prazer de mandar subst tui tal amor, que o chefe nao dedica a us povos. Grotius?? nega que todo o poder hu- mano se estabeleca em favor daqueles que so governados: cita, como exem- plo, a escravidio??. Sua mancira nais comum de raciocinar € sempre estabe- lecer 0 dircito pelo fato? *. Poder-se-ia recorrer a método mais conseqitznte. nao, porém, mais favoravel aos tira- nos. Resta, pois, em duvida. segundo Grotius, se 0 género humano pertence a uma centena de homens ou se esses cem homens pertencem ao genéro humano. No decorrer de todo o seu livro parece inclinar-se pela primeira suposigio, sendo essa também a opi- °? © Direllu da Paz ¢ da Guerra, de Grotivs, Mantinha igubatavel seu prestigio ji secular. Combatendo-o frontalmente, Rousseau aqui contridiz 6 capitulo TH do livro I, onde se afir ma que & poder pode estabelceer-se em pro: veito de quem o exeree. (N. de L.. G.M.) 24 Abandonando o “modelo” da familia, Rousseau passa agora ao easo da eseravidig que os tratadistas. como 0 mesmo Grotius. ptt nham em paralelo com © poder politico. (N. de L.G.M) 2* “As perquirigdes erudilas sobre 0 dieeite pikblico freqdentemente nao passam da istiria de antigos abusos. ¢ tem-xe porfiado interipes tivamente: por suu causa quando se d4 0 tra balho de extudi-las em demasia.” (Traié des Intéréis de la France avec sex Voisins, pelo Sr. Marqués d’Argenson, impresso por Rey, cm Amsterdam.) For precisamente isso que se pas- ‘sou com Gratiuy*-(N. doa.) * 0 livre de d"Argenson, que cntio citeutava manuserito, foi publicado pelo editor Rey, de Amsterdam, em 1765, (N. de LG. M.) nido de Hobbes?*. Vemos assim, a espécie humana dividida como mana- das de gado, tendo cada uma seu chefe, que a guarda para devora-la. Assim como um pastor é de natu- reza superior a de seu rebanho, os pas- tores de homens, que sio os chefes, também possuem natureza superior 4 de seus povos. Desse modo — segundo Filo? ® — raciocinava o imperador Caligula, chegando, por essa analogia, 4 facil conclusao de que os reis eram deuses, ou os povos, animais. O raciocinio de Caligula leva ao de Hobbes ¢ ao de Grotius. Aristétcles. antes de todos eles, também disscra que os homens em absoluto nao sao naturalmente iguais, mas nascem uns destinados a escravidio ¢ outros a dominagio? 7. Arist6teles tinha raz4o, mas tomava © efeito pela causa. Todo homem nas- cido na escraviddo, masce para ela; nada mais certo. Os escravos tudo per dem sob seus grilhOcs, até o desejo de “* Hobbes tem importantes pontos de contate com Roumeau. podendo mesmo ser tide come seu dirsto inspirador no respeitante ao con- ceito de uma natureza humana primaria ¢ fundamental, considerada a marger das trans: te 0 ‘i lk em sociedace, ome conelui afirmando que o poder a¢ funda no medo ¢ na forga, Rousseau ue em repudiar explicitamente sua concep jeu. (N. Ue LG. M,) de Alexandria, ou Filo, © Hebrew, felata, no De Legation, 0 interusse de Cal Bula por demonstrar possuir natureza superior Ade scus siditos. porquanto “naseido para um esting mais alto € mais divino, para o que se serviu do paralelo com os pastores. (N. de L GM) 74 "A natureza, part atender @ conservagiio, criou certos seres para comandar ¢ outros para obedecer, E que ela quis que o ser dotade de Fazio e previsio ordenasse como senor. ¢ que © ser capar, por suas faculdades corporcas, de executar urdens. obedecesse como exeravos assim se confundem © interesse Uo senor ¢ do escravo,” (Aristiteles, Politica, 1. 1, ¢. 1.) (NdeL. GMD DOCONTRATO SOCIAL I 25 escapar deles: amam o cativeiro como os companhciros de Ulisses amavam o seu embrutecimento?® Se ha, pois, escravos pela natureza, é porque houve eseravos contra a natureza. A forca fez 08 primeiros escravos, sua covardia os perpetuou??, Nada disse do rei Addo, nem do imperador Noé. pai dos trés grandes monarcas que dividiram entre si © uni- 20 Ver um pequeno tratado de Plutaree intitu lado Os Animais Usam a Razao.(N. de A.) 2" Beaulaven anota como. messi passagem, Rousseau inova @ teorit politica quando se cusa a reconhecer nas deficiencias reais de cer- tos homens tima justificativa para a diminui gio de seus direitos. Lembremos, apenas que, hesse tempo, Voltaire, © revolucionario Voltai re. defendia Cirotius das eriticas desse capitulo, dizendo que 0 direito do mais forte & uma infe licidade ligada & miseravel maturer do ho- mem... (Node ba GM verso, como o fizeram os filhas de Saturng, que muitos julgaram reconhe- cer neles. Espero que apreciem minha moderagao, pois, descendendo direta- mente de um desses principes, ¢ talver do ramo mais velho, quem sabe se no chegaria, depois da verificagao dos ti- tulos. & conclusio de ser eu o legitimo rei do género humana? Seja como for. no se pode deixar de concordar quan- to a ter sido Adao o soberano do mundo, como foi Robinson em sua ilha®®, por isso que era dnico habitante da terra, e 0 que havia de comodo nese império era o monarca, firme em seu trona, nao temer rebelides, guerras ou conspiradores. 10 Simples referencia ironies. a alusio a Robinson contude vale como demonstiagho do antiindividuatismo de Rousseau, (N. de L. GoM) Capriuto LIL Do direito do mais forte © mais forte nunca é suficiente- mente forte para ser sempre o seahor, sendo transformando sua forgs em direito ¢ 4 obediéncia em dever. Dai o direito do mais forte?! — direito 2) Resuminelo em duas frases as teor as de Hobbes, Rousseau aqui enfremtari uma das inais fortes tendéncias do século XIN, quan do havia afirmagées todricas contra o direito da forga — como as de Burlamaqui. em seus Principtos tle Direito Naneraf, de \747, que Rousseau leu — mas, na pratica, todos st dis punham a accitar o fato consumado do poder do mais forte, Cinicamente, Grimm exerevia a Diderot, em derembro de 1765. referindo se 20 Contraro: “Nao: sejamos erlangas ¢ nd ‘enha mos medo das palavras. De fato, nio ha outro direito no mundo além do diteito do mais forte reciso dizé-lo, esse dieeito é o dnieo legiti mo", Rousseau, a seguir. assinala o cortraste entre ay ironias dos pretenses defensores. da liberdade © sua passividads real diants. dos poderoves, (Ni, de L. G.M.) aparentemente tomado com ironia¢ na realidade estabelecido como principio. Jamais aleangaremos uma explicagio dessa palavra? A forgaé um poder fisi co; nao imagino que moralidade possa resultar de scus cfeitos. Ceder 4 forga constitui ato de necessidade, nio de vontade; quando muito, ato de prudén- cia, Em que sentido podera representar um dever? Suponhamos. por um momento, esse pretenso direito. Afirmo que ele sé redundara em inexplicavel galima- tias®?, pois, desde que a forca faz o dircito, o efeito toma lugar da causa — toda a forga que sobrepujar a primeira, sucedé-la-a nesse direito, Desde que se pode desobedecer impunemente, tor- '© Galimatiay; discurso incompreensivel. (N. del. GM) 6 ROUSSEAU nase legitimo fazd-lo e, visto que o mais forte tem sempre razao. basta somente agir de modo a ser 0 mais forte. Ora, que direito sera esse. que perece quando cessa a forga? Se se impée obedecer pela forga, nfo se tem necessidade de obedecer por dever. « se no se for mais forgado a obedecer. 44 nao se estara mais obrigado a faze Io. Vé-se, pois, que a palavra direite nada acrescenta a forga — nesse passo, nfo significa absolutamente nadas Obedecei aos poderes. Se isso quer dizer — cedei a forga, o preceita & bom, mas supérfluo; sustento que ja mais sera violado, Reconheco que todo © poder vern de Deus, mas também todas as doengas. Por isso sera proi 2 Diteito, no vocabuliirio de Rousseau, eor- responde exatamente 4 um conceite moral fun. dado mat razao, Um Tato nao faz. nem desta um direito, pois o direito deriva da conviceao le nerem ow nao legitimes determinados Fatos. (Node LG, M.) bido chamar 0 médico? Quando um bandido me ataca num recanto da flo- Testa, nao somente sou obrigado a dar-Ihe minha bolsa, mas, se pudera salvala, estaria obrigado em cons ciéncia a d-la, visto que, enfim, a pis- tola do bandido também é um poder? Convenhamos, pois, em que a forga nao faz 0 direito ¢ que 86 se ¢ obrigado a obedecer aos poderes |e; Desse modo. esta sempre de pé minha pergunta inicial* *, nos, por intermédio dé euja critiea Rousseau deseja refutar todas as doutrinas que funda © poder na yontude de Deus. Sc os, vereatlos no assunto afirmam que a Epistota nao tem senté dy despotica ¢ por is a, aparece mal interpre tada ni se trecho, com isso apenas reforgam a oposigo de Rous divino™ postas # servigo do absolutism dcL.G. M.) 2 Isto é. que fundamento tepitimo tem a obvi kagie moral de obedecer ¢.0.dircito di autori dade a farer-se obedecida? (N. de L. Ge Mi) (N, Capiruro LV Da cseravidao Visto que homem algum tem autori dace natural sobre seus semelhantes ¢ que a forca nao produz qualquer dire to, 96 restam as convengdcs como base de toda a autoridade legitima existente entre os homens? &, Se um particular. diz Grotius, pode alienar sua liberdade e tornar-se esera: 39 Voltamos a0 tema ventral do Contato, tal coms se propés no capitulo snieial. Mas nive se refutaram todas as teorias despéticas, Se a. autoridade no se justifica nem pela forga 1em pela vontade de Deus. provird de uma conven: ‘ga, mas desele logo se impBe demanstrar que al convengio nao importa na total renincia Tiberdade, Assim pensavis Grotius ¢, segundo ©, a maior parte dos adeptos da escola do direito natural. (N. de LG, M.) vo de um senhor, por que nao o pode ria fazer todo um povo ¢ tornar-se su- dito de um rei??? Nessa frase existem muitas palavras equivocas a exigir explicagao, mas prendamo-nos s6 a palavra alienar, Alienar é dar ou ven- der. Ora, um homem, que se faz escra vo de um outro, nao se da; quando muito, vende-se pela subsisténcia, Mas um pov, por que se venderia? O rei, longe de prover a subsisténcia de seus siditos, apenas dele tira a sua ¢, de acordo com Rabelais, um rei nao vive com pouco. Os suditos dio, pois, a sua ** Resume de idéiay que se encontram no Direito da Paz ¢ da Guerra, 11,6 Mle |, U, ©. VIILON, de L.G.M.) DO CONTRATOSOCIAL I a pessoa sob a condigao de que se tomem também seus bens? Niio vejoo que Ihes resta. Dirdo que 0 déspota assegura aos stiditos a tranqiilidade civil, Seja, mas qual a vantagem para cles, se as guei ras em que sao lancados pela am do déspota, a sua insaciavel avidez, as vexagées impostas pelo seu ministério os arruinam mais do que as proprias dissensdes? Que ganham com isso. se mesmo essa tranqiiilidade & uma de suas misérias? Vive-se tranqiiilo tam- bém nas masmorras ¢ tanto bastara para que nos sintamos bem nelas? Os gregos. encerrados no antro do Ciclo: pe, viviam tranqiiilos, esperando a vez de ser devorados?*, Afirmar que um homem se da gratuitamente constitui uma afirmagao absurda ¢ inconcebivel; tal ato ¢ ilegi timo ¢ nulo, tio-sd porque aquele que © pratica nao se encontra no completa dominio de seus sentidos. Afirmar a mesma coisa de todo um povo, é supor um povo de loucos: a loucura no cria direito. Mesmo quando cada um pudesse alienar-se a si mesmo. niio poderia alicnar seus filhos*®, pois estes nascem homens ¢ livres, sua liberdade perten ce-thes ¢ ninguém, senao eles, goza do direito de dispor dela. Antes que che- guem i idade da razdo, o pai, em seu nome. pode estipular condigdes para 3% Bysa imagem de Utisses © seus: compa: nheiros na caverna de Potifemo & tomada a Locke, may 0 ardor polémiew de Rousseau jus tifica lembrar o raciocinio teérico simbol ‘aado: talvez a garantin de uma ordem perfeits- mente pacifica valesse 0 sacrificio dy liberdade, porém essa mesma rentinein impedi ria qualquer reelamagdo contra © chele que prometers a paz. (N. de L.G.M.) ** Para Grotivs, a alienagao voluntaria da liberdade obrigaria também aos descendentes do contratante, Rousseau, _provavelmente apoiando se cm Montesquieu (Do Espirito das Leis, . XV, ¢, FIV), mais adiante protestara contra esse despaulério, (N, de LG, M,) sua conservagae © scu bem-estar, mas. nao pode da-los irrevogavel e incondi- cionalmente, porque uma tal doagao & contraria aos fins da natureza*? e ultrapassa os direitos da paternidade. Seria pois necessario. para que um governo arbitrario fosse legitimo, que © povo, em cada geragio, fosse senhor de aceita-lo ou rejeita-lo, mas, entao, esse governo nao mais seria arbitrario. Renunciar a liberdade & renuneiar a qualidade de homem®", aos direitos da humanidade, ¢ até aos préprios deve- res. Nao hd recompensa possivel para quem a tudo renuncia, Tal rentincia ndo se compadece com a natureza do homem, e destituir-se voluntariamente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a moralidade de suas agdes. Enfim, € wma indtil ¢ contraditéria convencao a que. de um lado. estipula uma autoridade absoluta, ¢, de outro, uma obediéneia sem limites, Nao esta claro que ndo se tem compromisso algum com aqueles de quem se te direito de tudo exigir? E essa con tinica, sem equivalente, sem compensa- go, mao levart a nulidade do ato? Pois que direito meu escravo tera con tra mim, desde que tudo que possui me pertence ¢ desde que. sendo meu o sew direito, esse direito meu contra mim mesmo passa a Constituir uma palavra sem-qualquer sentido? Grotius ¢ outros autores encontram na guerra outra origem do. pretenso dircito de cscravidio. Tendo 0 yence- dor, segundo eles, 6 direito de matar o vencido, este pode resgatar a vida pelo prego da sua liberdade, convengio 44 Cabe, no caso, referir-ne A natureza antes acima do direito, porque, sendo natural a auto” Fidade do pai, si nesse plano se legitima. (N deL.G.M) * Como ja se viu_no segunda Discurso © como se verd no Emilio, 0 homem, mais ainda do que peta sensibilidadle c pela raza, caracte- rica-se pela vontide livee, (N. de L. GM.) tanto mais legitima quanto resulta em proveito de ambas as partes *?. E claro que esse pretenso direite de matar os vencidos de modo algum resulta do estado de guerra *?. Apenas porque. vivendo em sua primitiva independéncia, nZo mantém entre si uma relagao suficienternente constante Para constituir quer o cstado de paz quer o de guerra, os homens em abso, luto nao sdo naturalmente inimigos. E a relagdo entre as coisas ¢ nao a rela ao entre os homens que gera a guerra, e. nao podendo o estado de guerra originar-se de simples relagdes pes: soais, mas unitamente das relazdes reais, ndo pode existir a guerra particu Jar ou de homem para homem, nem no. estado de natureza, no qual nao ha propriedade constante, nem no esiado social, em que tudo se encontra sob a autoridade das leis Os combates particulares, os duelos, 0s recontros so atos que de mancira alguma constituem um estado, quanto as guerras privadas, autorizadas pelas ordenagdes de Luis IX. rei de Franga, © suspensas pela Paz de Deus, sido ubusos do governo feudal, sistema absurdo, se jamais foi sistema, contri “2 Aysim raciocina Grotiis no Direite da Paz (LAL & VID, nisso sepuido por Pulendor. no Dos Deveres do Homem e do Cidadae (\. 1, ¢, 1). Locks vai mais Ionges acreditando encon (rar fundamento para a eseravidie née 36 no dircito dus gentes. mas também na direito natueal. (N. de |. G.M.) A arzumentagiio, que reaparece em outros textos, tem sua forma mais explicita ¢ convin gente no fragmento sobre Q Estado de Guerra, no manuserilo de Neuchatel, Assim pode ser rosumida: La guerra, enguanto eboque entre duas foreas. nao cria direito porque mio 0 cria a forga: 2.") se houver um direiio da guctra, esta passard a representar uma reagao entre dois seres moruin yue nfo alcanca aos individuos, senso a disputa, adematis. refer ss (N, de L. GC. 4 interesses reais ¢ 0. pes My rio aos principios do Direito Natural e a qualquer boa politia* *, A guerra nao representa, pois, de modo algum. uma felacao de homem para homem, mas uma relagio de Es tado para Estado, na qual os particu- lares 6 acidentalmente se tornam ini- migos. nao o sendo nem como homens. nem como cidadios* 8, mas como sol- dads, ¢ niio como membros da patria. mas como seus defensores. Enfim. cada Fstado 96 pode ter como inimigos outros Estados ¢ no homens, pois que ndo se pode estabelecer qualquer rela sfio verdadeira entre coisas de natu- reza diversa. Esse principio esta mesmo de acor- do com as maximas estabelecidas em Rousseau serviu se da transer literal dat “politeia™ grega. grate © mesmo recurso, sitidade com v gagncia, adotamos o latine gio muityprixima Rousseau, Numa can desejada por ) editor Rey, Rous eau recomenda que evite confusdes de “poli Hie" com politique’ (N. da 'T.) *© Qs romanoy que. mais do que qualquer @ do) mundo. compre respeitarim o digeito da gue Tonge os eseripulos a tal Fespeite, que aio se pernitia a um cidadao servir como voluntieia yem terse alistado expressamente eontra.o ini migo € nominalmente contra certo inimigo. Tendo sido reformada a legitio em «ue Catao, © Mogo. sob 0 comanco de Popilio, se inigiava ha guerra, Catdo, © Velho, eereveu a Popilio que. ve deseyasse a continuagiio de servign de seu filho, 9¢ tornava necessaria a prestagho de novo juramento militar, visio que, evtando 0 primeiro anulido, nfo podia mais volta as armas contra o inimigo. O mesmo Catio excreveu ao Filho recomendando-the que se aabstivesse de entrar em combate. enquanto no Livense prestado nova juramento. Set que pode » eontraditar me gom y aitiy de Clusium © outros fats particulares, mas o que Tago & citar leis ¢ costumes. Os romunos so aqueles que menos freqiientemente transgredirum sues € forum o¥ amicus a té tas to helas*, (2 lo Ab * Essa nats aparece nas edigdes do Con trate «partir de 1782.(N.de Le G. Mo)

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