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Uma ideia moderna de literatura textos seminais para os estudos literdrios (1688-1922) Roberto Acizelo de Souza (Org.) taré que, se Ihe forem propostos novos amigos, isso s6 pode ser sob a condigéo de ebandonar ‘08 antigos. Além disso, como afirmei, o proprio leitor tem consciéncia do prazer oriundo de tal composi¢0, composi¢io a que privativamente anexou 0 afettoso nome de poesia; ¢ todos os homens experimentam um sentimento de cos- tumeira gratidao, além de certa nobre idolatria, pelos objetos que, ao longo de um tempo exten- so, permanecem agradaveis e caros para ele: ndo desejamos apenas a satisfagio, mas a satisfacao do modo especifico como nos habituamos a ob- t8-la, Hi, nesses sentimentos, o bastante para re- sistit a uma legiao de argumentos; ¢ eu devo ser ‘© menos capacitado para combaté-los com éxito, a medida que estou propenso a admitir que, a fim de apreciar plenamente a poesia que recomendo, seria necessétio abrir mao de muito do que nor- _malmente se aprecia. Mas, tivessem meus limites permitido apontar como se produ esse prazer, muitos obsticulos teriam sido removidos, eo lei- tor teria sido auxiliado a perceber que os poderes da linguagem nao sio to limitados como ele po- de supor; € que é possivel & poesia proporcionar outros contentamentos, de natureza mais pura, mais duradoura e fora do comum. Esse aspecto do assunto nao chegoua ser totalmente negligen- ciado, mas meu alvo nao foi tanto provar que a atragéo despertada por certos tipos de poesia é menos intensa e menos digna dos poderes mais nobres do espirito, quanto oferecer razbes para presumir que, se meu propésito foi alcangado, terd sido produzida certa espécie de poesia que, nna sua natuteza bem adaptada para permanente- mente atrair a humanidade, constitui poesia nio 6 genuina, mas também importante pela multi plicidade ¢ quantidade de suas implicagées mo- ris. A partir do que foi dito, e da minuciosa apre- ciagio destes poemas, o leitor sera plenamente capaz de perceber 0 objetivo que tive em vista; determinaré até que ponto foi alcancado; ¢, 0 que constitui questio mais importante, se tera vali- do a pena alcancé-lo; e da resposta a essas duas questdes dependera minha pretensio aos favores do publico. MADAME DE STAEL [Anne Louise Germaine Necker Staél-Holstein] (Paris, 1766-1817) Escreveu dois romances ¢ pegas teatrais destina- das a encenagio em ambito privado, Destaca-se, no entanto, por seus ensaios, que influiram de modo decisivo para a difusio das ideias roman- ticas na Franga, Propds uma reorientacio da li- terature francesa, concebendo como estratégia para a superagio do classicismo o estreitamento de suas relagoes com outras literaturas nacionais ceuropeias, especialmente a inglesa ea alema, eas vvezes a italiana, Sua atuagio no processo de afir- ‘magao do romantismo na Franga se concretizou ‘no apenas por meio de seus escritos, mas tam- bém pela conversagao brilhante e pelo magnetis- mo social que 2 caracterizavam, patenteados no salio que manteve em Paris, primeiro de motiva~ «<0 puramente intelectual, depois crescentemen- te politica, de orientagao liberal. Literatura ¢ instituigdes sociais* (1800) Propus-me examinar qual seria a influéncia a religido, dos costumes e das leis na literatu ra, e qual a influéncia da literatura na religiao, nos costumes ¢ nas leis. Ha, na lingua francesa, tratados que nao deixam nada a desejar sobre a arte de escrever e 0s principios do gosto;' mas parece-me que ainda nao se analisaram sufi- cientemente as causas morais e politicas, que modificam o espirito da literatura. Parece-me Tay Dela iteratureconsidérde dan st rapports avec las institu tions sociales, ition critique par Paul van Tighem. Geneve: Dror: Paris: M. J. Minaed, 1953.1 p. 17-19. Tuo atcoulda pelo orgonizador, primeira parte (a30 nomeada como tad do “Discouts peéliminai’, 0 qual precede os coptulos do live, Das notas da edigio-fonte,conservaremn-s apenas asda autora, suprimindo-se as do orgaazador, Tradugio de Cristina Maia Lourengo Machado, com supervisio de Maria Elizabeth Chaves, de Mele, As obras de Valtaice, aquelas de Marmantel [N.O: Jean-Fran- {ois Marmoatel (1723-1799), critica francés] ¢ de La Harpe IN.0::Iean-Frangois de La Harpe (1739-1803), criico francts. A celles ontoligica | MADAME DE STAEL (Anne Louise Germaine Necker Staél-Helsteia} que ainda nao se refletiu sobre como as facul- dades humanas se desenvolveram gradual- mente através das obras famosas de todos os géneros, que foram compostas desde Homero até 05 nossos dias. TTentei dar conta da marcha lenta, mas conti- ‘nua, do espirito humano na filosofia, e de seus su- cessos rpidos, mas interrompidos, nas artes. As obras antigas e modernas que tratam de assuntos de moral, de politica ou de ciéncia provam, eviden- temente, os progressos sucessivos do pensamento, desde quando sua histéria nos é conhecida, O mes- ‘mo nio ocorre com as belevas poéticas, que s6 per- tencem & imaginacio. Observando as diferentes caracteristicas que se encontram nos escritos dos italianos, dos ingleses, dos alemaes e dos france- ses, acredito poder demonstrar que se deve as ins- tituigbes polticas e rligiosas a maior parte dessas diversidades constantes. Enfim, contemplando as rruinas e esperangas que a Revolugéo Francesa, por assim dizer, confundiu, pensei que era importante conhecer qual era o poder que essa revolucdo exer- cceu sobre as Luzes, ¢ quais efeitos poderiam resul- tar disso um dia, se a ordem ea liberdade, a moral ‘ea independéncia republicana fossem sdbia e poli- ticamente combinadas, Antes de oferecer uma percepeao mais deta- Ihada do plano desta obra, é preciso reconstituir a importincia da literatura, considerada na sua acep¢do mais vasta, ou seja, contendo em si os escritos floséficos e as obras de imaginagao, tudo ‘0 que se refere, enfim, ao exercicio do pensamen- to nos escritos, excluidas as ciéncias fisicas. Vou examinar primeiro a literatura de uma maneira geral, nas suas relagdes com a virtude, a gléria, a liberdade e a felicidade; e, se é impos- sivel no reconhecer que poder ela exerce sobre esses grandes sentiments, primeiros méveis do homem, é com interesse mais vivo que nos uni- remos, talvez, para acompanharmos juntos os progressos e observar © carter dominante dos escritores de cada pais e século. Lamento nao poder invocar todos os espiri- tos esclarecidos para o gozo das meditagées fi loséficas! Os contemporaneos de uma revolugao perdem frequentemente todo o interesse pela busca da verdade. Tantos acontecimentos deci- didos pela forca, tantos crimes absolvidos pelo sucesso, tantas virtudes difamadas pela acusagio, tantas infelicidades insultadas pelo poder, tantos sentimentos generosos transformados em objeto de escirnio, tantos calculos vis hipocritamente comentados - tudo esgota a esperanca dos ho- mens mais féis ao culto da razio. Contudo, eles devem reanimar-se observando que, na histéria do espirito humano, ndo existiu nem um pensa- ‘mento itl, nem uma verdade profunda que néo tenha encontrado seu século e seus admiradores. E sem diivida um esforgo triste transportar 0 in- teresse, projetar a expectativa, através do futuro, para os nossos sucessores, para os estrangeiros bem distantes de nés, para os desconhecidos, para todos os homens, enfim, cuja lembranga e imagem nao podem ser reconstituidas no nos- so espirito, Mas, infelizmente, com excegao de alguns amigos figis, a maior parte daqueles de quem nos lembramos, aps dez. anos de revolu. go, oprime vosso coragao, asfixia vossos movi- ‘mentos, impondo-se até mesmo ao vosso talento, niio por sua superioridade, mas por essa malevo- lencia que nao causa dor sendo 3s almas doces e s6 faz sofrer os que no metecem. Enfim, ergamo-nos sob 0 peso da existén- cia, nao concedamos a nossos injustos inimigos, a nossos amigos ingratos, 0 triunfo de terem abati- do nossas faculdades intelectuais. Eles reduzem a buscar a gléria aqueles que se teriam contentado com afeigdes. Pois bem: é preciso esperar. Essas tentativas ambiciosas no vio curar as penas daal- ma: mas honrardo a vida. Consagré-la 4 esperan- ca sempre enganosa da felicidade é deixé-la ainda mais infeliz, E melhor reunir todos os esforgos para descer com alguma nobreza, com alguma reputa- ao, o caminho que conduz da juventude & morte. Sobre as literaturas do norte edo meio-dia* (1800) Existem, assim me parece, duas literaturas inteiramente distintas: a que vem do meio-dia,* cuja fonte primeira é Homero, e a que descende do norte, cuja origem é Ossian.? Os gregos, 0s la- tinos, os italianos, os espanhéis e os franceses do ¥ tne De ta ltérature considers dans ss rappors ave es istt tions cocaes. Editon crtiqae par Pal van Tieghem. Genéve: rows Pais: Mf. Minad, 1989. 1p. 178-184, Ttuloatribaido pelo organizador: parte inca do "Chapitte XI~ Dela Littéra- ture du Nord Tradugio de Roberto Acizlo de Souzs. 2 stad, sul A expressio “meio no sentde de“pontocardeal sult ainda se empregave em fos do séeulo XVII e inicio do xIK 3 Repito 0 que disse no prefiio da] segunda edicfo. Os cantos de Ossian (bardo que viveu no quarto século) cram conbeci- dos dos escoceses€ dos homens de letras na Inglaterra, antes ‘que MacPherson os tveserecalhido,[N.O. Ossian € a figura ‘ais importante do ciclo da mitologia cltice, conhecido como click feniano ou de Ossian. No século XVII, uma faude rir que ficou famosa deu grande projeglo a0 nome do p sonagems 0 estado escacts james Macpherson (1736-1736) publicou uma série de textos em pross podtcs atciuidos Ossian, apresentado-os como tradugdes de origins eacitos 1a lingua autétone da Alte Excéts, embora na verdade se de compesigdes suas. Nao obstane as divides sobre sua coxigem leventada j por enticos da époco, susetadas plas t riniscénciascssiceseetlizagBeseruditas presentes no texto, 0s poemas mereceram tecepgdoextemiamenteentusistca nos petiodos pié-romintico «romdatico, sendo traduzidos do alts para diversas outraslinguas europea}. Invocendo Ossian como origem da literatura do nore, quis spenas, conforme © ‘veremos pela sequincia deste capitulo, indici-lo como o poeta mais antigo ao qusl podemes porta acaractcistice particular da poesia do norte. As fabulasislandese, as poesasesandin ‘es do nono século,origem comm da literatura inglesa eda iteratraalem, tim grande semelhangs com os tapos distin tivos das poesaserses [N.O. ver adiante nota 5] edo poems de Fingal [N.O. também charmado Finn, Fina Mac Cuhal ow Fionn: na mitologia celta, chefe dos Panna de Leinster, heed fanfarrio, descontiado ¢ stucioso, matador de monstos, pat de Ossian, ao mesmo tempo migico « poets). Um grande nié- mero de sbios ecreveu sobre a iteraturarinica [N.O: rla- tivo runas, caracteres, em forma de haste com exgalhos, que compunham a esritsalfabetia dos povos germénicos, usida sproximadamente desde séclo It até o século XIVI, sobre as Poesia as antiguidades do norte, Mss encooteamos 0 resumo Ae todas esis pesquiss em M, Mallet bastard lea waducio de algumas des do nono séeulo que Mesto ransritas. ado rei Régner-Lodbrog, ade Harald-e-Vallnt ete. para nos conven cermos de que esses poets escandinavos catavam 35 eesinas deiasclipiosas,seviam-se das mesma imagens guetteitas, tinham o mesmo cuko plas mulheres que o bardo Ossian, que vive aprosimadamente cinco séculos antes dele. (NA século de Luis XIV‘ pertencem ao gnero de lite- ratura que chamarel ‘a literatura do meio-dia’ As obras inglesas, as obras alemas e alguns escritos dos dinamarqueses e dos suecos devem ser classi- ficados na literatura do norte, naquela que come- ou pelos bardos escoceses, as fabulas islandesas € as poesias escandinavas. Antes de caracterizar 0s escritores ingleses e os escritores alemies, pa- rece-me necessario considera de maneira geral as principais diferencas entre os dois hemisférios da literatura, Os ingleses ¢ 05 alemaes, sem diivida, imita- ram com frequéncia os antigos. Extrairam ligdes proveitosas desse estudo fecundo; mas suas be- lezas originais apresentam a marca da mitologia do norte, tém um certo ar, uma certa grandeza poética cujo protétipo é Ossian. Os poetas ingle- ses, poderemos dizer, sao notaveis pelo espirito filosdfico, que se faz. presente em todas as suas ‘obras; mas Ossian quase nunca tem reflexdes; ele narra uma sucessio de acontecimentos ¢ im- pressdes. Respondo a essa obje¢éo afirmando ‘que as imagens e os pensamentos mais comuns em Ossian sao aqueles que lembram a brevidade da vida, o respeito pelos mortos, a exaltagao da sua meméria, o culto dos que ja nao existem por parte daqueles que permanecem. Se 0 poeta ab- solutamente nao acrescentou a esses sentimen- tos méximas de moral nem reflexdes filoséficas, porque naquela época o espirito humano nao era ainda de modo algum capaz da abstragdo ne- cessaria para conceber muitos resultados. Mas a comogio que os cantos ossianicos causam a ima- ginagdo predispdem o pensamento para as mai profundas meditagdes. A poesia melancélica & a poesia mais de acordo com filosofia. A tristeza, melhor do que qualquer outra disposicéo da alma, faz penetrar bem mais no carter eno destino do homem. Os poctas ingleses que sucederam aos bardos escaceses acrescentaram aos quadros deles as reflexdes e as ideias que esses préprios quadros deviam fazer nascer; mas conservaram a imagi- © steulo xvi A reflexao ontologica | MADAME DE STARE. [Anne Louise Germaine Necker Staél-Holstein} nag do norte, aquela que se deleita a beira do mar, ao sussurro do vento nas urzes selvagens, aquela enfim que transporta para o futuro, para ‘um outro mundo, a alma cansada do seu desti- ‘no. A imaginacio dos homens do norte langa-se além dessa terra cujos confins eles habitam; lan- ga-se através das nuvens que orlam o horizonte, parecendo representar a escura passagem da vi- da para a eternidade. Nao se pode decidir de maneira geral entre os dois géneros de poesia de que Homero e Ossian sio como 0s primeiros modelos. Todas as minhas impressées, todas as minhas ideias me conduzem de preferéncia a literatura do norte; mas trata-se agora de examinar seus tragos distintivos. clima é certamente uma das principais ra- Bes das diferengas que existem entre as imagens ‘que agradam no norte e aquelas que amamos evo- carno meio-dia. Os sonhos dos poetas podem dar A luz objetos extraordinarios. Mas as impressées habituais se reencontram necessariemente em tu- do o que se compée. Evitar a lembranga dessasim- pressdes seria perder a maior das vantagens, a de pintar aquilo que experimentamos em nés mes- ‘mos, Os poetas do meio-dia combinam sem parar imagem do frescor, dos bosques frondosos, dos limpidos riachos com todos os sentimentos da vi da. Nem os prazeres do coragao eles evocam sem com eles combinar a ideia de sombra benfazeja, que deve protegé-los dos ardores impetuosos do sol. Aquela natureza tdo vivida que os rodeia des- perta neles mais agdes que pensamentos. Foi in- justamente, assim me parece, que se disse serem as paixdes mais violentas no meio-dia do que no norte, La se observam mais interesses diversos, porém menos intensidade num mesmo pensa- mento; ora, éa constancia que produz.os milagres da paixdo e da vontade. ‘Os povos do norte se ocupam menos com os prazeres do que com a dor, e sua imaginagao por isso é mais fecunda. O espetdculo da natureza age fortemente sobre eles; ela age como se mos- tra naqueles climas, sempre sombria e nebulosa. Sem divida, as diversas circunstancias da vida podem modificar essa disposicéo para a melan- SS colia; mas ela detém com exclusividade a marca do espirito nacional. Nao é necessério procurar ‘num povo, como num homem, sendo 0 seu tra- ¢0 caracteristico; todos os outros sto 0 efeito de mil acasos diferentes; somente aquele constitut seu ser. A poesia do norte convém muito mais do que a do meio-dia ao espirito de um povo livre. Os primeiros inventores conhecidos da literatu- ra do meio-dia, os atenienses, foram a nagdo do mundo mais ciosa de sua independéncia. Nao obstante, era mais ficil conformar a servidao os gregos do que os homens do norte, O amor as artes, a beleza do clima, todos esses prazeres pro- digalizados aos atenienses podiam servir-lhes de compensacio. A independéncia era a primeira € Ginica felicidade dos povos setentrionais. Cer- ta altivez de alma, um desapego pela vida, a que dé origern, a aspereza do solo ea tristeza do céu deviam tornar insuportavel a servidao; e, muito antes de conhecer-se na Inglaterra a teoria das constituigdes ¢ as vantagens dos governos re- presentativos, o espirito guerreiro que 0s poetas erses* e escandinavos cantam com tanto entu- siasmo dava ao homem uma ideia prodigiosa de sua forea individual e do poder de sua vontade. A independéncia existia para cada um, antes que a liberdade fosse constituida para todos. A filosofia, no renascimento das letras, co- megou pelas nagdes setentrionais, em cujos ha- bitos religiosos a razao encontrava infinitamente menos preconceitos para combater do que na- queles dos povos meridionais. A poesia antiga do norte supde muito menos superstigio do que a mitologia grega. Existem alguns dogmas ¢ al- gumas fabulas absurdas nos Edas;* mas as ideias religiosas do norte condizem quase todas com a rardo exaltada. As sombras debrugadas sobre as 5 Naturais da Alta Esccias a palaveadesigna também a lingua de ‘otigem céltie dos primitivos ilandeses eescoceses, 6 Compilegéos da mitologia escandinava, encontradas no século ‘XVII, naIsndla: existe un Eda em versos, do séclo X%,0u- teo.em prosa, da passagem do século XI! para o XII rnuvens nio constitwem sendo impresses anima- das pelas imagens sensiveis.? As emogées causadas pelas poesias ossia- nicas podetn reproduzir-se em todas as nagdes, porque seus meios de comover so todos toma- dos & natureza; mas é preciso um talento prodi- gioso para introduzir, sem afetagio, a mitologia sgrega na poesia francesa. Nada deve ser, em geral, mais frio e mais rebuscado do que dogmas reli- giosos transplantados para um pais onde nao sio recebidos sendo como metéforas engenhosas. A poesia do norte é raramente alegérica; nenhum de seus efeitos precisa de superstigles locais pa- ra tocar a imaginacéo, Um entusiasmo refletido uma exaltagdo pura podem igualmente convir a todos os povos; é a verdadeira inspiracao poé- tica cujo sentimento esta em todos os coragées, mas cuja expressio é dom do génio. Ela suscita uum sonho celeste que faz amar o campo ea soli- 40; com frequéncia transporta 0 cora¢do para as ideias religiosas, e deve estimular nos seres pri- vilegiados o culto das virtudes ¢ # inspiracéo de pensamentos elevados. A grandeza do que faz o homem ele a deve a0 sentimento doloroso da incompletude do seu destino. Os espiritos mediocres permanecem, em geral, assaz satisfeitos com a vida comum; ar- redondam, por assim dizer, a existéncia, ¢ com- pletam aquilo que pode faltar-thes ainda com as ilusdes da vaidade; mas o sublime do espi to, dos sentimentos e das ages deve seu voo & necessidade de escapar aos limites que circuns- ccevern a imaginaggo. O heroismo da moral, 0 7 Pretendeme que absolutamente nfo havia ideas eeligiosss em (Ossian. Nao ha nada de mitologia: mas li reenconteamos sem parar ura dlevagio de sims, ui reapelto pelos mortos, ama confianga numa exstncia a vic, sentimentos muito mais an logos a0 carite do cristanismo do que o paganisme da meio- la. A monotonta do poem de Fingal ndo te deve de mado gum 4 auséncia da mitologi: Ihe apontel as diversas casas (3 moderns seriam condensdes também & monotonia se as {abuls das geegosfaserao nico meio de fazer varia az obras de imaginacio; pois, quanto mals esas fabulas sin digoas de ‘dmiragao nas pootas antigos que as empregaram, mais dificil para nossos poeas serviemtse elas, Bem rapidamente cans ‘mo-nos de uma imaginagdo que se exerce sobre um assunto-no ‘qual no nos ¢ permite inventer nada. [NA {A reflexdo ontoldgica | MADAME DE. STAEL, [An entusiasmo da eloquéncia, a ambigéo da gloria proporcionam prazeres sobrenaturais que nio sio necessarios sendo as almas ao mesmo tempo exaltadas e melancélicas, cansadas de tudo aqui- lo que se mede, de tudo aquilo que é passageiro, de um limite, enfim, seja qual for a distancia em que o situemos. £ essa disposi¢éo da alma, fonte de todas as paixdes generosas, como de todas as ideias filoséficas, que inspira particularmente a poesia do norte. Sobre a poesia classica e sobre a poesia romantica" (1810) O termo roméntico foi introduzido recen- temente na Alemanha, para designar a poesia da qual os cantos dos trovadores constituiram a origem, aquela que nasceu da cavalaria e do cri tianismo. Se ndo admitimos que o paganismo ¢ © cristianismo, 0 norte eo meio-dia, a Antigui- dade e a Idade Média, a cavalaria ¢ as institui Bes gregas e romanas dividiram o império da literatura, nunca chegaremos a julgar sob um ponto de vista filoséfico 0 gosto antigo eo gosto moderno. As veres, toma-se o termo cléssico como si- nénimo de perfeigao. Sirvo-me dele aqui numa outra acepcio, considerando a poesia cléssica como a dos antigos, ¢ a poesia roméntica como aquela que deve de algum modo as tradicbes ca- valheirescas. Essa diviséo se reporta igualmente fas duas eras do mundo: aquela que precedeu 0 estabelecimento do cristianismo ¢ aquela que 0 seguiu. Comparou-se também em diversas obras alemas a poesia antiga & escultura, € a poesia ro- ‘mantica & pintura; enfim, caracterizou-se de to- © Tn: De FAllenmage. Nouvelle édition, revue dapeds ls mellleurs texts Paris Garnier roves, (18-7) p, 153-156. Texto integral do capitalo Xt dt “Deuxieme parte ~ De fa literature et des ate. Tradugio de Roberto Acizelo de Souza, Louise Germaine Necker Sia Holsela] Tn NT oO EE das as maneiras a marcha do espirito human, passando de religides materiaistas para religides espiritualistas, da natureza & Divindade. A nagio francesa, a mais culta das nagoes latinas, tende para a poesia cléssica, imitada dos gregos ¢ dos romanos. A nagao inglesa, a mais ilustrada das nagSes germnicas, ama a poe- sia romantica e cavalheiresca, vangloriando-se das obras-primas que possui nesse genero. No examinarei absolutamente aqui qual desses dois, generos de poesia merece a preferéncia; basta mostrar que a diversidade de gostos, a esse res- peito, deriva nao s6 de causas acidentais, mas também das fontes primitivas da imaginagio e do pensamento. Hi, nos poemas épicos ¢ nas tragédias dos antigos, uma certa simplicidade que se deve 20 fato de que os homens nesse periodo se identifi- ‘cavam com a natureza, crendo depender do des- tino, como a natureza depende da necessidade. O homem, refletindo pouco, conduzia sempre a agio da alma para fora; a prépria consciéncia era figurada por objetos exteriores, e as tochas das uriast sacudiam os remorsos sobre a cabeca dos culpados. O acontecimento era tudo na Antigui dade; o carter dispde de mais espaco nos tem- pos modernos; ¢ essa reflexao inguieta, que nos devora muitas veres como o abutre de Prometeu, néo teria parecido sendo loucura, em meio as re- lagGes claras e nitidas que existiam no estado ci vile social dos antigos. Nao se faziam na Grécia, nos primérdios da arte, sendo estétuas isoladas; os grupos foram ccompostos mais tarde. Da mesma maneira, po- der-se-ia dizer, verdadeiramente, que em todas as artes no havia absolutamente grupo: os objetos representados se sucediam como nos baixo-rele- vos, sem combinacdo, sem qualquer tipo de com- plexidade. O homem personificava a natureza; as ninfas habitavam as aguas, as hamadriades? as 8 PersoniicagBes do remorso eda vingonga divinas, na mitologia romana; 8 regosIheschamavam Erinis ou, segundo eufemis mo para apazigusias, Euménides (ito €,Benfltoras), 9 Nines das drvoves, na mitologa greys Uma ideia moderna de literatura florestas; mas a natureza, por sua vez, apodera- va-se do homem; e se disse que ele parecia uma torrente, um raio ou um vulcdo, de tanto que agia por um impulso involuntério, e sem que a reflex pudesse em nada alterar os motivos nem 0s resultados de suas acdes. Os antigos tinham, por assim dizer, uma alma corporal, cujos mo- vimentos eram fortes, diretos e consequentes; nao ocorre o mesmo com o cora¢ao humano de- senvolvido pelo cristianismo: os modernos hau- riram no arrependimento cristdo 0 habito de se recolher continuamente em si mesmos. ‘Mas, para manifestar essa existéncia toda interior, € preciso que uma grande variedade nos fatos apresente sob todas as formas os ma tizes infinitos do que se passa na alma. Se nos nossos dias as belas-artes estivessem restritas & simplicidade dos antigos, nao alcangariamos a forca primitiva que os distingue, e perderiamos as emocées intimas ¢ milltiplas de que nossa alma ¢ susceptivel. A simplicidade da arte, nos modernos, descambaria facilmente para a fri 1a e para a abstracio, enquanto a dos antigos cera plena de vida. A honra e 0 amor, a bravura ea piedade sao os sentimentos que assinalam 0 cristianismo cavaleiresco; ¢ essas disposigdes de alma nao podem fazer-se ver sendo mediante os perigos, as proezas, os amores, as infelicidades, © interesse romanesco enfim, que faz variar os quadros sem parat. As fontes dos efeitos de ar- te sdo pois diferentes, sob muitos aspectos, na poesia romantica: numa, é a sorte que reina; na outra, é a Providéncia; a sorte nao conta com 05 sentimentos dos homens para nada; a Provi- déncia nao julga as agdes sendo de acordo com ‘0s sentimentos. Como a poesia nao criaria um mundo de natureza inteiramente outra, quando ¢ preciso pintar a obra de um destino cego e sur- do, sempre em luta com os mortais, ou a ordem inteligente a que preside um Ser supremo, que nosso coragdo interroga, e que responde ao nos- 80 coragao? ‘A poesia paga deve ser simples e extrover- tida como os objetos exteriores; a poesia cristd tem necessidade das mil cores do arco-iris para no se perder nas nuvens, A poesia dos antigos mais pura como arte; a dos modernos faz ver- ter mais lagrimas; mas a questéo para nés nao é centre a poesia cléssica e a poesia romantica, mas. centre a imitagio de uma e a inspiragéo da outra. Aliteratura dos antigos € entre os modernos uma literatura transplantada; a literatura romantica cou cavalheiresca € entre nds indigena, e a nossa religido e as nossas instituigbes que a fizeram eclodi. Os esctitores que imitam os antigos sub- metem-se as mais severas regras do gosto; pois, ndo podendo consultar nem sua prépria nature- za,nem suas préprias impressdes, foi preciso que se conformassem as leis de acordo com as quais as obras-primas dos antigos podem ser adapta- das 20 nosso gosto, ainda que todas as circuns- tancias politicas e religiosas que deram origem a tais obras-primas estejam mudadas. Mas essas poesias conformes ao antigo, por mais perfeitas ‘que sejam, so raramente populares, porque néo tém, nos tempos atuais, nada de nacional, A poesia francesa, sendo a mais clissica de todas as poesias modernas, é a tinica que ndo esté difundida entre 0 povo. As estancias de Tasso” sio cantadas pelos gondoleiros de Veneza; os es- panhdis e os portugueses de todas as classes sa- bem de cor os versos de Calderén'' ¢ de Camées. Shakespeare é tao admirado pelo povo na Ingla- terra quanto o é pela classe superior. Poemas de Goethe e de Burger" foram musicados, e vés os ‘ouvis repetidos das margens do Reno até o Bal- tico, Nossos poetas franceses séo admirados por todos aqueles que tém o espirito culto entre nés e ‘no resto da Europa; mas séo completamente des- conhecidos pela gente do povo e pelos burgueses mesmo das cidades, porque as artes na Franca nao so, como alhures, nativas do proprio pais ‘onde suas belezas se desenvolvem. Alguns criticos franceses pretenderam que a literatura dos povos germanicos estava ainda na 10 “Torquato Tasso (1544-1595), poet italiano 11. Pedro Calderén de la Barca y Barceda Gonaéles de Henao Ruiz ‘de Blasco y Rint (1600-1681), dramaturgo ¢ poets expanhol 12 Gotiied August Banger (1747-1794), poeta aleméo, infiincia da arte. Essa opinido é completamente falsa; 0s mais instrufdos no conhecimento das linguas e das obras dos antigos nio ignoram cer- tamente os inconvenientes e as vantagens do gé- nero que adotam ou daquele que rejeitam; mas © catéter, 05 habitos ¢ os raciocinios os condu- ziram a preferir a literatura fundamentada nas reminiscéncias da cavalaria, no maravilhoso da Tdade Média, aquela cuja base é a mitologia dos gregos. A literatura romantica é a Ginica susceti- vel ainda de ser aperfeigoada, porque, tendo as raizes no nosso préprio solo, &a dinica que pode crescer e vivificar-se de novo: ela exprime nos- sa religiio; evoca a nossa histéria; sua o anci,? mas nao antiga." A poesia clissica deve passar pelas reminis- céncias do paganismo para chegar até nés; a po- esia dos germanos é a era crista das belas-artes; ela se serve de nossas impressdes pessoais para nos comover, © génio que a inspira dirige-se imediatamente ao nosso coragao e parece evocar nossa propria vida como um fantasma, 0 mais poderoso e terrivel de todos. Francois-René de CHATEAUBRIAND (Saint- Malo, 1768 - Paris, 1848) Integrante da velha aristocracia france- sa, fez.carreira militar e posteriormente atuou no jornalismo, na diplomacia e na politica, durante ‘oconturbado periodo pés-revolucioniiio. Assu- miv posigoes contraditérias, ora alinhadas com 0s ideais republicanos e democriticos, ora iden- tificadas com @ realeza e os princ{pios mondr- quicos. Considerado pai do romantismo francés, defendeu uma concepcio de literatura fecunda- da pela religido crista, como alternativa ao culto da antiga mitologia greco-latina promovido pelo dlassicisma, 15 Isto & emote, 1 Isto & greco-latina Arlt ontop | rangoit René de CHATEAUBRIAND i

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