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PARTE I A FILOSOFIA DA PATRISTICA LATINA CAPITULO I TERTULIANO A historia da Patristica latina desenrola-se primeiro € principalmente em terra afticanas. De hd muito a Africa Setentrional — a antiga Cartago — tornara-se a provin. cia mais florescente do Império Romano; de par com a cultura € os costumes roma. nos, adotara-se ali também a lingua latina. Relativamente pouco atingida pelas Jutas entre imperadores e contraimperadores, devido a sua remota situagao geografica, a velha colonia gozava de uma prosperidade invejavel, que alias nao deixava de benefi ciara propria Roma. Criaram-se assim as condigdes materiais necessarias para um in. cremento notavel da cultura literaria ¢ cientifica. E provavel que o cristianismo se implantasse bastante cedo em Cartago, sendo anunciado nao pelos proprios apdstolos, mas por pregadores vindos de Roma. Pelo ano 200 ja havia ali uma numerosa comunidade crista. Nao tardou em chamar a aten- ¢ao das autoridades, que lhe moveram feroz persegui¢ao. Neste periodo deve local zar-se também a vida de Tertuliano, o protagonista literario da comunidade cris africana. Vida — Filho de pais gentios, Quinto Setimio Floréncio Tertuliano nasceu em Cartagt provavelmente entre os anos 150 e 160. A principio costumara escarnecer dos cristdos ¢ levatt uma vida dissoluta, segundo sua pr6pria confisséo posterior. Todavia, terminou por abragat? nova religido, movido, talvez, pela perseveranga dos martires, Era casado e€ nao consta que haja sido sacerdote. Por volta de 205 aderiu a seita montanista, que parece té-lo atraido pelo gor ascético dos seus adeptos. Mas nao tardou a desentender-se também com estes. Finalmet te fundou ‘uma seita propria, a dos tertulianistas, que ainda no tempo de Agostinho possuia” uma basilica em Cartago. O bispo de Hipona teve a Satisfagao de poder reconcilid-los co™ Igreja. A data da morte de Tertuliano é desconhecida, Pe aaa ores, Colérico, ¢ de uma fantasia ardente. Formado em ju 5 Perfeito da lingua latina. No De Pallio, onde se just Por haver troc: rl faz Soria ‘ a a toga de tribuno pelo manto de fildsofo, deparamos textos quase indec! ie oe estilo admiravel e de uma notavel vivacidade mental, comandava todos sos que fazem um grade jurista, Cunhou curs, gragas a sua extraordinaria precis, ca (p. €X. aS expresses: “Um Deus em ines po: uagem de Tertuliano foi a que mais prot recursos das qua's: gia teolOB gata, afin Obras e edigées — | Apologeticum ou Apolos eto e visa convencer as autoridades romanas a desis ee uma série de argumentos juridicos, Tert bre os cristaos atingem antes os gentios € seus fulsos ¢ que os cristaos sempre se portaram como bons cida Gificios ML 1305-604, CSEL 69 (H. Hoppe). FloPs ma edigfo, por capitulos, sentengas e paginas 2. De Praescriptione haereticorum (= Pr. Haer.), Pa sigio abaixo ~ ML 2,13-92. CSEL 70,1-58 (A. Kroyman). F goes sio extraidas desta edigao. 3, De anima. Discorre sobre a esséncia, as propriedades, imortalidade da alma — ML 2,681-798. CSEL 20 (I) 298-396, de A. Reifferscheid ¢ G, Wissowa, Citaremos esta edigdo. a expo. 040 (Martin). Ag ta- § 1. Tradigao e filosofia Tertuliano é adversario irredutivel da filosofia grega. A seu ver, as heresias so 0 fruto do fascinio e da sedugao que ela exerce sobre os espiritos, ¢ por isso nao cessa de lamentar-lhe os éxitos palpaveis. Pois nao é um fato que intimeros homens se deixa- ram engodar pelas fantasticas doutrinas dos gndsticos, e nomeadamente por aquelas da Escola de Marciao?' A diferenga dos outros apologetas, Tertuliano recorre a um argumento essencialmente juridico, o da prescrigio. I. O tradicionalismo de Tertuliano Oargumento da prescricdo é frequentemente utilizado por Tertuliano, que, ali4s, nao the xplica o sentido. Donde a conveniéncia de algumas notas clucidativas. Determinava a Lei das Doze Tabuas que um bem de que se fizesse uso incontestado pelo espago de um ano, ou lm{erreno de que se usufruisse sem contestagio por espago de pelo menos dois anos, passaria “Ser propriedade legitima do usufrutuario, Leis semelhantes vigoravam nas provincias. Em todo caso, qualquer pessoa que tivesse exercido a posse incontestada de alguma coisa por cer- 'espago de tempo, podia — mediante uma prévia decisio judicial, baseada no titulo de pres- aa ines, ‘Possessionis praescriptio) —, rejeitar qualquer contestagio por parte do antigo etario, eee ano aplica esta regra a teologia crista. Os gndsticos pretendem interpretar i ce, mas injustamente, ja que estas nao lhes pertencem de direito. A Igreja, ate ‘an10, pode apelar a uma tradi¢ao ininterrupta, a partir dos tempos primitivos Presente. Na base desta transmissao continua da Escritura ¢ da verdade, a Igreja Argue wrado anda tole eles the tien clo ations retém um legitimo direito de prescrigao, ao passo q) vatos, ndo cabe 0 menor direito a clas’ Neste estranho argumento, que domina toda: a orientagao geral do nosso autor: uma orientaga interpretaco do pensamento cristao. 1. A doutrina crisia representa, antes de tudo, a tiva, e nao enquanto profissdo subjetiva. Individu to sujeitos ao erro. Nenhuma dignidade eclesidstica, nem mesmo o ma profisso suprema da fé, pode eximi-los de erro’. Também o martir herético continua sendo herege. E mister, pois, julgar as pessoas de acordo com sua fé, e nao a fé de acordo com as pessoas. Por isso a pessoa individual nao é livre para aceitar ou rejeitar cristianismo, segun- do suas convicgdes pessoais, nem para abragar algumas de suas doutrinas ¢ para rejeitar outras. A aceitagao da fé crista implica a rentincia ao direito de livre exame dessa fé", 2. Pela mesma razao, a fé nao admite progresso. Sendo a fé um fato objetivo, que é preciso aceitar como tal, nao é licito acrescentar-Ihe ou subtrair-Ihe 0 que quer que seja: cumpre aceita-la em sua integridade: “... sed nec eligere (licet), quod aliquis de arbitrio suo induxerit™. Nesse contexto, Tertuliano apela palavra de Sao Paul “Ainda que um anjo do céu pregasse evangelho diferente do que vos temos pregado- maldito seja!™ ZayJy: 40° Za nom awamaelbo Tertuliano nao deixou de perceber o quanto a sua posicao se alonga da dos filéso*os-here- ges. oO filésofo_ investiga; vive exclusivamente para a pesquisa; pouco se lhe da alcangar ou ae ae nen ee ea investigagao vém a constituir um fim em si mes- ee Se nese TY ae ee eran z Leni lareis” (Mt 7,7); mas esta exortagao nao significa um conv’ cisma € a diivida inquietante. Para bem compreendé-la, Tertuliano parte do fato historico: Cristo propos uma s6 doutrina claramente definida a ser ace’ : ém 08 ‘a por todos; logo, também gentios devem prociré-a abragé-la assim que a encontrarem. Ora: no & possivel busca Berrie eases ccen ae mores nhamos ou guardemos aquilo que cremos. Ademas, do nomen os ers cent » do momento em que alguém se convene? de hayer encontrado a doutrina de Cristo j F j4 nao deve crer, nem utr coisa, porquanto esta mesma doutrina . Por conseguinte procurar 0! nhamos a regra da fé:nada mais é Reese ran case fore dela Bast ie ane a iat aexegese de T 0 acentu iil vi constitui, assim, a nor paula fide re . é A ignte em si mesma, ela também d se asgressto de sses limites conduz e norinelt aexpor-se a0 perigo de ultrapas: y ails wt, ne quod non debeas noris, quia quod deb pa da fe conhe m tudo quanto lhes é neces: e o ue contradiz dquela norma ¢ pura igno feed ‘ eu ynihil Ba . Como se vé, Tertu \ ide un Pelo exposto, nio admira que Tertuliano adotasse ur para.com a filosofia, Em sua opiniao, os filésofos horeges: silo os proprios patriarcas dos h i 0 is jos dos reticos ©. mesmo Socrates, consegue ugir a esse veredicto impiede 1. Noseio do cristianismo ndo hd lugar para a filosofia, Ne modo, visto que pela fe até mesmo os iletrados chegam 4 € inqoessiveis & filosofia, “Qualquer operario cristac 4 encor ho dele, respondendo por suas agdes a todas as perguntas 4 respeito de Deus; Platdio, ao contrario, afirma nao ser facil enco! universo, e, mesmo que se o tenha encontrado, declara ser dificil faze todos”, _ 2 Para o cristo a filosofia, além de supérflua, representa un ver dadeiro perigo, Visto ser contriiria a fé. Nao ha negar que ocasionalmente os wwofos Loparam com a Verde e concordam conosco: “Plane non negabis aliquando philosophon [uxt nos- {ros sensisse™, Mas isto se deve atribuir a um erro feliz ou A sorte cep “Nonnuin= quam et in procella confusis vestigiis caeli et freti aliqui ports prospero ervore, NON- umquam et in tenebris aditus quidam et exitus deprehenduntur caeed felicitate”™. ante razdo quase se contradizem, Nao ha diivida de que Tertuliano encontra Oposigiio, e até uma contradigao, entre a fee a filosofia; niio se pode afirmar, po~ fm, que admita uma contradigaio entre a fe ea razilo, se bem que Hs suas expressdes Paregam insinud-la, nem ser de outro 5 verdades hecer a Det se e da testemue iam fazer a eto do yeonhecido de z fortes; mas A sua mesma forma Fin qualquer hipdtese, & formula ata frase nao pansa de uma inter- Seus eserit ‘ Aoristieg Sxetitos, com efeito, nos deparam expresses ass Pel ae pen ee cetclende de interpretagtio. rdum jamais foi empregada por Tertuliano. ti io. nos prop de incom 10, Nao h em fo “se em iste encontro com a verdade se realiza mulas obscuras © prop devido ao seu carater suprarracional. De sorte que a st de sua certeza. § 2. Ideias filoséficas Tertuliano pagou pesado tributo a sua inimizade com a filosofia, Sempre que se poe a filosofar, enyereda por caminhos os mais falsos possiveis, do ponto de visty cristao, se é que se pode admitir que ele quis permanecer cristao. I. Em psicologia Tertuliano propugna uma forma estranha de materialismo; neste particular adota, em grande extensio, os pontos de vista do estoicismo. .A alma é um corpo sutil, ténue e aeriforme. Espalha-se por todas as partes do corpo, do qual assume a forma. Destarte Tertuliano cuida poder assegurar a substan: cialidade da alma. $6 uma alma corporal pode agir sobre a materia, isto é, sobre o seu corpo, ¢ sofrer-lhe 0 influxo. Assim se explica, também, o fato de a alma depender para sua existéncia e permanéncia no corpo, da alimentagao assimilada por este. F estranho que Tertuliano se reporte, em abono dessa doutrina, & autoridade do méd Sorano. Embora nao fosse cristao e argumentasse pela mortalidade da alma, num ponto, tudo, Sorano esté com a razao, a saber: quando afirma que a alma ¢ material — embora estive: se excluido da verdade integral do cristianismo. A objecdo de que a alma se nutre da ver devendo por isso ser incorp6rea, Tertuliano responde com caustica ironia: “Se tal f ja muitos homens teriam perecido de fome”"”, Mas é da Escritura que Tertuliano tira o argumento mais incisivo para a corporeidade da alma. Ali, com efeito, superabundam as provas: “quantum ad nostros ex abundanti®. Ente outras coisas, a Biblia refere-se aos tormentos do fogo sofridos pelas almas dos réprobos; 0 rico epulao que, condenado ao inferno, solicita 4gua do pobre Lazaro; e no diz a Eseritura que Joao contemplou, em éxtase, as almas dos martires?"® 15. De carne Christi 5; CSEL 70, p. 200, 26s. 16. De an. 1; 299, 19. | 17. De an. 6; 306 ibe ca, eke »,Aalma dos filhos forma-se, é maneira de um reby sjgnismo). Assim como a arvore langa o rebento, assim um, arte di iranslada, pelo semen, ao filho, em cujo corpo e Peat 4 a SC evolve ¢ mente: "culls (hominis) anima velut surculus quidam ex nem deducta et genitalibus feminae foveis commendata ¢nto, da alma paterna (tradu- na do pai se ‘sce independente: imatrice Adam in propagi- De forma que o homem consta de duas entidades distintas: um es] radue?—e uma forma exterior, em que o sopro pneumatico se sol rio, eda qual ambém recebea forma. Pelo que a estrutura da ma si em tudo ad corpo: “habens et ille (homo interior) oculos et aures suas quibus Paulus denim ataes etyidere debuerat, habens et celeros artus, per quos et in cogitationibus utitur et in somniis fungitur””'. Portanto, 0 intelecto ¢ 0 préprio nous nao passam de umas como disposigdes cor- ‘por inerentes 4 alma. to inter or ~ spiritus num como involt6- Il. Igualmente na Teodiceia de Tertuliano predomina o mater ismo estoico. 1, Ha um conhecimento natural de Deus, literalmente herdado pela alma. A mui citada palavra de Tertuliano sobre o testemunho da alma naturalmente crista (testimo- nium animae naturaliter christianae) deve entender-se em fungao da teoria traducia- nista, por ele perfilhada. De Adio a alma herdou nao apenas o pecado, como ainda a sua primitiva semelhanga com Deus, E esta ideia que sugeriu a Tertuliano a célebre doutrina do testimonium animae. Visto remontarem até Addo, gragas a uma transmissao continua, todas as almas continuam re- tendo a similitude com Deus a ele conferida e, por este motivo, sio naturalmente cristas. Logo, basta colher os testemunhos da alma, para, a partir deles, se poder conhecer a verdade. Ter- tuliano se empenha por descobrir este festimonium animae christianae mediante uma analise da linguagem, das oragdes ¢ das exclamagées espontaneas dos gentios; sua conclusaio ~ bem mais interessante que a dos modernos psicanalistas ~ ¢ que a alma possui um saber inato da bondade de Deus e de sua propria imortalidade, bem como das penas ¢ recompensas futuras”. 2. Deus é uma substancia corpérea. Tertuliano deriva a tese da corporeidade de Deus da proposigao de que tudo o que € real ¢ material; para ele, 0 que nao é material nao existe, é um puro’nada. “Quis enim negavit Deum corpus esse, etsi Deus spiritus est? Spiritus enim corpus sui generis in sua effigie””. A despeito de sua corporeida- de, Deus ¢ invisivel, gragas ao seu esplendor, exatamente como a substancia do sol é 'nvisivel para nos, pois que nos cega: s6 lhe percebemos 0s Talos. Eis a razo por que no nos podemos representar a Deus salvo em forma humana’. Se eee W.Bid, 19; 331, 8, Ibid, 9;311, 18, Mlbid, 311; 28, ACE o a Hy Sserito “De testimonio animae”: ML 1; 681-692. NAV. Prax. 7. Cor) 47 5 997 NA AFILOSOFIA DA PATRISTICA LAT! 136 centar a estas doutrinas mais ou Menos errdneas dg Shieh de sua aparéncia bem moderna, contrasta, qe alé s f A |, Tertuliano tem sido muito aplaudido por gy Pedimos vénia para tuliano uma ideia sua que, ale modo, com seu rigorismo habitua’ i sciéncia em mi 4 liberdade de conscienck ue cit pre Se té-lo arrebatado a ponto de Bee Bete oe at iu o direi vre escolha de religiao; mas esta reito da livre escolh gido; vida de que ele estatuiu o direi! regnno eT ee taste asua Beattie s6 pode valer para uma tinica forma de religi: is a ber, ri mani iuris et naturalis potestatis est unicuique quod putaverit colere ve nee reli nis est cogere religionem, quae sponte suscipi debeat, non vi, quum et hostiae a mo libenti expostulentur. Ita etsi nos compuleritis ad sacrific andum, nihil praesta is°25, Tais consideragdes, escritas em melo as angustias da perseg cd, tis diis vestris a ane . certamente Ihe honram o carater, embora destoem do seu rigor costumeiro, atéria religiosa. Mas 0: Apreciagao A grandeza do seu carater eo fulgor do seu talento fazem de Tertuliano uma das figuras mais fascinantes da patristica latina. Em sua obra comega a tomar corpo, no seio do pensamento cristo, a tendéncia ao repudio incondicional da ordem natural, notadamente, da filosofia. De um ponto de vista estritamente filoséfico, a obra de Tertuliano é de somenos importancia. Seu materialismo crasso nao poderia deixar de causar estranheza, e é um fato que permaneceu estéril. Bem mais digna de atengio fi sua atividade apologética. De modo particular, Tertuliano fez-se o advogado da gre jam face do individuo, no que foi imitado pelo maior dos seus discipulos, Cipriano, de quem se diz ter sido incapaz de separar-se dos escritos de Tertuliano; toda avez que desejava compulsa-los dizia simplesmente: Da magistrum. A condenagio da filosofia Hae sunt doctrinae hominum et daemonio- Eis as doutrinas de homens ¢ deménies rum, prurientibus auribus natae de ingenio sa- nascidas do engenho da sabedoria mundana p Pientiae saecularis, quam dominus stultitiam ra encantar os ouvidos, Esta 6 a sabedoria que? vocans stulta mundi in confusionem etiam phi- Senhor chama de estulticie, aquele mesmo Se ‘osophiae ipsius elegit. Ea est enim sapientia nhor que, para confundir tarabém a mest fil eon ee interpres divinae naturae sofia, escotheu ‘© que passa por estulto aos oles te ae eae denique haereses a phi- do mundo. Esta & a sabedoria profana ue © ee merariamente pretende sondar a natureza ¢® : decretos de Deus. E as proprias heresias Vi0P® dir seus petrechos a filosofia.

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