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Copysigh © 200 by Vagner Gongalves daSilva edo. 2000 edo, rempressio 2006 aio cao de Catalosagso na Publicago (IP) (Cama Beas do Livo, SP, Bras) ‘Siva Viger Gnalves da (0 Antoplogo © sua Magia: Trabalho de Campo e Texto Ensrifio mas esis Anropoliicas sobre Religies Aro-brai- leis Vpner Gentes Sl ~ Po, ein. ~ Sto Paulo: Edi ‘ead Uae de 80 Pau, 2006 iio, IsaN 8531605718 |. Abrasives —Relgito 2, Aopoogia—Trabtho de Can po ABnologia Pesquisa atopolgiea 1 Talo. hl: Tre ao de Canpoe Testo Emopefico nas Pesquisas Anroplégcas ‘ole Relges Afo-brasieis onssss (© 030569960881, Indices pra etilogo sistem |. Amopelogiacalara Religies alo brasileira: Sevilogia 306.69940981 2. Rogoesafto-basels: Antopolgia cultura: ‘Sovilogin306.69940981 Dios reservados & ‘Edp— Editors da Universidade de Sto Plo ‘x, Prof Laan Guten, Tease J, 378 6 andar ~ Ba ds Ariga Retova ~ Cidade Universita (s$08-900~ Sao Palo ~ SP ~ Brasil Divisio Comer Tel, (Ox!) 3091-4008 / 3091-4150 SSAC (Des! 1) 3091-2911 — Fax (Oex11) 3001-4151 ‘wep bedixp ema: edusp@eds yp. Pri in Breit 2005, Fa fit 0 dap legal praitis desertas IN :ittte ce Bromisiw aatinowski ao seu antoligic lve Age rautas do Pacifico Ocidental, se Imagine-se 0 leitor sozinho, odeado apenas de seu equipamento, numa praia tro- pical préxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ox o barco que o trouxe afas ‘se no mar até desaparecer de vista. Suponhamos, além disso, que voe® seja apenas ‘um principiante, sem nenhuma experiéncia, sem roteiro e sem ninguém que o pos: sa auxiliar, Isso desereve exatamente minha iniciagSo na pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné (Malinowski, 1 Para 0 antropélogo nao é dificil identificar-se com Malinowski e a mirar-Ihe a forma como conseguiu inserir-se nas aldeias nativas, superar obstaculos e produzir uma das mais belas etnografias sobre 0 modo de vida dos ilhéus da Nova Guiné. Entretanto, a exposicio feita por esse autor das circunstancias de realizacao de seu trabalho de campo nao pre- tendia apenas obter a identificagao ¢ solidariedade do leitor diante de suas mazelas pessoais na busca do que certos melanesianos pensam da vida. Tratava-se de consolidar um método que, embora nao fosse total ferigao da mente inédito, deveria ser visto como 0 principal meio de 0 ter tide qualidade das etnografias'. Afinal, Malinowski lamentava 1 abalho de campo 1. Malinowski nto foi certamente o dnico a defender a necessidade do Vale embrar trabalho de Franz Boas entre os esquimds 08 inaigenas norte-amerca dos integeantes da Expedigio ao Estrelo de Torres eat¢osde alguns autores evolucionistes “ O AWTROPOLOGO E SUA MAGIA um roteiro nem pessoa que o ajudassem nesse ponto e considerava im- portante mostrar nio somente o que aqueles nativos em particular eram mas, 0 que os etnégrafos em geral deveriam ser. Nativos reais e préxi- mos (“de carne e $80”) exigem etnégrafos reais e prdximos (também de “carne e 0850") Para o leitor, contudo, que além de “acompanhar” a trajetéria de Malinowski, iniciou-se no oficio de etndgrafo, viveu a sensagio de abando- no eansiedade que caracterizam o trabalho de campo, enfrentou seus pr6- prios desafios e escreveu sua etnografia, é possivel perceber o quanto existe de imponderivel eeliptico nas introduces em que os antropélogos descre- ‘vem o sett trabalho de campo e também na atividade de Ié-las a fim de aprender ow refletir sobre a natureza desse trabalho, Essa percepgio torna-se mais intrigante quando se constata 0 des- compasso entre a enorme importincia que os antropélogos atribuem a observagdo participante ou ao trabalho de campo para a produgio das representagoes sobre 0 outro e a pouca reflexio que fazemos desse tema. Hi décadas temos revisitado (e citado sem muitos acréscimos) a intro- dugio aos Argonautas, mesmo sabendo que a antropologia e a pesquisa de campo muito se modificaram desde o desembarque ¢ a permanéncia de Malinowski nas praias da Nova Guiné entre 1914 ¢ 1918. As etnografias atuais, por exemplo, nao sto mais produzidas apenas por homens bran- cos que desembarcam com seus equipamentos em praias tropicais ou descobrem aldeias isoladas. Cada vez mais a etnografia vem se consoli- dando como uma atividade académico-profissional realizada inclusive por povos antes consicerados apenas “objetos” desse conhecimento, “Sujeitos” ¢ “objetos” da antropologia tém mudado de perfil em decorréncia das mudangas nas relagées politicas, econdmicas ¢ culturais entre os paises que tradicionalmente “produziram” os primeiros € os continentes que tradicionalmente “forneceram” os segundos. Ao lado das “praias, al- deias e povoados” da “antiga” antropologia, estudam-se também a ci- dade, seus grupos, seus bairros, seus habitantes e seus estilos de vida, entre outros temas. © descompasso entre a importancia atribuica ao trabalho de campo na antropologia e sua presenca escassa nas etnografias pode ser avaliado sob varios pontos cle vista. Esses pontos englobam desde posigSes draconianas, como Morgan que, embora conhecidos por seu excessivo apego ao trabalho de gabinete, ‘compilando inforiagSes de segunda-mSo,tiveram contates com os grupos dscritos (ver, fentre outros, Stocking, 1953) Alm disso, como lembrou Lévi-Strauss, movimento de estranharse em si mesmo efamiliarizae-s com 0 outeo (prinepios bsieos da observagio participante ou co trabalho de campo antropolégico) fora anunciaelo desde, pelo menos, Rousseau, como inerentea produgio do conhecimento sabre o homem realizado pelo pro- prio homem, isto € nas ciéncias humanas observador e observa, ou “sujeitos” e “je tos” do conhecimento, so da mesma natureza (LéviStrauss 1976) como a de que toda e qualquer experiéncia de campo ¢ singular, pessoal ¢ intransferivel, até posturas mais “sofisticadas”, como as de alguns cri- ticos contemporineos, que vem a escassez de informag6es sobre 0 tra- balho de campo como uma estratégia (inconsciente ou nao) adotada pelo etndgrafo para estabelecer a sua “autoridade etnografica” nas introdu- cbes metodolégicas (narrando brevemente como chegaram ao grupo € com este conviveram) para, depois, “desaparecerem” nos capitulos se- sguintes da etnografia e garantirem, assim, uma descricao objetiva do outro (Clifford, 1988: 21). Reflexées sobre o trabalho de campo feitas apenas ele € em si mesmo ou de como aparece nas introdugdes metodolégicas ou nos outros capitulos do texto etnogrifico podem ocultar, entretanto, outras questées mais pertinentes, a meu ver, sobre a natureza do préprio trabalho de campo. Se um dos principais objetivos da antropologia é promover ‘um alargamento da razio possibilitado pelo conhecimento das varias con- cepgoes de mundo presentes nas culturas diversas (considerando-se que as culturas s6 se encontram através dos encontros dos homens), 0 tra- balho de campo é um momento privilegiado para o exercicio desse obje- tivo, pois € nele que a alteridade, premissa do conhecimento antropols- gico, se realiza, Malinowski, ao indagar-se sobre a natureza da etnografia, sintomati- camente associow a relagio entre etnégrafo e “nativo” 8 “magia”: “Qual entao, esta magia do etndgrafo, com a qual ele consegue evocar 0 verda- deiro espirito dos nativos numa visto auténtica da vida tribal?” (Malinowski, 1976: 24). Como os magicos geralmente ndo ensinam todas as dimensées em termos do que que envolvem a magia que praticam, Malinowski se dispds a ensinar ape- nas alguns dos seus “truques”: 0 antropélogo deveria passar longos pe- riodos de convivéncia com os grupos estudados ~ se possivel morar nas proximidades de suas casas -, acompanhar de perto suas atividade diari- as, desde as mais triviais até as mais solenes, aprender a lingua nativa evitando intérpretes tendenciosos, enfim, absorver os valores e sentimen- tos do grupo, observando cuidadosamente o que as pessoas fazem e di- zem), Entretanto, a forma como ele conseguiu os efeitos desejados a partir esses “truques” raramente aparece explicitada nos Argonautas. Talvez por isso mesmo, os antropélogos de varias geracdes venham usando esse “manual de feiticeiro” para evocar e fazer baixar em si mesmos 0 “espiti- to” do pesquisador de campo sem sentirem necessidade, também eles, de revelar como ¢ feita essa magia, “Isso descreve exatamente a minha iniciagao na pesquisa de campo", ‘escrevett Malinowski sobre stia chegada e permanéncia nas ilhas do Pacifi- co Sul, Essa frase nao ajuda muito, entretanto, quando a tomamos ao pé da letra ou quando a reproduzimos, referindo-nos aos nossos mundos parti- culares de investigacio, pois adquirimos a consciéncia de que a pesquisa » oO AWTROPOLOGO £ SUA MAGIA de campo é exatamente muito mais do que isso*. Mas, como dizé-lo? Imagi- ne-se vocé, leitor, sozinho numa praia desert redeg 12 pcados A imagem do trabalho de campo como uma “aventura” em busca de povos geografica e culturalmente distantes continua viva até hoje, _mesmo quando os antropSlogos pesquisam grupos sociais que habitam bai ros proximos aos de sua residéncia, O deslocamento do antropélogo para 05 locais onde vivem aqueles que ele deseja observar e sua permanéncia ali durante 0 maior tempo possivel continuam sendo um rito de passagem’, valorizado por seus praticantes, e que confere a antropologia um certo “carisma” por stia aura de aventura a céu aberto. E para observar cada grupo de “argonautas” que se aventura mar afora, os antrop6logos cons- troem diferentes tipos de “canoas” (estratégias de aproximacao) para acompanhé-los. Expressoes como “delimitar 0 campo” e “fazer 0 campo”, usadas fre- agiientemente no jargao antropol6gico como sindnimos para 0 tema ou gru- po social a ser investigado (uma sociedade indigena, uma comunidade re- ligiosa etc.) e o seu processo de observacao, respectivamente, demonstram que o trabalho de campo assume um valor singular na constituigao e de- senvolvimento do projeto eogratico. Nas etapas estabelecidas oficialmente pela academia para a realizagio dle uma pesquisa etnografica, o trabalho de campo aparece, entretanto, como ‘Come lembra Ma a Peirano (1995: 137) “Desde o inicio deste séculoestava claro que {ransmitr como se faz pesquisa de campo em antropologia era uma tarefaimpossivel. Hoje sabomios que a pesquisa depende, entre outras coisas, da biografia da pesquisador, das op- 8estericas presentes na diseiplina, cl contexto sécio-histério mais ample ¢, nfo menos, das improvisivessitungies ques configuram entre pesquisador e pesquisadonodia-a-dia da pesquisa. Mas houwve época em que se pensou que bastava aprender a fazer censos, ma pas, gencalogias coletar histérias de vida, anotar os impondersveis’ em um dideo,esre eros mites esau’ sea os manuais queprotendiam |..Jajudarctndgrafo acntendero smunelo em que viva onativo. ilusio de que era possivel transmitir como fazer pesquisa de campo se esvai coma eritien a busca do nativo-exstico, Esse estado de coisas, hojen80 mais eausa de desesperanga, mas uma realidade que se explora nos seus aspectos posit ma-se. flo condtor da etnografa que rest da pesquisa”. 3. Roberto DaMata (1991: 150) apresentao trabalho de campo como um rto de passagem ou como uma “Viagem ximanica” realizada pelo antropélogo 8 cultura que investiga a fase intermediaria entre a proposicio de um projeto de pesquisa ea anali- se dos dados apresentada no texto etnogrifico, Essa concepcio linear do processo de producio etnogratica (ensinada nos cursos de metodologia e presente nos manuals e formulirios padronizados de solicitagio de fomen- toa pesquisa elaborados pelas instituigées dle apoio) em geral nao condiz, totalmente coma realidacle de seu desenvolvimento’. O envolvimento com © campo pode inclusive comecar antes do desembanyue do antropélogo no quando ele jé a abandonou. O “cam- po” nao € somente a nossa experiéncia concreta (mesmo se esta fosse mensuravel de forma tio objetiva) que se realiza entre o projets ea escrita etnografica. Junto a essa experiéncia, o “campo” (no sentido amplo do ter- mo) se forma através dos livros que lemos sobre o tema, dos relatos de outras experiéncias que nos chegam por diversas vias, além dos dados qu ‘obtemos em “ primeira-mao”, Projeto de pesquisa, trabalho de campoe tex- to etnografico nao sio fases que se concatenam sempre nessa ordem e de forma linear. Na pritica essas etapas sio processos que se comunicam e se em “sua aldeia” e prosseguir me: constituem de forma circular ou espiral. As vezes é somente no final da pesquisa que se encontra o que se procurava. Também pode acontecer de, Jo se encontrando o que se procura, “remodelar-se” o texto, de modo a valorizar 0 que se encontrou Quem ji escreveu uma etnografia sabe que a “introducdo” geralmente é escrita depois da “conclusio”, quando 0 projeto entio € apresentado de forma quase linear, retirados os desvios de rotas, hipéteses que nao se confirmaram, percalgos do caminho ete’. 4. Asaginciasfinanciadoras de pesquisa freqientemente patrocinam ou apsiam as pesqui sas quando tm relativa certeza de que suas hipdteses podem ser confirmadas. Um projto dle pesquisa a0 er proposto deve trazer ems, lecerta forma, os resultados aos quais 56 se chegaria depois derealizada a pesquisa. Una” pesquisa” (walizada anteriormente “pes uisa proposta”) deve subsidiaro projeto sendo esta realizada por conta do pesquisador ‘ou, quando este nio tem experinia prvi, segundo a suigesties eos “maccles” ensina los pelo seu orientador ou outros pesquisadores, 5, Bate trabalho nso foge& regra, No mon {abril de 1997) apenas um capitulo do texto que its compor este trabalho (oganizaco a prneipio‘em trés apitulos) esta escrito. Somente agora estow entendende melhor a forina como o primero nto em que escrevo estas frase capitulo poder conteibuir para a totalidade do trabalho e ¢ provvel que s6entendereio sentido dos tres eapftulos a eserever a conclusto, Quandoesta esliver exertaenfatizando cottas milicasé provivel ue e fag 0 caminho inverso reescrevendo ou reenfatizando no texto total do trabalho aqailo que cham a atengio na conelusio, isto & fazendo as passagens que possam deisar 0 trabalho mais uniforme ot homogeneo, A introdugio Portanto, a Giltima parte que se escreve na etnoggafi, dando uma visio geralmente linear do desenvolvimento do trabalho escrito que necessarianente nso & condizente como de senvolvimento sinuoso que marcoa o processo cle conhecimento, Vale lembrar, ainda, 0 papel importante que leita das paces do trabalho feita peas pessoas academicamente rsponsiveis pela sua avaliagio e diseussio, como orientador eos integrantes da banen dle qualificacio (ou mesmo por outias pessoas mais prximas da antropsllgo ds quai ele solicita suigestes),desempenha esse process constante de reescriura do texto etnogriic. p P " Evans Pritchard (1985: 88) afirmou que a antropologia deveria estudar problemas e nao povos. Contudo, nao se pode esquecer que a antropologia & uma forma de conhecimento definida segundo os limites impostos pelas regras da academia, O desenvolvimento do trabalho de campo sofre, por- tanto, os constrangimentos relacionados com 0 modo pelo qual a escolha do tema, das hipéteses e das perspectivas tedricas, para citar apenas alguns, itens presentes num projeto de pesquisa, é negociada na academia que 0 acolhe eo legitima. E nessa negociacio, além dos “méritos cientificos” ine- rentes ao projeto de pesquisa, deve-se considerar a influéncia das politicas académicas (linhas de pesquisa institucionalizadas, estabelecimento, reor- ganizagio ou forialecimento dos niicleos de pesquisadores, afirmagio de liderancas intelectuais etc.) na escolha dos temas, regiGes geograficas, gru- Po sociais etc,, que compoem o “recorte” das pesquisas. Na drea dos estudos etnogtificos sobre as religives afto-brasileiras, por exemplo, a importancia dessas politicas académicas na definicéo do proje- to de pesquisa e no desenvolvimento do trabalho de campo € percebida tanto pelos antropélogos das geragGes mais antigas com quem pude dialo- gar, quanto pelos das mais recentes. (O antropélogo Octavio da Costa Eduardo conta que nos anos 40 a defi- nigao de projeto da pesquisa que realizou em Sao Luis do Maranhao (Eduar- do, 1948) resultou sobretudo dos interesses académicos do seu orientador Melville Herskovits: OCTAVIO EDUARDO A certa altura Herskovits disse: [..] “Sobre o que voc? quer fazer a dissertagio de mestrado?” Eu disse: “Eu gostaria de escrever sobre socieds- des de folk”. Olha, amigo do professor Redfield, porque eu ia & Universidade de Chicago com ceita e quase me botow para corter. Porque eu havia me tornado freqUeneia [J € eu estava com aquela preocupagio da sociedade de folk que era 0 ‘grande interwsse de Redfield. E Herskovits: “Que folk culture nfo senhor! Eu acho que voed esté enganado, eu queto vor’ estudando nisso aqui” LVAGNER Ele que decidia isso, deu o tema? (OCTAVIO EDUARDO Deu otoma:"Religides no Brasil eu ji estudeio negro na Bahia; tem estudos sobre o negro em Pernambuco, mas nao tem nada sobre 0 negro no Maranhio, eeu quero saber; é uma parte importante e voet precisa fazer este estt- do” [.- Voltei a0 Brasil em julho, agosto de 1943 com um programa imposto pelo Herskovits de fazer um estudo sobre o negro no Maranhic Em margo de 1998, aps a eserita dos eapitulos restantes,constatei que 0 primero deles nose mostrow adequado aos ramos que os outros dois seguiram,sendo, portant exelut- do da versio final do trabalho. Além disso, a integragio dos dois eapitulos rstantes me levou a unlos num tnico texto pelos motivos expostos na Apresentagao deste trabalho. 6. Diiogo realizado em 7/11/96, Eduardo graduow-se em eincias sociais pela Escola de Sociologia e Politica de Sio Paulo e em 1941 fo para os Estados Unidos eursar a ps- _graduacio na Northwestern University: Depois de sua titulagio, voltou a0 Brasil e lec: Oantropélogo Roberto Motta também definiu o tema de seu projeto de pesquisa sobre o xang6 pernambucano (Motta, 1988) em fungio da suges {do feita pelo seu orientador da Universidade de Columbia: ROBERTO MOTTA Entio, nesse momento que eu tinha uin relacionamento muito ‘bom com met orientador, R st Murph [.1, ele com muita sutileza disse assim “Repare, Sth Leacock acaba de fazer uma pesquisa no Pars sobre 0 batuque que dew até um titulo assim: Spirit ofthe Deep. Eu proprio pretend ir para Salvador fazer a mesma pesquisa. Por que vos’ no faz a parte do Recife?” (..J Entfo, eu voltei para Recife em junho de 72 para comecar a pesquisa de campo’ No meu caso, a proposta contida no projeto de pesquisa, de analisar certas condigdes do trabalho de campo e da produgao das etnografias partir das representacoes que antrop6logos e seus observados fazem dlesse processo, tomando como referencia os estudos sobre as religioes afro-brasi- leiras, também passou por uma negociacio e pode servir como um exem- plo a mais da forma como os temas e abordagens legitimados nos departa- ‘mentos universitérios atuam na avaliacao dos projetos de pesquisa. Tendo sido um adepto do candomblé durante muitos anos e utilizado essa expe- rigncia para elaborar uma dissertagao de mestrado sobre o desenvolvimen to dessa religito em Sio Paulo, os problemas que enfrentei no meu trabalho de campo especialmente por pertencer a0 universo do terreiro e da acade- ‘mia marcaram minha experiéncia de pesquisador. Inspirado por leituras de antropélogos contemporineos que estio analisando a questo do tra- batho de campo, resolvi entender como em minha dea e a pastir de minha experiéncia de campo e a de meus colegas poderia propor uma reflexio sobre esse tema. O projeto de pesquisa apresentado para ser desenvolvido junto ao Programa de P6s-Graduagao em Antropologia Social da Universi- dade de Sao Paulo, em nivel de doutorado, foi julgado por uma banca exa- minadora em 1993. Na entrevista sobre o projeto, parte do processo de sele fo, fui questionado por um dos membros da banca sobre a “relevancia de nou na Escola cle Sociologia e Politica até 1972 quando abandonow a pesquisa eo ensino na ‘ea da antropologiae passou a dedicar-se integralmente a institute de pesquisa de mer cado que fundou 7. Dilogo realizado em 16/4/96, durante a XX Reuno da Associagso Brasileira de Antro= pologia Salvador. Mew primeito contato com o antroplogo Roberto Motta, professor da Universidade Fe em Recife econeci alguns te do Carmo Brandio. Apés dez anos retome o contato com o prof. Matta que se mostiox ‘mito atencioso para com o projto,enviando-me gentilmente sua tese de doutorado de feria na Columbia University Meo! ad Fae: The Xango Religion Of Rec, Bil (Mott, 1988), e de livre-docénci, Edi Bale, Aspe 1991) nas quai apresentou os principals resultados do trabalho de campo que realizou e al de Pernambuco, ocorreu em 1986 quando estive pela primeira vez ros da cidade por seu inteemédio eda anteopéloga Marin do Sarifcio no Xangd de Pernambuco (Motta, sobre 0 qual conversames » oO AnTRoPOLoco F SUA MAGIA um estudo sobre os antropélogos”, pois a tendéncia contemporanea de al- ‘guns pesquisadores em fazer teses sobre “temas bibliogrificos” (que nao ptecisam de trabalho de campo) ou sobre “meta-etnografias” (pesquisas sobre a prépria antropologia) poderia representar um risco para a identida- de da disciplina cuja forca repousaria sobretudo na produgio de “bons tra- balhos de campo e boas etnografias”. Argumentei que et ja tinha feito pes- quisa de campo no mestrado e julgava que agora poderia desenvolver uma reflexio sobre essa dimensio em minha area de pesquisa. Tendo, enfim, meu projeto sido aprovado, meu orientador, a partir de stia propria expe- jéncia na academia, lembrou-me que essa resistencia inicial deveria ser vista como um alerta para os cuidados que eu ceveria ter ao realizar a pes- quisa. O projeto, entre outras coisas, previa realizagio de entrevistas com 08 antropélogos e isto poderia parecer, aos olhos dos entrevistados, uma inversio da hierarquia académica, pois um pesquisador com tum titulo de ‘mestre pretendia analisar a pesquisa de campo de antropélogos com uma titulagao acima da sua’, {8 Binlinhasgerais,eram estes, entre oteos, os temas discutidos nas entrevista. I~ Perspe ai he do eed seligies fora Ieinas! Cane da projet cobseremg de cemps-0 campo era familiar antes da proposta do projeto?/ Qual o papel dla sedugto do tema na execugto da pesquisa?/Havia uma teria antes do campo ou © campo delimitos, negou ou inspirou a teoria?/ Como chegou a0 ‘do anttopslogo: Tilia posal eacadéinicn ata ‘campo? Como foiaescotha dos informantes? Come fi oaprendizado do digo do gru- pot/Qus De que forma as caracteristicas do antcopélogo,subjetivas(sersbilidade, personalidad, 8 Gcnicas”utilizadas(disio de campo, entrevistas gravadas,fotografias)?/ postura, inuigio,identidade sexual), de classe ou éticas interferem na relagSo com 0s Informantes?/ Perteneer a0 grupo e pesqu {gv Quis as estratgas usadas para a obt Fituais?/Houve uma conversio religiosa pessoal? /Aconve Jo ajuda pesquisa? /Ainserge do atop so das informagdes?/ Hove submissto 2 ioajuca ou dificulta aenten- ‘der o grupo? /Como se separain as categoria religisas das explicagbeseietificas?/ Os tagio politiea do scgredostluaissioelev rantesparaentendero campo? /Com aval antropélogo em rlacio a0 grupo estudado? /As etnografis interfere na vida dos a+ pos estudados? /Qual & 0 poder do anteopslogo em evar tadicées, legiimarliderangas religiosas?/Coneci da etnognfits Quas a principasdificuldades eneontradk feegio do texto etnogrificn?/ As experioncins de eampo (0 que fo visto, apreendido, ab nocinas)apareceram no texto?/O estilo académieo implicow das, acréscimos aos dados de campo?/Come a “politica aca- cise tomadas em relagio 8 pesquisa de campo, a6 tems, 3 eérica ete.2/A avai que o grupo iz da pesquisa om da cloguafia: Os bjetives © hipsteses da pesquisa foram expostos o grupo estudado, Por qui? /Comoo grupo clasi- sorvido, envolvimentos gies, modifieagies, influcnciow as ti ficou o pesquisador, avaliou a presengae entendeu o seu trabalho, Houve alguma tentai em?/O gruel os resultados da pesquisa? O que achou? I Perspeetiva do teligioso: Como se dew a aproximagio do antropélogo em relagio a0 gr ‘po?/ Houve interesse em saber o que eraa pesquisa seus objtivos hipsteses te? Como pesqu ntropélogo pode contribu 2 a presenga do pesquisador no terreiro durante © apd a pesquisa? A presenea do aor alterou a rotina da casa?/Existe interes para o grupo set pesquisado? O 1o?/ A eonversso doantropelogo io & necessiia para a pesquisa?/O pesquisador pode falar em nome do grupo de agama forma parater a eli De fato, nos didlogos realizados com os pesquisadores para realizar esta pesquisa, houve certos desconfortos presentes desde os contatos ini ais até a realizacao da entrevista, Procurei estabelecer com os entrevista- dos uma relagéo na qual pudéssemos expor igualmente nossas experién. cias de pesquisa de campo, enfatizando que a minha posigio nao era a de quem apenas pergunta para analisar depois tama recusa em conceder a entrevista formal. De qualquer modo, a pessoa que afirmou nao aceitar “ser informante de antropélogo” cendo muitas informagoes, durante virios encontros, que obviamente nao pude gravar nem anotar (na sua frente). Curiosamente, agi comigo como -utitos religiosos agem com os antropélogos, dando informacées “indie tamente”, como se oficialmente nio as estivesse dando. fm apenas um caso houve abou forne- Além das negociagoes ocorridas no interior do campo académico, na proposicio e realizacio de uma pesquisa interferem os constr préprios do campo etnografico a ser abordado os quais definem (ou redefinem) a construgio de nossos “objetos” de estudo. A antropéloga Rita de Cassia Amaral, que havia comecado uma pesquisa sobre os objetos do culto e seus significados no candomblé em Sao Paulo, acabou produzindo um estudo sobre o significado da festa nessa religiao (Amaral, 1992) em conse cia de sta relagio com o campo de investigacao: RITA AMARAL Eu mesma fui me chateando quando ful rcolhendo dados. Voot if ‘numa lj fier listando objetos e depois fic 9 procurando fabricas para it ver como les sao feito no era. a minha idgia de antropologia, A‘ eu comecei a ficar meio de cho som saber se aparecerin otra coisa my interessante do que ea mesma tinha {maginado [..]. Ai vem essa iddia do estilo de vids. Eu vou procurar outros co sobre isso, acho Bourdies [..]. © eampo te obriga na antropolo complicada, Eu nao fago 0 que quero, et fag0.0 que ps campo tentar ver uma coisa e véem outta e sio obrigados a estudar aquela cestudado ou intermedias os intoresses do g avalia os resultados d po? /Co ‘ow livre escrito sobre o grupo estudado?/E como aval os lias esritos sebre a eligi ‘em geral? Quais os autores mais ios? /Os livros podem ser usado came fonte de cone Ea quest cimento religio do segredo ritual? E da oralidads? 9. Diflogo realizado em 23/1/1997 em Sio Paulo. Além desse didlogo reistrado, a antrops loga Rita Amaral acompanhou esta pesquisa desde o inicio econtribuiu mito para a saa realizagio, O fato de termes compactilhade muita experigncias de campo, pos raliza mas pesquisa de mestrado juntos na area do candomble em Séo Paulo, permitiu que ‘ssa expevigncias pudessom ser analisadas sob diferentes Sica, Com a sa ajuda eu me submeti ao roteiro de dislogo estabelecid para ese projto,colocando também o mew aba Os resultados dese deFeate:O Estilo de Pratista (Amaral, 1992). Como projeto de doutorado, Rita prefer no desen trabalho de campo sob 0 foo da ani de campo podem ser encontrads em Poeerde-Santo, Po 5 ‘quisas na drea das relgisesafro-brasileieas 0 que lhe peritia também um distanciame to eftico maior de sua prpria experfncia de campo, * o ANrRopoLoco © SUA MAGIA Como se vé, no trabalho de campo os problemas escolhidos e as teorias utilizadas estio intimamente relacionados. A circularidade entre a expe- riéncia de campo ea abordagem teérica faz com que muitas vezes 0 antro- pélogo busque uma teoria através da qual possa compreender ¢ analisar seus dados ao mesmo tempo em que 0s “recorta” para, através deles, pro- dluzir, testar ou estender a teoria que utiliza. A importancia que o trabalho de campo assume no desenvolvimento das etnografias faz com que muitas vezes os grupos contatados sejam vis- tos como 0 “capital” do antropélogo ou sua “rede de campo”, isto é um. conjunto de relagoes sociais que o antropdlogo estabelece com as pessoas pesquisadas e que permite a realizacao do trabalho etnogrifico. A constrt- cio dessa rede geralmente leva muito tempo e exige paciéncia; é preciso ter acesso ao grupo, familiarizar-se com ele, enfrentar conflitos, aprender te- gras a duras penas, até que se estabeleca um clima de confianca miitua e colaboragio. Essas dificuldades acabam por tornar os antropélogos muito ciosos dos grupos observados e dos seus “dados de campo” (que eles pes soalmente coletaram). Esses dados sio vistos como uma “matétia bruta” {que o antropélogo dificilmente cede ou expée totalmente (especialmente quando esta em fase de redagéo de sua etnografia), seja para garantir 0 ineditismo de sua pesquisa ou 05 usos futuros que far desses dados em outros trabalhos académicos. Em conseqtiéncia disso, 05 antropélogos tor- nnam-se refratrios & presenca de outros pesquisadores que se aproximam, desuas redes de campo. Em muitos casos ha até mesmo uma atitude expl- cita no sentido de controlar o acesso a essas redes, visando garantir a explo- ragio de um determinado tema ou grupo". E esperado como “regta de bom-tom” que um pesquisador, ao contatar grupos que jé foram ou estio sendo estudados por outro, procure manter “boas relagées de vizinhanca” com os seus observados e também com os antropélogos “donos daquele pedaco”, principalmente quando se trata de um pesquisador em fase de comeco de carreira ou proveniente de outras instituig6es ou de outras “re des de pesquisa’ Aantropéloga argentina Juana Elbein dos Santos percebew a existencia dessas redes quando veio para 0 Brasil pesquisar o candomblé e teve de estabelecer relagdes com os antropélogos inserindo-se nos seus “territ6rios” de pesquisa: JUANAELBEIN [Uma ami da, que sabe quando [ele] quer & charmosissimo |... Ai quando disse a ele que ia fazer pesquisas,o charme desaparoceu por completo. Eu fiquel realmente intrigada ] me apresentou ao [antropélogo}. E eu fiquel encanta 10, Essa atitude dos antropélogos, aqagncia do aumento creseente da concorréncia entre pesquisadores verifcada com oau~ mento de pesquisas poe-geaduadas, No caso de temas ou Areas muito estudadas, comoa las religies afo-brasieras, esas disputas so especialmente intensas. ida que no possa ser goneraizada, & também conse com aquilo e disse: “O meu Deus! que seri; fale alguma coisa?” [..] Bom, depois daquela coisa quando eu eheguei na Bahia ew nem quis saber [dele] e de ninguém, porque eu senti que eu mio sabia muito bem come lidar com aquilo. Eu nd ciaa Bahia. Eu trazia umacartade Edison Carneiro efui dinetamente 3 fae] Senhora Edison Carneiro istog ¢ procurar Di... Quando eu fui a Senhora coma carta muito interessante, eu nio posso eserever, mas algum dia algum vai ter de escre ver ela Jeu a carta e fez assim: Esse ison ma adecido, ndo sei o qué, ndoseio ando mal de Edison Carneiro 1 fiquei sem saber 0 que fazer; me que” fico f senti péssima, “Mas vocé nao tem nada que ver com isso, minha filha”, e ela me apoiou muito bem” Pesquisas feitas em conjunto com a insercio de varios pesquis numa mesma rede de campo muitas vezes acabam gerando conflitos por vaidade, citimes, poder, prestigio junto ao grupo etc., que ocorrem entre 0s seuss participantes para se tornarem 0 “principal pesquisador” e “re- presentante” do grupo na academia, Em muitos casos, essas disputas le vam os pesquisadores a uma ruptura ou antagonismos (silenciosos ou nao) entre si, nos quais sio freqiientes as acusagées de “roubo" de idéias, temas, bibliografia, dados de campo, “informantes” ete. Em certos melhant-se em sua dinmica as acusacées de feitica essas acusacdes a: ria, contra-feiticaria ou demanda existente no mundo das religiGes afro: brasileiras. © antropélogo Norton Corréa que inicialmente comecou a pesquisar alguns terreiros do batuque do Rio Grande do Sul, levado por ‘um pesquisador jé familiarizado com eles, relata alguns conflitos que acabou tendo com esse pesquisador NORTON CORREA Entio, comegou a surgir uma relagio meio ambivalente porque le fpesquisador], me parecia, nio gostava muito que eu estivesse algando véo por Aiocasionou essa ruptura. E ele comegou a dizer que ex queria ru conta pr bara pesquisa dele, qualquer coisa assim. Ele 6 tinha aberto o caminho em 1 casas e quando eu chegava nas casas eu jd era um estudante amigo dele. Mas com essa maneira de sentar Junto [..] eu comecei a conseguir multas coisas [..] €€ Juana Elbein assim explicou a queixa de mie Senhora, do. Axé Op Afonji, contra ison Carneiro: “Depois eu me interei do seguinte, Como Edison Carneiro foi mui ficou escondido com mie Aninha 1 perseguido pela policia [por ser communist (Op6 Afonjs |... Ele fot guardado na ea dele. Quando ele foi para o Rio de Janeiro parece que ele se esqueceu pos a de Oxum ¢ [era] Mie Senhora quem tom: completo. Ele néo se comunicou: muito mais com Senhora, nem nada, entendeu?.E sa ele lembra’”. Este diflogo com a Juana Elbein d dos da Cul cla falava assim: “Quando pr Santos foi realizado em 8/2/95, na sede da SECNEB (Sociedade de Est tra Negra no Bracil), em Salvador, entidade eoordenada por essa antropéloga. Esse foi o meu primeito contato com Juana Elbein cujas pesquisas, sobre as quais conver samos, deram origem a indimeros trabathos entre os quais olivro Os N fort (Gantos, J, 1977), ficou em dlvida sobte os conhecimentos dele ¢ também achando que haveria wm ‘outro método de obter as informagées que eu tinha conseguico apurar & chegar rnessas informagies muito rapidamente® Os antagonismos entre os pesquisadores muitas vezes refletem riva- lidades e rupturas de origens diversas. Os antropdlogos, como todos os seres humanos, tém suas idiossincrasias e nao esto imunes aosimponderiveis das relagées pessoais que envolvem sentimentos de aproximagio e de distanciamento, freqtientemente indluzidos ou exacerbados por situagbes concretas de trabalho. E 0 que muitas vezes acontece entre membros de uma mesma equipe de pesquisa, mas que dela participam com diferen- tes “capitais” ~ conhecimento prévio do campo ou da rede de “infor- mantes”, manejo de conceitos tesricos e técnicas de pesquisa, acesso a fontes de financiamento. O quadro pode agravar-se em virtude das posi- goes hierarquicas que distribuem os membros nas categorias: pesquisa- dor “sénior” /*jinior”, professor/aluno, orientador/orientando, profis- sional /estagisrio e nao raro o resultado sio acusagées de pligio, apropriagéo de dados, roubo de idéias. Por seu lado, os terreiros que véem nas pesquisas uma forma de an- gariar prestigio, legitimidade e outros tipos de vantagens tendem a rece ber os pesquisadores indistintamente, sem se posicionarem em relacdo as suias disputas académicas, a nao ser quando isso se torna necessitio. Nesse caso, os terreiros podem criar condicées desfavoraveis para 0 de- senvolvimento da pesquisa cle um antropélogo. Dona Celeste (Maria Celeste Santos), uma das lideres da Casa das Minas de Sao Lufs do Maranhao, afirma que a rivalidade entre dois pesquisadores de seu terreiro, Pierre Verger e Hubert Fichte, foi percebida pelo grupo que nao se posicionou abertamente em favor de nenhum deles: DONA CELESTE f uma pena porque cle [Fichte] linha intengso de fazer wm trabalho melhor. Mas depois el ficou um pouco diferente com Pierre Verger Eles nfo eram muito ligados, Bes fizeram uma briga,e esta briga ating a Casa das Mi porque {quandocle (Fichte] chegou na Bahia dizendo que vinha [para Sio Luts, Pierre Venger indo ficou gostando muito” 12. Dislogo rwalizado em 30/4/96 em Sto Paulo, Os resultados do trabalho de campo de [Norton Corr sobre o qual conversaios foram apresentados como dissertagio de mestrado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e publicada com o titulo O Batuque no Rio Gronde do Sul (Correa, 1992). Atualmente & professor da Universidade Federal do Maranhio. 13. Didlogo res do Maranhio. Como uma das lideres de izado em 29/7/95 na residéneia de Maria Celeste Santos em Sao Luts dlos tereitos mais antigos, a Casa das Minas, ela tem sido muito procurada pelos pesquisadores do tambor de mina Os antropélogos sabem que 0s r i josos sentem-se valorizados e est mados quando so pesquisados ow tem ‘cus terreiros visitados por pessoas, “ilustres” trazidas por eles. Quando um antropélogo leva outros pesquisa dores aos terreiros (sempre consiclerando o grau de amizade e confianca existente entre eles), sabe que aquela casa consideraré de maneira positiva a“deferéncia”, pois com essas visitas o terreiro afirm seu prestigio atravé da proximidade com a academia. Sérgio Ferretti comenta que foi em conse qiiéncia de ter levado um pesquisador estrangeito a um terreiro de Sao Luis que iniciou de forma positiva sew contato e amizade com o paicd santo visitado: SfIRGIO FERRETTI Em 72 passou por aqui [Sie Lufs] aquele suigo, Jean Zigler. E fui ecebé-to elevei-oa casa d [Jonge [1 E Jean Zigler achou mito int sante © até esereveu sim artigo no livro Os Views ¢ 02 Morts. E a partir dat Jonge também me chamou para algumas ceriménias semiprivadas na easa dele. En osidera muito amigo porgue et fc primeitos inte tuais daqui que levou outras pessoas I No trabalho de campo para a realizagio dessa pesquisa pude valer-me duplamente das conexdes entrea rede académica ea rede dos terreiros pes quisados para contatar os antropélogos ¢ 05 grupos observados por eles. Quando eu nao tinha uma relagao proxima com um antropélogo ou un religioso para solicitar-Ihe uma conversa, recorria a um amigo em comuny para que fizesse a “ponte” entre mim ¢ eles", No préprio dislogo que man- tive com os religiosos, as relacies entre a rede da academia ea dos terreitos observados se mostraram também evidentes. Os pais e maes-de-santo, si bendo que um dos objetivos do meu trabalho era analisar a forma como eles avaliavam a pesquisa da qual participaram, foram muito reticent suas afirmagoes, temendo, ao que parece, que com s sadores pudessem quebi a regra de reciprocidade estabelecida entre eles, Mas nem por'isso deixaram de fazeralgumas reclamagoes, alegando que os pesquisadores ao transitarem por vérios terreiros recolhem informagées ‘erradas” na maioria deles ¢ “misturam” com as informacées “certas eles proprios deram. : sando a indicagio do pesquisador Ca dle Moura, contate‘a anteopéloga ¢ mie-de-santo Giselle Binon-Cossand, Coma nic ode Sérgio e Mundicarmo Ferretti pude conversar com os pais jorge tae partir dessas indicagbes permitiram-me tratamento diferenciado em fungio das 1 A rivalidade existente entre os terreiros pelo “exclusivismo” de serem pesquisados desenvolve-se paralelamente & rivalidade existente entre os antropélogos para garantir seu acesso e permanéncia privilegiados em cer tas redes de terreiros. No oficio antropolégico de encontrar ¢ observar as “teias de sig- nificado” com as quais os grupos se “prendem” a sua cultura (Geertz, 1978: 15), no se pode menosprezar os significados das redes que “prendem” 0 antropélogo aos grupos que observa e aos grupos dos quais ele faz. parte. chegat. 20 50" A chegada do antropélogo aos terreiros para realizar uma pesquisa 6 um momento delicado e decisivo e implica certas dificuldades ou idiossincrasias desse campo com as quais € preciso saber lidar. Al- gumas delas relacionam-se ao maior ou menor dominio que ele tem das regras basicas de relacionamento do grupo, tais como 0 modo pelo qual nos terreiros as categorias de tempo, espaco, hierarquia, entre outras, sio pensadas e vividas. No entanto, ainda que 0 conhecimento e a su- peragio dessas dificuldades sejam reconhecidos pelos antropélogos como fundamentais para 0 sucesso do trabalho de campo, pouco se tem es- crito sobre elas. J de inicio 0 antropélogo, no campo dos terreiros, vé-se inserido na estrutura de poder que eles estabelecem entre si e em virtude da qual nem sempre pode desenvolver 0 tema do seu projeto apenas consideran- do 0s interesses inerentes a este. Sérgio Ferretti, que em seu projeto origi- nal de mestrado pretendia analisar a dindmica das tradig6es religiosas ‘em dois terreiros maranhenses, durante o trabalho de campo percebeu que a disputa por prestigio entre esses terreiros dificultava a sua inser- Go em ambos, obrigando-o a abandonar a pesquisa em um deles e fa- zendo no outro um estudo de caso (Ferretti, S., 1986). SERGIO FERRETTI Primeiro eu queria fazer um trabalho comparando a Casa das Minas com a Casa de Fanti-Ashanti, Eu iria estudar religido e desenvolvic mento, religido e mudanga. Eu queria estudar uma casa tradicional e uma casa modema. E depois de trés ou quatro meses eu vi que era meio complicado e no segundo semestre eu resolv fiear s6 na Casa das Minas. O antropdlogo Jocétio Teles dos Santos, ao elaborar um projeto de pes quisa sobre o caboclo (entidade espiritual) no candomblé de Salvador (San- tos, J., 1995), descartou a possibilidade de observar 9s terreiros tidos como mais tradicionais, nao por eles nao terem alguma forma de culto a essa entidade (que muitos cultuam reservadamente), mas por jé saber que esses terreiros dificilmente falariam sobre 0 assunto, visto que colocariam em risco o prestigio que desfrutam justamente por se apresentarem como pra- ticantes de uma tradigio “pura”, sem sincretismos com divindades nao- africanas, tais como o caboclo, JOCELIOSANTOS Eu ni realize’ pesquisa em nenhuum destes quatto grandes terre ros: Axé Op6 Afonjé, Casa Branca, Gantois, Olga de Alaqueto. Porque ali o pensa: mento e a pritica ccorriam na forma de que: “Ah! aparecew algyém com o caboclo manifestado, leva para outra easa para cuidar, mas nio aqui”. Ow fazem algun ritual de ancestral da tera, mas hiper-reservado!” A antropéloga Mundicarmo Ferretti, que também pesquisou o caboclo no tambor de mina maranhense (Ferretti, M., 1993), enfrentou muitas difi- culdades para obter informacies ¢ acesso aos rituais dessa entidade espiti- tual, pouco valorizados publicamente, em relagio aos rituais de orixa voduns, no terreiro em que pesquisava: MUNDICARMO FERRETTI Eu protencla centrar mais [a pesquisa] na questso do ea: boc [$6 que eu comecei este trabalho e vi logo que tinha de mudar de estra sia. Ninguém me avisava de coisas que nao eram muito valorizadas. Eu no tinha chance de assistira rituals decabocto e toda hora estavam me avisando de eandom: DIG e de saida de iad [..}. Eu vi que tinha que assistic muito eandomblé para poxter saber quando ia acontecer estas outras coisas A suposigio de que 0 antropélogo, durante a observacio participante, pode se manter neutro ou, entao, “pairar” como uma “entidade” acima da vida dos seus observados e nela nao interferir 6, sem diivida, uma visio Didloge realizado em 8/11/96 em Sao Paulo, Joc Teles dos Santos desenvolveu pe {quisa ce mestrado na USP, sendo os principsis resultados apresentados em O Di Tena: © Cabocto nos Condon da Baia Santos |, 1995). Come colegas de pos-eracua ‘fo, tive oportunidade de acompanhar asa pesquisa de mestrado ¢ contar coma sua « Jo no desenvolvimento desta pesquisa, Atualmente€ professor da Univers dade Federal da Bahia, 16, Dislogo realizado em 27/7/95 em Sio Luis do Maranho, Meu contato com a antropé- loga Mundicatmo Ferret, professora aposentada pela Universidade Federal do Ma: ranhio, ocorteu em 1987, se 0s pais-de-santo causatia suscetiblidade a estes entrevistados eu entrevistar os filhos-de-santo; anal, se eu entrevste a autoridade suprema que sabe tudo, ¢ tem de dizer tudo e tem a capacidade de vou perguntar aos alunos? lar sobre (que esté ensinanelo inclusive), eu MUNDICARMO FERRETTI Eu nao pretendia fazer entrevistas formals [., mas, mes- ‘mo assim, entabulara conversa era muito diffi [Bu vi que estas entrevistas nao faneionavam porque, quando comegava a conversat,o pessoal dizia:"Papaié quem sabe, eu no sei nada”, E quando a pessoa morava perto da casa do pai-de-santo, et ppereebi que quando eu entrava na casa e comegava a conversa alguém vinha me cchamae Parecia haver uma espécle de elhelro, Entdo, eu notava que era uma stra ‘gia para evitar um contato maior do pesquisador com as filhas-de-santo, Ai ew tive que mudar a estratégia. Em vez de me voltar pro pessoal, eu entio marquci centrevistas com ele [paisde-santo} SERGIO FERRETTI Eu fiquei uns dois anos indo na Casa das Minas quase toda sema- nna para conversar com dona Amsnca [..}: Bu entrava I, falava “Bom dia” ou “Boa tarde” com quem estava E ninguém falava comigo, ninguém. Entrava, conversava com ela ¢ assistia a festas [..]. No dia que ela morreu & que dona Celeste veio conversar comigo. Foi a primeira vez que eu conversei com outra pessoa sem ser [om] a chefe da casa, \VAGNER Ele fpai-de-santo} nunca te recriminow por eausa das entrevistas? ISMAEL GIKOTO Uma v 1 acho que esté até relatado af no trabalho [Gitoto, 1990; 52}, ele pega o microfone e diz que todas as informagSes da casa sio com cle; quem sabe era ele; ele podia responder as penguntas. E eu senti isso como tama ditota pars im: “Nao perguinte muito a0 pessoal, pergunte para mim". Esses constrangimentos da agio impostos ao antropélogo na escolha de seus interlocutores e no tipo de interlocugao estabelecida attuam tanto na realizagio do trabalho de campo como na avaliagio dos resultados a que se chega sob essas condligdes. SituagSes particulares de contato com deter- minadas pessoas marcam a constnugio das representagées sobre 0 grupo feitas pelo etndgrafo. Os distintos enfoques observaveis nas duas etnografias de Sérgio Ferretti sobre a Casa das Minas, a primeira centrada em aspectos 19, Dislogo realizado em 14/3/96 em Sto Paulo, Conhect 9 antropélogo Ismael Giroto na USP. Sua tajtiria de pesquisador ede babaloria parveou-me importante como forma de se refletr sobre os envolvimentos religiosos dos antropélogos dessa drea. No mestrado Giroto ralizou um estudo de easo de ui tere de candombleé em Sa0 Paulo, publicado ‘cana © Canon do Rei (Giroto, 190) e 0 dostorado pesquisou os candomblés do rito angola em Salvador. Um depoimento sobre a sua histria de vida também foi apresentado por cle no seminsrio.“Antropologia e sous Espelhos: A Etnograia Vista pelos Observa- os" (Giroto, 1994) “tradicionais” como mitologia e liturgia religiosa (Ferretti, S., 1986), e a se- gunda no sincretismo religioso entre a tradigio africana e a catélica (Ferretti S,, 1995), sintomaticamente refletem os distintos periods do seu contato com as diferentes lideres visdio desse terreiro: grupo e que inevitavelmente moldaram a sua SERGIO FERRETTI Eu conversei muito sobre mitologia com dona Amincia eo esque: sma que eu tenho da mito dla casa até hoje me foi dado por ela. Eu elaborei a estrutura das familias dos voduins em cima das informs 2s bisieas dela [De a muito da festa do pois de dona Amincia eu passei para dona Celeste que go dlivino. Ent3o, com ela ex conversava sobretudo sobre a festa do divino e eu come cei a me entrosar mais aberiamente na easa. Agora, com dona Deni (..) tentrou mais no Amago. Porque dona Deni é a detentora do conhecimento da casa, Ela & como se fosse Ogotemméli. Ela de fato € a intelectual da casa, Nesse sentido, as elaboragdes antropoligicas resultam, entre outras coisas, dos constrangimentos da inser¢ao do antropélogo no campo e do encontro com determinados tipos de informantes ou interlocutores. . iN mighes perantas, f 0 didlogo etnografico que o antropélogo estabelece com os membros do terreiro, a entrevista é um momento privilegiado para a troca de informacoes e de percepcdes entre as pessoas que dela participam. Estabe- lecer uma relagao de confianga, favoravel a sua realizagio, é, muitas vezes, ‘um processo complicado, exaustivo e que exige um conhecimento minimo de certas etiquetas e cédigos do grupo. Algumas situagées vividas durante a realizacio desta pesquisa podem exemplificaressas questoes. Em Sio Luis, contatei dona Celeste, uma das liceres da Casa das Minas e marcamos wm encontro para conversar sobre as pesquisas que tém sido feitas em sua casa. Cheguei a esse terreiro numa tarde chuvosa de julho de 1995 e entrei pelo corredor que conduz & varanda interna onde os voduns costumam dangar em noites de festa. Ao final do corredor encontrei duas velhinhas sentadas 20, Referéncia a0 informante dogon de Marcel Griaule no liv Diew dou: entetiens a Ogotemmili (Paris, Editions Du Chéne, 1948). ® O ANTROPOLOGO £ SUA MAGIA rho pequeno muro que separa a varanda do gume, um quintal onde flores- cem pés de pinhao branco ao lado de uma frondosa cajazeira. Identifiquel- ‘me meio sem jeito e perguntei por dona Celeste. "Ela nao esta”, respondeu- me uma delas, dona Deni, “e hoje nao é dia dela vir” (Amélia, Celeste Deni formam tim singular triunvirato” feminino de poder religioso na Casa das Minas). Conheci essas venerandas senhoras de outras visitas que fiz.a esse terreiro acompanhado de pesquisadores do lugar e das etnografias que Ii sobre a religio dos voduns do Maranho. Portanto, sabia que solicitar naquele momento uma entrevista a dona Deni, tendo primeiamente contatado dona Celeste, nfo seria uma politica adequada. A divisio de po- der nos terreiros sempre gera rivalidades e citimes entre os membros da cipula religiosa, ainda mais quando se trata de um “triunvirato”, Fiquei em pé diante de minhas “informantes” que nem me convidaram para sen- tar, pois aparentemente nao estavam dispostas a facilitar a minha vida, 0 meu oficio de “inquisidor”, Olhei para a cajazeira sagrada com suas folhas molhadas pela chuva e lembrei que ha muitos anos, quando cortaram al- guns de seus galhos, um espirito de crianga teria sido visto saindo do tron- co mutilado. A mae-de-santo que ordenara a poda e o homem que a reali- morreram algum tempo depois. “Punicto sagrada”, disseram. Sentia a tensio e mal-estar por estar naquele corredor abafado, naquele labi- rinto de simbolos a0 meu redor. Situacio semelhante vivi no sobrado ver- melho do etnélogo Pierre Verger em Salvador alguns meses antes de sua morte. Estava eu diante daquele pesquisador de idade quase centenaria que andava com dificuldades até asestantes onde repousavam empoeiradas sts pastas contendo mais de cingtienta anos de fotografias eescritos sobre a religiao dos orixis. Diante daquele homem cuja figura me lembrava a de um Oxalufa, 0 deus anciao da eriagio, arqueado sobre 0 seu cajado (ima- fem que ele préprio tanto fotografara), nao tive coragem de abrir o meu roteiro de perguntas e nem disse que entrevisté-lo era 0 objetivo de minha visita. Como chegar até essas pessoas, religiosos ou seus etndgrafos, cujas mos se ocupam em tecer esses inatingiveis enredos de vida feitos de senti- dos, sentimentos ¢ contradigées nem sempre traduziveis ou instantanea- mente resumiveis e Ihes dizer, gravador na mao, curiosidade incomoda: *Mios ao alto, isto ¢ uma entrevistal”. Enfim, apés ter esperado varias ho- ras pot uma entrevista com dona Celeste, que s6 ocorteut no dia segutinte por insisténcia minha, voltei 4s ruas mothadas de Sio Luis com a plena convicgio de que a antropologia realmente é, como quer Geertz (1978: 39), 0 dificil oficio de importunar “pessoas sutis com questdes obtusas".. numa tarde chuvosa. Situagdes semelhantes a essas sio enfrentadas por todo etnégrafo na tentativa de estabelecer um didlogo com seus interlocutores, entrevist- 21. Vor Pereira, 197% 186 ¢ Foret, S, 1986-201 los, observar seu cotidiano, imiscuir-se em suas vidas, enfim, reali. zar seu trabalho de campo. No caso das pesquisas com as religies afro-brasileiras, os antropélogos familiarizados com essas situacoes sabem que € preciso uma dose muito grande de paciéncia e muito jogo de cintura para poder desenvolver uma pesquisa considerando 0 ethos do grupo. A antropéloga Rita de Cassia Amaral relata algu mas das situac6es pelas quais a maioria dos etndgrafos da area ce tamente ja passou RITA AMARAL Coisas maravilhosas que qualquer iniciante deve saber quando vai a0 campo: Ble deve saber que quando ele ligae para um pai-de-santo para marear uma entrevista, vio fazer voc? ligar cingdenta veres para marear. Porque pai-de-santo vai estar ocupade, matando, saerificando, atendendo, ele no pode alar com voeé porque ele ests descansando, cle quer saber quem voeeé, de onde voet é. V ea falando com um assistente durante quinze dias. Depois de quin ‘ze dias ele defere uma entrevista para voeé... Ai vos’ vai Id e espera quatro horas sentado na parte de fora da casa. (O que eles nfo sabem & que a gente fica o! vando a elientela enquanto isto). Nada se perce numa tese, como diz Umberto Eco; até 0 tempo da sala de espera serve... Depois ele vai If rapidamente e di Desculpa qui eu ndo posso te atender, que estou ecupado, vem numa festa que ter no sibado". (Que geralmente vai ter uma festa no sibado. Inevitavel!) Ai vvocé vai naquela festa esperando, prineipalmente quando vocé é um ingénuo € nunca foi, que 0 pai-de-santo vs falar com voeé, mas ele esté ocupadissimo, aten ddendo todo mundo ¢[..] uidando das iniciagbes e voed vai ficar Ia 56 assistind n contar que eles falam que a festa comoga as oito horas da noite ‘comega & meia-neite (quando comeca & meia-noite). Voeé fiea Ié e nio pode ir embora porque voce 1: abe se no pega mal ir embora antes que acabe. Além do mais, voce é um pesquisador, entéo voeé tem que ver tudo. Ente, voee fica Ia até as seis horas da manhi, quando vio servir o peine ou qualquer coisa do tip {que voed nao sabe se deve comer por causa da cata que aquela comida tem, quel mada e esturricada, geralmente. (Entio, quando te mandam comer obi, aquela coisa hortfvel, amarga, que voc? nao suporta endo sabe se engole se vai esperas para cuspir) E ai ele combina que vacé pode ir durante a semana e se voce for muito legal ele vai te dar uma entrevista, onde ele vai mentir desearadament durante duas horas na sua fita.£ claro que ele ndo ¢ obtigado a dizer nada para voc’, mas todo ritual acontece. Vocé vai ouvir, vai ficar cheio de divi voeé vai voltar para perguntar ¢ ele vai tec outta histéria completamente diferente. Em geral vai falar mais sobre a casa dos out to do candombie & sempre diagonal. Voc entrevista um e aprende sobre outro. Até voce pereeber que isto pode se tornar uma estratégia a impressio é de penta cde tempo e enensia. Eu passei por isso varias vezes...Acho que depois voce acos tuma [..] porque se voed esti no grupo voct sabe qual & a kégica e tem que se submoter a ela se quiser estudar eandomble “ 0 ANTROPOLOGO £ SUA MAGIA Na “logica” das religides afro-brasileiras, a palavra falada ¢ considera- da uma importante fonte de axé (forca vital) e veiculo do poder sagrado. Falar 6 um ato magico que impregna por contaminacao simbélica 0 sujeito da fala e seu ouvinte. Na transmissio do conhecimento litirgico, 0 que dizer, quando, como e para quem sao instancias determinadas pela hierar- ‘quia religiosa. A entrevista etnografica, por envolver a transmissio de conhe- cimentos, também é apreendida pelo grupo a partir desse contexto simb6- lico. Para o pai-de-santo, dar entrevistas ou falar ao antropélogo adquirem significados que vao além da simples transmissio de conhecimentos “obje- tivos”, significando, muitas vezes, uma inversio dos procedimentos reli- gi0sos. Porque, nessas religides, 0 processo de obtencio de conhecimento raramente se faz através de uma dindmica de perguntas ¢ respostas. Per- guntaré uma quebra da regra do siléncio e do respeito, pois acredita-se que 6 comhecimento deva ser transmitido de acordo com os méritos de cada um em fungio do tempo de iniciacao. Nesse ambiente aprende-se observan- do, sem questionar ou demonstrar uma excessiva curiosidade. Giselle Binon-Cossard comenta essa forma especial com a qual, no can- domblé, se é educado para receber 0 conhecimento sagrado ¢ incorpori-lo aos poucos: VAGNER Na sua tese voet diz, que a filha de santo deve ser obediente, ouvir tudo © ranea perguntar, porque pet mais antigas GISELLE BINON-COSSARD Porqut passar de uns aos outros, de uma geragio & outra, a bagagem cultural. Dentro do wuntar & uma coisa que acaba sendo mal vista pelos Isso corresponde a uma nogio de como se deve Canudombiéseacedita que tudo que ¢ feito s posts nfo bom a pessoa val gra Wrando una quantidade de nogéo que ela no assnila, Eno, o tempo tem que Tazer as nogbesdescansarem, vamos dizer, déantr sabe essa nogio de vino fan- cos que tm que dcxar uma pate de bora? E a mesma coisa ntlectualmente. As oisnstém que descansarem, Voc? apne, mas depois deisa paras, Quando vem 2 ser maduraentao voet estutara, vod equilib Além disso, a forma como conhecimento nas religides afro-brasilei- ras 6 veiculado (em termos totalizantes da observagio, e nio fracionados em perguntas e respostas) faz com que nem sempre seja possivel, para os religiosos, organizarem suas experiéncias de forma compartimentada, tal 22, Dislogo realizado em 14/4/95 no terseito de Binon-Cossard em Santa Cruz da Serra, Rio de Jancito. Giselle Binon-Cossartnasceu na Franga e velo para o Brasil acompanhando Seti marido que era funeionsrio da embainada francesa Inciou-se no candombké de pat Josiozinho da Goma no Rio de Janeito ex 1962 de volta Frangaesereveu uma tese de loutorado, Contribution ade de canonblésw Brit ecnndomblé Angola Bi 1971). Atualmente dedica-se quase que integralmente ds fungoes de seu a rio tendo dado continuidade 3 sua carrera academic. es como Ihe ¢ solicitadlo pelo roteiro das entrevistas. O conhecimento 6 apre- sentado em forma de pardbolas, de mitos, de casos aparentemente sem sentido imediato, em horas aparentemente inapropriadas, durante uma refeigio, no intervalo de um ritual, enquanto se depenam na cozinha as aves sacrificadas ou se trituram as folhas para um banho. Um conheci- mento que o ouvinte s6 lentamente vai juntando para constituir sua com preensao da religiao, JUANA ELBEIN Se voe# pergunta 2 um alto sace 1: “ponque isso?” ele vai te ean. tar uma cantiga ou vai te dizer um od. Entio a eantiga e odu sio a resposta, Ele rio dicotomiza; ee nio esfacela o conhecimento, Para ele, 6 conhcimento & ama coisa hol bola [..-Se, por exemplo, eu vejo fea. Ele vai te responder com uma pi cantar ebotar perfume em um egum, voot pode dizer como Pierre Venger me disse ‘Ah, porque ele gosta do cheiro de perfume” [..J. Mas os perfumes que se usam normalmente no terreiro sSo [feitos] com follas, Agua de levante, esse tipo de coi sas, Entso um deter a um determinade orins, En fo, pergun. ninado perfume & p tei um dia: "Por favor, porque esse perfume?” \daga dacasa me respondeu:” Ad ad, add emorid, di da lo que mods” [cantando] Ahal, 0 que ela ests dizendo? Que muito, muito bom para os filho casa que, omori (os filhos que estio vendo), gum se sinta querido, confortdvel, bem recebido. Ecomo uma oferenda que vort std fazendlo, voet no esté botando para ele cheitar bem. Entio, quando ela me cantou a cantiga, eu entendi claramente em seguida E ligides afro-brasileiras sio dificeis de ser realizadas dentro da légica n fungio desses aspectos, as entrevistas com os membros das re- académica de apreensio do conhecimento, e ha uma intensa negocia ao entre entrevistador e entrevistado sobre os contetidos do que ¢ dito, tendo por base 0 contexto religioso que geralmente o antropélogo ain da nao conhece. Revendo alguns diilogos realizados com os adeptos do candomblé de Sio Paulo e que serviram de base para a elaboragio de minha etnogeafia de mestrado € possivel perceber alguns aspectos dessa dinimica de negociagoes™. (Os “problemas” de comunicacio entre o que 0 antropslogo perg (© que o entrevistado entende da pergunta surgem jé na identificagao do entrevistado. Exemplo: embora muitas vezes o pesquisador pretenda iden- tificar seus “informantes” com o nome civil, essasinformagoes servem ape nas para formar um registro etnogrfico para os “de fora”, pois nao corres. 23, Esesdislogos foram realizados como parte deuma investigacio, ordenad por Reginaldo Pranal eu, em mais de cinquenta tereiros da Grande Sso Paulo, com a eolaboragio de tuma equipe de pesquisadors, entre os quai, Ricardo Mariano e Rita de Cassin Amara Res Amaral, 1992 ados desta investigagso podem ser encontrados em Pran, 1991; Silva, 1995 ¢ « O ANTROPOLOGO E SUA MAGIA ponde a forma como 0s individuos se identificam e se reconhecem no grt- po. No candomblé os adeptos sio conhecidos geralmente pelo seu nome religioso, chamado em alguns terreiros de digina, formado a partir de pala- vras de origem africana (“Ajaoci”, “Manode”, “Iassessu"), pelo primeiro nome associado ao nome do orixd de quem ¢ filho (“Helio de Logun”, “Abdias de Oxossi”) ou pelo apelido ("Tonhao", *Zefinha”, “Baiano”). ‘Muitos religiosos fazem uma separacio entre o nome do santo ou do orixa (oruk6) e 0 nome de santo do iniciado (digina) que em geral ¢ proveniente de uma parte do primeiro: SANDRA MEDEIROS A minha di foi daca ao mew santo, que era “Obaka6 Kailabandeci”™ CCHLRERTO FERREIRA Eu fai eonfrmado por Diniz da Oxum. O nome de santo de seu Diniz 6 “TH Of6 Bionu”. Ele 1a era Kailakitin, parte do ofuké que na ocasisio ceujo nome de a feito por Waldomito de Xango santo é“Obatu Lukitiosan”, que filho-de-santo de Cristovio de Ogum chamado “Ogum Kibeliona”™. O nome do santo é revelado apenas tima vez, publicamente, durante a “ saida-do-nome”, uma parte da festa priblica de iniciagio, quando o orixt grita “na sala” (no barracio do terreiro) o seu nome de forma muito ripida para nao se revelar totalmente aos ouvidos dos participantes da festa. Sen- do efetivamente conhecido somente pelo iniciado e pelo pai-de-santo (e por poucas pessoas do terreiro), 0 nome do santo constitui um atributo particular que “comprovaria” a identidade de um iniciado, Dizer o nome do orixa é uma forma de quem diz expressar confianga em quem o ouve (pois acredita-se que é possivel atingir uma pessoa fazendo feiticos com 0 nome de set orixa) e estabelecer com ele vinculos de reciprocidade na co- munidade. Quando, durante a entrevista, 0 pai-de-santo revela o nome do into ou 0 de outros iniciados para o pesquisador, muitas vezes esti “quebtando” a regra do segredo em prol de uma cumplicidacte de que nem sempre o pesquisador se di conta. Entre dizer o nome civil e o nome reli- ‘gioso existe uma diferenca de significado que 0s religiosos percebem quan- do tém de responder uma pergunta simples como “Qual o seu nome?” A resposta de mie Deusinha a essa pergunta ¢ exemplar: "(Meu nome é] 24, Diflogo realizado em 1987 no terre “Ho Leulwyato” entre a mie-de-santo Sandia Medeiros, Vagner Goncalves da Silva e Reginaldo Prandi, O ter We Sandra foi tum dos que mais observet durante o met trabalho de campo, gragas a amizade que fizemos desde © termpo em que (ver Silva, 1995). 25, Disloge realizado em 21/5/87 no terrsiny “Il Iya Mi Oxum Muyiwa” ent 0 0 berto de Exu (Gilberto Ferreira), mae Wanda de Oxum, Vagner Gongalves da Silva Reginaldo Prandi ro de amos alunos do eusso de toruba oferecido pela USP Deusdetes Pereira dasDores. Me chamam de Dofona porque eu sot dofona de barco”. Agora 0 oruké do meu santo eu no posso dizer ‘A mesma coisa acontece quando se pergunta a idade ea filiagio de um adepto do candomblé, pois sendo a iniciagao considerada um nascimento, © iniciado sobrepoe a “idade de santo” (de iniciagio) a idade bioldgica va filiagao religiosa a consangiiinea, Por outro lado, quando a entrevist 6 realizada com os adeptos que conseguem ter um certo distanciamento de sua experiéncia religiosa e a interpretam em niveis mais amplos, as respostas obtidas podem conter em ssi mesmas importantes sistematizacoes e percepcdes para a anélise antro- pol6gica. Na entrevista com o ebomi Renato Cruz e com o pai-ce-santo Aulo Barreti, é possivel perceber os varios registros de interpretacio em suias respostas. VAGNER fos no dia da festa de safda? ‘ritual de confirmar o nome [religioso do iniciado] com 0 jogo-de-biiz RENATO CRUZ E puramente rituaistco, E puramente simbilico nao tem nenhum sentido fora daquilo [Nao estou desmerecendo absolutamente 0 jogo de biizios. © jogo de bizios & 36 um instrumento ritual simbélico do candomble. Ele ndo tem aginando que tem”. toda essa conotagio poderosa que vost ti LVAGNER Os orixis no falam em foruba? ‘AULO BARRETT Nao falam porque o cara nio fala em ionuba, Se fosse assim voet Iniciava santo e ele nao precisava aprender a dangar [JE diferente da Afri crianga jf nasce com isso, com dois anos ela ests dangando (para] Ogum e Xango na frente de todo mundo, No Brasil nfo, voeé tem que ensinar [JO transenao é tudo isso. Ele acontece, funciona dentro de uma cabega. Se fesse assim o candombléesta- ria vivissimo, ndo estaia aculturado, no estaria mi Ocaravira noOgum, ‘vost conversa com Ogum ele pie tudo.em ordem: “Eu com frecebe como oferenda} isto, mew assentamento [representagio material] é assim. e todo mundo estava falando em ioruba® 26, Nu Primero lugae 27. Dislogo realizado em 19/5/87 no tereeito “Cabana de Canddomblé Ogun ae Nag” eatue coletiva (chamada de “bareo") a dofona &iniciada que foi raspadia em mae Deuzinha, Vagner Goncalves da Silva, Reginald Prandi e Ricardo Mariano, Esse dis fo10 primeico contatocom o grupo desse terreno como qual no tinhamosintimi dade nenhuma 28, Dislogo realizado em 19/4/87 no terri “Ie Axé Om6 Ogurn ati Ox” enise 0 ebomi Renato Cruz, Vagner Gongalves da Silva e Reginaldo Prandi. Em 1979, Renato eeu ingres samos no curso de eiéncias socais © nessa Gpoca Renato iniciow-se no cancombl. Fo através dole que tive mous primeirascontatos coma rligio 29, Didlogo realizado em 9/3/87 no terwito “Il8 Axé Odé Kitalecy” entre pai Aulo Barrett Vagner Goncalves daSilva e Reginaldo Pranal, Pai Aulo fra meu professor de “teologia africana comparada” na Funaculty (Fundagio de Apoio ao Cultoe Tradigao Yorubana no a © ANTROPOLOGO € SUA MAGIA ridade puramente dialégica reprimiria 0 fato inescapavel da textualizacao” (Clifford, 1988: 43). Nesse sentido, nao se trata de submeter a “l6gica da pesquisa” a “I6- gica do nativo” (ou vice-versa) e nem de tentar fazer coincidir os interes- ses desses dois universos, desconsiderando suas posigdes. Ao contratio, trata-se de sondar essas l6gicas e posigdes através de “modelos discursivos de pratica etnografica” nos quais o préprio didlogo etnogréfico seja um importante locus do conhecimento produzido, isto é, que permita revelar também o significado das perguntas para as quais nao existem mais tar- tarugas suficientes. 05 S298 iadne Oo" cle téenicas apuradas de coletae registro das informagdes no cam- po tem sido enaltecido como uma das principais contribuigbes de Malinowski desde que ele se viu abandonado naquela praia deserta (“ro- deado apenas de seu equipamento”) e dela regressou produzindo uma das mais densas etnografias. Mas quando se trata de definir quais so realmen- teas técnicas fundamentais que constittuem a observacao participante ecomo utilizd-las, 6 sempre dificil chegar a um consenso sobre 0s “equipamentos” necessérios para se chegar a um “bom trabalho etnogrifico”. Muitos antro- pélogos, como Geertz, sequer colocam a pritica etnografica como uma “questao de método”: Em antropologia ou, de qualquer fo em antropologia social, que os pratican- tes fazem &a etnografia, E justamente 20 compreender © que &a etnografia, ou isexatamente, oque é.a pritica da etnogratia, & que se pode comecara entender :ntropoldgica como forma de conhecimento. Devemos ‘© que representa a an frisar,no entanto, que essa nio é uma quest3o de métodos. Segundo a opinio dos. livros-toxtos, pratiar etnografia 6 estabelecer relagSes, selecionarinformantes, trans crever textos, evantar genealogias, mapear campos, manter um distio,e assim por diante, Mas nao sio essa coisas, as téenicas e os processos determinados, que defi- ‘nem o empreendimento (Geertz, 1978: 15) Oantropélogo, a0 chegar a campo, percebe, no entanto, que dificilmen- te poder executar seu trabalho sem a aplicag3o de algumas técnicas ou procedimentos metodologicos. Assim, pede-se ao etnégrafo que conviva 0 maior tempo possivel com o grupo estudado, aprenda a sua lingua ou suas formas tipicas de comunicagio, registre seus costumes, habitos e depoi mentos através de um didrio de campo e, se posstvel, por meios capazes de registrar fatos, independentemente da sador, como gravadores de som, miiquinas fotogrificas, filmadoras ete nterpretacio pessoal” do pesqui- Porém, diante do fluxo ininterrupto dos muiiltiplos significados que mar- cam 0 queas pessoas fazem e dizem, o antropélogo estar sozinho, munido apenas de sta sensibilidade e intuico® para decidir quando e quais sinais, falas, eventos, nomes, relacbes e objetos privilegiar em sua tentativa de “re constnuir a realidade” Na pritica atual da etnografia, a utilizagio de g filmadoras tem possibilitado ao pesquisador registrar falas, situacdes e avadores de som e de imagens dos seus interlocutores de forma mais detalhada se comparada com o registro por anotagoes feitas na hora ou de meméria, A capacidade desses recursos de capturar com fidelidade imagens e sons nao se confun- de, porém, com wma maior “aproximagio do real”, pois, ao filmar out gra- var, o pesquisador ja seleciona entre as intimeras possibilidades aquilo que ele deseja ver e ouvir, seja no momento em que os fatos se desenvolvem, je ao selecionar quais partes desses registros serio signi- seja posteriormer ficativas para a sua interpretacio. A montagem de uma etnografia (ou do texto etnogrifico) assemelha-se muito a de um filme em que o resultado final é sempre uma selecio segundo critérios pré-estabelecidos de uma quantidade muito maior de opcoes ¢ enfoques. Por esses motivos, 0s regis tros fotograficos, filmicos e dle sons deveriam ser vistos néo apenas como “meios" que conduzem a interpretagio etnogritica (figurando geralmente na forma de “anexos” ao texto principal da etnografia), mas serem também objetos de uma auto-representacio" Por outro lado, no trabalho de campo, a utilizagio das técnicas de pesquisa ou a decisio sobre o que ver e ouvir e como registrar, nio de- pende somente do antropslogo, mas da represent: glo que os grupos observados fazem sobre essas técnicas e que determinam as restriges impostas ow os consentimentos dados. No campo das religides afro-bra. sileiras existem certos constrangimentos relativos & natureza simbélica das mensagens veicu as e stias formas permitidas de registro pela tra £3. "Ninguém apronde o oficio de conhesedor ou de dingnosticoclorlimitendo-se @ pir em priticaregras preexistentes, Ness tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se norma nobuug, 1991: 179). 10, golpe de vst, inti” ( HA, Essa visio tem-se madifcao como ereseiment de trabalhosn ina como filme etnogriico, 0 cedromete.” Amsiorparte da ctnogeaia Gencontradaem liv eartgos,em vez de filmes, sno eles hs, certamente, otografias desen dliscos, exposigdes de museus ete ia "abelas eas por dante Tem fet falta antropologia uma autoconscincia so 5) (Geertz, 1978 30, bbre mods de epresentagio (para nao falar de experimentoscomel dicdo religiosa. Como jé mencionei anteriormente, falar sobre a religido é passar axé”, O que ¢ dito, o lugar, a hora e 0 momento apropriado arti: culam-se de forma indissocidvel. Mencionar simplesmente 0 nome de certos divindades, proferir rezas ou cantigas fora de seus momentos littrgicos parcialmente”* retirar objetos sa pacos de referéncia, ou apenas grados de seus contextos, enfim, articular o conhecimento segundo a uti- 6 licito aos olhos dos lizacho que dele quer fazer a pesquisa, nem sempre religiosos. Muitas vezes, embora o grupo permita que o antropélo; > pre- sencie determinados atos rituais secretos, como um rito fiinebre, 0 seu registro sonoro out fologrifico nao pode ocorrer, pois isso representaria uma dissociacdo entre o que se diz ¢ se faz com o quando se diz ¢ se faz. ambém muitas vezes é permitido assistir a rituais, mas nio escrever sobr. eles. ce pando [.). Tudo que tinha ele as SANTOS Ele [pesquisador] ficou oito meses i na Casa das Minas partici ia: ..] zelim, tambor de choro que eh: VAGNER E esses rituals pode-seassistir? fe. Mas, as vezes, tem co fe gravar. Porque cert cantigas s6 se canta pro motto, Entio se voc’ tem gravado, b Norton Corréa conta que as fotos dos iniciados em transe, embora pu dessem ser tiradas durante 0s rituais, no podiam ser mostradas a eles, pois 6 um tabu para o religioso se ver “virado no santo’ NORTON CORREA O segtedo maior |Grande do Sul é ndo poder dizer que a pessoa recabe @ santo, E isco era uma coisa que eit era muito advertido quando tiravaas fotos. Eaté hoje quando eu vou Is tirar fotos, tem pessoas que estio na cas (€ no me conhecem, porque ew ndo estou 14 hi muito tempo) que ficam muito assustadas, ou melhor os orks ficam muito assustados porque sempre tem esse edo que depois vao ver as fotos © a pesson vai ficar louca porque nio sabe que A permissao para fotografar e filmar pessoas e rituais depende do tipo de relacio (intimidade, confianga, reciprocidade ete.) que se desenvolve entre © pesquisador e o grupo religioso. Muita: vvezes esses registros sio conces- tas sbes que 0 grupo faz. a0 pesquisador, mesmo sabendo que a tigor regras da tradicio religiosa estio sendo quebradas. 45. Algumnascantigas quando entoadas exigom ser “espondidas” através de outras cantiga Também alguns cinticos s6 podem serentondk uma parte for eantado, como numa “roda de Xangi VAGNER E entrar no quarto-de-santo para vera NORTON CORREA Isso eu podia. Por exemplo, a Ester da lemanjs, quand ‘matanga, mandava avisar [..].EntSo, dentro do quarto-de-santo tinha aquela para femsliadea Iguidares ..] ali nespago de um metro emeio tinha um lugar (de ‘quarenta centimetros para eu ficar de pé) que ela sabia que eu gostava, porque era 1ndo iacomegara matanga, ela dizia:“O senor ratégico para fotografar Enso, que pode ie pa a If que vai comegar a matanga”. Vinha os animais eeu feava ali com a 2 olhande, maquina fotog: ajudava,“Olha, traz aquele alguidar de fulano” Entao, pegava oalguidar e dava, YAGNER Mas isto nio & um tabu? Era uma excegio que ela fazia a voet? NORTON CORREA A mim [... Para comego de conversa, na maioria das casas as pessoas ndo deixam participarem clessainiclagio; se chega uma pessoa desconheci dla, née-iniciada, Em principio eu poderia entrar Talvex pelo meu conhecimen: to, cu entrava livremente. E nessas casas que eu linha mais conhecimento podia fotografare fazer o que ex quiseste Nesse sentido, osantroplogos sio classificados, freqtentemente, numa categoria liminar, entre 0 religioso e o leigo, beneficiando-se de um privilé gio que Ihe € concedido em funcao do respeito do povo-de-santo por set status social ou de conhecimento e pela respeitabilidade que for capaz le adquirir. Esse privilégio, contudo, pode gerar um sentimento de respeito por parte do antropélogo em relacio a religiio que o torna, de fato, um quase religioso” O antropélogo José Jorge de Carvalho, na pesquisa que realizow no xangé pernambucano sobre ritos e mtisica religiosa (Carvalho, 1984), tam bém percebeu a necessidade de angariar a confianga cos membros dos ter- reiros pesquisados para que estes permitissem a gravagio de seus rittais JORGEDE CARVALIIO Algumas casas nunca tiverain nenhum problema de a gente querer gravar um toque e as pessoas no quererem [..}. Em alguns lugares eles no o receptivos. Em alguns poucos lugares foi mais dificil gravar no contexto. LVAGNER E por que? JORGE DE CARVALHO Porque eu nao tinha a mesma intimidade, digamos, Sobretu do no Sitio, mas depois eu consegul gravar no Sitio da Agua Fria, Na primeira vez, no primeiro ano em que eu fui Ié eu nem tentei, nao gravel particularmente li VAGNER Vocé nao tentou porque voeé jd tina uma ida da dificuldade? Jon’ DECARVALHO E, porque no er fei, Acho que foi o tinieo. Em alguns in quando ex linha reiros) eu gravei mais da segunda vez eem outros mais da ten ‘muito mais tempo de imersio, Mario Miranda foi a primeira casa que eu fui me recebeu sem nenhum problema; mostrou todo o peji; deixou a gente gravar; et [gravel tanto a parte de xango, depois tinha a parte de jurema que eu gravel VAGNER Fotografou? JORGE DE CARVALHO Fotografet. Sem nenhuma resistencia, E como se fosse quan: ® © ANTROPOLoGO £ SUA MAGIA do voeé val aprendendo um idioma, Sabenda mais voc’ sabe come falar também para ser uma pessoa de dentro eser melhor acit. Na dea das religides afto-brasileiras, nas quais 0 som (nutisica, canti- 225, narrativa oral etc.) e a imagem (cores, paramentos, coreografia das danga, gestos, estética ritual etc.) desempenham papéis importantes, 0 uso das tecnologias de registro torna-se ainda mais freqitente, embora se saiba que muitas vezes ao ligar 0 equipamento desliga-se a possibilidade de captar uma situacio mais “espontinea”, Durante a entrevista, por exem- plo, muitos religiosos temem dar informagies no “calor da hora” e res ponder certas perguntas sem uma reflexio anterior. Para evitar que caiam, numa possivel “armadilha” que 0 registro de suas informacées pocleria hes causar, muitos religiosos preferem ter acesso ao roteito de perguntas da entrevista previamente, para depois permitir 0 registro de seu depoi- mento, ou, ainda, que se desligue o gravador em certos momentos para que nao haja registro do que dizem. Podem solicitar, também, que seja feita uma “pré-entrevista’, como aconteceu com Jocélio Teles dos Santos: JOCELIO SANTOS Uma das primeiras entrevistas que fiz foi com umn pai-de-santo que havia recebido 0 deci hi pouco tempo, No primeito contato ele se mostrou abe ime pedir para realizar a entrevista sem ligar 0 gravador © depois que eu re ai ocorreu dl izasse toca a entrvvista eu ligaria o gravador w faria a mesina ‘entrevista [..]. E fot muito interessante ponyue quando eu ligued o geavador ele mudlou complemente a postura fsia, Ble adquitit mais, como eu dita, background de paidesanto [.) ‘ele antes era autoridad, a partir do momento que ele cestava dia «lo [gravando] sobre oseu terreiro, o seu caboclo, ele era muito mais do ‘que autoridade, Havia 0 registro do que estava sendo dito |. Ele teve 6 euidado de pedir para no gravar e saber o que eu estaria perguntando, poisafinal de contas cle poderia dizer algo que seria de fundamento, que ele nio poderia fala [.]. Eele falou basicamente da mesma coisa O importante papel que a fofoca, a maledicéncia, as intrigas, 0 fuxico, cenfim, a inciaka de maoula (para usar uma expressio que nos terreiros desig na alguém fofoqueio e de “lingua malévola”), ocupa na forma de comuni- cagao e controle social do grupo faz com que os religiosos se posicionem dubiamente em relacao aos registros de suas falas ¢ imagens que, por “fi- xar” certos contetidos, coloca alguns limites para a constante reelaboracao «la mem se 0s pais-de-santo causatia suscetiblidade a estes entrevistados eu entrevistar os filhos-de-santo; anal, se eu entrevste a autoridade suprema que sabe tudo, ¢ tem de dizer tudo e tem a capacidade de vou perguntar aos alunos? lar sobre (que esté ensinanelo inclusive), eu MUNDICARMO FERRETTI Eu nao pretendia fazer entrevistas formals [., mas, mes- ‘mo assim, entabulara conversa era muito diffi [Bu vi que estas entrevistas nao faneionavam porque, quando comegava a conversat,o pessoal dizia:"Papaié quem sabe, eu no sei nada”, E quando a pessoa morava perto da casa do pai-de-santo, et ppereebi que quando eu entrava na casa e comegava a conversa alguém vinha me cchamae Parecia haver uma espécle de elhelro, Entdo, eu notava que era uma stra ‘gia para evitar um contato maior do pesquisador com as filhas-de-santo, Ai ew tive que mudar a estratégia. Em vez de me voltar pro pessoal, eu entio marquci centrevistas com ele [paisde-santo} SERGIO FERRETTI Eu fiquei uns dois anos indo na Casa das Minas quase toda sema- nna para conversar com dona Amsnca [..}: Bu entrava I, falava “Bom dia” ou “Boa tarde” com quem estava E ninguém falava comigo, ninguém. Entrava, conversava com ela ¢ assistia a festas [..]. No dia que ela morreu & que dona Celeste veio conversar comigo. Foi a primeira vez que eu conversei com outra pessoa sem ser [om] a chefe da casa, \VAGNER Ele fpai-de-santo} nunca te recriminow por eausa das entrevistas? ISMAEL GIKOTO Uma v 1 acho que esté até relatado af no trabalho [Gitoto, 1990; 52}, ele pega o microfone e diz que todas as informagSes da casa sio com cle; quem sabe era ele; ele podia responder as penguntas. E eu senti isso como tama ditota pars im: “Nao perguinte muito a0 pessoal, pergunte para mim". Esses constrangimentos da agio impostos ao antropélogo na escolha de seus interlocutores e no tipo de interlocugao estabelecida attuam tanto na realizagio do trabalho de campo como na avaliagio dos resultados a que se chega sob essas condligdes. SituagSes particulares de contato com deter- minadas pessoas marcam a constnugio das representagées sobre 0 grupo feitas pelo etndgrafo. Os distintos enfoques observaveis nas duas etnografias de Sérgio Ferretti sobre a Casa das Minas, a primeira centrada em aspectos 19, Dislogo realizado em 14/3/96 em Sto Paulo, Conhect 9 antropélogo Ismael Giroto na USP. Sua tajtiria de pesquisador ede babaloria parveou-me importante como forma de se refletr sobre os envolvimentos religiosos dos antropélogos dessa drea. No mestrado Giroto ralizou um estudo de easo de ui tere de candombleé em Sa0 Paulo, publicado ‘cana © Canon do Rei (Giroto, 190) e 0 dostorado pesquisou os candomblés do rito angola em Salvador. Um depoimento sobre a sua histria de vida também foi apresentado por cle no seminsrio.“Antropologia e sous Espelhos: A Etnograia Vista pelos Observa- os" (Giroto, 1994) “tradicionais” como mitologia e liturgia religiosa (Ferretti, S., 1986), e a se- gunda no sincretismo religioso entre a tradigio africana e a catélica (Ferretti S,, 1995), sintomaticamente refletem os distintos periods do seu contato com as diferentes lideres visdio desse terreiro: grupo e que inevitavelmente moldaram a sua SERGIO FERRETTI Eu conversei muito sobre mitologia com dona Amincia eo esque: sma que eu tenho da mito dla casa até hoje me foi dado por ela. Eu elaborei a estrutura das familias dos voduins em cima das informs 2s bisieas dela [De a muito da festa do pois de dona Amincia eu passei para dona Celeste que go dlivino. Ent3o, com ela ex conversava sobretudo sobre a festa do divino e eu come cei a me entrosar mais aberiamente na easa. Agora, com dona Deni (..) tentrou mais no Amago. Porque dona Deni é a detentora do conhecimento da casa, Ela & como se fosse Ogotemméli. Ela de fato € a intelectual da casa, Nesse sentido, as elaboragdes antropoligicas resultam, entre outras coisas, dos constrangimentos da inser¢ao do antropélogo no campo e do encontro com determinados tipos de informantes ou interlocutores. . iN mighes perantas, f 0 didlogo etnografico que o antropélogo estabelece com os membros do terreiro, a entrevista é um momento privilegiado para a troca de informacoes e de percepcdes entre as pessoas que dela participam. Estabe- lecer uma relagao de confianga, favoravel a sua realizagio, é, muitas vezes, ‘um processo complicado, exaustivo e que exige um conhecimento minimo de certas etiquetas e cédigos do grupo. Algumas situagées vividas durante a realizacio desta pesquisa podem exemplificaressas questoes. Em Sio Luis, contatei dona Celeste, uma das liceres da Casa das Minas e marcamos wm encontro para conversar sobre as pesquisas que tém sido feitas em sua casa. Cheguei a esse terreiro numa tarde chuvosa de julho de 1995 e entrei pelo corredor que conduz & varanda interna onde os voduns costumam dangar em noites de festa. Ao final do corredor encontrei duas velhinhas sentadas 20, Referéncia a0 informante dogon de Marcel Griaule no liv Diew dou: entetiens a Ogotemmili (Paris, Editions Du Chéne, 1948). ® O ANTROPOLOGO £ SUA MAGIA rho pequeno muro que separa a varanda do gume, um quintal onde flores- cem pés de pinhao branco ao lado de uma frondosa cajazeira. Identifiquel- ‘me meio sem jeito e perguntei por dona Celeste. "Ela nao esta”, respondeu- me uma delas, dona Deni, “e hoje nao é dia dela vir” (Amélia, Celeste Deni formam tim singular triunvirato” feminino de poder religioso na Casa das Minas). Conheci essas venerandas senhoras de outras visitas que fiz.a esse terreiro acompanhado de pesquisadores do lugar e das etnografias que Ii sobre a religio dos voduns do Maranho. Portanto, sabia que solicitar naquele momento uma entrevista a dona Deni, tendo primeiamente contatado dona Celeste, nfo seria uma politica adequada. A divisio de po- der nos terreiros sempre gera rivalidades e citimes entre os membros da cipula religiosa, ainda mais quando se trata de um “triunvirato”, Fiquei em pé diante de minhas “informantes” que nem me convidaram para sen- tar, pois aparentemente nao estavam dispostas a facilitar a minha vida, 0 meu oficio de “inquisidor”, Olhei para a cajazeira sagrada com suas folhas molhadas pela chuva e lembrei que ha muitos anos, quando cortaram al- guns de seus galhos, um espirito de crianga teria sido visto saindo do tron- co mutilado. A mae-de-santo que ordenara a poda e o homem que a reali- morreram algum tempo depois. “Punicto sagrada”, disseram. Sentia a tensio e mal-estar por estar naquele corredor abafado, naquele labi- rinto de simbolos a0 meu redor. Situacio semelhante vivi no sobrado ver- melho do etnélogo Pierre Verger em Salvador alguns meses antes de sua morte. Estava eu diante daquele pesquisador de idade quase centenaria que andava com dificuldades até asestantes onde repousavam empoeiradas sts pastas contendo mais de cingtienta anos de fotografias eescritos sobre a religiao dos orixis. Diante daquele homem cuja figura me lembrava a de um Oxalufa, 0 deus anciao da eriagio, arqueado sobre 0 seu cajado (ima- fem que ele préprio tanto fotografara), nao tive coragem de abrir o meu roteiro de perguntas e nem disse que entrevisté-lo era 0 objetivo de minha visita. Como chegar até essas pessoas, religiosos ou seus etndgrafos, cujas mos se ocupam em tecer esses inatingiveis enredos de vida feitos de senti- dos, sentimentos ¢ contradigées nem sempre traduziveis ou instantanea- mente resumiveis e Ihes dizer, gravador na mao, curiosidade incomoda: *Mios ao alto, isto ¢ uma entrevistal”. Enfim, apés ter esperado varias ho- ras pot uma entrevista com dona Celeste, que s6 ocorteut no dia segutinte por insisténcia minha, voltei 4s ruas mothadas de Sio Luis com a plena convicgio de que a antropologia realmente é, como quer Geertz (1978: 39), 0 dificil oficio de importunar “pessoas sutis com questdes obtusas".. numa tarde chuvosa. Situagdes semelhantes a essas sio enfrentadas por todo etnégrafo na tentativa de estabelecer um didlogo com seus interlocutores, entrevist- 21. Vor Pereira, 197% 186 ¢ Foret, S, 1986-201 los, observar seu cotidiano, imiscuir-se em suas vidas, enfim, reali. zar seu trabalho de campo. No caso das pesquisas com as religies afro-brasileiras, os antropélogos familiarizados com essas situacoes sabem que € preciso uma dose muito grande de paciéncia e muito jogo de cintura para poder desenvolver uma pesquisa considerando 0 ethos do grupo. A antropéloga Rita de Cassia Amaral relata algu mas das situac6es pelas quais a maioria dos etndgrafos da area ce tamente ja passou RITA AMARAL Coisas maravilhosas que qualquer iniciante deve saber quando vai a0 campo: Ble deve saber que quando ele ligae para um pai-de-santo para marear uma entrevista, vio fazer voc? ligar cingdenta veres para marear. Porque pai-de-santo vai estar ocupade, matando, saerificando, atendendo, ele no pode alar com voeé porque ele ests descansando, cle quer saber quem voeeé, de onde voet é. V ea falando com um assistente durante quinze dias. Depois de quin ‘ze dias ele defere uma entrevista para voeé... Ai vos’ vai Id e espera quatro horas sentado na parte de fora da casa. (O que eles nfo sabem & que a gente fica o! vando a elientela enquanto isto). Nada se perce numa tese, como diz Umberto Eco; até 0 tempo da sala de espera serve... Depois ele vai If rapidamente e di Desculpa qui eu ndo posso te atender, que estou ecupado, vem numa festa que ter no sibado". (Que geralmente vai ter uma festa no sibado. Inevitavel!) Ai vvocé vai naquela festa esperando, prineipalmente quando vocé é um ingénuo € nunca foi, que 0 pai-de-santo vs falar com voeé, mas ele esté ocupadissimo, aten ddendo todo mundo ¢[..] uidando das iniciagbes e voed vai ficar Ia 56 assistind n contar que eles falam que a festa comoga as oito horas da noite ‘comega & meia-neite (quando comeca & meia-noite). Voeé fiea Ié e nio pode ir embora porque voce 1: abe se no pega mal ir embora antes que acabe. Além do mais, voce é um pesquisador, entéo voeé tem que ver tudo. Ente, voee fica Ia até as seis horas da manhi, quando vio servir o peine ou qualquer coisa do tip {que voed nao sabe se deve comer por causa da cata que aquela comida tem, quel mada e esturricada, geralmente. (Entio, quando te mandam comer obi, aquela coisa hortfvel, amarga, que voc? nao suporta endo sabe se engole se vai esperas para cuspir) E ai ele combina que vacé pode ir durante a semana e se voce for muito legal ele vai te dar uma entrevista, onde ele vai mentir desearadament durante duas horas na sua fita.£ claro que ele ndo ¢ obtigado a dizer nada para voc’, mas todo ritual acontece. Vocé vai ouvir, vai ficar cheio de divi voeé vai voltar para perguntar ¢ ele vai tec outta histéria completamente diferente. Em geral vai falar mais sobre a casa dos out to do candombie & sempre diagonal. Voc entrevista um e aprende sobre outro. Até voce pereeber que isto pode se tornar uma estratégia a impressio é de penta cde tempo e enensia. Eu passei por isso varias vezes...Acho que depois voce acos tuma [..] porque se voed esti no grupo voct sabe qual & a kégica e tem que se submoter a ela se quiser estudar eandomble “ 0 ANTROPOLOGO £ SUA MAGIA Na “logica” das religides afro-brasileiras, a palavra falada ¢ considera- da uma importante fonte de axé (forca vital) e veiculo do poder sagrado. Falar 6 um ato magico que impregna por contaminacao simbélica 0 sujeito da fala e seu ouvinte. Na transmissio do conhecimento litirgico, 0 que dizer, quando, como e para quem sao instancias determinadas pela hierar- ‘quia religiosa. A entrevista etnografica, por envolver a transmissio de conhe- cimentos, também é apreendida pelo grupo a partir desse contexto simb6- lico. Para o pai-de-santo, dar entrevistas ou falar ao antropélogo adquirem significados que vao além da simples transmissio de conhecimentos “obje- tivos”, significando, muitas vezes, uma inversio dos procedimentos reli- gi0sos. Porque, nessas religides, 0 processo de obtencio de conhecimento raramente se faz através de uma dindmica de perguntas ¢ respostas. Per- guntaré uma quebra da regra do siléncio e do respeito, pois acredita-se que 6 comhecimento deva ser transmitido de acordo com os méritos de cada um em fungio do tempo de iniciacao. Nesse ambiente aprende-se observan- do, sem questionar ou demonstrar uma excessiva curiosidade. Giselle Binon-Cossard comenta essa forma especial com a qual, no can- domblé, se é educado para receber 0 conhecimento sagrado ¢ incorpori-lo aos poucos: VAGNER Na sua tese voet diz, que a filha de santo deve ser obediente, ouvir tudo © ranea perguntar, porque pet mais antigas GISELLE BINON-COSSARD Porqut passar de uns aos outros, de uma geragio & outra, a bagagem cultural. Dentro do wuntar & uma coisa que acaba sendo mal vista pelos Isso corresponde a uma nogio de como se deve Canudombiéseacedita que tudo que ¢ feito s posts nfo bom a pessoa val gra Wrando una quantidade de nogéo que ela no assnila, Eno, o tempo tem que Tazer as nogbesdescansarem, vamos dizer, déantr sabe essa nogio de vino fan- cos que tm que dcxar uma pate de bora? E a mesma coisa ntlectualmente. As oisnstém que descansarem, Voc? apne, mas depois deisa paras, Quando vem 2 ser maduraentao voet estutara, vod equilib Além disso, a forma como conhecimento nas religides afro-brasilei- ras 6 veiculado (em termos totalizantes da observagio, e nio fracionados em perguntas e respostas) faz com que nem sempre seja possivel, para os religiosos, organizarem suas experiéncias de forma compartimentada, tal 22, Dislogo realizado em 14/4/95 no terseito de Binon-Cossard em Santa Cruz da Serra, Rio de Jancito. Giselle Binon-Cossartnasceu na Franga e velo para o Brasil acompanhando Seti marido que era funeionsrio da embainada francesa Inciou-se no candombké de pat Josiozinho da Goma no Rio de Janeito ex 1962 de volta Frangaesereveu uma tese de loutorado, Contribution ade de canonblésw Brit ecnndomblé Angola Bi 1971). Atualmente dedica-se quase que integralmente ds fungoes de seu a rio tendo dado continuidade 3 sua carrera academic. es como Ihe ¢ solicitadlo pelo roteiro das entrevistas. O conhecimento 6 apre- sentado em forma de pardbolas, de mitos, de casos aparentemente sem sentido imediato, em horas aparentemente inapropriadas, durante uma refeigio, no intervalo de um ritual, enquanto se depenam na cozinha as aves sacrificadas ou se trituram as folhas para um banho. Um conheci- mento que o ouvinte s6 lentamente vai juntando para constituir sua com preensao da religiao, JUANA ELBEIN Se voe# pergunta 2 um alto sace 1: “ponque isso?” ele vai te ean. tar uma cantiga ou vai te dizer um od. Entio a eantiga e odu sio a resposta, Ele rio dicotomiza; ee nio esfacela o conhecimento, Para ele, 6 conhcimento & ama coisa hol bola [..-Se, por exemplo, eu vejo fea. Ele vai te responder com uma pi cantar ebotar perfume em um egum, voot pode dizer como Pierre Venger me disse ‘Ah, porque ele gosta do cheiro de perfume” [..J. Mas os perfumes que se usam normalmente no terreiro sSo [feitos] com follas, Agua de levante, esse tipo de coi sas, Entso um deter a um determinade orins, En fo, pergun. ninado perfume & p tei um dia: "Por favor, porque esse perfume?” \daga dacasa me respondeu:” Ad ad, add emorid, di da lo que mods” [cantando] Ahal, 0 que ela ests dizendo? Que muito, muito bom para os filho casa que, omori (os filhos que estio vendo), gum se sinta querido, confortdvel, bem recebido. Ecomo uma oferenda que vort std fazendlo, voet no esté botando para ele cheitar bem. Entio, quando ela me cantou a cantiga, eu entendi claramente em seguida E ligides afro-brasileiras sio dificeis de ser realizadas dentro da légica n fungio desses aspectos, as entrevistas com os membros das re- académica de apreensio do conhecimento, e ha uma intensa negocia ao entre entrevistador e entrevistado sobre os contetidos do que ¢ dito, tendo por base 0 contexto religioso que geralmente o antropélogo ain da nao conhece. Revendo alguns diilogos realizados com os adeptos do candomblé de Sio Paulo e que serviram de base para a elaboragio de minha etnogeafia de mestrado € possivel perceber alguns aspectos dessa dinimica de negociagoes™. (Os “problemas” de comunicacio entre o que 0 antropslogo perg (© que o entrevistado entende da pergunta surgem jé na identificagao do entrevistado. Exemplo: embora muitas vezes o pesquisador pretenda iden- tificar seus “informantes” com o nome civil, essasinformagoes servem ape nas para formar um registro etnogrfico para os “de fora”, pois nao corres. 23, Esesdislogos foram realizados como parte deuma investigacio, ordenad por Reginaldo Pranal eu, em mais de cinquenta tereiros da Grande Sso Paulo, com a eolaboragio de tuma equipe de pesquisadors, entre os quai, Ricardo Mariano e Rita de Cassin Amara Res Amaral, 1992 ados desta investigagso podem ser encontrados em Pran, 1991; Silva, 1995 ¢ « O ANTROPOLOGO E SUA MAGIA ponde a forma como 0s individuos se identificam e se reconhecem no grt- po. No candomblé os adeptos sio conhecidos geralmente pelo seu nome religioso, chamado em alguns terreiros de digina, formado a partir de pala- vras de origem africana (“Ajaoci”, “Manode”, “Iassessu"), pelo primeiro nome associado ao nome do orixd de quem ¢ filho (“Helio de Logun”, “Abdias de Oxossi”) ou pelo apelido ("Tonhao", *Zefinha”, “Baiano”). ‘Muitos religiosos fazem uma separacio entre o nome do santo ou do orixa (oruk6) e 0 nome de santo do iniciado (digina) que em geral ¢ proveniente de uma parte do primeiro: SANDRA MEDEIROS A minha di foi daca ao mew santo, que era “Obaka6 Kailabandeci”™ CCHLRERTO FERREIRA Eu fai eonfrmado por Diniz da Oxum. O nome de santo de seu Diniz 6 “TH Of6 Bionu”. Ele 1a era Kailakitin, parte do ofuké que na ocasisio ceujo nome de a feito por Waldomito de Xango santo é“Obatu Lukitiosan”, que filho-de-santo de Cristovio de Ogum chamado “Ogum Kibeliona”™. O nome do santo é revelado apenas tima vez, publicamente, durante a “ saida-do-nome”, uma parte da festa priblica de iniciagio, quando o orixt grita “na sala” (no barracio do terreiro) o seu nome de forma muito ripida para nao se revelar totalmente aos ouvidos dos participantes da festa. Sen- do efetivamente conhecido somente pelo iniciado e pelo pai-de-santo (e por poucas pessoas do terreiro), 0 nome do santo constitui um atributo particular que “comprovaria” a identidade de um iniciado, Dizer o nome do orixa é uma forma de quem diz expressar confianga em quem o ouve (pois acredita-se que é possivel atingir uma pessoa fazendo feiticos com 0 nome de set orixa) e estabelecer com ele vinculos de reciprocidade na co- munidade. Quando, durante a entrevista, 0 pai-de-santo revela o nome do into ou 0 de outros iniciados para o pesquisador, muitas vezes esti “quebtando” a regra do segredo em prol de uma cumplicidacte de que nem sempre o pesquisador se di conta. Entre dizer o nome civil e o nome reli- ‘gioso existe uma diferenca de significado que 0s religiosos percebem quan- do tém de responder uma pergunta simples como “Qual o seu nome?” A resposta de mie Deusinha a essa pergunta ¢ exemplar: "(Meu nome é] 24, Diflogo realizado em 1987 no terre “Ho Leulwyato” entre a mie-de-santo Sandia Medeiros, Vagner Goncalves da Silva e Reginaldo Prandi, O ter We Sandra foi tum dos que mais observet durante o met trabalho de campo, gragas a amizade que fizemos desde © termpo em que (ver Silva, 1995). 25, Disloge realizado em 21/5/87 no terrsiny “Il Iya Mi Oxum Muyiwa” ent 0 0 berto de Exu (Gilberto Ferreira), mae Wanda de Oxum, Vagner Gongalves da Silva Reginaldo Prandi ro de amos alunos do eusso de toruba oferecido pela USP Deusdetes Pereira dasDores. Me chamam de Dofona porque eu sot dofona de barco”. Agora 0 oruké do meu santo eu no posso dizer ‘A mesma coisa acontece quando se pergunta a idade ea filiagio de um adepto do candomblé, pois sendo a iniciagao considerada um nascimento, © iniciado sobrepoe a “idade de santo” (de iniciagio) a idade bioldgica va filiagao religiosa a consangiiinea, Por outro lado, quando a entrevist 6 realizada com os adeptos que conseguem ter um certo distanciamento de sua experiéncia religiosa e a interpretam em niveis mais amplos, as respostas obtidas podem conter em ssi mesmas importantes sistematizacoes e percepcdes para a anélise antro- pol6gica. Na entrevista com o ebomi Renato Cruz e com o pai-ce-santo Aulo Barreti, é possivel perceber os varios registros de interpretacio em suias respostas. VAGNER fos no dia da festa de safda? ‘ritual de confirmar o nome [religioso do iniciado] com 0 jogo-de-biiz RENATO CRUZ E puramente rituaistco, E puramente simbilico nao tem nenhum sentido fora daquilo [Nao estou desmerecendo absolutamente 0 jogo de biizios. © jogo de bizios & 36 um instrumento ritual simbélico do candomble. Ele ndo tem aginando que tem”. toda essa conotagio poderosa que vost ti LVAGNER Os orixis no falam em foruba? ‘AULO BARRETT Nao falam porque o cara nio fala em ionuba, Se fosse assim voet Iniciava santo e ele nao precisava aprender a dangar [JE diferente da Afri crianga jf nasce com isso, com dois anos ela ests dangando (para] Ogum e Xango na frente de todo mundo, No Brasil nfo, voeé tem que ensinar [JO transenao é tudo isso. Ele acontece, funciona dentro de uma cabega. Se fesse assim o candombléesta- ria vivissimo, ndo estaia aculturado, no estaria mi Ocaravira noOgum, ‘vost conversa com Ogum ele pie tudo.em ordem: “Eu com frecebe como oferenda} isto, mew assentamento [representagio material] é assim. e todo mundo estava falando em ioruba® 26, Nu Primero lugae 27. Dislogo realizado em 19/5/87 no tereeito “Cabana de Canddomblé Ogun ae Nag” eatue coletiva (chamada de “bareo") a dofona &iniciada que foi raspadia em mae Deuzinha, Vagner Goncalves da Silva, Reginald Prandi e Ricardo Mariano, Esse dis fo10 primeico contatocom o grupo desse terreno como qual no tinhamosintimi dade nenhuma 28, Dislogo realizado em 19/4/87 no terri “Ie Axé Om6 Ogurn ati Ox” enise 0 ebomi Renato Cruz, Vagner Gongalves da Silva e Reginaldo Prandi. Em 1979, Renato eeu ingres samos no curso de eiéncias socais © nessa Gpoca Renato iniciow-se no cancombl. Fo através dole que tive mous primeirascontatos coma rligio 29, Didlogo realizado em 9/3/87 no terwito “Il8 Axé Odé Kitalecy” entre pai Aulo Barrett Vagner Goncalves daSilva e Reginaldo Pranal, Pai Aulo fra meu professor de “teologia africana comparada” na Funaculty (Fundagio de Apoio ao Cultoe Tradigao Yorubana no a © ANTROPOLOGO € SUA MAGIA ridade puramente dialégica reprimiria 0 fato inescapavel da textualizacao” (Clifford, 1988: 43). Nesse sentido, nao se trata de submeter a “l6gica da pesquisa” a “I6- gica do nativo” (ou vice-versa) e nem de tentar fazer coincidir os interes- ses desses dois universos, desconsiderando suas posigdes. Ao contratio, trata-se de sondar essas l6gicas e posigdes através de “modelos discursivos de pratica etnografica” nos quais o préprio didlogo etnogréfico seja um importante locus do conhecimento produzido, isto é, que permita revelar também o significado das perguntas para as quais nao existem mais tar- tarugas suficientes. 05 S298 iadne Oo" cle téenicas apuradas de coletae registro das informagdes no cam- po tem sido enaltecido como uma das principais contribuigbes de Malinowski desde que ele se viu abandonado naquela praia deserta (“ro- deado apenas de seu equipamento”) e dela regressou produzindo uma das mais densas etnografias. Mas quando se trata de definir quais so realmen- teas técnicas fundamentais que constittuem a observacao participante ecomo utilizd-las, 6 sempre dificil chegar a um consenso sobre 0s “equipamentos” necessérios para se chegar a um “bom trabalho etnogrifico”. Muitos antro- pélogos, como Geertz, sequer colocam a pritica etnografica como uma “questao de método”: Em antropologia ou, de qualquer fo em antropologia social, que os pratican- tes fazem &a etnografia, E justamente 20 compreender © que &a etnografia, ou isexatamente, oque é.a pritica da etnogratia, & que se pode comecara entender :ntropoldgica como forma de conhecimento. Devemos ‘© que representa a an frisar,no entanto, que essa nio é uma quest3o de métodos. Segundo a opinio dos. livros-toxtos, pratiar etnografia 6 estabelecer relagSes, selecionarinformantes, trans crever textos, evantar genealogias, mapear campos, manter um distio,e assim por diante, Mas nao sio essa coisas, as téenicas e os processos determinados, que defi- ‘nem o empreendimento (Geertz, 1978: 15) Oantropélogo, a0 chegar a campo, percebe, no entanto, que dificilmen- te poder executar seu trabalho sem a aplicag3o de algumas técnicas ou procedimentos metodologicos. Assim, pede-se ao etnégrafo que conviva 0 maior tempo possivel com o grupo estudado, aprenda a sua lingua ou suas formas tipicas de comunicagio, registre seus costumes, habitos e depoi mentos através de um didrio de campo e, se posstvel, por meios capazes de registrar fatos, independentemente da sador, como gravadores de som, miiquinas fotogrificas, filmadoras ete nterpretacio pessoal” do pesqui- Porém, diante do fluxo ininterrupto dos muiiltiplos significados que mar- cam 0 queas pessoas fazem e dizem, o antropélogo estar sozinho, munido apenas de sta sensibilidade e intuico® para decidir quando e quais sinais, falas, eventos, nomes, relacbes e objetos privilegiar em sua tentativa de “re constnuir a realidade” Na pritica atual da etnografia, a utilizagio de g filmadoras tem possibilitado ao pesquisador registrar falas, situacdes e avadores de som e de imagens dos seus interlocutores de forma mais detalhada se comparada com o registro por anotagoes feitas na hora ou de meméria, A capacidade desses recursos de capturar com fidelidade imagens e sons nao se confun- de, porém, com wma maior “aproximagio do real”, pois, ao filmar out gra- var, o pesquisador ja seleciona entre as intimeras possibilidades aquilo que ele deseja ver e ouvir, seja no momento em que os fatos se desenvolvem, je ao selecionar quais partes desses registros serio signi- seja posteriormer ficativas para a sua interpretacio. A montagem de uma etnografia (ou do texto etnogrifico) assemelha-se muito a de um filme em que o resultado final é sempre uma selecio segundo critérios pré-estabelecidos de uma quantidade muito maior de opcoes ¢ enfoques. Por esses motivos, 0s regis tros fotograficos, filmicos e dle sons deveriam ser vistos néo apenas como “meios" que conduzem a interpretagio etnogritica (figurando geralmente na forma de “anexos” ao texto principal da etnografia), mas serem também objetos de uma auto-representacio" Por outro lado, no trabalho de campo, a utilizagio das técnicas de pesquisa ou a decisio sobre o que ver e ouvir e como registrar, nio de- pende somente do antropslogo, mas da represent: glo que os grupos observados fazem sobre essas técnicas e que determinam as restriges impostas ow os consentimentos dados. No campo das religides afro-bra. sileiras existem certos constrangimentos relativos & natureza simbélica das mensagens veicu as e stias formas permitidas de registro pela tra £3. "Ninguém apronde o oficio de conhesedor ou de dingnosticoclorlimitendo-se @ pir em priticaregras preexistentes, Ness tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se norma nobuug, 1991: 179). 10, golpe de vst, inti” ( HA, Essa visio tem-se madifcao como ereseiment de trabalhosn ina como filme etnogriico, 0 cedromete.” Amsiorparte da ctnogeaia Gencontradaem liv eartgos,em vez de filmes, sno eles hs, certamente, otografias desen dliscos, exposigdes de museus ete ia "abelas eas por dante Tem fet falta antropologia uma autoconscincia so 5) (Geertz, 1978 30, bbre mods de epresentagio (para nao falar de experimentoscomel dicdo religiosa. Como jé mencionei anteriormente, falar sobre a religido é passar axé”, O que ¢ dito, o lugar, a hora e 0 momento apropriado arti: culam-se de forma indissocidvel. Mencionar simplesmente 0 nome de certos divindades, proferir rezas ou cantigas fora de seus momentos littrgicos parcialmente”* retirar objetos sa pacos de referéncia, ou apenas grados de seus contextos, enfim, articular o conhecimento segundo a uti- 6 licito aos olhos dos lizacho que dele quer fazer a pesquisa, nem sempre religiosos. Muitas vezes, embora o grupo permita que o antropélo; > pre- sencie determinados atos rituais secretos, como um rito fiinebre, 0 seu registro sonoro out fologrifico nao pode ocorrer, pois isso representaria uma dissociacdo entre o que se diz ¢ se faz com o quando se diz ¢ se faz. ambém muitas vezes é permitido assistir a rituais, mas nio escrever sobr. eles. ce pando [.). Tudo que tinha ele as SANTOS Ele [pesquisador] ficou oito meses i na Casa das Minas partici ia: ..] zelim, tambor de choro que eh: VAGNER E esses rituals pode-seassistir? fe. Mas, as vezes, tem co fe gravar. Porque cert cantigas s6 se canta pro motto, Entio se voc’ tem gravado, b Norton Corréa conta que as fotos dos iniciados em transe, embora pu dessem ser tiradas durante 0s rituais, no podiam ser mostradas a eles, pois 6 um tabu para o religioso se ver “virado no santo’ NORTON CORREA O segtedo maior |Grande do Sul é ndo poder dizer que a pessoa recabe @ santo, E isco era uma coisa que eit era muito advertido quando tiravaas fotos. Eaté hoje quando eu vou Is tirar fotos, tem pessoas que estio na cas (€ no me conhecem, porque ew ndo estou 14 hi muito tempo) que ficam muito assustadas, ou melhor os orks ficam muito assustados porque sempre tem esse edo que depois vao ver as fotos © a pesson vai ficar louca porque nio sabe que A permissao para fotografar e filmar pessoas e rituais depende do tipo de relacio (intimidade, confianga, reciprocidade ete.) que se desenvolve entre © pesquisador e o grupo religioso. Muita: vvezes esses registros sio conces- tas sbes que 0 grupo faz. a0 pesquisador, mesmo sabendo que a tigor regras da tradicio religiosa estio sendo quebradas. 45. Algumnascantigas quando entoadas exigom ser “espondidas” através de outras cantiga Também alguns cinticos s6 podem serentondk uma parte for eantado, como numa “roda de Xangi VAGNER E entrar no quarto-de-santo para vera NORTON CORREA Isso eu podia. Por exemplo, a Ester da lemanjs, quand ‘matanga, mandava avisar [..].EntSo, dentro do quarto-de-santo tinha aquela para femsliadea Iguidares ..] ali nespago de um metro emeio tinha um lugar (de ‘quarenta centimetros para eu ficar de pé) que ela sabia que eu gostava, porque era 1ndo iacomegara matanga, ela dizia:“O senor ratégico para fotografar Enso, que pode ie pa a If que vai comegar a matanga”. Vinha os animais eeu feava ali com a 2 olhande, maquina fotog: ajudava,“Olha, traz aquele alguidar de fulano” Entao, pegava oalguidar e dava, YAGNER Mas isto nio & um tabu? Era uma excegio que ela fazia a voet? NORTON CORREA A mim [... Para comego de conversa, na maioria das casas as pessoas ndo deixam participarem clessainiclagio; se chega uma pessoa desconheci dla, née-iniciada, Em principio eu poderia entrar Talvex pelo meu conhecimen: to, cu entrava livremente. E nessas casas que eu linha mais conhecimento podia fotografare fazer o que ex quiseste Nesse sentido, osantroplogos sio classificados, freqtentemente, numa categoria liminar, entre 0 religioso e o leigo, beneficiando-se de um privilé gio que Ihe € concedido em funcao do respeito do povo-de-santo por set status social ou de conhecimento e pela respeitabilidade que for capaz le adquirir. Esse privilégio, contudo, pode gerar um sentimento de respeito por parte do antropélogo em relacio a religiio que o torna, de fato, um quase religioso” O antropélogo José Jorge de Carvalho, na pesquisa que realizow no xangé pernambucano sobre ritos e mtisica religiosa (Carvalho, 1984), tam bém percebeu a necessidade de angariar a confianga cos membros dos ter- reiros pesquisados para que estes permitissem a gravagio de seus rittais JORGEDE CARVALIIO Algumas casas nunca tiverain nenhum problema de a gente querer gravar um toque e as pessoas no quererem [..}. Em alguns lugares eles no o receptivos. Em alguns poucos lugares foi mais dificil gravar no contexto. LVAGNER E por que? JORGE DE CARVALHO Porque eu nao tinha a mesma intimidade, digamos, Sobretu do no Sitio, mas depois eu consegul gravar no Sitio da Agua Fria, Na primeira vez, no primeiro ano em que eu fui Ié eu nem tentei, nao gravel particularmente li VAGNER Vocé nao tentou porque voeé jd tina uma ida da dificuldade? Jon’ DECARVALHO E, porque no er fei, Acho que foi o tinieo. Em alguns in quando ex linha reiros) eu gravei mais da segunda vez eem outros mais da ten ‘muito mais tempo de imersio, Mario Miranda foi a primeira casa que eu fui me recebeu sem nenhum problema; mostrou todo o peji; deixou a gente gravar; et [gravel tanto a parte de xango, depois tinha a parte de jurema que eu gravel VAGNER Fotografou? JORGE DE CARVALHO Fotografet. Sem nenhuma resistencia, E como se fosse quan: ® © ANTROPOLoGO £ SUA MAGIA do voeé val aprendendo um idioma, Sabenda mais voc’ sabe come falar também para ser uma pessoa de dentro eser melhor acit. Na dea das religides afto-brasileiras, nas quais 0 som (nutisica, canti- 225, narrativa oral etc.) e a imagem (cores, paramentos, coreografia das danga, gestos, estética ritual etc.) desempenham papéis importantes, 0 uso das tecnologias de registro torna-se ainda mais freqitente, embora se saiba que muitas vezes ao ligar 0 equipamento desliga-se a possibilidade de captar uma situacio mais “espontinea”, Durante a entrevista, por exem- plo, muitos religiosos temem dar informagies no “calor da hora” e res ponder certas perguntas sem uma reflexio anterior. Para evitar que caiam, numa possivel “armadilha” que 0 registro de suas informacées pocleria hes causar, muitos religiosos preferem ter acesso ao roteito de perguntas da entrevista previamente, para depois permitir 0 registro de seu depoi- mento, ou, ainda, que se desligue o gravador em certos momentos para que nao haja registro do que dizem. Podem solicitar, também, que seja feita uma “pré-entrevista’, como aconteceu com Jocélio Teles dos Santos: JOCELIO SANTOS Uma das primeiras entrevistas que fiz foi com umn pai-de-santo que havia recebido 0 deci hi pouco tempo, No primeito contato ele se mostrou abe ime pedir para realizar a entrevista sem ligar 0 gravador © depois que eu re ai ocorreu dl izasse toca a entrvvista eu ligaria o gravador w faria a mesina ‘entrevista [..]. E fot muito interessante ponyue quando eu ligued o geavador ele mudlou complemente a postura fsia, Ble adquitit mais, como eu dita, background de paidesanto [.) ‘ele antes era autoridad, a partir do momento que ele cestava dia «lo [gravando] sobre oseu terreiro, o seu caboclo, ele era muito mais do ‘que autoridade, Havia 0 registro do que estava sendo dito |. Ele teve 6 euidado de pedir para no gravar e saber o que eu estaria perguntando, poisafinal de contas cle poderia dizer algo que seria de fundamento, que ele nio poderia fala [.]. Eele falou basicamente da mesma coisa O importante papel que a fofoca, a maledicéncia, as intrigas, 0 fuxico, cenfim, a inciaka de maoula (para usar uma expressio que nos terreiros desig na alguém fofoqueio e de “lingua malévola”), ocupa na forma de comuni- cagao e controle social do grupo faz com que os religiosos se posicionem dubiamente em relacao aos registros de suas falas ¢ imagens que, por “fi- xar” certos contetidos, coloca alguns limites para a constante reelaboracao «la mem

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