Você está na página 1de 6
Elogio da seronidaste Preconceito e discriminagao Ocupo-me do preconceito por suas consequéncias nocivas. A consequéncia principal do preconeeito de grupo é a discrimina- ¢40. Dos exemplos que apresentei ~ do preconceito nacional (ou regional) e do preconceito de classe, a que se deve acrescentar 0 preconceito racial -, deriva que a consequéncia principal do preconceito coletivo é a distingao, ou melhor, a contraposicao, entre grupos que se discriminam reciprocamente. Que significa discriminacao? A palavra é relativamente recente ¢ foi introduzida e difundida sobretudo em relagio a campanha racial, primeiro nazista e depois também fascista, contra os judeus, considerados um grupo “discriminado" com respeito ao grupo dominante, “Discriminagao” significa qual- quer coisa a mais do que diferenga ou distingdo, pois é sempre usada com uma conota¢io pejorativa. Podemos, portanto, dizer que por “discriminagao” se entende uma diferenciacao injusta ou ilegitima. Por que injusta ou ilegitima? Porque vai contra princfpio fundamental da justica (aquela que os filésofos cha- mam de “regra de justica”), segundo a qual devem ser tratados de modo igual aqueles que sao iguais. Pode-se dizer que se tem uma discriminagao quando aqueles que deveriam ser tratados de modo igual, com base em critérios comumente aceitos nos paises civilizados (para deixar mais claro, refiro-me aos crité- rios fixados no Art. 3 da Constitui¢ao italiana), sao tratados de modo desigual. 1 Incluido entre os “principios fundamentais” da Constituigio italiana, promul sgadia em dezembro de 1947, 0 Art. 3 estabelece o seguinte: “Todos 0s cidadios tém idéntica dignidade so sexo, raga, lingua, religido, opinides politicas, condigées pessoa E dever da Republica remover os obstaculos de ordem econdmica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadaos, impegam © pleno desenvolvimento da pessoa e a efetiva participagao de todos os trabalhadores na organizacao politica, econdmica e social do pais". (N.T) Ie so iguais perante a lei, sem distingio de sociais 107 Norberto Bot Procuremos compreender melhor em que consiste adiscrimi- nacao distinguindo as fases por meio das quais ela se desenvolve Num primeiro momento, a disc! juizo de fato, isto é, na constatacao da diversidade entre homem chomem, entre grupo e grupo. Num juizo de fato deste género, nao hd nada de reprovavel: os homens sao de fato diferentes entre si. Da constatago de que os homens sao desiguais, ainda nao decorre um juizo discriminante. juizo discriminante necesita de um juizo ulterior, desta vez nao mais de fato, mas de valor: ou seja, necessita que, dos dois grupos diversos, um seja considerado bom ¢ 0 outro mau, ou que um seja considerado civilizado e o outro barbaro, um su- perior (em dotes intelectuais, em virtudes morais etc.) e 0 outro inferior. Compreende-se muito bem que uma coisa é dizer que dois individuos ou grupos sio diferentes, tratando-se de uma mera constatagao de fato que pode ser sustentada por dados objetivos, outra coisa é dizer que o primeiro é superior ao segundo. Um juizo desse tipo introduz um critério de distingao nao mais factual mas valorativo, que, como todos os juizos de valor, é relativo, historica- ‘mente ou mesmo subjetivamente condicionado. Na discriminagao racial, que é uma das discriminacdes mais odiosas, este intercim- bio entre juizo de fato e juizo de valor ocorre habitualmente. Que 0 negros sejam diversos dos brancos, ¢ um mero juizo de fato: trata-se, dentre outras coisas, de uma diferenga visivel, tao visivel que nao tem como ser negada. A discriminagao comeca quando as pessoas nao se limitam mais a constatar que sao diferentes, © acrescentam que os brancos sao superiores aos negro: negros so uma raga inferior: Inferior com relagao a qué? Para dizer que um ser é superior a outro deve haver alum critério de valor. Mas de onde deriva este critério de valor? Trata-se de um critério de valor que quase sempre é inserido acriticamente no ambito de certo grupo e que, como tal, se apoia na forga da tradi¢o.ou numa autoridade reconhecida (por exemplo, num texto considerado infalivel pelos seguidores, como o Mein Kampf de Hitler) iminacao se funda num mero que os 108 Flogio da serenidode O proceso de discriminagao nao termina aqui, mas se com- pleta numa terceira fase, que 6a verdadeiramente decisiva. Para que a discriminagao libere todas as suas consequéncias nega- tivas, nao basta que um grupo, com base num juizo de valor, afirme ser superior ao outro. Pode-se muito bem pensar num individuo que se considere superior a outro mas nao extraia de modo algum deste juizo a consequéncia de que é seu dever escra- vizé-lo, explora-lo ou até mesmo elimind-lo. Pensem na relagao habitual entre pais ¢ filhos. Nada a objetar quanto a considera- ¢ao da superioridade dos pais sobre os filhos, até mesmo porque esta superioridade pode estar parcialmente assentada em bases objetivas, ao menos enquanto os filhos forem pequenos. Porém, desses dois juizos nao decorre de modo algum a consequéncia de que o superior deva esmagar 0 inferior. Antes disso, passa-se nas relagées familiares precisamente o oposto: como superior, 0 pai deve ajudar o filho. © mesmo ocorre, para dar um exem- plo atual, nas relagdes entre 0 Norte e 0 Sul em nivel mundial. Ninguém poe em diivida a superioridade do Norte com respeito ao Sul, no minimo sob o aspecto tecnoldgico. Mas, desta supe- rioridade, ninguém considera poder derivar a consequéncia de que é bom que o Norte viva na abundancia eo Sul sofra fome. A relacao de diversidade, e mesmo a de superioridade, nao implica as consequéncias da discriminagao racial. Que nao se restringe & consideracao da superioridade de uma raga sobre outra, mas da um outro passo decisivo (aquele que chamei de terceira fase ‘amente no juizo de que uma raga é superior ¢ a outra ¢ inferior, sustenta que a primeira deve comandar, a segunda obedecer, a primeira domi- no processo de discriminagao): com base prec nar, a outra ser subjugada, a primeira viver, a outra morrer. Da relagao superior-inferior podem derivar tanto a concepgao de que o superior tem o dever de ajudar o inferior a aleangar um nivel mais alto de bem-estar ¢ civilizacdo, quanto a concepcie de que o superior tem o direito de suprimir o inferior. Somente quando a diversidade leva a este segundo modo de conceber a 109 Norberto Bobbio relagao entre superior ¢ inferior é que se pode falar corretamente de uma verdadeira discriminacao, com todas as aberragées dela decorrentes, Entre estas aberragdes, a historicamente mais des- trutiva foi a “solugao final” concebida pelos nazistas para resolver © problema judaico no mundo: o exterminio sistematico de to- dos 0s judeus existentes em todos os paises em que o nazismo estendera scu dominio. Para chegar a esta conclusao, os doutri- nadores do nazismo tiveram de passar por estas trés diversas fases: a) os judeus sao diferentes dos arianos; b) 08 arianos sao uma raca superior; c) as ragas superiores devem dominar as in- feriores, ¢ até mesmo elimina-tas quando isto for necessario para a propria conservagao. Os varios tipos de discriminagao. Examinei até agora o nosso maior exemplo de discriminagao: a racial. Ela, porém, nao é a tnica Ha muitas outras. Considere-se 0 Art. 3 da Constituigdo italiana, no qual se lé: “Todos os cidadaos tém idéntica dignidade social ¢ sao iguais perante a lei”. A afirmacao de que todos os cidadaos sao iguais ja é, por si mesma, uma tomada de posigao com respeito a toda forma de discriminagao. Como ja observei, a discriminagao repousa antes de tudo na ideia de que os homens sao desiguais. O Art. 3 continua: “sem distingdo de sexo, raca, lingua, religido, opinides politicas, condicdes pessoais ¢ sociais" Detenho-me de modo particular na discriminacao referida as opinides politicas e na que diz respeito As condigdes pessoais A primeira se torna sempre mais irrelevante, ao menos num Estado democratico, que é pluralista por sua prépria na- tureza e vive deste pluralismo, Ainda que nao seja totalmente verdade que seguir uma opiniao politica em vez de outra nao tenha consequéncias praticas, admit © portanto de modo categérico, no mais sujeito a discussao. sociai se em termos de principio, que numa sociedade democratica cada um é livre para seguir a No Elogio da serenidade opiniao politica que considere melhor. Para dar um exemplo de discriminacao com respeito a opiniio politica num Estado demo- cratico, pode-se tomar o Berufsverbot que vigorava na Repiiblica Federal Alema: quer dizer, a determinagao com base na qual os membros de certos movimentos ou partidos considerados subversivos nao podiam ingressar em alguns drgios publicos. Um dos objetivos primarios do Estatuto dos Trabalhadores, que vigora na Itélia desde 1970, foi o de garantir a liberdade de opiniao no interior da fabrica. Seu Art. 1°, de fato, diz que 08 trabalhadores “tém direito, nos locais em que prestam seu servigo, de manifestar livremente o proprio pensamento”. Quanto as condigées pessoais e sociais, seria preciso antes de tudo interpretar o significado exato da expresso. Em linhas bem gerais, pode-se dizer que entre as condigdes pessoais estao certamente alguns defeitos ou limitagGes, como aqueles que ca- racterizam a categoria hoje comumente chamada de portadores de deficiéncia, ¢ entre as condig6es sociais 0 pertencimento a uma classe social, Para as finalidades deste nosso capitulo, basta dizer que 0 problema de uma possivel (e nao apenas possivel, mas também real) discriminagao com respeito aos portadores de deficiencia existe e é continuamente discutido, sobretudo nos am- bientes onde se elabora a politica escolar. Nao nos estenderemos também sobre a discriminagao fundada na distingao de classe so- cial, que, nao obstante 0 texto do Art, 3, continua a produzir seus efeitos em numerosas situagdes, como, por exemplo, na aplicagio da lei penal, muitas yezes mais respeitosa ou menos rigida diante dos ricos que dos pobres, apesar do principio inscrito na fachada de todos os tribunais: “A lei é igual para todos” e suas diferencas Uma vez arroladas as mais comuns formas de discrimina- Gio, trata-se de ver se se podem perceber diferengas relevantes entre elas. Ja dissemos que a discriminagao repousa sobre a M1 Norberto Bobbio observagao de uma diversidade ou desigualdade entre individuo ¢ individuo, entre grupo e grupo. Agora, a distingao principal que desejo fazer entre diversas formas de desigualdade é entre desigualdades naturais ¢ desigualdades sociais, Trata-se de uma distingao relativa e nao absoluta. Mas é uma distincao que, dentro de certos limites, tem um fundamento. Todos podem ver que a diferenga entre homem ¢ mulher é natural, ao passo que a diferenga linguistica € social ou histérica. Tanto isso é verdade que um homem nao pode se transformar em mulher e vice-versa (Sendo em casos excepcionais), mas um homem pode falar duas ou mais linguas, podendo até mesmo ocorrer que num certo periodo da vida tenha falado uma lingua e num outro periodo Passe a falar uma lingua diversa. A distingao entre estas duas espécies de desigualdades teve grande importancia na historia do pensamento politico, Uma das constantes aspiragdes dos homens é a de viver numa sociedade de iguais. Mas € claro que as desigualdades naturais so muito mais dificeis de vencer que as sociais. Por essa razio, aqueles que resistem as reivindicagdes de maior igualdade so levados a considerar que as desigualdades so, em sua maior Parte, naturais e, como tais, invenciveis ou mais dificilmente superiveis, Ao contrario, aqueles que lutam por uma maior igualdade esto convencidos de que as desigualdades so, em sua maior parte, sociais ou histéricas. Pense-se no principe dos escritores igualitérios, Rousseau: no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, ele sustenta que a natureza fez os homens iguais ea civilizagao os tornou desiguais, em outras pa- lavras, que as desigualdades entre os homens tém uma origem Social e, por isso, o homem, voltando & natureza, pode retornar a igualdade. Experimente-se agora considerar o principe dos escritores nao igualitarios, Nietzsche (0 anti-Rousseau): para © autor de Além do bem e do mal, os homens sdo por natureza desiguais e apenas a sociedade, com sua moral de rebanho, com sua religido baseada na compaixao pelos “defeituosos”, é que fez Ve

Você também pode gostar