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14 D) Prtnedpi CAPA A ecologia de Marx A bibliografia marxista sobre questées ambientais nao é extensa, embora este tema nao seja estranho ao marxismo: desde seus escritos iniciais, Karl Marx enfatiza o metabolismo que existe entre o homem ea natureza. A grande virtude de A ecologia de Marx - materialismo e natureza, de John Bellamy Foster, do qual foi extraido 0 texto aqui publicado, é justamente visitar o assunto enfrentando, de um lado, as visdes derivadas do marxismo ossificado, cujo acento produtivista minimiza o problema, e, de outro, o chamado “marxismo ocidental” e sua énfase apenas nas questées culturais. Tudo isso num esforgo para restaurar a dialética materialista original e, a partir dai, contrapor-se ao idealismo subjacente a maioria do pensamento “verde” contemporaneo. E, para isso, examina as teses que, enraizadas nos pensadores do Renascimento, fundamentam o debate desde o século XIX. Editor da Montihy Review, a revista marxista mais antiga que continua sendo editada, Bellamy Foster contribui assim para restaurar a compreensao materialista dialética neste debate, em um livro que eleva a compreensao mais avangada desta questao. (José Carlos Ruy) 83/2006 CAPA mbora haja uma longa histéria de dentincias contra Marx por falta de preocupacao ecaldgica, hoje, apis décadas de debate, esté cla- rissimo que essa visto absoluta- mente nao condiz com as evidén- cias. Pelo contrario, como obser- vou 0 goégrafo italiano Massimo Quaini, “Marx (...) denunciou a espolia¢ao da na: tureza antes do nascimento de uma moderna cons- cléncia ecoldgica burguesa”. Desde o principio, a nocao de Marx da alienacao do trabalho humano esteve conectada a uma compreensao da aliena¢ao dos seres humanos em relacao a natureza. Era esta alicnacéo bilateral que, acima de tudo, era preciso explicar historicamente Em conseqiiéncia, muitos des mais virulentos eriticos de Marx foram forcados, nesses dltimos tem- pos, aadmitirque o trabalho dele contém numerosos e notivels insights ecolégicos. Em vez de simplesmen- te condend-lo no que tange a isto, os criticos agora costumam recorrer a seis argumentos intimamente conectadas. Primeira: as afirmagées ecoligicas de Marx so descartadas como “apartes iluminadores” sem nenhuma relacdo sistemética com 0 corpo prin- cipal de sua obra. Segundo: consta que estes fasighis ecolégioos emanam de modo desproporcionado da sua critica inicial da alienacao, e 340 muito menos evidentes na sua obra mais tardia, Terceiro: Marx, s gundo consta, néo conseguiu em tiltima instancia li- dar com a exploracao da natuteza (deixando de in- comporé:-la na sua teoria do valor), tendo em vez dis: 0 adotado uma visao “ prometéica” (pré-tecnolégica, antiecoldgica). Quarto: como corolério ao argumento * prometécio”, alima-se que, na visio de Marx, a tec- nologia capitalista e o desenvolvimento econdmico haviam resolvido todos os problemas dos limites eco- legicos, e que a futura socledade de produtores asso- idos existiria sob condigdes de abundancia, Néo se- ria, pois, necessario, como esereve o economista Alec ‘Nowe, supostamente seguindo a logica de Marx, “le- var a sério o problema da alocacao de recursos escas- sos” ou desenvolver um socialismo “ecologicamente conselente”. Quinto: Mars, alega-se, tinha pouco in- teresse palas questoes da ciencia ou pelos efeitos da tecnologia sobre o meio ambiente, faltando-lhe, pois, base cientifica para a analise de questies ecoligicas. 83/2006 Prineipion Segundo os proeminentes socidlogos britanicos Mi chael Redclift e Graham Woodgate, Marx teria suge- rido que as interagées humanas com meio ambien- te natural, embora soviais, eram também “ubiquas € imutaveis”, comuns a cada fase da existéneta social Tal prerspectiva mao reconhece integralmente o papel da tecnologia € 08 seus efeitos no meio ambiente Sexto: Marx, diz-se, era “especiesista”, dissociando radicalmente os seres humanos dos animais € to mando o partido daqueles em detrimento destes. Todas essas criticas sao sumariamente contrad- tadas pela andlise que se faz neste livro, no qual se tenta uma reconstrucao sistematica do pensamento ecxologico de Marx. Muitas dessas criticas confun. dem Marx com outros teéricos socialistas eriticados pelo proprio Marx, segundo uma antiga tradicao na critica marxista em que , citando Jean-Paul Sartre “um argumento ‘antimarxista’ é apenas o rejuvenes- cimento aparente de uma idéia pré-marxista”. Dai Marx ser atacado pelo seu suposto " prometefsmo” tecnologico, muito embora o ataque mais forte ja es: crito contra tais visdes “prometéicas” seja o do pré- prio Marx, na critica do System of econorr Hons de Proudhon, Do mesmo modo, Marx ¢ conde- nado por nao ter conseguido reconhecer a contribul- ‘p30 da natureza para a riqueza, apesar da sua aguca da critica do socialista alemao Ferdinand Lassalle por ter adotado a visdo “sobrenatural” de que o trabalho era a tinica fonte de riqueza, e assim ignorado a con- tribuicao da natureza. No fundo, porém, 0 que esté sendo questionado na maioria dessas criticas € 0 materialismo de Marx. Diz-se aqui que o materialismo de Mars o levou a en- fatizar uma espécie de dominacéo “baconiana’ do desenvolvimento econdmico e da natureza, em vez de afirmar valores ecoldgicos. Marx torna-se assim tuma espécie de whig radical que opde aos tories adora- dores da natureza, um representante do antropocen- trismo utilitirio em contraposic’io ao ecocentrismno romantico. 0 problema desta critica, como de tao boa parte do pensamento socioeconémico da época, 6 que la nao consegue reconhecer a natureza fundamental dla interarao entre os seres humanns € 0 seu meio am- biente. A questdo ecolégica reduz-se antes e acima de tudo a uma questao ce valores, ainda que a questao muito mais dificil da compreensao da evalugso cas In terrelapées materials (0 que Marx chama de “relagdes Is: CAPA metabélicas’) entre os seres humanos e a natureza nao s¢ja, pois, minimamente alcan¢ada. De um pon- to de vista materialista consistente, a questo nao é antropocentrismo versus ecocentrismo ~ a rigor, tais, dualismos pouco nos ajudam a entender as condi Ges materiais reais, em perene mudanga, da existén- cia humana no interior da biosfera ~ mas uma ques to de co-evolucio, Abordagens que focam simples mente valores eoolégicos, como 0 espiritualisino ¢ 0 idealismo filossfico de modo mais genérico, sio de pouca valia para a compreensao destas complexas re- lagoes. Contrastando com todas essas visdes, que “baixam do céu para a terra”, é necessario “ascender da terra para o céu”, Isto 6, precisamos entender co mo as concepcdes espirituais, inclusive as nossas co: nnexoes espirituais com a terra, relacionam-se com as nossas condicdes terrenas, materiais. Ha aqui mais coisas em jogo do que simplestnen- te Marx, 6 dbvio, O que realmente esta em jogo é to- daa historia das abordagens materialistas 4 natureza ¢ dexistencia humana. Dentro do pensamento verde da époea, deserwolveu-se uma forte tendéncia para atribuir todo o curso da degradacao ecoldgica & emer- ‘gencia da revolucio cientifica no século XVIL, repre sentada acima de tudo pelas contribuigdes de Francis, Bacon. Bacon é retratado como o principal proponen. te da “dominagao da natureza” ~ t6pico normalmen te desenvolvido pela citagao de determinados aforis- mos, sem qualquer consideracao sistematica do pen- samento dele. Dat a idéla da *dominacao da nature- za ser tratada como uma perspectiva simples, dire tamente antropocéntrica, caracteristica do mecani. cismo, & qual se pode opor uma visao romantica, or ganicista,vitalista, pés-moderna. Nao obstante, focando no conflito entre 0 meca- nieismno e o vitalismo ou idealismo (e perdenda de ‘vista a questao mais fundamental do materialismno), cai-se numa concepeao dualista que nao consegue reconhecer que estas categorias a0 dialeticamente conectadas na sua unilateralidade, ¢ precisam ser transcendidas juntas, pois representam a alienacao da sociedace capitalista, Como Christopher Cauchwell (1907-1937), inquestionavelmente o maior pensador marxista da sua geragao na Gra-Bretanha, observou na década de 1930, o mecanicista € “Levado pela re flexdo sobre a experiéncia ao pélo oposto, que nao passa de urn outro aspecto da mesma ilusao —a tele ologia, a vitalismo, ao idealismo, a evolugao eriativa ou ao que quer que se queira chamar a isso, mas que € deverto a ideologia da moda no capitalismo em de- cadencia” A perpetuarao dessa perspectiva dualista é in- trinseca a grande parte da Teoria Verde da época, e, por vezes, levou essa tradicao a uma crua rejeieao de quase toda a ciéncia modema, bem como o ilumninis mo e 0s movimentos mais revoluciondrios ~ uma tendéncia que alimentou o anti-racionalismo de boa parte do pensamento pés-roderno contemporaneo.. Do século XVII a0 século XX, quase todos os pensa dores, salvo alguns potas, artistas e eriticos cultu- rais, sao condenados nesta visdo por aderirem a valo- res antiecoldgicos ¢ por endeusarem o progresso. Neste contexto estranho, idealista, em que s6 0s valores importam, as questées histdrieo-materials re- ais desaparecem ¢ as grandes lutas histéricas e inte- lectuais reduzem-se a meras frases. E dbvio, ou deve- ria ser, que a nogao da “dominacao da natureza” pe- Jo homem, embora tendendo para o antropocentris- ‘mo, nao implica necessariamente uma extrema des- considera¢ao da natureza ou das suas leis. O proprio Bacon afirmou que a maestria da naturezaestava en- raizada na compreensaoe na obediéncia as suas leis. Embora isso fosse ser condenado por Marx como so- bretudo um “ardil” para obrigar a natureza a confor mar-se as necessidades do desenvolvimento burgués, a formulacdo expressava, porém, uma contradicao verdadelra da condicao humana Assim, partindo do conceito da “maestria da na tureza”, Caudwell escreve em Illusion and reality (1937) “Os homens, na luta com a natureza (isto 6, na uta pela liberdade), entram em certas relagdes uns com os outros para conquistar essa liberdade (...) ‘Mas os homens nao podem mudar a natureza sern mudara si mesmos. A plena compreensao desta mii tua interpenetracao do movimento reflexivo dos ho- mens e da natureza, tendo como mediador as rela- ees necessérias © em desenvolvimento conhecido como sociedade, & 0 recontectmento da necessidade, no apenas na riatureza, mas em nés mesmos e, por- tanto, na sociedade. Vista objetivamente, esta ativa relaeao sujeito-objeto 6a cienciar vista subjetivamen- te, € arte; mas, como consciéncia emergindo em ativa uniao com a pratica, ela é simplesmente avida 16 83/2008 CAPA concreta - todo o provesso de trabalhar, sentir, pensar ¢ comportar-se como individuo humane num mundo Ainico de individuos e natureza” Nessa concepsao dialética, que enfatiza a *refle- xividade’, a assim chamada “maestria da natureza” torna-se un processo infindavel de intera¢ao dialéti- ca. Dai no ser nenhuma surpresa Caudwell ter em- preendido na sua obra Heredity and development, esbo ¢ada pouco depois de Zilusion and reality, mas 56 publi- cada meio século depois, em 1988, uma forte defesa de uma abordagem co-evoluciondria as relagdes en- tre o homem e a natureza, enraizada tanto em Danwin quanto em Marx, Uma vez que se reconhega, em conformidade com o argumento acima, que nao ha contradi¢ao fundamental necessAria entre a mera idéia de * ma- esirla da natureza” ¢ o concelto de sustentabilida- de, nao sera nada surpreendente que as nogdes de “maestria” e “sustentabilidade” tenham surgido juntas, exatamente dentro da propria tradicao ba coniana, Nao por acaso entre os “aperfeigoadores baconianos também se incluem os primeiros defen- sores do desenvolvimento sustentavel, como a grande defesa das florestas em Syivie (1664), de John Evelyn, e 0 seu ataque a poluigao do ar ~ a maior critica materialista jamais escrita da poluigao atmosférica ~ em Furnifugiura (1661), Nao apenas como aperieicoador baconiano, mas também como tradutor de parte de De erurn natura (Sobre a natu- reza das coisas), de Lueréclo, a obra prima poética do antigo materialismo epicurista (que seria um ponto de partida para o materialismo do props Marx), Evelyn representa o conjunto extremamen: te complexo de questies aqui envolvido, Na verdade, as maiores avangos na evolucao do pensamento ecoldgico até o fim do século XIX resul- taram da ascensao a proeminéncia de concepeoes materialistas de natureza,interagindo com condi¢oes historicas mutantes. Na era medieval, a rigor até 0 fim do século XIX, a viséo de mundo dominante era a visao teleolégica da Grande Cadeia do Ser (poste- riormente modificada pela teleologia natural) , que explicava tudo no universo em termos da divina pro- videneia e secundariamente em temos da eriagao da terra por Deus para o “homem”. Todas as espécies fo ram criadas separadamente. A terra era o centro do univers, € 0 tempo € o espaco eram limitados. O 83/2006, Marz. grande inimigo deste ponto de vista, ab fnitia foto antigo materialismo, sobretudo 0 materialismo epi- curista, que seria ressuscitado no interior da ciéncia renascentista ¢ iluminista, Questionando o ponto de vista escotastico-aris totélico, 0 materialismo também questionava 0 an- tropocentrismo que era central a esta teleologia: a terra foi desalojada do centro do universo; descobriu- se que 0 tempo eo espaco eran infinitos (e até que a historia da terra estava atrelada ao * profundo abis- mo” do tempo): ¢, por fim, demonstrou-se que os se- res humanos compartilhavam com os macacos de uma ancestralidade comum, originando-se de um gallo da mesma arvore evolucionaria, A cada ponto desse crescimento da cléncia, que seria equacionado com o erescimente do materiatismo, Deus era desalo Jado do universo material - do sistema solar, da evo- lucao da terra, da prépria evolucao da vida, por fim, de tal forma que, na visio da cléncia moderna, Deus, como os deuses de Epicuro, com efeito habitava cada vez mais 0 intermunda, os poros entre os mundos, sem qualquer rela¢ao com o universo material, A mesma importancia teve a grande descoberta ~ es- senicial para a andlise ecoldgica — da interdependén- 17 CAPA cia dos seres humanios com a terra ao longo de toda a evolucao material. Nao se podia mais presumir que ‘5 seres humans fossem simplesmente dominantes, ou supremos, ocupando asua propria posi¢ao fixa na Grande Cadeia do Ser a meio caminho entre os mais, inferiores dos organismos e os mais superiores dos anjos (ou Deus). 0 importante, em vez disso, era a natureza da interacéo entre os seres humanos ¢ 0 mundo material do qual eles erarn parte. A relagao humana com a natureza era, como Bacon havia enta tizado, um fendmeno da histérla natural ou, como Darwin salientava, de uma longa trajetsria de selegao natural 0 relato evoluciondrio da natureza do proprio Darwin derivava do seu materialismo fundamental, intransigente (com respeito ao mundo natural). Ele represenitou aur sé tempo a “morte da teleologia” (como salientou Marx) @ 0 erescimento de um ponto de vista antiantropocentrico. E com hase na obra bio- istérica de Darwin, complementada pelas descober tas biolisicas de outros cientistas, como o grande qui mico agricola alemdo Justus Von Liebig, com sua én- fase na circulacao dos nutrientes do solo e sua rela ¢40 com o metabolismo animal, que se pode dizer que aecologia inoderna emergiu ern meados do sécu lo XIX. Mesmo o darwinismo tendo sido freqiente mente convertido em apenas mais uma perspectiva mecanicista, “o darwinismo, tal como encontrado nos escritos de Darwin’, escreveu Caudwell, *(.) ainda recende an contrato com a multidao de novos fatos biolsgicos entao sendo descobertos. O organismo ainda nao ¢ colocado aridamente contra 0 meio ambiente, mas a teia da vida ainda ¢ vista per meando com fluidez o resto da realidad (..) A extra- ordinéria riqueza do cortejo de mudanca, historia e conflito na vida, que Darwin descerra, confere um poder revolucionzrio insurgente aos seus escritos e aos de outros seguidores imediatos como Huxley”. ‘A importancia da andlise de Darwin para nés ho- je foi sublinhada sobretudo por Rachel Carson, que cescreve: “Hoje, seria dificil encontrar qualquer pessoa instrufda que negasse os fatos da evolugao, Nao obs. tante, muitos de nés negamos 0 corolario dbvio: que © homem ¢ afetado pelas mesmas influencias am. bientais que controlam as vidas de todos os muitos miilhares de outras espécies com as quais ele esté re lacionado por vineulos evolucionéties” As implicapdes mais amplas disto e a importan- ia global do materialismo para o desenvolvimento do pensamento ecoligico podem ser entendidas com mais clareza a partir de uma perspectiva ecolégica da 6poca observando as quatro conhecidas “leis infor- mais” da ecologia de Barry Commoner. Sao elas: (1) tudo se conecta com tudo o mais; (2) tudo precisa ir a algum lugar; @) a natureza sempre tem razio; (4) nada vem do nada (18) ‘As duas primetras e a tiltima dessas “lets infor. mais” eram prinefpios cruciats da fisica epicurista, enfatizados no Livro I de Sobre 2 natureza das coisas, de Lucrécio, que foi uma tentativa de apresentar a filo- sofia epicurista em forma postica (19). A terceira “lei informal” parece, & primeira vista, implicar um de- terminismo teolégico, naturalista, mas no contexto do argumento de Commoner é mals bem compreen- dida como “a evolugao tem razao”, Ou seja, no curso da evolucao ~ corretamente entendida nao como um. proceso teleoligico ou rigidamente determinado, ‘mas como um processo que contém a cada etapa co- lossais niveis de contingéncia — as especies, inclusive 98 seres humanos, tornaram-se adaptadas aos seus ambientes por meio de um processo de selecZ0 natu- ral de variagdes inatas, operando numa eseala crono- ogica de milhoes de anos. Entao, segundo essa pers- pectiva, nds deveriamos ter muita cautela ao fazer mudancas ecolégicas Fundamentais, reconhecendo que, se introduzirmos no meio ambiente substan quimicas novas, sintéticas, que nao sejam produto de uma longa evolugdo, estaremos brincando com fogo. Em tiltima instancia, ¢ evidente que os seres hu- manos nao so totalmente determinados pelas con- dicdes naturais (alémn da morte, que, nas palavras de Epicuro, ‘nao significada nada para nds”). Ha, na r alidade, um elemento de liberdade humana, uma ca- pacidade de “mudar de direcao”, mas sempre com base em condigoes materiais que existem como ante- cedentes e que carregam com elas algumas limita ¢6es. Dai os seres humanos, como enfatizou Epicuro, existirem num mundo governado pela extincao des- sas espécies que nao conseguem se adaptar (ndocon- fundir com uma teorta de selecao natural plenamen- te desenvolvida no sentido darwiniano) ¢ caractert zado por um desenvolvimento na relaao humana com a subsisténcia. Tudo isso esta sujeito & contin géneia e, no caso do homem, & escolha ética: a for- 18 83/2008 CAPA magio de compactos sociais inclusive, (Tudo isso consta do Livro V do grande poema de Lucrécio,) Foi com essa filosofia materialista fundamental que Marx se debateu, pelo menas até certo ponto, desde a juventude. Ainda no ginasial, muito antes de ter qualquer contato com Hegel, Marx se debatia com a critica epicurista da conceprao religiosa do mundo. Mais tarde, o epicurismo se tomou o topico da sua tese de doutoramento, permitindo que ele fo- casse, a umn si tempo: as primeiras teorias materialts- tas, as stias concepebes de liberdade humana, as fon- tes do iluninismo, o problema da filosofta da nature za hogeliana, a critica da religiao, ¢ 0 desenvolvimen- todaciencia, Para Mars, a principal limitacao da filosofia de Epicuro estava no fato de que o seu materialismo era meramente *contemplativo, umn problema que rea parecia mais tarde em Feuerbach. Encampando 0 elemento ativista da dialética e filosofia hegeliana, ‘Marx desenvolveu um materialismo pratico enraiza- do no conceito de praxis. Mas isso jamais, em ne- nhum ponto da sua obra, dissociou-se de uma cn; ceprao de natureza mais profundamente material ta que permaneceu implicita no seu pensamento. Is- so deu 2 obra de Mark grande forga teérica, além da que the é normalmente atribuida. Assim se explica 0 fato de Marx ter avaliado tio rapidamente a im por tancia das obras de Liebig e de Darwin. Além do ais, ajuda-nos a entender como Marx, como ver ‘mos, fol capaz de construir um entendimento do de- senvolvimento sustentado com base na obra de Lie big e de co-evolucao com base em Darwin, Uma analise ecolégica cabal requer uma postura tanto materialista quanto dialética. Ao contrario de uma visio do mundo natural vitalista, espritualista, que tende aver o murdo em conformidade com al- gun propésito teleolégico, umn materialista vé a evo- lueao como um processo aberto da historia natural, governado pela contingéncia, mas aberto a explica- ¢40 racional. Num ponto de vista materialista que também seja de natureza dialética {isto é, um mate- rialismo ndo-mecanicista), isto é visto como um pro cesso de transmutaczo de formas num contexto de inter-relacionamento que exclui toda distingao abso. luta. A vida (dos organismos) e 0 mundo fisico, como Rachel Carson costumava enfatizar, nao existem em ‘ompartimentos isolados”. Ha, em ver disso, uma 83/2006 Prineipion “extraordindria unidade entre 0s organismos ¢ 0 meio ambiente”. Uma abordagem dialética nos forga a reconhecer que 0s organismos em geral nao se adaptam simplesmente ao seu meio ambiente, mas também afetam o meio ambiente de varias maneiras e, afetando-o, modifica. A relagao é, pois, reciproca, 0 solo”, por exemplo, “sofre mudancas evolucioné- grandes e duradouras em decorrencia direta da atividade das plantas que ali erescem, ¢ essas. mu- dangas por sua vez retroagem nas condigdes de exis- téncia do organismo”, Uma comunidade ecolégica e o seu meio ambi ete precisam, pois, ser vistos como um todo dialéti- 0, emn que diferentes niveis de existéncia sao ontolo- gicamente significativos ~ e em que nao ha um pro- pésito global guiando essas comuniclades. Até props- sitos humans supostamente universais estao aber- tos a questionamento por seu caraterlimitado, Os se- res humanos, observou Marx, atribuem caracteristi- cas universais, “uteis", aos bens que produzem, "emn- bora dificilmente o fato de ser comestivel para 0 ho- mem parecesse a uma ovelha uma das suas proprie- dades ‘iteis”. Este tipo de complexidade diakética no entendimento das relagées ecoldgicas tinha em vista atranscendéncia de todos os pontos de vista unilate rais, reducionistas. Como Richard Levins e Richard Lewontin expli camn em The dialectical biolgis, “Tanto as necessidades tedricas internas da eco- logia quanto as demandas socials que informam as nossas interagées planejadas com a natureza exigem que se faca da compreensao da complexidade o pro- blema central. A ecologia precisa se haver com a in- terdependéncia e a autonomia relativa, com a seme- thanca e a diferenca, com o geral e 0 particular, com ‘ovacaso e a necessidade, com o equilibrio ea mudan- a, com a continuidade e a descontinuidade, com os processos contraditérios. Precisa se tornar cada vez mais consciente da sua propria filosofia, ¢ essa filoso- fia sera eficaz na medida em que se tornar nao ape- nas materialista, mas dialética”. Jeb Belloray Foster & ettor de Monthly Review. Tato transit to A ecolgl de Maa: matralisco ¢vaturez. (Cradaydo de Marla Trea Macisde),Rio de Jari: CrdiaSo Braslta, 2005 19

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